Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000078-27.2017.4.03.6002

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: JOAO EZEQUIEL DE MELO NETO, EDSON FRANCISCO DA SILVA, LUIS PAULO FAUSTINO SANTOS SOUZA, JEMIMA FAUSTINA DOS SANTOS SOUZA

Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A

APELADO: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO, COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000078-27.2017.4.03.6002

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: JOAO EZEQUIEL DE MELO NETO, EDSON FRANCISCO DA SILVA, LUIS PAULO FAUSTINO SANTOS SOUZA, JEMIMA FAUSTINA DOS SANTOS SOUZA

Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A

APELADO: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO, COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ

OUTROS PARTICIPANTES:

 

R E L A T Ó R I O

Trata-se de recurso de apelação, interposto por JOÃO EZEQUIEL DE MELO NETO E OUTROS, contra a sentença que julgou improcedentes os pedidos de indenização por danos materiais e morais formulados em face da COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ e da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI.

Narram os autores que exerciam atividades laborais há décadas para a família proprietária da Fazenda Novilho, em Caarapó/MS, local em que também residiam. Expõem que, em 14 de junho de 2016, a propriedade rural em questão foi invadida de forma brutal por indígenas, que expulsaram todos os trabalhadores do local, entre eles os autores. Dizem que, verbis: “(...) Os Autores e suas famílias não tiveram tempo de sequer recolher roupas, e sob a ameaça de armas (facas, lanças, foices e flechas) viram-se passando por uma situação extremamente constrangedora e perigosa, fugindo pelos fundos da fazenda e lançados à própria sorte na beira da estrada, sem local para pernoitar. Os Autores sofreram grave risco de vida, pois os índios estavam armados e partiram para o confronto com os trabalhadores, que nem tentaram resistir, apenas trataram de fugir diante da ameaça real de um ataque, para não haver um mal maior. (...)”. Afirmam que tiveram roupas, móveis e eletrodomésticos saqueados, e que sofreram inequívoco abalo em sua esfera extrapatrimonial de direitos em razão do evento. Requerem o pagamento de indenização pelos danos materiais e morais advindos da invasão indígena, tendo em vista a responsabilidade da FUNAI pelos atos dos índios, seus tutelados.

A r. sentença ora recorrida (ID 122943322) consignou o seguinte entendimento, verbis:

“(...) In casu, impende verificar-se se estão presentes os elementos constitutivos do dever de indenizar, quais sejam, a ação ou a omissão do requerido, o dano sofrido pela parte autora, o nexo de causalidade entre a conduta apontada e o prejuízo enfrentado e, finalmente, a culpa do agente, a qual é presumida nos casos de responsabilidade objetiva. Deve ser analisada, primeiramente, a existência de conduta por parte da ré, considerando-se que, nos termos do art. 186 do Código Civil, ato ilícito é todo aquele que lesa direito de outrem, sem necessidade de que o mesmo seja ilegal. (...) No presente caso, a questão gira em torno da invasão noticiada pelos autores na fazenda em que laboravam, bem como da existência de responsabilidade da FUNAI pelos eventos danosos. Embora a situação dos autores seja lamentável, vez que perderam seus empregos e suas casas, onde residiam há muitos anos, não restou demonstrado suficientemente o nexo de causalidade entre a ação ou omissão da FUNAI e os prejuízos sofridos. Isso porque não há demonstração de liame algum entre a conduta da autarquia ou de qualquer servidor e a invasão noticiada, que deu causa aos danos sofridos.  Entendo que, no caso, a responsabilidade objetiva não possui a abrangência pretendida pelos autores. De fato, não pode ser a FUNAI responsabilizada por toda e qualquer conduta tomada pelos indígenas, devendo restar evidenciada sua ação ou omissão, o que não ocorreu, vez que inclusive a área invadida já está submetida a processo de demarcação, ainda que em fase inicial. Vê-se, portanto, que a FUNAI em nada contribuiu para a invasão e as consequências dela advindas, razão pela qual não pode ser a ela imputada conduta omissiva apta a ensejar o dever de indenizar, seja por danos materiais, seja morais. Nesse sentido é o seguinte julgado: (...) Ausente o nexo de causalidade entre a conduta da autarquia ré e os prejuízos narrados pelos autores, não há que se falar em indenização por danos morais ou materiais, razão pela qual deve ser julgada improcedente a pretensão autoral.  III – DISPOSITIVO. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido inicial, razão pela qual extingo o processo com resolução de mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil/2015, vez que não restou evidenciado nexo causal entre a ação ou omissão apontadas e os danos sofridos, com o que se mostra incabível a indenização postulada. Condeno os autores ao pagamento de custas processuais e de honorários advocatícios, os quais fixo em R$ 3.000,00 (três mil reais), nos termos do art. 85, §4, inciso III, do CPC/15. Todavia, o pagamento ficará suspenso, por serem beneficiários da assistência judiciária gratuita. (...)”. (grifos meus)

