Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0026681-79.2004.4.03.6100

RELATOR: Gab. 02 - DES. FED. WILSON ZAUHY

APELANTE: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

APELADO: SEBASTIANA BATISTA DE ARAUJO

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0026681-79.2004.4.03.6100

RELATOR: Gab. 02 - DES. FED. WILSON ZAUHY

APELANTE: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

APELADO: SEBASTIANA BATISTA DE ARAUJO

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

Trata-se de ação de usucapião movida por SEBASTIANA BATISTA DE ARAÚJO contra CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, arguindo, em suma, que, desde 1986, reside no imóvel situado na Rua Mansur Yasbek, 55, Aclimação, com área total de 103,25 m² e registrado na matrícula n. 56.328 do 16º Registro de Imóveis de São Paulo-SP, ocupando-o de forma mansa e pacífica como se dona fosse. Relatou que o bem lhe foi doado informalmente por Seiji Ono e Maria Angélica Taira Ono naquele ano, porém, em 27/01/2004, foi notificada pela ré de que o imóvel teria sido adquirido por ela e seria leiloado, conferindo prazo de 10 dias para desocupação. Sustentou, contudo, que os requisitos da usucapião já haviam sido preenchidos muito antes da aquisição pela CEF. Portanto, postulou a declaração do domínio em seu favor (ID 120867954 – f. 9-28).

Foram oferecidas contestação pela CEF (f. 209-215), manifestação de interesse pela União (f. 230-232), e réplica pela autora (ID 120867956 – f. 16-39), e produzidas prova documental e oral (ID 120867958 – f. 203-210).

Prolatada sentença às f. 243-258 do ID supra, a CEF interpôs recurso de apelação (f. 261-267), com contrarrazões (f. 272-279). Após parecer do MPF (ID 120867959 – f. 21-28), o recurso foi provido, anulando-se a sentença pela ausência de citação de todos os litisconsortes necessários (f. 32-37).

Cumpridas as formalidades legais, Seiji Ono ofereceu contestação através da curadoria especial (ID 120867963).

Após, foi proferida sentença nos seguintes termos: “Diante do exposto, julgo procedente a presente ação para declarar que o imóvel assim descrito: “um prédio, à Rua Mansur Yasbek, n. 55, antigo n. 45, no 37º subdistrito – Aclimação, ‘medindo 5,00 metros de frente para a citada rua, tendo nos fundos a mesma largura da frente; por 20,00 metros da frente aos fundos, do lado direito de quem da rua olha para o terreno; 21,50 metros da frente aos fundos, do lado esquerdo, encerrando a área de 103,25 m2, distante 42,00 m da esquina da Rua Pero Correa, confrontando do lado direito de quem da rua olha para o imóvel, com a Praça Pindorama; do lado esquerdo, com o lote “M”; e nos fundos com o lote “A”.” pertence a SEBASTIANA BATISTA DE ARAÚJO. A matrícula do imóvel é a de n. 56.328, do Livro n. 2, do 16º Registro de Imóveis de São Paulo. Condeno a CEF ao pagamento de honorários advocatícios em favor da autora, os quais fixo, nos termos do artigo 85, § 2º do Novo Código de Processo Civil, em 10% sobre o valor atualizado da causa, conforme o disposto no Provimento nº 64/2005 da Corregedoria Geral da Justiça Federal da 3ª Região, bem como ao pagamento das despesas processuais.” (ID 120867968).

A CEF apelou da sentença (ID 120867971), arguindo, em resumo, que o imóvel objeto da ação pertence a empresa pública federal e, portanto, é bem público insuscetível de usucapião. Aduziu também que não há prova da doação do imóvel à autora, sendo a sua posse indireta e precária, sujeita à vontade dos proprietários anteriores. Afirmou que os elementos nos autos indicam sua intenção de deixar a autora no imóvel apenas como caseira, tanto que o bem foi alienado por eles a terceiros após a alegada doação. Assim, sustentou, a autora foi simples detentora até a alienação do imóvel pelos supostos doadores em 1999, quando passou a exercer posse efetiva, não cumprindo, contudo, o tempo necessário para aquisição do domínio pela usucapião. Ao final, postulou a reforma da sentença para rejeitar a pretensão inicial, conforme fundamentação supra.

