Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5480614-26.2019.4.03.9999

RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA

APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS

APELADO: DARIO DE OLIVEIRA PRETO

Advogado do(a) APELADO: ANDREIA CRISTINA SANTOS - SP282491-N

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5480614-26.2019.4.03.9999

RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA

APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS

APELADO: DARIO DE OLIVEIRA PRETO

Advogado do(a) APELADO: ANDREIA CRISTINA SANTOS - SP282491-N

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

Cuida-se de apelação interposta em face da sentença, não submetida a reexame necessário, que julgou procedente o pedido de benefício assistencial de prestação continuada à pessoa com deficiência, desde o requerimento administrativo, discriminados os consectários legais e antecipados os efeitos da tutela.

A autarquia previdenciária requer, inicialmente, o recebimento do recurso com efeito suspensivo. No mérito, alega, em síntese, ser indevido o benefício ante a ausência do requisito da deficiência, razão pela qual requer a reforma do julgado. Subsidiariamente, impugna o termo inicial e a correção monetária. Prequestiona a matéria.

Com contrarrazões, os autos subiram a esta Corte.

O Ministério Público Federal requereu a conversão do julgamento em diligência para complementar o estudo social.

Houve a suspensão da eficácia da sentença e a conversão do julgamento em diligência para a complementação do laudo social e do laudo pericial, bem como foi determinada à parte autora a regularização de sua representação processual.

Após o cumprimento da decisão, o Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5480614-26.2019.4.03.9999

RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA

APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS

APELADO: DARIO DE OLIVEIRA PRETO

Advogado do(a) APELADO: ANDREIA CRISTINA SANTOS - SP282491-N

 

 

 

V O T O

 

 

 

Conheço da apelação, em razão da satisfação dos seus requisitos.

Discute-se nos autos o direito da parte autora a benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n. 6.214/2007 e 7.617/2011.

Essa lei conferiu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal (CF/1988) ao estabelecer as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a situação de miserabilidade ou hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

DA HIPOSSUFICIÊNCIA OU MISERABILIDADE

A respeito do requisito objetivo, o tema foi levado à apreciação do Pretório Excelso por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), movida pelo Procurador Geral da República, na qual, em meio à análise de outros temas, decidiu-se que o benefício de que trata o artigo 203, inciso V, da CF/1988 pode ser exigido somente a partir da edição da Lei n. 8.742/1993.

Trata-se da ADIN n. 1.232-2, de 27/8/1998, publicada no DJU de 1º/6/2001, de relatoria do Ministro Maurício Correa (RTJ 154/818), na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) reputou constitucional a restrição contida no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993.

Posteriormente, em controle difuso de constitucionalidade, o STF manteve aquele entendimento (vide RE n. 213.736-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Informativo STF n. 179; RE 256.594-6, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 28/4/2000, Informativo STF n. 186; RE n. 280.663-3, São Paulo, j. 6/9/2001, Rel. Min. Maurício Corrêa).

Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em vários precedentes, considerou que a presunção objetiva absoluta de miserabilidade, da qual fala a lei, não afasta a possibilidade de comprovação da condição de miserabilidade por outros meios de prova (REsp n. 435.871, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 19/9/2002, DJ 21/10/2002, p. 61;REsp n. 222.764, STJ, 5ªT,, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 13/2/2001, DJ 12/3/2001, p. 512; REsp n. 223.603/SP, STJ, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 21/2/2000, p. 163).

Recentemente, o STF reviu seu posicionamento e, em sede de repercussão geral, reconheceu que o requisito do artigo 20, §3º, da Lei n. 8.742/1993 não pode ser considerado taxativo (RE n. 580963, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225, 14/11/2013).

No mesmo julgamento, ao examinar, incidenter tantum, a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), o Plenário do STF manifestou-se pela “inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo”.

Referido normativo dispõe expressamente que o valor do benefício assistencial auferido por idoso “não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS”.

Contudo, diante do entendimento consagrado por ocasião do julgamento do RE n. 580963, abriu-se a possibilidade de exclusão, do cálculo da renda familiar, dos benefícios assistenciais recebidos por idosos e por deficientes e também dos benefícios previdenciários concedidos ao idoso, no valor de até um salário mínimo.