Em suas razões recursais (ID 122943326), aduzem os apelantes, preliminarmente, a nulidade da r. sentença ora recorrida, de vez que consubstanciou pronunciamento judicial citra petita, já que os pedidos formulados na inicial foram apreciados, tão somente, em relação a uma das corrés – FUNAI, não havendo análise dos requerimentos no que tange à corré COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ. No mérito, sustenta a responsabilidade da FUNAI pelos atos perpetrados pelos indígenas, que estão sob a tutela da autarquia, além da existência de nexo de causalidade entre os danos sofridos pelos autores e a conduta dos silvícolas que invadiram a fazenda na qual trabalhavam os recorrentes.

Com as contrarrazões da COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ e da FUNAI, vieram os autos a esta E. Corte Regional.

O Ministério Público Federal manifestou-se tão somente pelo prosseguimento do feito (ID 129065656).

É o relatório.

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000078-27.2017.4.03.6002

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: JOAO EZEQUIEL DE MELO NETO, EDSON FRANCISCO DA SILVA, LUIS PAULO FAUSTINO SANTOS SOUZA, JEMIMA FAUSTINA DOS SANTOS SOUZA

Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A
Advogado do(a) APELANTE: ALEXANDRE MALDONADO DAL MAS - SP108346-A

APELADO: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO, COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ

OUTROS PARTICIPANTES:

 

V O T O

Assiste parcial razão aos apelantes, conforme será demonstrado.

Regime especial tutelar indígena

O Código Civil estabelece, em seu art. 4º, parágrafo único, que "a capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial".

Por sua vez, a Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) institui, em seu Capítulo II (artigos 7º a 11), um regime especial tutelar civil individual e coletivo aos indígenas. Tais normas dispõem que os índios "não integrados à comunhão nacional" não se encontram investidos na plenitude da capacidade civil, razão pela qual se submetem ao regime tutelar estabelecido pelo referido diploma normativo, ficando condicionada a emancipação do índio à satisfação de requisitos legalmente estabelecidos.

Ocorre que tal conjunto normativo mostra-se incompatível com a Constituição da República de 1988, bem como com a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (internalizada pelo Decreto nº 5.051/2004).

Nesse sentido, observa-se que a atual disciplina acerca da capacidade civil dos índios, estabelecida pelo vigente regime constitucional, mostra-se incompatível com a limitação instituída pelo Estatuto do Índio. A Constituição da República, em seu art. 232, dispõe que os índios são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, devendo o Ministério Público intervir como fiscal da ordem jurídica, em consonância com o disposto no art. 129, V, da Constituição, e no art. 178, do Código de Processo Civil.

Consoante dispõe o Código de Processo Civil, somente possui capacidade para estar em juízo aquele se encontre no exercício de seus direitos (art. 70).

Depreende-se, portanto, que a vedação ao pleno exercício dos direitos civis pelos indígenas, estabelecida pela Lei 6.001/73, não deve subsistir, posto que não recepcionada pela ordem constitucional de 1988, tendo em vista a igualdade de direitos prevista pelo caput do art. 5º da Constituição da República, bem como pelo fato de que o texto constitucional, ao conferir capacidade processual e postulatória aos indígenas, reconheceu, por conseguinte, sua capacidade jurídica plena.

