Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0014130-91.2009.4.03.6100

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. TORU YAMAMOTO

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

Advogado do(a) APELANTE: PERCIO ALVES DE MENEZES - SP112533

APELADO: RADIO E TELEVISAO BANDEIRANTES S.A., UNIÃO FEDERAL

Advogado do(a) APELADO: ANDRE GONCALVES DE ARRUDA - SP200777

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0014130-91.2009.4.03.6100

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. TORU YAMAMOTO

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

Advogado do(a) APELANTE: PERCIO ALVES DE MENEZES - SP112533

APELADO: RADIO E TELEVISAO BANDEIRANTES S.A., UNIÃO FEDERAL

Advogado do(a) APELADO: ANDRE GONCALVES DE ARRUDA - SP200777

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de ação civil publica ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da Rádio e Televisão Bandeirantes Ltda., objetivando o recebimento de indenização por dano moral coletivo decorrente da exibição de programa televisivo com conteúdo improprio à classificação indicativa do Ministério da Justiça.

Pleiteia o autor a tutela do direito difuso à reparação dos danos experimentados por crianças e adolescentes expostos a conteúdo inapropriado para o horário, exibido pela emissora ré no programa "Atualíssima" do dia 19.03.2009 às 15 horas.

Destaca o autor, embora a classificação indicativa "livre", o programa teria veiculado, na referida data, matéria de conteúdo pornográfico, bem como o rosto de adolescente, vítima de tortura, sem distorção de imagem, relata ainda, haver a emissora ré, com o objetivo de conquistar audiência, adotado conduta ofensiva ao público infanto-juvenil, em violação à Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Foi reconhecida, em decisão, a ilegitimidade ad causam da União para integrar o polo passivo da lide, o autor interpôs agravo retido.

A empresa ré contestou o feito.

A sentença julgou improcedente a pretensão, deixou de condenar aos honorários advocatícios. Custas na forma da lei.

Sentença não submetida ao reexame necessário.

Inconformado o MPF interpôs apelação pugnando pela reforma da sentença, repisando os argumentos da inicial.

Com contrarrazões, os autos foram remetidos a esta Corte.

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0014130-91.2009.4.03.6100

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. TORU YAMAMOTO

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

Advogado do(a) APELANTE: PERCIO ALVES DE MENEZES - SP112533

APELADO: RADIO E TELEVISAO BANDEIRANTES S.A., UNIÃO FEDERAL

Advogado do(a) APELADO: ANDRE GONCALVES DE ARRUDA - SP200777

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

Inicialmente, cumpre asseverar submeter-se ao duplo grau de jurisdição obrigatório a sentença que conclui pela improcedência do pedido ou de parte do pedido deduzido em sede de ação civil pública, por força da aplicação analógica da regra contida no art. 19 da Lei nº 4717/65. Nesse sentido, destaco os seguintes arestos do C. Superior Tribunal de Justiça:

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. REEXAME NECESSÁRIO. CABIMENTO. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ART. 19 DA LEI 4.717/1965. 1. ´Por aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário` (REsp 1.108.542/SC, Rel. Ministro Castro Meira, j. 19.5.2009, Dje 29.5.2009). 2. Agravo Regimental não provido."

(AGRESP 201001846488, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:25/04/2011 ..DTPB:.)

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA . REPARAÇÃO DE DANOS AO ERÁRIO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. REMESSA NECESSÁRIA. ART. 19 DA LEI Nº 4.717/64. APLICAÇÃO. 1. Por aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário. Doutrina. 2. Recurso especial provido."

(RESP 200802742289, CASTRO MEIRA, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:29/05/2009 REVPRO VOL.:00177 PG:00268 ..DTPB:.)

Nesse passo, conheço da matéria também por esse prisma.

Quanto ao agravo retido interposto contra a decisão que declarou a ilegitimidade ad causam da União para figurar na lide, examino a matéria devolvida a esta Corte em atenção ao requerimento formulado nos termos do artigo 523, § 1º, do Código de Processo Civil.

O pedido de integração da União à lide, indeferido pela decisão agravada, foi formulado pelo Ministério Público nos seguintes termos: "intimação da União para querendo, habilitar-se como litisconsorte ativo" e, em caso de recusa, "sua citação para compor o polo passivo" e "para que, ao final, seja a mesma condenada em obrigação de fazer consistente em notificar o Congresso Nacional para que os fatos narrados sejam observados para efeito de decisão quanto à renovação ou não da concessão da emissora em tela".

A aferição da legitimidade ad causam está adstrita à identificação dos sujeitos descritos como titulares da relação jurídica de direito material deduzida em juízo.

No tocante à possibilidade de mais de um sujeito figurar nos polos ativo ou passivo da demanda, prescrevem os art. 46 e 47 do Código de Processo Civil, in verbis:

Art. 46. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:

I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide;

II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito;

III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir;

IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.

Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.

Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.

Como se pode observar, nas hipóteses em que a relação jurídica de direito material for indivisível, isto é, quando os efeitos da decisão judicial atingirem de forma uniforme todos os sujeitos participantes da relação, será obrigatória a formação do litisconsórcio ("litisconsórcio necessário").

A respeito do tema, peço vênia para destacar o escólio de Cândido Rangel Dinamarco (in Instituições de Direito Processual Civil - Volume II. 3ª edição, revista, atualizada e com remissões ao Código Civil de 2002. Malheiros Editores. São Paulo, 2003, p. 353), in verbis:

"O litisconsórcio só será necessário (a) quando a causa versar um objeto incindível, conforme disposição genérica contida no art. 47 do Código de Processo Civil ou (b) quando assim a lei o estabelecer de modo específico, embora o objeto não seja incindível.