Contrarrazões da autora (ID 120867976).

É o relatório.

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0026681-79.2004.4.03.6100

RELATOR: Gab. 02 - DES. FED. WILSON ZAUHY

APELANTE: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

APELADO: SEBASTIANA BATISTA DE ARAUJO

 

 

 

V O T O

 

 

 

Pretende a apelante, essencialmente, a reforma da sentença que reconheceu o domínio do bem imóvel sito à Rua Mansur Yasbek, 55, Aclimação, São Paulo-SP, em favor da autora, a uma, por tratar-se de bem público e, a duas, por não estar demonstrada a posse com ânimo dominial pelo tempo necessário.

Conforme consta dos autos, a autora sustenta residir no imóvel em questão desde 1986, tendo adquirido sua posse por doação de Seiji Ono e Maria Angélica Taira Ono, para quem trabalhou como doméstica e babá. Desde então, passou a ocupar o bem de forma mansa e pacífica até 27/01/2004, quando foi notificada pela CEF para desocupá-lo, em virtude da adjudicação pela instituição financeira e sua intenção de levá-lo a leilão.

A apelante, por sua vez, sustenta que os supostos doadores teriam apenas permitido a ocupação do bem pela autora, a título de detenção, uma vez que, em 15/12/1999, venderam o imóvel a Maria Mirtes da Silva Torres. Portanto, somente a partir daquela data a demandante passou a ocupar o bem com ânimo de dona, não tendo cumprido o tempo necessário para adquiri-lo até a data da notificação pela CEF, em janeiro de 2004.

Pois bem. De início, cumpre registrar a plena possibilidade jurídica da usucapião do bem imóvel objeto dos presentes autos.

Embora seja pacífica a jurisprudência no sentido de que os imóveis pertencentes à CEF, quando afetados à prestação de serviço público no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação – SFH, têm natureza pública, e, por isso, são insuscetíveis de aquisição por usucapião (art. 183, § 3º, da Constituição Federal), este não é o caso dos autos. Conforme se vê da matrícula acostada à inicial (ID 120867954 – f. 40-44), o bem usucapiendo foi dado em garantia hipotecária à CEF por Maria Mirtes da Silva Torres e adjudicado pela instituição financeira em processo de execução (f. 43-44), não havendo indicativo, nos contratos vindos com a defesa (f. 216-219), de que tal operação tenha sido efetivada sob as regras do SFH.

Portanto, estando o imóvel registrado em nome de pessoa jurídica de direito privado, como tal se caracteriza, nos termos do art. 98 do Código Civil: “Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.”

E, tratando-se de bem sob domínio particular, é possível sua aquisição pela usucapião. Nesse sentido:

ADMINISTRATIVO. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. IMÓVEL DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL NÃO VINCULADO AO SFH. POSSIBILIDADE DE PRESCRIÇAO AQUISITIVA. APELAÇÃO PROVIDA. 1. A usucapião extraordinária, prevista no art. 550 do CC/1916, tem como requisitos: a) ausência de oposição à posse (isto é, configurar a chamada "posse mansa e pacífica"); b) posse ininterrupta; c) posse com animus domini (isto é, o possuidor comportar-se em relação ao bem como se dono fosse), e; d) prazo superior a 20 (vinte) anos. Importante salientar que esta modalidade de usucapião independe de justo título (isto é, de decorrer a posse de algum fundamento jurídico que seria hábil para transmitir o domínio e a posse, caso não contivesse vícios) e de boa-fé (isto é, do desconhecimento dos possuidores quanto ao vício que impede a aquisição da coisa). 2. Já a usucapião extraordinária, prevista no artigo 1238 do CC/2002, assim dispõe: Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. 3. No entanto, verificando-se a possibilidade de configuração de usucapião extraordinário com prazo reduzido (moradia habitual), o processo deve prosseguir com base neste dispositivo legal (art. 1238, parágrafo único e 2029 do CC/2002). Assim, os prazos serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do CC 1916. 4. Foram juntadas cópias do IPTU de 2007 e 1986 (fls. 17/18 e 20), contas de luz de 2006 e 1986 (fls. 19 e 24), conta de água de 1986 (fl. 25), conta da Casa Bahia de 1986 (fl. 26), Ficha Cadastral da filha da autora na Secretaria de Estado da Educação de São Paulo de 1989 (fl. 28) e caderneta de vacinação de 1983 (fl. 29). 5. Na hipótese dos autos, não há prova de que se trata de patrimônio público, tendo em vista que a CEF não comprovou a vinculação do imóvel ao Sistema Financeiro de Habitação. Os bens pertencentes a empresas públicas que exercem atividade econômica e possuem personalidade jurídica de direito privado são passíveis de usucapião. 6. A jurisprudência do STJ é no sentido de que é impossível de ser reconhecida usucapião no que diz respeito a imóvel da CEF relacionado ao sistema financeiro da Habitação, por caracterizar-se nessa situação como bem público. (...) (TRF3 – ApCiv 0008078-18.2011.4.03.6130, Rel. Des. Federal PAULO FONTES, 5ª Turma, J. 13/05/2019, e-DJF3 20/05/2019)

APELAÇÃO. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. IMÓVEL PERTENCENTE A CEF NÃO FINANCIADO PELO SFH. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO. AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. INDENIZAÇÃO DEPOSITADA EM JUÍZO. INTERESSE DAS PARTES. PRELIMINARES AFASTADAS. TERRENO OCUPADO POR FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA. POSSE ININTERRUPTA E SEM OPOSIÇÃO COMPROVADA. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. RECURSO PROVIDO. I. Inicialmente, cumpre ressaltar que a restrição referente à impossibilidade de aquisição de imóveis públicos por usucapião, não é aplicável aos bens pertencentes a empresas públicas e de sociedade de economia mista, uma vez que estas são regidas pelas normas de direito privado. Todavia, se o bem em questão estiver afetado à prestação de serviço público, este deverá ser tratado como bem público. II. Nesse sentir, a Caixa Econômica Federal - CEF, ao atuar como agente financeiro dos programas oficiais de habitação do Governo Federal, tal como o Sistema Financeiro de Habitação - SFH, explora serviço público "destinado a facilitar e promover a construção e a aquisição da casa própria ou moradia, especialmente pelas classes de menor renda da população" (artigo 8º da Lei nº 4.380/64). Dessa forma, o imóvel financiado pela Caixa Econômica Federal - CEF com recursos do Sistema Financeiro de Habitação se equipara a bem público, sendo, portanto, imprescritível. III. No caso dos autos, consta que o imóvel dos apelantes não foi financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação - SFH, sendo, portanto, passível de usucapião. (...) (TRF3 – ApCiv n. 0006856-42.2010.4.03.6100, Rel. Des. Federal VALDECI DOS SANTOS, 1ª Turma, J. 07/05/2019, e-DJF3 17/05/2019)

Isso assentado, resta analisar, no caso, o cumprimento dos requisitos da prescrição aquisitiva pela autora.

Da leitura da inicial, tem-se que a ora apelada fundamentou sua pretensão em duas modalidades de usucapião diversas, a ordinária (prevista no então vigente art. 551 do Código Civil de 1916) e a especial urbana, estabelecida no art. 183 da Constituição Federal de 1988. Veja-se o teor dos citados dispositivos:

Art. 551. Adquire também o domínio do imóvel aquele que, por dez anos entre presentes, ou quinze entre ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé.

Parágrafo único. Reputam-se presentes os moradores do mesmo município e ausentes os que habitem município diverso.