Por outro lado, a Convenção 169, da OIT, estabelece, em art. 8.3, ser vedado qualquer impedimento ao exercício, pelos indígenas, dos direitos reconhecidos para todos os demais cidadãos. Mostra-se inconvencional, portanto, a limitação estabelecida pela Lei 6.001/73 à capacidade civil do índio, com base no superado conceito de "não integração" do indígena à sociedade envolvente.

Tal convenção - conforme entendimento sedimentado pelo STF no julgamento do RE 349.703/RS -, enquanto tratado internacional de direitos humanos, incorpora-se ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma jurídica supralegal e, portanto, encontra-se hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, estando submetida apenas à conformação com as normas constitucionais.

Ante o exposto, constata-se que o regime especial tutelar civil previsto pelo Estatuto do Índio é incompatível com a ordem jurídica vigente, de modo que a capacidade do índio para exercer direitos e contrair obrigações não se encontra vinculada à tutela do Estado e, portanto, independe da intervenção da Administração Pública.

À FUNAI incumbe estabelecer diretrizes ao cumprimento da política indigenista, zelando pela preservação das instituições e comunidades tradicionais e pelo respeito à diversidade cultural, devendo a intervenção da Autarquia orientar-se por tais princípios. Tal intervenção não se confunde com o superado regime especial tutelar civil individual e coletivo conferido aos índios pela Lei 6.001/73, os quais, consoante exposto, devem ser tratados como indivíduos com plena capacidade civil.

Nesse sentido, elucida a doutrina:


"O Estatuto do Índio, em seu art. 7º, estabeleceu uma tutela individual e coletiva, abrangendo os índios não integrados - na terminologia ultrapassada - e suas comunidades. Esse regime especial tutelar civil individual e coletivo não foi recepcionado pela CF/88 e colide, ainda, com a Convenção n. 169 (de natureza supralegal, como visto em capítulo específico). De início, convém observar que a CF/88 determinou que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, devendo o Ministério Público intervir em todos os atos do processo (arts. 232 e 129, V). Conjugando esse dispositivo com a igualdade de direitos prevista no art. 5º, caput, fica descartada a diminuição da capacidade civil do indígena, consagrando-se, pelo contrário, no pleno exercício dos direitos civis. Já o artigo 8.3 da Convenção n. 169 da OIT é claro ao dispor que não se deve impedir o exercício pelos indígenas de todos os direitos reconhecidos para os membros da sociedade envolvente.

Com isso, a prática dos atos da vida civil pelo indígena independe da manifestação da FUNAI, podendo exercer direitos e contrair obrigações. Nesse sentido, o Projeto de Lei n. 2.057/91 (Estatuto dos Povos Indígenas), que tramita no Congresso Nacional, trata o indígena como indivíduo com plena capacidade civil, devendo, quando aprovado, ser a "legislação especial" da qual se refere o Código Civil em seu art. 4º, parágrafo único. Não cabe confundir, ainda, a tutela civil (não recepcionada) do indígena com a intervenção de natureza do direito público da FUNAI, que visa proteger as comunidades indígenas, sob o manto do princípio da proteção e respeito à diversidade cultural, independentemente de como elas interagem com a sociedade envolvente. (...) Há também, por outro lado, o entendimento na jurisprudência de que não foi recepcionado o regime tutelar do Estatuto do Índio, uma vez que, após a CF/88 e a Convenção n. 169 da OIT, o regime de tutela dos povos indígenas transformou-se em um regime de inclusão e promoção dos direitos humanos, com respeito à autonomia e ao autogoverno. Nesse sentido: 'Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar-lhes os bons, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916 e no Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73). A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em 1988, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas e de seus bens (à semelhança do que ocorre com os idosos que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público)' (ApC 200172010043080, Rel. Des. Edgard Antônio Lippmann Júnior, TRF da 4ª Região, DE de 24-11-2008)".

(RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 795-797) - g.n.

No mesmo sentido, aponto o seguinte julgado:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE OCUPAÇÃO PERPETRADA POR ÍNDIOS EM IMÓVEIS SITUADOS EM ÁREA SUPOSTAMENTE INDÍGENA. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA FUNAI SOBRE OS FATOS OCORRIDOS. CAPACIDADE CIVIL E POSTULATÓRIA DOS SILVÍCOLAS RECONHECIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Ação indenizatória ajuizada contra a FUNAI pela proprietária de área de terras no município de Itaiópolis-SC, por ela utilizada para implantação de projetos de reflorestamento de vegetação exótica, com vistas ao recebimento de indenização pelos danos decorrentes da invasão dos imóveis de sua propriedade por indígenas, nos anos de 1998 e 2001. Não prospera a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porque o ordenamento jurídico brasileiro possibilita o manejo de ação indenizatória para se obter a reparação de danos morais e materiais causados por terceiros ou pela Administração Pública Direta ou Indireta. Com o advento da Constituição de 1988, migrou-se de um regime de tutela dos povos indígenas para um regime de proteção. Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar-lhes os bens, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916 e no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em 1988, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas e de seus bens (à semelhança do que ocorre com os idosos que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público). Desde o reconhecimento constitucional da diversidade cultural (arts. 215, § 10 e 216) e da capacidade civil e postulatória dos índios e de suas comunidades (art. 232 c/c art. 7° do CPC) - o que lhes confere o direito ao acesso a todas garantias constitucionais de forma autônoma -, não mais subsiste o regime tutelar a que os silvícolas estavam submetidos perante à FUNAI por força do disposto no artigo 6°, III e Parágrafo Único do Código Civil de 1916 e no artigo 7° do Estatuto do Índio, tampouco a classificação dos indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados", prevista no artigo 4° do Estatuto do Índio, porque tais dispositivos não foram recepcionados pela atual Constituição. Sendo os silvícolas pessoas dotadas de capacidade para todos os atos da vida civil, segundo a ordem constitucional vigente, não há que se falar em culpa administrativa da FUNAI e da União sobre os fatos que ensejaram a presente ação reparatória. Provimento do apelo da FUNAI, para o fim de reconhecer a ausência de responsabilidade do referido entes sobre os fatos que ensejaram a reparação material pretendida.

(TRF-4, 4ª Turma, AC 200172010043080, Rel. Des. Edgard Antônio Lipmann Júnior, j. 29.10.2008, v.u, DE 24.11.2008.) - g.n.

Na mesma trilha, segue julgado de minha Relatoria, apreciado por esta C. Primeira Turma:

ADMINISTRATIVO. REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FUNAI. DANOS DECORRENTES DE OCUPAÇÃO PERPETRADA POR ÍNDIOS EM IMÓVEL RURAL. CAPACIDADE CIVIL E POSTULATÓRIA DOS ÍNDIOS. REGIME ESPECIAL TUTELAR CIVIL NÃO RECEPCIONADO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988. ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NÃO DEMONSTRADOS. RESPONSABILIZAÇÃO AFASTADA. AGRAVO RETIDO NÃO PROVIDO. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DE APELAÇÃO PROVIDOS.

1. Da análise da pretensão deduzida na exordial, não se depreende a existência de elementos a infirmar a pertinência subjetiva da FUNAI para integrar o polo passivo da lide. O exame da legitimidade passiva da Autarquia se trata, no caso, de matéria estritamente vinculada à apreciação do direito material subjacente, razão pela qual a questão deve ser dirimida em sede de juízo de mérito. Agravo retido desprovido.

2. A responsabilidade do Estado pelos danos causados a terceiros, por meio de seus agentes, na prestação de serviço público, prescinde da demonstração de dolo ou culpa, caracterizando-se, portanto, como responsabilidade objetiva, na modalidade da teoria do risco administrativo.