(...)

A incindibilidade do objeto do processo não só impede que se profiram decisões conflitantes em relação aos litisconsortes (unitariedade), como também exige que todos eles estejam no processo (necessariedade). Essa é uma imposição de pura lógica, porque o absurdo é o mesmo (a) na sentença que pretendesse cindir o incindível mediante duas decisões conflitantes e (b) na que ditasse uma solução para um dos sujeitos sem ditá-la em relação aos outros porque não foram partes."

Contudo, esse não é o caso dos autos.

Em ação civil pública, a participação da União no polo ativo traduz consoante regra do art. 5º, § 2º, da Lei nº 7.347/85, a existência de litisconsórcio inicial, facultativo e unitário, motivo pelo qual não se vislumbra irregularidade na formação da relação processual e tampouco a possibilidade de ulterior acréscimo de litigante.

Por outro lado, insubsistente o pedido alternativo de, em não se formando litisconsórcio ativo, ser incluída a União no polo passivo para fins de condenação na obrigação de notificar o Congresso Nacional acerca do fato sob análise, quando da renovação da concessão da emissora ré.

Como cediço, o legislador reservou à União (Poder Executivo) competência para regular, outorgar e renovar a concessão de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (mediante aprovação do Congresso, em quórum qualificado), bem como a atribuição de fiscalizar e monitorar o cumprimento das obrigações impostas às concessionárias, inclusive quanto à observância da classificação, para efeito indicativo, da programação exibida.

A gestão desses contratos, nos termos dos arts. 21, XII, "a", e XVI, 221, e 223, da Constituição Federal de 1988, da Lei nº 5.785/1972 e do Decreto nº 88.066/83, constitui dever do poder público concedente, de molde a garantir sejam respeitados os valores expressos na Constituição e no ordenamento jurídico nacional, presumindo-se tal exercício porquanto inerente às suas atribuições legais.

Com efeito, não se há supor futura omissão da União em executar seu papel, motivo pelo qual carece de interesse processual o órgão ministerial, nesse tocante, devendo-se ressaltar, em uníssono com juízo a quo, que seu ingresso na qualidade de ré só se justificaria "se a ela se apontasse ilegalidade ou erro em seu julgamento, mediante específica circunstância de fato com fundamento na ordem jurídica, o que aqui não ocorre".

Outrossim, eventuais incursões sobre o procedimento de renovação da concessão dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens demandariam a reconfiguração da presente demanda, dados os contornos da causa de pedir. Melhor dizendo, a inclusão da União para eventual notificação do Congresso Nacional com o intuito de sopesar o resultado do presente feito no momento da renovação da concessão desborda os limites da presente lide, circunscrita à reparação de dano moral coletivo por violação a interesse difuso de crianças e adolescentes expostos à programação vespertina da emissora ré.

Superada a matéria preliminar, passo a apreciar o mérito.

Com o ajuizamento da presente ação civil pública, o Ministério Público pretende obter provimento jurisdicional hábil a tutelar o interesse difuso de crianças e adolescentes expostos ao conteúdo do programa "Atualíssima", exibido pela emissora Bandeirantes em 19 de março de 2008, no período vespertino (15h).

Conquanto referido programa tenha recebido classificação "livre", segundo os critérios indicativos do Ministério da Justiça, o órgão ministerial apurou a veiculação, na referida data, de conteúdo impróprio para o horário (de cunho pornográfico), bem como do rosto de adolescente, vítima de tortura, sem distorção de imagem.

Consta da inicial o pedido de condenação da Rádio e Televisão Bandeirantes Ltda. "a indenizar os danos morais causados ao interesse difuso, mediante recolhimento ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (...) da importância equivalente ao valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais)".

Com a prolação da sentença de improcedência dos pedidos, o Parquet interpôs recurso de apelação, sustentando equívoco do juízo a quo em reputar o conteúdo do programa compatível com sua classificação livre, em razão - unicamente - da decisão exarada na esfera administrativa, pelo Ministério da Justiça, cujos pronunciamentos estão sujeitos a controle judicial. Ademais, defende estar caracterizado o dano moral coletivo a partir da exposição indevida da imagem de apenas uma vítima, criança ou adolescente, não configurando dano individual, consoante afirmado na sentença.

Com efeito, merece reparo a decisão prolatada em primeiro grau jurisdicional.

A princípio, vale destacar, à luz do disposto no inciso III do artigo 129 da Constituição Federal de 1988, estar consolidada a atuação do Ministério Público em defesa dos interesses difusos e coletivos. Eis o teor da redação do comando constitucional em questão, in verbis:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Ainda a Lei Complementar nº 75/93, em seu artigo 6º, ao disciplinar a organização e atribuições do Ministério Público da União, deixa clara a vocação institucional do órgão ministerial para propositura de ação civil pública em defesa dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos relativos à criança e ao adolescente, conforme se infere da leitura da norma, in verbis:

Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:

(...)

VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

(...)

c) a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor;

Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei nº 8.069/90, autoriza o Ministério Público, no inciso V do artigo 201, a ingressar com ação civil pública para "a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência", inclusive os definidos pelo art. 220, § 3º, da Constituição Federal de 1988, que assim prescreve:

§ 3º Compete à lei federal:

(...)

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Por oportuno ao deslinde do presente feito, vale também lembrar o teor do art. 221 da Carta Magna, mencionado no dispositivo acima transcrito, a saber:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família

Tendo-se, então, por inquestionável o cabimento da presente ação civil pública em defesa dos interesses individuais de crianças e adolescentes, insta ressaltar a pertinência da pretensão de reparação dos danos coletivos deduzida na inicial.