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Conforme se vê, a usucapião ordinária no regime do CC/16 condicionava a aquisição do domínio aos seguintes requisitos: a) posse pelo prazo de 10 (presentes) ou 15 anos (ausentes); b) posse com ânimo dominial; c) posse contínua e incontestada; e d) posse com justo título e de boa-fé.

A usucapião constitucional, por sua vez, a fim de promover o acesso à propriedade imóvel ao possuidor que dá ao bem a destinação socialmente adequada, atendendo ao princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CRFB/88), prevê menor lapso temporal para a aquisição do domínio, embora conte com requisitos próprios, sendo estes: a) a posse de área urbana inferior ou igual a 250 m²; b) o decurso do prazo de 5 anos; c) posse ininterrupta e incontestada; d) uso do imóvel para moradia própria ou familiar; e e) que o possuidor não seja proprietário de outros imóveis.

Na espécie, a apelante insurge-se, especificamente, quanto à caracterização da doação verbal como justo título para fins de usucapião ordinária, a presença da boa-fé da autora e a ocupação do bem com ânimo dominial, sustentando, como visto, tratar-se mera detenção.

E, não obstante os argumentos por ela lançados, entendo presente o direito à aquisição do domínio pela autora com força no art. 183 da CRFB.

Isso porque a matrícula de ID 120867954 (f. 40-44) evidencia que o imóvel objeto da ação está inserido em zona urbana e possui área total de 103,25 m². A ocupação do bem por mais de cinco anos – a partir de 1988, com a promulgação da CRFB – e para moradia familiar, ininterrupta e sem oposição, também restou demonstrada, especialmente pelos depoimentos tomados em instrução (ID 120867958 – f. 203-210), em que os vizinhos mais antigos relataram que a autora reside no endereço da Rua Mansur Yasbek, 55, há mais de 20 anos (a audiência foi realizada em 2010), sendo que a testemunha Lilian Anne (f. 209) informou que a Sr. Sebastiana já residia no local quando se mudou para lá, em 1988. Ademais, todos os depoimentos são uníssonos quanto ao fato de que ela nunca se mudou daquele endereço.

Corroboram a prova oral os comprovantes de pagamento dos serviços de água e energia e do IPTU em poder da autora, conforme f. 57-162 do ID 120867954, com datas a partir de 1987. Embora tais documentos não estejam em nome da autora, as faturas de energia a partir de 11/1987 (f. 57) estão em nome de sua filha, Regina Helena de Araújo (f. 37), evidenciando o tempo de ocupação do imóvel pela família.

Tais comprovantes também são indicativos de que a autora sempre ocupou o bem como se dona fosse, uma vez que assumiu as despesas ordinárias de sua manutenção. Somam-se a eles os relatos das testemunhas Maria Luíza e Magali dos Reis (ID 120867958 – f. 206 e 210), as quais confirmaram que a casa foi comprada por Seiji Ono (“Sergio”, no depoimento de f. 206) para que a autora nela residisse. A segunda depoente, aliás, relatou que presenciou tais fatos: “Sabe que Dona Sebastiana se mudou para esta casa no fim de 1986 ou começo de 1987. Sabe que o antigo patrão de Sebastiana, Seiji, disse que ia comprar uma casa para ela, para que ela não pagasse mais aluguel. Isso foi dito na frente da depoente. Ele comprou a casa e levou Sebastiana para lá. De lá até aqui, Sebastiana sempre morou nesta casa.” (f. 210).

À luz de tais relatos e documentos, não prospera a tese da CEF de que o imóvel seria ocupado por simples detenção. Em primeiro lugar, nos termos do art. 1.198 do Código Civil, o detentor exerce a posse em nome do proprietário e em cumprimento de suas instruções, o que não se evidenciou no caso. A maioria das testemunhas ouvidas, vizinhos de longa data da autora, sequer conheciam Seiji Ono, o que indica o desinteresse deste para com o imóvel, incompatível com a ideia de que a tenha deixado como mera “caseira”, função que pressupõe supervisão pelo empregador, no exercício da posse indireta.