3. No que concerne à responsabilidade da Administração Pública por danos causados ao particular em decorrência de condutas omissivas, predomina, na doutrina, o entendimento de que a responsabilidade civil é subjetiva, regendo-se pela teoria da culpa administrativa (culpa anônima), razão pela qual se faz necessário comprovar a negligência na atuação estatal. Ademais, deverá restar demonstrado o dever de agir por parte do Estado, assim como a efetiva possibilidade de agir para evitar o dano.

4. O STF, em sentido oposto, admite a responsabilidade civil objetiva do Estado em qualquer hipótese, inclusive em se tratando de dano decorrente de conduta omissiva. Não se prescinde, no entanto, da demonstração de omissão, por parte da Administração Pública, em relação a uma obrigação legal específica de agir.

5. A pretensão indenizatória deduzida nos autos deve ser apreciada com fulcro nas normas gerais que regem a responsabilidade civil do Estado, afastando-se quaisquer fundamentos que busquem atribuir responsabilização integral à FUNAI, por atos ilícitos praticados por índios, com supedâneo em um regime especial tutelar.

6. A Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) institui um regime especial tutelar civil individual e coletivo aos índios. Tal vedação ao pleno exercício dos direitos civis pelos indígenas não deve subsistir, posto que não recepcionada pela ordem constitucional de 1988, tendo em vista a igualdade de direitos prevista pelo caput do art. 5º da Constituição da República, bem como pelo fato de que o texto constitucional, ao conferir capacidade processual e postulatória aos indígenas (art. 232), reconheceu, por conseguinte, sua capacidade jurídica plena.

7. O regime especial tutelar civil previsto pelo Estatuto do Índio é incompatível com a ordem jurídica vigente, de modo que a capacidade do índio para exercer direitos e contrair obrigações é plena, não se encontrando vinculada à tutela do Estado. Precedentes.

8. Não se encontram presentes, no caso, elementos suficientes à caracterização de omissão ilícita por parte da Administração, de modo a acarretar a responsabilidade da FUNAI, posto que ausentes os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por atos omissivos, mormente o nexo de causalidade e a culpa administrativa.

9. A parte autora limitou-se a expor considerações relativas ao regime especial tutelar indígena, não demonstrando, porém, os elementos caracterizadores da responsabilidade civil do Estado no caso concreto, quais sejam, a inoperância do serviço público realizado pela FUNAI, no âmbito das suas atribuições legalmente estabelecidas, e a existência de nexo de causalidade entre os danos sofridos pelos Recorridos e qualquer omissão específica por parte da referida Autarquia.

10. A atribuição de responsabilidade civil ao Estado, com fundamento em um regime especial tutelar civil atribuído ao órgão indigenista federal, dissociada da verificação de culpa administrativa ou de qualquer omissão específica por parte da Autarquia Ré, consubstanciaria hipótese de responsabilidade integral da FUNAI por quaisquer ilícitos perpetrados por indígenas. Tal pretensão não possui respaldo no ordenamento jurídico.

11. Em observância ao princípio da causalidade, impõe-se aos Autores o pagamento de honorários advocatícios de sucumbência. Fixam-se os honorários em 10% (dez por cento) do valor da causa, importância que, em observância às características do caso, mostra-se adequada.

12. Negado provimento ao agravo retido. Dado provimento à remessa necessária e ao recurso de apelação, para reformar a sentença e julgar improcedente a ação.

(TRF 3ª Região, PRIMEIRA TURMA,  ApReeNec - APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA - 1714434 - 0001604-76.2001.4.03.6002, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HÉLIO NOGUEIRA, julgado em 28/11/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:11/12/2017 )                                  

Ante o exposto, no caso em análise, devem ser afastados quaisquer fundamentos que busquem atribuir responsabilização integral à FUNAI, por atos ilícitos praticados por índios, com supedâneo em um regime especial de tutela.

Da prolação de sentença citra petita

No caso concreto, em que pese a ausência de responsabilidade da FUNAI por eventuais atos ilícitos praticados pelos indígenas, nos termos acima expostos, impende registrar que a ação indenizatória foi ajuizada contra a FUNAI e também contra a COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ, que foi citada e está devidamente representada nos autos pela Procuradoria Federal.