A princípio, em breve digressão teórica, invoco os contornos conceituais do dano moral individual, assim entendido o prejuízo ligado à esfera de valores da personalidade, como ensina Yussef Said Cahali, in verbis:

Tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na desconsideração social, no descrédito, à reputação, na humilhação pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral.

(Dano Moral, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, pág. 21)

A par do dano moral individual, acima conceituado, exsurge o dano moral coletivo quando a lesão opera-se em face de direitos imateriais de natureza difusa ou coletiva (em sentido estrito), atingindo valores relevantes afetos à esfera de interesses extrapatrimoniais de grupos de indivíduos. Nesse caso, o dano não decorre de dor ou sofrimento, mas da lesão a bens jurídicos essenciais da coletividade.

Assim, a ofensa passível de caracterizar o dano moral coletivo consiste, nas palavras de Carlos Alberto Bittar Filho, em "injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos" (Do Dano Moral Coletivo no Atual Contexto Jurídico Brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 12. São Paulo: RT, out-dez, de 1994, p. 55, in REsp 636021/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi).

Com efeito, a coletividade conta com ampla proteção jurídica diante da lesão à tábua de valores que compõe seu patrimônio moral e/ou cultural. Significa reconhecer que, embora o ato lesivo causador do dano moral coletivo possa adquirir foros de irrelevância diante da moral individual e da percepção de determinada(s) pessoa(s), assume, perante a coletividade, proporções de grave afronta ao senso comum, ensejando reparação.

Nesse sentido, insta mencionar o memorável acórdão da Segunda Turma do C. Superior Tribunal de Justiça, tirado do REsp 1.057.274, de relatoria da Min. Eliana Calmon, cujo voto reconheceu não apenas a proteção devida em razão da configuração de dano moral coletivo, mas ainda sua mensuração pelo Direito. Vale conferir, verbis:

"O dano moral extrapatrimonial deve ser averiguado de acordo com as características próprias aos interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres próprios das pessoas físicas que compõem determinada coletividade ou grupo determinado ou indeterminado de pessoas, sem olvidar que é a confluência dos valores individuais que dão singularidade ao valor coletivo.

O dano moral extrapatrimonial atinge direitos de personalidade do grupo ou coletividade enquanto realidade massificada, que a cada dia mais reclama soluções jurídicas para sua proteção. É evidente que uma coletividade de índios pode sofrer ofensa à honra, à sua dignidade, à sua boa reputação, à sua história, costumes e tradições. Isso não importa exigir que a coletividade sinta a dor, a repulsa, a indignação tal qual fosse um indivíduo isolado. Estas decorrem do sentimento coletivo de participar de determinado grupo ou coletividade, relacionando a própria individualidade à ideia do coletivo."

(STJ. REsp 1.057.274/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, j. 01/12/2009, DJe 26/02/2010)

Aliás, a existência do dano moral coletivo conta com o reconhecimento expresso do ordenamento jurídico nacional desde o advento do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, que em seu art. 6º, inciso VI, reza:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

Também pode-se ler na redação do art. 1º da Lei da Ação Civil Pública, Lei nº 7.347/85, verbis:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (...)

IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

A par do exposto, tal como se dá na seara do dano moral individual, em sede de dano moral coletivo também não se há cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar objetivamente o(s) agente(s) pela simples afronta aos princípios que garantem a manutenção de padrões mínimos de conduta ética nas relações sociais e econômicas.

Assentado o cabimento da presente ação coletiva e a possibilidade jurídica do pedido de condenação da ré em ressarcir danos morais coletivos, há de se reconhecer a natureza lesiva dos atos imputados à emissora Bandeirantes de Televisão.

Consta dos autos haver a emissora Bandeirantes, na edição do Programa "Atualíssima" de 19.03.2008, veiculado reportagens sobre filmes pornôs, com cenas feitas pelos atores Alexandre Frota e Gretchen, bem como, apresentado matéria sobre a empresária Silvia Calabresi, que teria cometido atos de tortura contra a filha adotiva, cuja face fora exibida sem distorção de imagem, permitindo seu reconhecimento.

Nos termos da conclusão esposada em laudo preparado por profissional da área da saúde (psicóloga) para instruir a inicial:

"Os assuntos abordados nos programas estão inadequados para crianças e adolescentes, por isso os Programas não poderiam receber a classificação ´livre para todas as idades`.

A exibição dos Programas no horário compreendido entre 15 horas e 16 horas e 30 minutos é inadequada e temerária por tratar-se de um horário em que um grande número de crianças encontram-se aos cuidados de babás ou similares pois seus pais estão trabalhando e sequer tomam conhecimento de exposição de seus filhos a este tipo de informação. Sob este aspecto, as crianças ficam bastante vulneráveis.

É dever do adulto proteger a população infanto-juvenil de contatos precoces com conteúdos do mundo adulto embutidos na programação televisiva do horário livre, bem como de oferecer-lhe uma programação com conteúdos de qualidade capazes de contribuir para o seu desenvolvimento e que não tragam impactos que possam comprometer a formação biológica psíquica e social das crianças e adolescentes."