Aliás, o pagamento dos serviços vinculados ao imóvel e do imposto predial pela própria autora também conflita com tal visão, uma vez que o caseiro é simples funcionário e não assume os ônus da manutenção da residência.

Em segundo lugar, o fato de a doação verbal de imóvel ser vedada por lei (art. 1.168, parágrafo único, do Código Civil de 1916, vigente à época) pode vir a impedir a sua caracterização como justo título, a depender da corrente doutrinária a que se filie. Contudo, sua demonstração nos autos é evidência de que a autora efetivamente ocupou o imóvel crendo que ele lhe pertencia, pois lhe foi dado por seu antigo empregador. Tal fato revela, além do ânimo dominial, a posse de boa-fé da ocupante, sobretudo por tratar-se de pessoa de baixa instrução (não alfabetizada – f. 30 do ID 120867954), sendo plausível considerar seu desconhecimento acerca da vedação legal. Nesse sentido, a lição de Orlando Gomes:

“E possuidor de boa-fe quem ignora o vicio ou o obstaculo, que lhe impede a aquisicao da coisa. Dessa ignorancia resulta a conviccao de que possui legitimamente. A boa-fe procede, por conseguinte, de erro do possuidor, que, falsamente, supoe ser proprietario. Esse erro deve ser cometido ao adquirir a coisa. Nao se limita, porem, a conviccao falsa de a ter adquirido do verdadeiro proprietario. Tambem se configura quando ignora a existencia de obstaculo impeditivo da aquisicao. O erro do possuidor pode ser de fato ou de direito. Um e outro devem ser levados em conta. Diz-se que o erro de direito nao pode servir de fundamento a boa-fe, porque ninguem pode ignorar a lei: nemo jus ignorare consetur. Mas nao deve ser assim. O obstaculo pode provir de razoes juridicas ignoradas pelo possuidor. A ignorancia, no particular, nao deve afastar a boa-fe.(Direitos Reais / Orlando Gomes. – 21ª ed. rev. e atual. / por Luiz Edson Fachin. – Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 188-189.)

Por fim, tenho que também está preenchido o último requisito exigido pelo art. 183 da CRFB, qual seja a ausência de propriedade de outros imóveis pelo possuidor. Tal fato, além de ser incontroverso nos autos (a CEF não o impugnou), se evidencia do depoimento de Magali dos Reis, supra transcrito, no sentido de que Seiji Ono adquiriu o bem para que a autora não mais residisse de aluguel.

Presentes todos os requisitos da usucapião especial, tem-se que a autora adquiriu a propriedade originária do imóvel em 1993, após decorridos cinco anos da criação do referido instituto pela Constituição de 1988.

Nesse caso, torna-se irrelevante a análise da existência de justo título ou da venda do bem pelos antigos proprietários em 1999, visto que esta ocorreu quando a autora já tinha, há seis anos, cumprido os requisitos para aquisição do domínio.

Portanto, a sentença de procedência do pedido deve ser mantida.

Ante o exposto, CONHEÇO E NEGO PROVIMENTO à apelação, mantendo integralmente a sentença de primeiro grau.

Majoro os honorários arbitrados em favor da autora para 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do art. 85, §§ 2º e 11, do CPC, a serem pagos em favor da DPU, que a representou.

É como voto.