Nessa senda, observo, da leitura atenta da sentença, que a questão da ausência dos pressupostos ensejadores da responsabilidade civil foi analisada apenas em relação à corré FUNAI, deixando o magistrado sentenciante de examinar a presença ou não de tais requisitos no que concerne à corré COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ.

Desse modo, assiste razão aos apelantes ao pugnarem pelo reconhecimento de sentença citra petita no caso, pelo viés subjetivo do instituto, conforme doutrina de Daniel Amorim Assumpção Neves, in “Manual de Direito Processual Civil – Volume único”, Editora Juspodivm, 12ª edição, 2020, páginas 833/834:

“(...) No aspecto objetivo a sentença é ‘citra petita’, também chamada de ‘infra petita’, quando fica aquém do pedido do autor ou deixa de enfrentar e decidir causa de pedir ou alegação de defesa apresentada pelo réu. No aspecto subjetivo é ‘citra petita’ a decisão que não resolve a demanda para todos os sujeitos processuais. (...) Subjetivamente, haverá decisão ‘citra petita’ se o juiz deixar de decidir a demanda relativamente um dos sujeitos processuais, o que só se torna crível na hipótese da formação de litisconsórcio. Devendo decidir a demanda a respeito de todos os sujeitos processuais, haverá vício se a sentença não tratar de algum deles, (...)”. (grifos meus)

Por conseguinte, constatada a falta de análise acerca dos pressupostos da responsabilidade civil em relação à corré COMUNIDADE ITAGUÁ, impõe-se a anulação da sentença e o retorno dos autos à Vara de origem, para o pertinente exame da questão, sob pena de indevida supressão de instância.

Dispositivo

Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso de apelação dos autores, para o fim de anular a sentença, determinado o retorno dos autos à Vara de origem, nos termos da fundamentação supra.

É como voto.


DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ZAUHY:

 

Pedi vista dos autos para uma melhor análise da questão controvertida.

Cuida-se, na origem, de ação de indenização por danos materiais e morais proposta por diversos trabalhadores em face da Comunidade Indígena Itaguá e da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Narraram os autores que exerciam atividades laborais há décadas para a família proprietária da Fazenda Novilho, localizada em Caarapó/MS, local em que também residiam, quando, em 14 de junho de 2016, a propriedade rural foi invadida por indígenas.

Na invasão, os indígenas teriam expulsado todos os trabalhadores do local, proferindo ameaças e saqueando seus bens. De acordo com os autores, o abalo acarretado pelos indígenas aos trabalhadores da Fazenda não teria sido apenas patrimonial, mas igualmente de ordem emocional, assumindo, destarte, um caráter extrapatrimonial. O feito foi processado na instância de origem até o momento em que sobreveio sentença julgando improcedentes os pedidos formulados, resolvendo-se o mérito com fulcro no art. 487, inc. I, do Código de Processo Civil de 2015.

Considerou o juízo de primeiro grau que a FUNAI não poderia ser responsabilizada por toda e qualquer conduta tomada pelos indígenas, cabendo responsabilizar o ente público apenas e tão somente na situação em que restar evidenciada sua ação ou omissão direta para a configuração do dano. O magistrado a quo salientou, contudo, que, no caso em comento, o nexo de causalidade entre a ação/omissão da FUNAI e o dano constatado não estaria bem demonstrado, com o que o pleito não poderia ser acolhido.

Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação, requerendo, preliminarmente, o reconhecimento da nulidade da sentença vergastada, ao argumento de que ela seria citra petita. Alegaram os recorrentes que os pedidos de indenização por danos materiais e morais somente foram analisados pelo juízo a quo no que dizia respeito à FUNAI, mas que tais pedidos não foram apreciados no que se referia à Comunidade Indígena Itaguá. No mérito recursal, os apelantes aduziram que a FUNAI deve sim ser responsabilizada pelos atos praticados pelos indígenas, tendo em vista que os indígenas estariam sob a tutela do ente público em questão, havendo justamente por isso nexo de causalidade entre a ação da FUNAI e os danos constatados.