Com efeito, ao assistir ao vídeo acostado aos autos, em que consta gravação do programa exibido em 19.03.2008, observa-se a transmissão de cenas de filmes pornográficos com atuação de Alexandre Frota e Gretchen nos seguintes trechos: 28`13 a 28`17 (Alexandre Frota); 30`23 a 30`28 (Alexandre Frota); 30`36 a 30`41 (Alexandre Frota); 31`18 a 31`24 (Gretchen); 31`50 a 31`52 (Gretchen); e 32`14 a 32`15 (Gretchen). Ainda que o material não traga cena de sexo explícito, a abordagem da matéria, com nudez parcial dos atores, em encenações de beijos lascivos e carícias, remete à prática sexual, não se mostrando apropriada ao público e ao horário. O problema vislumbrado não concerne à temática, mas ao apelo erótico da matéria exibida.

Na mesma data, também foi reproduzida, pela emissora ré, no programa Atualíssima, a voz e a imagem do rosto de menor, sem distorção, em cenas de tortura praticada por pessoa indiciada em processo criminal nas quais se pode identificar menina de 12 anos amarrada e amordaçada. As imagens podem ser conferidas nos trechos: 48`09 a 48`29; 48`36 e 48`50.

A análise do material audiovisual e demais documentos concernentes ao conjunto fático-probatório denota franca violação, pela ré, do princípio da proteção integral insculpido no ECA (art. 3º) com vistas a assegurar o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças e adolescentes.

Violam, ainda, o complexo normativo formado pelas disposições legais que buscam harmonizar a proteção da infância e adolescência com a atividade das empresas que atuam como veículos de comunicação em massa, a exemplo das regras que dispõem sobre o conteúdo prioritário e a classificação indicativa da programação de televisão, amparadas pelos comandos dos arts. 21 e 221, da Constituição Federal de 1988, in verbis:

Art. 21. Compete à União:

(...)

XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

(...)

IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Aliás, nos termos dos vetores constitucionais em testilha, reza o ECA:

Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.

Parágrafo único. Nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição.

Como cediço, a mensagem transmitida por radiodifusão sonora e de sons e imagens tem imensa penetração na sociedade, aspecto, sem dúvida, levado em consideração pelo legislador ao exigir do Poder Executivo a realização de classificação indicativa, a qual, é bom frisar, não constitui censura, mas prévia verificação da adequação da programação ao público de destino.

O direito à liberdade de expressão de pensamentos e ideias constitui garantia constitucional, sendo a todos assegurado, não apresentando, contudo, natureza absoluta, pois deve coexistir com os direitos de titularidade de outrem, bem como com as finalidades e tarefas atribuídas pela Constituição ao Estado, visando o bem comum.

A liberdade de expressão e de comunicação, bem como do acesso à informação (art. 5º, IX e XIV, da CR/88), somente pode ser compreendida dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico-positivo.

No caso da programação televisiva para horários acessíveis a crianças e adolescentes, deve o Estado assegurar que o conteúdo transmitido pelas emissoras ostente caráter edificante, mostrando-se compatível com as necessidades inerentes a essa fase de formação do indivíduo.

Assim, conforme orienta a Constituição Federal, impõe sejam priorizadas, no horário "livre", informações de cunho educativo, cultural e artístico, vetor incompatível com a temática exibida pelo programa "Atualíssima", na data sob análise, quer no tocante à reportagem sobre filmes pornôs, quer no que se refere à matéria atinente à tortura da menor cujo rosto foi transmitido sem qualquer preservação de imagem.

Não se pode esperar que o indivíduo cuja personalidade encontra-se em formação apresente maturidade para, sem riscos ao seu desenvolvimento psicossocial, submeter-se ao impacto oriundo de material audiovisual de apelo erótico ou de caráter violento.

Prioridade para o Estado e para a sociedade, o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente é responsabilidade de todos, pressuposto lógico da construção de bases sólidas que garantam plenas condições de desenvolvimento às futuras gerações e, portanto, à própria história da nação.

Em idêntico sentido, o seguinte precedente da Justiça Federal:

"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CLASSIFICAÇÃO DE PROGRAMAS TELEVISIVOS SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA. PORTARIA 796/2000. ESTADO DO ACRE. DIFERENÇA DE FUSO HORÁRIO. EXIBIÇÃO EM HORÁRIO DIVERSO DO PERMITIDO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITAÇÕES. 1. A sentença apelada julgou parcialmente procedente ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal para determinar às emissoras de TV demandadas que procedam ao ajustamento de sua programação diária no Estado do Acre, passando a exibir o programa ZORRA TOTAL a partir das 21 (vinte e uma) horas, horário local, em observância às diretrizes contidas na Portaria nº 796/2000, do Ministério da Justiça. 2. Para fundamentar sua pretensão, o autor invocou as regras protetivas da infância e da adolescência dispostas na Constituição Federal de 1988 - cujo art. 221 dispõe que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão deverão obediência, entre outros princípios, ao "respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família" (inciso IV) - e na Lei nº 8.069, de 13/07/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). 3. Compete à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada (CF/88, art. 220, parágrafo 3º, I). 4. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, inclusive o direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e classificados de acordo com sua faixa etária (ECA, artigos 71 e 75). 5. Se a Constituição da República tutela o direito da criança e do adolescente de não serem sujeitos a qualquer forma de abuso, violência e discriminação, emerge um limite para os criadores e produtores de diversões televisivas na sua manifestação artística, certo que a televisão constitui, inegavelmente, um meio de comunicação de massa com fortíssima influência no modo de vida das pessoas, em especial crianças e adolescentes. 6. O fato de ser a classificação efetuada pelo Ministério da Justiça meramente indicativa não é permissão para que as emissoras de televisão possam, descuidando a adequação na formulação da grade horária de sua programação, negar cumprimento às regras que impõem o respeito à dignidade da criança e do adolescente, bem assim o seu direito de ter acesso a uma programação que contribua para um desenvolvimento saudável como. 7. Apelações improvidas."