A decisão concluiu, ainda, que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode resultar no indeferimento da prestação assistencial em casos nos quais, embora o limite legal de renda per capita seja ultrapassado, evidencia-se um quadro de notória hipossuficiência econômica.

Essa insuficiência da regra decorre não apenas das modificações fáticas (políticas, econômicas e sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a edição da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.

A legislação federal recente, por exemplo, reiterada pela adoção de vários programas assistenciais destinados a famílias carentes, considera pobres aqueles que possuem renda mensal per capita de até meio salário mínimo (nesse sentido, a Lei n. 9.533, de 10/12/1997, regulamentada pelos Decretos n. 2.609/1998 e 2.728/1999, as Portarias n. 458 e 879, de 3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social, o Decreto n. 4.102/2002, a Lei n. 10.689/2003, criadora do Programa Nacional de Acesso à Alimentação).

Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993 como absoluto e único para aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.

Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza – entendida como a falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial –, para se concluir se é devida ou não a prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.

Assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE n. 580963), o critério da miserabilidade contido no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim de identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com educação.

Nesse diapasão, podem-se estabelecer alguns parâmetros norteadores da análise individual de cada caso, como, por exemplo: (i) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo são miseráveis; (ii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo e inferior a ½ salário mínimo são miseráveis; (iii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser miseráveis; (iv) todos os que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV, da CF/1988) não são miseráveis.

Dessa forma, em todos os casos, outras circunstâncias devem ser levadas em conta, mormente se o patrimônio do requerente também se subsome à noção de hipossuficiência, devendo ser apurado se vive em casa própria, com ou sem ar condicionado, se possui veículo, telefones celulares, auxílio permanente de parentes ou de terceiros etc.

Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de atender a um público maior, para socorrer aos desamparados (artigo 6º, caput, da CF/1988), ou seja, àquelas pessoas que nem sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento doméstico, pelo fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.

CONCEITO DE FAMÍLIA

Para apurar se a renda per capita do requerente atinge ou não o âmbito da hipossuficiência, faz-se necessário abordar o conceito de família.

Nesse sentido, o artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 estabelecia, para efeitos de concessão do benefício, os conceitos de família (conjunto de pessoas do artigo 16 da Lei n. 8.213/1991, desde que vivendo sob o mesmo teto - § 1º), de pessoa portadora de deficiência (aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho - § 2º) e de família incapacitada de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa (aquela com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo - § 3º).

A Lei n. 12.435, vigente desde 7/7/2011, alterou os §§ 1º e 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 e estabeleceu que a família, para fins de concessão do benefício assistencial, deve ser aquela composta pelo requerente, pelo cônjuge ou companheiro, pelos pais e, na ausência de um deles, pela madrasta ou pelo padrasto, pelos irmãos solteiros, pelos filhos e enteados solteiros e pelos menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

Ao mesmo tempo, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio artigo 203, V, da CF/1988 estabelece que o benefício será devido quando o sustento não puder ser provido pela família. Essa conclusão tem arrimo no princípio da solidariedade social, conformado no artigo 3º, I, do Texto Magno.

Com isso, à guisa de regra mínima de coexistência entre as pessoas em sociedade, a técnica de proteção social prioritária é a família, em cumprimento ao disposto no artigo 229 da CF/1988, que assim estabelece: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

A propósito, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), ao analisar um pedido de uniformização formulado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), fixou a tese de que “o benefício assistencial de prestação continuada pode ser indeferido se ficar demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem prejuízo de sua manutenção”.

A decisão foi proferida durante sessão realizada em 23/2/2017, em Brasília. Quanto ao mérito, o relator afirmou em seu voto que a interpretação do artigo 20, §1º, da Lei n. 8.742/1993, conforme as normas veiculadas pelos artigos 203, V, 229 e 230, da CF/1988, deve ser a de que “a assistência social estatal não deve afastar a obrigação de prestar alimentos devidos pelos parentes da pessoa em condição de miserabilidade socioeconômica (arts. 1694 e 1697, do Código Civil), em obediência ao princípio da subsidiariedade”.

SUBSIDIARIEDADE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

À vista da preponderância do dever familiar de sustento, hospedado no artigo 229 da CF/1988, a Assistência Social, tal como regulada na Lei n. 8.742/1993, terá caráter subsidiário em relação às demais técnicas de proteção social (previdência social, previdência privada, caridade, família, poupança etc.), considerada a gratuidade de suas prestações.