Foram apresentadas contrarrazões tanto pela FUNAI quanto pela Comunidade Indígena Itaguá e os autos subiram a esta Egrégia Corte Regional, com distribuição do apelo para a relatoria do eminente Desembargador Federal Hélio Nogueira. Sua Excelência trouxe o feito a julgamento na sessão que se realizou em 02 de março de 2021, votando pelo parcial provimento ao recurso de apelação interposto.

O eminente Relator partilhou do entendimento de acordo com o qual a FUNAI não seria responsável pelos atos praticados pelos indígenas. No entanto, anulou a sentença objurgada e determinou o retorno dos autos ao primeiro grau de jurisdição, uma vez que o juízo de primeiro grau não havia analisado a responsabilidade da Comunidade Indígena Itaguá pelos atos dos indígenas ocorridos em 14 de junho de 2016, limitando a sua apreciação à FUNAI. Na ocasião, então, pedi vista dos autos.

Após detida análise do caso em comento, voto no sentido de acompanhar o eminente Relator.

Com a promulgação da Constituição da República de 1988, o paradigma de que os indígenas seriam pessoas civilmente incapazes de entender as consequências de seus atos e de que precisariam ser integrados ao restante da sociedade civil foi superado, porque se passou a considerar que os indígenas devem ser respeitados em sua identidade e cultura, mas, de contrapartida, devem assumir a responsabilidade pelos atos que adotarem e que porventura acarretem danos a terceiros.

Com a referida mudança de parâmetro, as disposições da Lei n. 6.001/1973 – Estatuto do Índio – que cuidavam da integração dos indígenas não foram recepcionadas pela atual ordem constitucional, afastando-se a tutela que a FUNAI exercia para que os indígenas praticassem os atos da vida civil e assumissem a responsabilidade pelos eventuais danos que causassem.

Diante destas importantes mudanças, o Colendo Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento segundo o qual “a tutela orfanológica prevista no Estatuto do Índio não foi recepcionada pela atual ordem constitucional”. Assentou aquela Corte Superior, ainda, que “a fundação (refere-se à FUNAI) não possui ingerência sobre as atitudes dos indígenas que, como todo cidadão, possuem autodeterminação e livre arbítrio”. Confiram-se os termos do julgado a que me refiro:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS SUBMETIDOS AO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 2/STJ. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FAZENDA OCUPADA POR MEMBROS DA COMUNIDADE GUARANI ÑANDEVA. ATO PRATICADO PELOS INDÍGENAS POR SUA PRÓPRIA CONTA. PROCESSO DEMARCATÓRIO AINDA EM ANDAMENTO. ESBULHO CONFIGURADO. MULTA DIÁRIA IMPOSTA À FUNAI EM CASO DE NOVA INVASÃO. AFASTAMENTO.

(...)

6. Sem razão o particular quando defende o restabelecimento da condenação da FUNAI ao ressarcimento pelos danos decorrentes do abatimento de animais ocorrido nessa ocupação. Conforme bem lançado nas contrarrazões da FUNAI, a tutela de natureza orfanológica prevista no Estatuto do Índio não foi recepcionada pela atual ordem constitucional, por isso a fundação não possui ingerência sobre as atitudes dos indígenas que, como todo cidadão, possuem autodeterminação e livre arbítrio, sendo despida de fundamento jurídico a decisão judicial que impõe ao ente federal a responsabilidade objetiva pelos atos ilícitos praticados por aqueles.

(...)