(TRF1. AC 00025996020034013000, DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, QUINTA TURMA, e-DJF1 DATA:30/07/2010, PAGINA:118.)

Especificamente no caso da menor exposta no programa em testilha mediante transmissão de imagens nas quais aparecia presa, amordaçada e machucada, a presente ação cuidou invocar a tutela jurisdicional não apenas de seu interesse individual, mas do interesse de todas as crianças sujeitas a esse conteúdo, cuja dignidade fora simultaneamente maculada.

Assim também entende o c. STJ, consoante deflui da leitura do seguinte aresto:

"RECURSO ESPECIAL. INFÂNCIA E JUVENTUDE. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO À INFORMAÇÃO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA. VEICULAÇÃO DE IMAGENS CONSTRANGEDORAS. IMPEDIMENTO. 1. O Ministério Público é parte legítima para, em ação civil pública, defender os interesses individuais, difusos ou coletivos em relação à infância e à adolescência. 2. Por não serem absolutos, a lei restringe o direito à informação e a vedação da censura para proteger a imagem e a dignidade das crianças e dos adolescentes. 3. No caso, constatou-se afronta à dignidade das crianças com a veiculação de imagens contendo cenas de espancamento e tortura praticada por adulto contra infante. 4. Recurso especial não provido."

(STJ. REsp 509.968/SP. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. Terceira Turma. Julg. 06.12.2012.)

Quanto à apuração do prejuízo, para fins de configuração do dano moral indenizável, vislumbra-se ser da essência da ampla proteção dada aos direitos metaindividuais considerar-se grave a conduta dirigida contra vítimas indeterminadas, porquanto violadora, não raro, de atributo da dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, afigura-se coerente o critério utilizado para justificar o valor da indenização pleiteada, concernente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) por cada ponto de audiência do programa "Atualíssima".

Tendo em vista haver sido retirado do ar o programa em questão, acolhe-se o pedido para fixar a indenização no patamar mínimo, correspondente a 1 ponto de audiência, ou seja, R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

Ante o exposto, nego provimento ao agravo retido e dou parcial provimento à remessa oficial e à apelação.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


DECLARAÇÃO DE VOTO DIVERGENTE DO DES. FEDERAL JOHONSOM di SALVO:

 

O MPF afirma, usando descrição apresentada por uma analista da sua  instituição:

“...Certifico que, na edição do dia 19/03/2008 do Programa Atualíssima, exibido pelo TV Bandeirantes, foram veiculadas reportagens sobre a novela Dance Dance, o prêmio Shell (prêmio dado aos profissionais do Teatro), um assassinato envolvendo dupla sertaneja e, finalmente, sobre filmes pornôs. Nesta última, foram mostradas imagens impróprias dos filmes pornográficos feitos por Alexandre Frota e Gretchen. Por fim, foi apresentada reportagem sobre a empresária Silvia Calabresi, que torturava a filha adotiva. Nessa reportagem, foi mostrado o rosto da menor - sem qualquer distorção da imagem - enquanto era torturada (por volta dos 47').”

A psicóloga Irene da Rosa Costa, do MPF, apresentou em 30 de junho de 2008 as seguintes conclusões:

“...COMENTÁRIOS:  A exposição de crianças a temas contendo informações não apropriadas para sua idade pode despertar ou aguçar sua curiosidade sobre determinados assuntos do mundo adulto, levando-as a antecipar comportamentos que elas só teriam quando mais velhas.(...). Em se tratando de temas relacionados a erotismo e sexo, a situação torna-se delicada em razão da curiosidade natural que as crianças sentem sobre o assunto. Elas querem saber como é a relação intima de seus pais (ou similares). (...). A sïtuação se torna mais séria, no caso de filmes pornográficos. A exposição precoce de crianças a conteúdos sensuais pode gerar um fenômeno conhecido como "erotização precoce". Isto porque seu aparato fisico e psíquico ainda não está preparado para receber tais informações. Como sua identidade psíquica ainda está em construção, a criança começa a internalizar valores que são incorporados e reproduzidos sem a devida compreensão. Tais situações podem causar sérios danos ao seu desenvolvimento psíquico. O programa exibiu cenas de um filme pornográfico, contendo apelo sexual e conteúdo totalmente inadequado ao horário em que o programa é exibido e à sua classificação indicativa. Outro momento delicado do Programa, foi a exibição da reportagem sobre a tortura de uma adolescente por uma mulher, apresentada como "uma mãe", a quem a garota teria sido confiada para que recebesse cuidados e educação. O enquadramento e repetições das imagens mostrando a menina presa, amordaçada e muito machucada e os comentários enfáticos dos apresentadores intensificaram ainda mais a violência do conteúdo apresentado. Tais conteúdos podem gerar, em crianças e adolescentes sentimentos de medo e desenvolvimento, sentem em maior intensidade o impacto do conteúdo de violência doméstica. A situação se agrava quando a vítima é uma criança indefesa, pois tendem a identificar-se com a vítima, o que pode gerar fortes sentimentos de insegurança com prejuízos significativos para o seu desenvolvimento emocional. De acordo com o Manual da Nova Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, cenas de violência envolvendo crianças e adolescentes como vítimas recebem indicação de não recomendados para menores de 16 anos. CONCLUSÕES: - Os assuntos abordados nos programas estão inadequados para crianças e adolescentes, por isso os Programas não poderiam receber a classificação "livre para todas as idades". - A exibição dos Programas no horário compreendido entre 15 horas e 16 horas e 30 minutos é inadequada e temerária por tratar-se de um horário em que um grande número de crianças encontram-se aos cuidados de babás ... pois seus pais estão trabalhando e sequer tomam conhecimento de exposição de seus filhos a este tipo de informação. Sob este aspecto, as crianças ficam bastante vulneráveis. - É dever do adulto proteger a população infanto-juvenil de contatos precoces com conteúdos do mundo adulto embutidos na programação que não tragam impactos que possam comprometer a formação biológica, psíquica e social das crianças e adolescentes.”.