Com efeito, levando-se em conta o alto custo do pretendido “Estado de bem-estar social”, forjado no Brasil pela Constituição Federal quando a grande maioria dos países europeus já havia reconhecido sua inviabilidade financeira, é lícito inferir que ela só deve ser prestada em casos de real necessidade, sob pena de comprometer – dada a crescente dificuldade de custeio – a proteção social da coletividade, não apenas das futuras gerações, mas também da atual.

De fato, o benefício previsto no artigo 203, V, da CF/1988 tem o valor de 1 (um) salário mínimo, ou seja, a mesma quantia paga a milhões de brasileiros que se aposentaram no Regime Geral de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições, durante vários anos.

Destarte, a assistência social deve ser fornecida com critério, pois, de outro modo, serão gerados privilégios e desigualdades, em oposição à própria natureza dos direitos sociais, que é a de propiciar igualdade e isonomia de condições a todos, observados os fins sociais (não individuais) da norma, à luz do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Diga-se, de passagem, que a concessão indiscriminada do benefício assistencial, mediante interpretação extensiva ou ampliativa dos requisitos constitucionais, geraria não apenas injustiça aos contribuintes da previdência social, mas incentivo para que esses deixem de contribuir, ou mesmo não se filiem ou não contribuam para a Seguridade Social, o que constituiria situação anômala e gravíssima do ponto de vista atuarial, apta a comprometer o custeio de todo o sistema.

É pertinente rememorar, in casu, o ensinamento do professor de direito previdenciário Wagner Balera a respeito da dimensão do princípio da subsidiariedade:

“O Estado é, sobretudo, o guardião dos direitos e garantias dos indivíduos. Cumpre-lhe, assinala Leão XIII, agir em favor dos fracos e dos indigentes exigindo que sejam por todos respeitados os direitos dos pequenos. Mas, segundo o princípio da subsidiariedade - que é noção fundamental para a compreensão do conteúdo da doutrina social cristã – o Estado não deve sobrepor-se aos indivíduos e aos grupos sociais na condução do interesse coletivo. Há de se configurar uma permanente simbiose entre o Estado e a sociedade, de tal sorte que ao primeiro não cabe destruir, nem muito menos exaurir a dinâmica da vida social I (é o magistério de Pio XI, na Encíclica comemorativa dos quarenta anos da 'RerumNovarum', a 'Quadragésimo Anno', pontos 79-80).” (Centenárias Situações e Novidade da 'RerumNovarum', p. 545).

Por fim, quanto a esse tópico, é lícito concluir que quem está coberto pela previdência social está, em regra, fora da abrangência da assistência social. Nesse sentido, prelecionou Celso Bastos:

“A Assistência Social tem como propósito satisfazer as necessidades de pessoas que não podem gozar dos benefícios previdenciários, mas o faz de uma maneira comedida, para não incentivar seus assistidos à ociosidade. Concluímos, portanto, que os beneficiários da previdência social estão automaticamente excluídos da assistência social. O benefício da assistência social, frise-se, não pode ser cumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o de assistência médica.” (Celso Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, 8o Vol., Saraiva, 2000, p. 429).

IDOSOS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Na hipótese de postulante idoso, a idade mínima de 70 (setenta) anos foi reduzida para 67 (sessenta e sete) anos pela Lei n. 9.720/1998, a partir de 1º de janeiro de 1998, e, mais recentemente, para 65 (sessenta e cinco) anos, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003).

No que se refere ao conceito de pessoa com deficiência - previsto no § 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, com a redação dada pela Lei n. 13.146/2015, passou a ser considerada aquela com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Assim, ratificou-se o entendimento consolidado nesta Corte de que o rol previsto no art. 4º do Decreto n. 3.298/1999 (regulamentador da Lei n. 7.853/1989, que dispõe sobre a Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência) não era exaustivo. Constatado, portanto, que os males sofridos pelo postulante impedem sua inserção social, restará preenchido um dos requisitos exigidos para a percepção do benefício.

Menciona-se também o conceito apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU), elaborado por meio da Resolução n. 3.447 (XXX): “1. O termo ‘pessoa deficiente’ refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais”.