E M E N T A

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEL ADJUDICADO PELA CEF. NÃO VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. BEM PARTICULAR. POSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO PELA USUCAPIÃO. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ARTIGO 183 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (USUCAPIÃO ESPECIAL). POSSE COM ÂNIMO DOMINIAL E BOA-FÉ POR MAIS DE CINCO ANOS. DESNECESSIDADE DE JUSTO TÍTULO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. 1. Recurso de apelação em que se pretende a reforma da sentença que reconheceu o domínio de bem imóvel pertencente à CEF em favor da autora, a uma, por tratar-se de bem público e, a duas, por não estar demonstrada a posse com ânimo dominial pelo tempo necessário. 2. Embora seja pacífica a jurisprudência no sentido de que os imóveis de propriedade da CEF afetados à prestação de serviço público no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação – SFH, são insuscetíveis de aquisição por usucapião (art. 183, § 3º, da Constituição Federal), este não é o caso dos autos. A matrícula do imóvel indica que ele foi dado em garantia hipotecária à CEF e adjudicado por ela em processo de execução, não havendo indicativo, nos contratos vindos com a defesa, de que tal operação tenha sido efetivada sob as regras do SFH. 3. Estando o imóvel registrado em nome de pessoa jurídica de direito privado, como tal se caracteriza, nos termos do art. 98 do Código Civil. E, tratando-se de bem sob domínio particular, é possível sua aquisição pela usucapião. 4. A usucapião especial (art. 183 da CRFB/88), a fim de promover o acesso à propriedade imóvel ao possuidor que dá ao bem a destinação socialmente adequada, atendendo ao princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII), conta com requisitos próprios, sendo estes: a) a posse de área urbana inferior ou igual a 250 m²; b) o decurso do prazo de 5 anos; c) posse ininterrupta e incontestada; d) uso do imóvel para moradia própria ou familiar; e e) que o possuidor não seja proprietário de outros imóveis. 5. No caso, está provado que o imóvel objeto da ação está inserido em zona urbana e possui área total de 103,25 m², assim como a ocupação do bem por mais de 5 anos, para moradia familiar, ininterrupta e sem oposição, à luz dos depoimentos tomados em audiência e dos comprovantes de pagamento de água, energia e IPTU com datas a partir de 1987. 6. O ânimo dominial também foi comprovado, uma vez que a autora assumiu as despesas ordinárias da manutenção do imóvel e os relatos das testemunhas confirmaram que a casa foi comprada por Seiji Ono da autora para que ela nela residisse. 7. Nos termos do art. 1.198 do Código Civil, o detentor exerce a posse em nome do proprietário e em cumprimento de suas instruções, o que não se evidenciou no caso. A maioria das testemunhas ouvidas, vizinhos de longa data da autora, sequer conheciam Seiji Ono, o que indica o desinteresse deste para com o bem imóvel, incompatível com a ideia de que a tenha deixado como mera “caseira”, função que pressupõe supervisão pelo empregador, no exercício da posse indireta. Ademais, o pagamento dos serviços vinculados ao imóvel e do imposto predial pela própria autora também conflita com tal visão, uma vez que o caseiro é simples funcionário e não assume os ônus da manutenção da residência. 8. O fato de a doação verbal de imóvel ser vedada por lei (art. 1.168, parágrafo único, do Código Civil de 1916, vigente à época) pode vir a impedir a sua caracterização como justo título, a depender da corrente doutrinária a que se filie. Contudo, sua demonstração nos autos é evidência de que a autora efetivamente ocupou o imóvel crendo que ele lhe pertencia, pois lhe foi dado por seu antigo empregador. Tal fato revela, além do ânimo dominial, a posse de boa-fé da ocupante, sobretudo por tratar-se de pessoa de não alfabetizada. 9. Por fim, também está demonstrada a ausência de propriedade de outros imóveis pela possuidora, fato incontroverso nos autos. 10. Presentes os requisitos da usucapião especial, tem-se que a autora adquiriu a propriedade originária do imóvel em 1993, após decorridos cinco anos da criação do referido instituto pela Constituição de 1988. Portanto, a sentença de procedência do pedido deve ser mantida. 11. Apelação não provida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Primeira Turma, por unanimidade, conheceu e negou provimento à apelação, mantendo integralmente a sentença de primeiro grau, majorou os honorários arbitrados em favor da autora para 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do art. 85, §§ 2º e 11, do CPC, a serem pagos em favor da DPU, que a representou, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.