Intimada pelo MPF para apresentar “justificativas”, a empresa televisiva assim respondeu:

“...o referido programa é uma revista eletrônica de atualidades direcionada ao público feminino, abordando assuntos sobre estética, saúde, comportamento e o mundo das celebridades. - Além disso, durante o programa há um espaço dedicado ao jornalismo tradicional com a veiculação notícias visando manter os telespectadores/ atualizados com os principais acontecimentos do momento e em nítido caráter de utilidade pública. Primeiramente, no que se refere à notícia de "tortura de uma adolescente", importante frisar que se tratava de matéria jornalística para alertar os cidadãos a respeito da violência doméstica contra a criança, sem qualquer sensacionalismo sobre o caso. Ademais, não foi realizada nenhuma entrevista ao vivo e tampouco foi veiculada a imagem e o nome da menor vítima da violência doméstica. Frise-se, ainda, que no transcorrer do programa foram fornecidos números de telefones aos telespectadores para denúncia anônima de maus tratos contra crianças e adolescentes. Em segundo lugar, no tocante à alegada exibição de "cenas de filme pornográfico", oportuno esclarecer que a matéria visava à abordagem de artistas da televisão brasileira que, em busca de novas oportunidades de trabalho e sobrevivência, partiram para a produção cinematográfica de filmes de conteúdo adulto, a exemplo do ator Alexandre Frota. Para ilustrar a matéria foram utilizados dois trechos de poucos segundos de uma dessas produções, com o devido cuidado para não conter cenas eróticas. Não foi feito nenhum elogio sobre o filme ou citado o seu título que pudesse - incentivar a curiosidade do público adulto ou infantil. Desse modo, nas duas situações ora em comento, não houve qualquer intenção de enfatizar a violência ou oferecer conteúdo "erotizante" em horário de classificação livre, posto que esta emissora, com mais de 70 (setenta) anos de tradição em jornalismo, sempre se pautou em prestar bons serviços à população e, em especial, no programa "Atualíssima", cujo conteúdo é de entretenimento, jornalismo e utilidade pública.”.

Instada a se manifestar, a Coordenação de Classificação Indicativa da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça,  acentuou em resposta ao ofício do MPF: “...Em nenhum momento são veiculadas imagens de conteúdo sexual ou quaisquer conteúdos que firam o disposto no Manual da Nova Classificação Indicativa no que diz respeito a programas classificados como "Livre".”.

Em sua contestação, a ré afirmou que “...o programa "Atualíssima", atualmente fora da grade programação da ré devido ao baixíssimo índice de audiência, era uma revista eletrônica de atualidades direcionada ao público feminino, que abordava assuntos sobre estética, saúde, comportamento e o mundo das celebridades. Além disso, durante o programa havia um espaço dedicado ao jornalismo tradicional com a veiculação notícias visando manter os telespectadores atualizados com os principais acontecimentos do momento e em nítido caráter de utilidade pública.” (destaquei).

Afirmou, ainda, a emissora de televisão: “..., no que se refere à notícia de "tortura de uma adolescente", importante frisar que se tratava de matéria jornalística para alertar os cidadãos a respeito da violência doméstica contra a criança, sem qualquer sensacionalismo sobre o caso. Ademais, não foi realizada nenhuma entrevista ao vivo e tampouco foi veiculada a imagem e o nome da menor vítima da violência doméstica. Frise-se, ainda, que no transcorrer do programa foram fornecidos números de telefones aos telespectadores para denúncia anônima de maus tratos contra crianças e adolescentes. Da atenta audiência das imagens sobre a matéria acima mencionada, será possível verificar que o rosto da adolescente foi distorcido em todos os momentos e, quando não utilizado tal recurso, a imagem do rosto era apresentada distante e num ambiente escuro ou era mostrada de muito perto, impossibilitando o reconhecimento das feições da menina”.

Quanto a alegada apresentação de “filmes pornográficos”, esclareceu a ré que “...oportuno esclarecer que a matéria visava à abordagem de artistas da televisão brasileira que, em busca de novas oportunidades de trabalho e sobrevivência, partiram para a produção cinematográfica de filmes de conteúdo adulto, a exemplo do ator Alexandre Frota. Para ilustrar a matéria foram utilizados dois trechos de poucos segundos de uma dessas produções, com o devido cuidado para não conter cenas eróticas. Não foi feito nenhum elogio sobre o filme ou citado o seu título que pudesse incentivar a curiosidade do público adulto ou infantil. Ressalte-se, que os pequenos trechos do filme que foram mostrados, em cenas de beijos entre os atores, nada mais retrataram do que cenas tão comuns em novelas exibidas em horário livre em todas as emissoras de televisão deste país.” (destaquei).