Esse conceito dá maior ênfase à necessidade, inclusive da vida individual, ao passo que o conceito proposto por Luiz Alberto David Araujo prioriza a questão da integração social, como se verá.

Nair Lemos Gonçalves apresentou os principais requisitos para sua definição: “desvio acentuado dos mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico, mental, sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada, combinada ou globalmente” (Verbete Excepcionais. In: Enciclopédia Saraiva de Direito, n. XXXIV. São Paulo: Saraiva, 1999).

Luiz Alberto David Araujo, por sua vez, compilou muitos significados da palavra “deficiente”, extraídos dos dicionários de Língua Portuguesa. Observa ele que, geralmente, os dicionários trazem a ideia de que a pessoa deficiente sofre de falta, de carência ou de falha.

Esse autor critica essas noções porque a ideia de deficiência não se apresenta tão simples, à medida em que as noções de falta, de carência ou de falha não abrangem todas as situações de deficiência, como, por exemplo, o caso dos superdotados, ou o de um portador do vírus HIV que consiga levar a vida normalmente, sem manifestação da doença, ou ainda o de um trabalhador intelectual que tenha um dedo amputado.

Por serem as noções de falta, de carência ou de falha insuficientes à caracterização da deficiência, Luiz Alberto David Araujo propõe um norte mais seguro para a identificação da pessoa protegida, cujo fator determinante do enquadramento ou não no conceito de pessoa com deficiência seja o meio social:

“O indivíduo portador de deficiência, quer por falta, quer por excesso sensorial ou motor, deve apresentar dificuldades para seu relacionamento social. O que define a pessoa portadora de deficiência não é falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade para a sua integração social é o que definirá quem é ou não portador de deficiência.” (A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 18-22)

Assim, quanto mais complexo o meio social, maior rigor se exigirá da pessoa com deficiência para sua adaptação social. De outra parte, na vida em comunidades mais simples, como nos meios agrícolas, a pessoa com deficiência poderá integrar-se com mais facilidade.

Desse modo, o conceito de Luiz Alberto David Araujo é adequado e de acordo com a norma constitucional, motivo pelo qual é possível seu acolhimento para a caracterização desse grupo de pessoas protegidas nas várias situações reguladas pela CF/1988, nos artigos 7º, XXXI, 23, II, 24, XIV, 37, VIII, 203, V e 208, III.

Mas é preciso delimitar a proteção constitucional apenas àquelas pessoas que realmente dela necessitam, porquanto existem graus de deficiência que apresentam menores dificuldades de adaptação à pessoa. E essa verificação somente poderá ser feita diante de um caso concreto.

Luiz Alberto David Araujo salienta que os casos-limite podem, desde logo, ser excluídos, como o exemplo do bibliotecário que perde um dedo ou do operário que perde um artelho; em ambos os casos, as pessoas continuam integradas socialmente. Em outro exemplo, pequenas manifestações de retardo mental (deficiência mental leve) podem passar despercebidas em comunidades simples, pois essa pessoa poderá “não encontrar problemas de adaptação a sua realidade social (escola, trabalho, família)”, de maneira que não se pode afirmar que ela deverá receber proteção, “tal como aquele que sofre restrições sérias em seu meio social” (obra citada, p. 42-43). E continua:

“A questão, assim, não se resolve sob o ângulo da deficiência, mas, sim sob o prisma da integração social. Há pessoas portadoras de deficiência que não encontram qualquer problema de adaptação no meio social. Dentro de uma comunidade de doentes, isolados por qualquer motivo, a pessoa portadora de deficiência não encontra qualquer outro problema de integração, pois todos têm o mesmo tipo de dificuldade” (obra citada, p. 43).

Enfim, a constatação da existência de graus de deficiência é de fundamental importância para identificar aqueles que receberão a proteção social prevista no artigo 203, V, da CF/1988.

Feitas essas considerações, torna-se possível inferir que não será qualquer pessoa com deficiência que se subsumirá no molde jurídico protetor da Assistência Social.

Noutro passo, o conceito de pessoa com deficiência, para fins de concessão do benefício de amparo social, foi tipificado no artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, que em sua redação original assim dispunha: “§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.”

Como se vê, pressupunha-se que o deficiente era aquele que: (i) tinha necessidade de trabalhar, mas não podia, em razão da deficiência; (ii) estava também incapacitado para a vida independente. Assim, o benefício era devido a quem deveria trabalhar, mas não poderia e, além disso, não tinha capacidade para a vida independente sem a ajuda de terceiros.

É lícito concluir que, tal como os benefícios previdenciários, o benefício de amparo social, enquanto vigente a redação original do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, era substitutivo do salário. Isto é, era reservado aos que tinham a possibilidade jurídica de trabalhar, mas não tinham a possibilidade física ou mental para tanto.

Mas a redação original do artigo 20, § 2º, da LOAS foi alterada pelo Congresso Nacional, exatamente porque sua dicção gerava um sem número de controvérsias interpretativas na jurisprudência, sobrevindo a Lei n. 12.435/2011, alterando o teor do dispositivo, que passou a vigorar com a seguinte redação:

“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se:

I - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas;

II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”

Com a novel legislação, o benefício continuou sendo destinado àqueles deficientes que: (i) tinham necessidade de trabalhar, mas não podiam, por conta de limitações físicas ou mentais; (ii) estavam também incapacitados para a vida independente.

Todavia, o legislador, não satisfeito, mais uma vez alterou o conceito de pessoa com deficiência, introduzindo, pela Lei n. 12.470/2011, modificações no artigo 20, da Lei n. 8.742/1993:

“Art. 20 (...)

“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

(...)

“§ 10 Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”

Nota-se que, com o advento dessa lei, dispensou-se a menção à incapacidade para o trabalho ou à incapacidade para a vida independente como requisito à concessão do benefício assistencial.

Finalmente, a Lei n. 13.146/2015, que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência”, com início de vigência em 02/01/2016, novamente alterou a redação do artigo 20, § 2º, da LOAS:

“§ 2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

Reafirma-se, assim, que o foco, doravante, para fins de identificação da pessoa com deficiência, passa a ser a existência de impedimentos de longo prazo (que produza efeitos pelo prazo mínimo de dois anos), apenas e tão somente, tornando-se despicienda a referência à necessidade de trabalho.

RESERVA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

O benefício assistencial de prestação continuada não pode ser postulado como substituto de aposentadoria por invalidez, atualmente denominada aposentadoria por incapacidade permanente (Emenda Constitucional n. 103/2019).

Muitos casos de incapacidade temporária ou mesmo permanente para o trabalho devem ser tutelados exclusivamente pelo seguro social (artigo 201, da CF/1988).

Afinal, a cobertura dos eventos (riscos sociais) incapacidade temporária ou permanente para o trabalho depende do pagamento de contribuições, na forma dos artigos 201, caput e inciso I, da CF/1988, abaixo transcrito:

“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: I - cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; (...)”.

Como se vê, a pretendida ampliação do espectro da norma do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993 encontra óbice na própria Constituição da República, segundo a qual caberá à Previdência Social a cobertura dos eventos de incapacidade para o trabalho.

CASO CONCRETO

De acordo com a perícia médica judicial, realizada no dia 11/4/2017, o autor (nascido em 1957) estava total e temporariamente incapacitado para o trabalho, por ser portador de esquizofrenia.

O perito estimou prazo de um ano para nova avaliação.

Nova perícia foi realizada com médico psiquiatra em 11/11/2019, ocasião em que constatou-se o agravamento do quadro clínico do autor, portador de esquizofrenia grave, crônica e refratária com sintomas psicóticos residuais. Concluiu-se pela incapacidade laborativa total e permanente, desde 2000.

Nesse passo, o autor se enquadra no conceito de deficiente trazido pela redação do artigo 20, §§ 2º e 10, da Lei n. 8.742/1993.

No tocante à condição socioeconômica, o estudo social realizado em 4/2/2017, apontou que o autor não possui residência fixa, não possui nenhum bem e depende da ajuda financeira dos irmãos (Florival de Oliveira Preto e Maria Cenira de Oliveira Preto Senciatti). 

Ademais, segundo o estudo social complementar elaborado em 18/10/2019, o autor está atualmente residindo com sua irmã (Maria Cenira) em imóvel cedido, construído de alvenaria, sem forro, com sete cômodos, porém inacabado sem reboco ou pintura do lado externo. Os móveis são antigos, básicos e em condições ruins. 

O estudo ainda apontou que a renda familiar decorre da pensão por morte recebida pela irmã do autor, no valor de R$ 998,00. 