A emissora ainda esclarece a destinação do programa e a forma como era apresentado: .. De qualquer maneira, importante destacar que o programa "Atualíssima" sempre teve baixíssima audiência, sendo o público predominante era o adulto, a partir da faixa etária dos 18 anos. Tanto era adulto o público que dava audiência ao programa que este era apresentando por dois adultos, Leão Lobo e Rosana Hermann, os quais, obviamente, não estavam associados ao universo de apresentadores do público infantil e, conforme é possível verificar dos roteiros dos dias 19 e 27/03/2008 e dos comprovantes de exibição dos comerciais ora anexos, os produtos anunciados durante o programa e nos intervalos comerciais não estavam ligados ao público infantil, tais como os de beleza e higiene pessoal da Unilever Brasil Ltda., os alimentícios da Perdigão S/A e os eletrodomésticos e móveis da Casa Bahia Comercial Ltda., bem como comerciais de implantes dentários, construtoras, telefonia, internet, bancos, etc. Destaque-se, também, que durante o horário que era transmitido o "Atualíssima" as outras emissoras também veiculavam programas direcionados ao público adulto e muito idênticos ao da ré, tais como "Mulheres" da TV Gazeta, "Programa da Tarde" da Record e "A tarde é sua" da Rede TV!”.

Sobreveio extensa réplica do “parquet”.

Na sequência, proferiu-se a sentença em que o d. Magistrado afastou a presença da União na lide e no mérito entendeu que, quanto às imagens de conteúdo sexual, “...a mídia com o programa gravado foi examinada pelo departamento responsável no Ministério da Justiço (Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação), onde se concluiu que "em nenhum momento são veiculados imagens de conteúdo sexual". Note-se que substituir esse parecer, realizado por equipe especializada e adequada ao assunto, por outra opinião, desse juízo, do Ministério Público, de sua equipe de psicólogos ou, ainda, de qualquer outro profissional indicado, não é razoável, tendo em vista que esses pontos de vista estarão assentadas na idéia particular de cada um a respeito do que vê na televisão, subjetivismo que é incompatível com a aferição de dano moral coletivo. O autor afirma que no seu entender "não há dúvidas de que o conteúdo de entrevista com atores de filmes pornográficos é totalmente adulta", temo, contudo, que o Ministério da Justiça não reputa incompatível com programas de classificação livre e essa conclusão baseia-se em critérios objetivos, que são os parâmetros vigentes num ambiente democrático e de liberdade de expressão assegurado pela Constituição Federal...”.

Com relação a suposta tortura de uma menor, considerou o Magistrado que, ainda que o programa tenha ventilado essa situação sem ocultar a imagem da vítima, eventual indenização teria caráter particular, não ensejando quantificação de dano moral coletivo.

O desfecho do recurso impõe a ampla consideração de situações de fato.

Em primeiro lugar, o finado programa "Atualíssima" era destinado ao público feminino, da mesma forma como, até hoje, a televisão brasileira leva ao ar programas matutinos e vespertinos destinados às mulheres; foi-se o tempo em que, na televisão aberta, havia programas infantis ou destinados ao aprimoramento moral e ético de quem quer que seja.

Tratando-se de programa destinado ao público feminino, temas de natureza sexual poderiam ser veiculados no programa, como são até hoje. Assim, num programa destinado a público adulto, a ligeira apresentação de uma dupla de atores brasileiros conhecidíssimos e que passaram a se dedicar a filmes eróticos, sem que tivesse havido invocação de imagens de conteúdo sexual explícito, salvo “cenas de beijos” que representam o dia-a-dia das telenovelas a que o público se expõe, obviamente não existe o condão de insultar a moralidade de um número indeterminado de pessoas e nem isso representa acinte contra a infância e a adolescência.

A psicóloga do MPF tem opinião contrária; é direito profissional dela.

Assim como os juízes podem pensar de modo diferente, já que as imagens não eram escandalosas.

Da mesma forma o órgão do Governo Federal encarregado da classificação dispõe de discricionariedade para avaliar o conteúdo do programa.

Ou seja, a questão é altamente subjetiva.

Para a srª psicóloga, a imagem contida no programa pode ser inadequada para crianças e adolescentes; para outros, essa imagem representada em poucos segundos de cenas de beijos, pode ser indiferente.

No ponto, cumpre lembrar que desde 1995 está no ar uma “soap opera” denominada “Malhação”, de grande sucesso, que vem abordando diversos temas como a sexualidade, o uso de drogas, a gravidez na adolescência, bullying, distúrbios alimentares, machismo e homossexualidade; o programa vai ao ar às 17h30 e não se conhecem críticas ou ações contra a emissora de televisão.

Vale a pena recordar que antes disso, a TV Cultura de São Paulo (fundação estatal) e a própria TV Bandeirantes, levaram ao ar o programa “Confissões de Adolescente” entre 1994-1996, o qual recebeu uma indicação em 1995 para o prêmio “Emmy Internacional”; nessa “soap opera” eram tratados com clareza temas como gravidez, sexo e drogas. Para exemplificar, destaco que o 10º episódio da 1ª temporada chamava-se “Essa tal de virgindade” e nele as personagens (irmãs) vão a um ginecologista (representado pelo saudoso Rubens de Falco) para que uma das meninas “entenda mais sobre sexo”, ao mesmo tempo em que as duas outras irmãs relembram como foram seus comportamentos na primeira vez em que fizeram sexo. Esse episódio foi ao ar em 24 de outubro de 1994, muito antes do programa questionado pelo MPF que em poucos segundos mostra imagens eróticas, mas não pornográficas.

Atualmente, acha-se em cartaz no horário dito “nobre” da televisão brasileira a reprise de uma telenovela em que um homem rico e muito mais velho, casado, torna-se amante de uma “ninfeta” (como é dito na descrição da trama tal como veiculada na internet), situação que, aparentemente, não gerou qualquer polêmica em favor de crianças e adolescentes.

O que se está dizendo é que a valoração dos conteúdos tanto do programa “Altíssima” quanto dos seriados e da telenovela “Império”, é altamente subjetiva.

Convenhamos que cenas de beijos e abraços entre pessoas hétero e homossexuais é o mínimo que a televisão brasileira exibe, em todos os horários de programação, em matéria de relacionamento sexual.

Destaco que os fatos se deram no já distante ano de 2008 e a ação foi proposta pelo MPF em 2009, quando, sejamos sinceros, qualquer repercussão daquele programa de baixíssima audiência, já havia se esmaecido.

Até por isso, destoa da razoabilidade e da proporcionalidade impor indenização por dano moral “coletivo” de meio milhão de reais a uma emissora de televisão, por conta de evento de evidente valoração subjetiva – aceito como indiferente pelo órgão estatal que tem discricionariedade para agir no setor de diversões públicas – e que ocorreu há treze anos atrás; evento esse que, diante da baixíssima audiência do programa, certamente não produziu celeuma para além daquele que provocou a atuação ministerial.

Ademais, a censura prévia é inadmissível (STF - Rcl 38201 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 21/02/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-047  DIVULG 05-03-2020  PUBLIC 06-03-2020) e a censura posterior, sob a forma de indenização, deve sempre ser vista “cum granum salis” porque cabe a todos nós recordar aquilo que, nos Estados Unidos, há muito tempo, disse o juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes no sentido de que defender a liberdade de expressão significa defender não só o “pensamento livre para aqueles que concordam conosco, mas a liberdade pelo pensamento que odiamos”.

Dessa forma é que devemos nos portar, pois há de se evitar a todo custo a “polícia do pensamento” tal como tratada na distopia totalitária “1984”, de George Orwell (calcada no nazismo e no stalinismo) que busca controlar o pensamento das gentes, criminalizando o “pensar diferente”.

Quanto a cena de “tortura”, pode ter sido veiculada de modo grosseiro, sem qualquer nota de elegância; mas convém considerar – como feito pelo Juízo – que a matéria se inseriu no programa como manifestação jornalística, sem cunho enaltecedor da nefanda prática. E, nesse ponto, se alguém devesse perseguir indenização seria a pessoa retratada, e não o MPF em favor da coletividade.

Pelo exposto, também nego provimento ao agravo retido, mas NEGO PROVIMENTO a apelação e a remessa oficial e mantenho a sentença.


E M E N T A

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DANOS MORAIS COLETIVOS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PROGRAMA TELEVISIVO. CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA "LIVRE". CONTEÚDO INADEQUADO. MATÉRIAS SOBRE PORNOGRAFIA E VIOLÊNCIA. EXIBIÇÃO SEM DISTORÇÃO DE IMAGEM. VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES EXPOSTOS À PROGRAMAÇÃO.

1. Programa de classificação "livre", segundo os critérios indicativos do Ministério da Justiça, transmitido no período vespertino, por emissora de televisão. Veiculação de conteúdo impróprio para o horário (de cunho pornográfico), bem como do rosto de adolescente, vítima de tortura, sem distorção de imagem.

2. A coletividade conta com ampla proteção jurídica diante da lesão à tábua de valores que compõe seu patrimônio moral e/ou cultural. A existência do dano moral coletivo recebe o reconhecimento expresso do ordenamento jurídico nacional desde o advento do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90 (art. 6º).

3. A análise do material audiovisual e demais documentos concernentes ao conjunto fático-probatório denota franca violação, pela emissora ré, ao princípio da proteção integral insculpido no ECA (art. 3º), com vistas a assegurar o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças e adolescentes.

4. Violam, ainda, o complexo normativo formado pelas disposições legais que buscam harmonizar a imprescindível proteção da infância e adolescência com a atividade das empresas que atuam como veículos de comunicação em massa, a exemplo das regras que dispõem sobre o conteúdo prioritário e a classificação indicativa da programação de televisão, amparadas pelos comandos insertos nos arts. 21 e 221, da Constituição Federal de 1988.

5. A liberdade de expressão e de comunicação, bem como do acesso à informação (art. 5º, IX e XIV, da CR/88), somente pode ser compreendida dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico-positivo.

6. No caso da programação televisiva para horários acessíveis a crianças, deve o Estado assegurar que o conteúdo transmitido pelas emissoras ostente caráter edificante, mostrando-se compatível com as necessidades inerentes a essa fase de formação do indivíduo.

7. Assim, conforme orienta a Constituição Federal, impõe sejam priorizadas, no horário "livre", informações de cunho educativo, cultural e artístico, vetor incompatível com a temática exibida pelo programa "Atualíssima", na data sob análise, quer no tocante à reportagem sobre filmes pornôs, quer no que se refere à matéria atinente à tortura da menor cujo rosto foi transmitido sem qualquer preservação de imagem.

8. Prioridade para o Estado e para a sociedade, o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente é responsabilidade de todos, pressuposto lógico da construção de bases sólidas que garantam plenas condições de desenvolvimento às futuras gerações e, portanto, à própria história da nação.

9. Agravo retido improvido e remessa oficial e apelação parcialmente provida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Sexta Turma, em julgamento realizado nos termos do artigo 942 do CPC, por unanimidade, negou provimento ao agravo retido e por maioria, deu parcial provimento e à remessa oficial à apelação, nos termos do voto do Relator, acompanhado pelos votos dos Desembargadores Federais Diva Malerbi e Souza Ribeiro, vencidos os Desembargadores Federais Johonsom Di Salvo e Nery Junior, que negavam provimento a apelação e a remessa oficial. Lavrará o acórdão o Relator, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.