As despesas mensais são: R$ 700,00 (alimentos básicos, gás de cozinha e produtos de higiene), R$ 298,00 (empréstimo consignado).

A assistente social esclareceu:

"Frisa-se que essa renda per capta não é usufruída pelo autor que sobrevive em extrema pobreza, pois, reside agregado com sua irmã que lhe supre apenas as necessidades de subsistência. A mesma ressaltou, durante a entrevista, que só acolheu o irmão porque nenhum outro membro de sua família quis ficar com ele.

Importa mencionar que, mesmo tendo acolhido, nota-se insatisfação e resistência da irmã, por ter que oferecer cuidados e alimentos ao irmão que possui doenças no âmbito da saúde mental." 

Nesse passo, os elementos de prova dos autos demonstram a situação de miserabilidade do autor.

Contudo, a teor do artigo 21 da Lei n. 8.742/1993, as condições que deram origem à concessão do benefício devem ser revistas a cada dois anos, de modo que não há óbice algum ao deferimento do benefício pleiteado, cabendo a revisão administrativa em momento oportuno.

Assim, estando presentes os requisitos exigidos para a concessão do benefício, impõe-se a manutenção da sentença.

O termo inicial do benefício fica mantido na data do requerimento administrativo em 27/9/2016 (Id. 49032942).

A propósito, cito o seguinte precedente (g. n.):

“PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. TERMO INICIAL. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. 1. Afasta-se a incidência da Súmula 7/STJ, porquanto o deslinde da controvérsia requer apenas a análise de matéria exclusivamente de direito. 2. Nos termos da jurisprudência pacífica do STJ, o termo inicial para a concessão do benefício assistencial de prestação continuada é a data do requerimento administrativo e, na sua ausência, a partir da citação. Agravo regimental improvido.”(AgRg no REsp 1532015/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/08/2015, DJe 14/08/2015)

Quanto à correção monetária, esta deve ser aplicada nos termos da Lei n. 6.899/1981 e da legislação superveniente, bem como do Manual de Orientação de Procedimentos para os cálculos na Justiça Federal. Fica afastada a incidência da Taxa Referencial (TR) na condenação (Repercussão Geral no RE n. 870.947).

É mantida a condenação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a pagar honorários de advogado, cujo percentual majoro para 12% (doze por cento) sobre a condenação, excluindo-se as prestações vencidas após a data da sentença, consoante Súmula n. 111 do Superior Tribunal de Justiça e critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 11, do CPC.

Todavia, na fase de execução, o percentual deverá ser reduzido se o valor da condenação ou do proveito econômico ultrapassar 200 (duzentos) salários mínimos (artigo 85, § 4º, II, do CPC).

Por fim, quanto ao prequestionamento suscitado, assinalo que não houve qualquer infringência a dispositivos de lei federal ou constitucionais.

Diante do exposto, nego provimento à apelação.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

 

PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. DEFICIÊNCIA COMPROVADA POR LAUDO PERICIAL. MISERABILIDADE. REQUISITOS PREENCHIDOS. TERMO INICIAL. CORREÇÃO MONETÁRIA. HONORÁRIOS DE ADVOGADO.

- São condições para a concessão do benefício da assistência social: ser o postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

- Comprovada, por meio de perícia médica judicial, a deficiência da parte autora, bem como demonstrada, por estudo social, a situação de hipossuficiência financeira de seu núcleo familiar, é devido o benefício assistencial requerido.

- O termo inicial do benefício é a prévia postulação administrativa. Ausente o requerimento administrativo, o benefício é devido desde a citação. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

- A correção monetária deve ser aplicada nos termos da Lei n. 6.899/1981 e da legislação superveniente, bem como do Manual de Orientação de Procedimentos para os cálculos na Justiça Federal, afastada a incidência da Taxa Referencial - TR (Repercussão Geral no RE n. 870.947).

- Sucumbência recursal. Honorários de advogado arbitrados em favor da parte autora majorados para 12% (doze por cento) sobre a condenação, excluindo-se as prestações vencidas após a data da sentença, consoante Súmula n. 111 do Superior Tribunal de Justiça e critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 11, do Código de Processo Civil. 

- Apelação desprovida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por unanimidade, decidiu negar provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.