9. Recursos especiais da União, do Ministério Público Federal e de Flávio Páscoa Teles de Menezes desprovidos. Recurso especial da FUNAI conhecido em parte e, nessa extensão, provido em parte tão somente para afastar a multa diária que lhe foi imposta.” (grifei)

(REsp 1650730/MS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/08/2019, DJe 27/08/2019)

Note-se, aliás, que semelhante posição é perfilhada por esta Corte Regional, conforme aresto que transcrevo na sequência:

“DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ATOS DANOSOS PRATICADOS POR INDÍGENAS CONTRA PARTICULARES FORA DA ÁREA DE RESERVA INDÍGENA. CAPACIDADE CIVIL E PROCESSUAL DOS ÍNDIOS. ART. 223 DA CF/88. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DA FUNAI SE RESTRINGE À TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS DOS ÍNDIOS. AUSÊNCIA DE PROVA DA OMISSÃO ESTATAL E DAS COMUNIDADES INDÍGENAS. SENTENÇA MANTIDA. APELAÇÃO IMPROVIDA.

(...)

07. A responsabilidade civil do Estado é objetiva, com fulcro na teoria do risco administrativa, consagrada no art. 37, §6º e pressupõe a prática de ato ou omissão voluntária, a existência de dano e a presença de nexo causal entre o ato e o resultado (prejuízo) alegado. Na hipótese, em que pese a gravidade dos fatos e os prejuízos apontados, não se pode transferir a responsabilidade à FUNAI ou à União por toda e qualquer responsabilidade por atos praticados, isoladamente, por integrantes de comunidade indígenas, sabidamente, dotados de capacidade de direito para responderem, judicialmente, por seus atos.

(...)

09. Apelação improvida. Sentença mantida.” (grifei)

(TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0000160-78.2010.4.03.6006, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 01/10/2020, Intimação via sistema DATA: 09/10/2020)

Outras Cortes Regionais têm partido da mesma premissa de irresponsabilidade da FUNAI por ilícitos praticados pelos indígenas, como o E. TRF-4, que já teve oportunidade de salientar o seguinte: “sendo pessoas maiores e, como tais, dotadas de capacidade para os atos da vida civil, se alguns dos índios integrantes de comunidade indígena causam danos a alguém, devem ser responsabilizados pessoalmente através de ação judicial própria à respectiva reparação, seja no âmbito civil, seja na esfera criminal, se for o caso, uma vez que o tema da incorporação à comunidade nacional é assunto superado e contradiz a legislação posta em 1988” (Apelação 2004.71.04.001262-0).

Assim, o voto do eminente Relator guarda compatibilidade com a orientação constitucional e os diversos precedentes dos tribunais, razão pela qual o acompanho no tocante ao tema. Também acompanho o eminente Relator no que tange à anulação da sentença, porque o juízo de primeira instância realmente limitou sua análise à irresponsabilidade da FUNAI, deixando de tecer considerações acerca das responsabilidades da Comunidade Indígena envolvida. A sentença é, pois, citra petita, sendo imperiosa a sua anulação e o retorno dos autos ao primeiro grau de jurisdição, para que se apure a responsabilidade da Comunidade Indígena no episódio narrado na peça exordial do feito.

Pelo exposto, acompanhando o eminente Relator, voto por dar parcial provimento ao recurso de apelação interposto, para o fim de cassar a sentença recorrida e determinar o retorno dos autos ao primeiro grau de jurisdição, de molde a se possibilitar a análise da responsabilidade da Comunidade Indígena nos eventos narrados na petição inicial da demanda, mantendo o afastamento da responsabilidade da FUNAI, tudo conforme a fundamentação supra.

É como voto. 


E M E N T A

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE DA FUNAI POR ATOS ILÍCITOS PERPETRADOS POR INDÍGENAS. NÃO RECEPÇÃO DO REGIME TUTELAR PREVISTO PELO ESTATUTO DO ÍNDIO PELA CF/88. PROLAÇÃO DE SENTENÇA CITRA PETITA. AUSÊNCIA DE ANÁLISE DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL QUANTO À COMUNIDADE INDÍGENA CORRÉ NO PROCESSO. SENTENÇA ANULADA SOB PENA DE INDEVIDA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RETORNO DOS AUTOS À VARA DE ORIGEM PARA A DEVIDA APRECIAÇÃO DO TEMA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

1. O Código Civil estabelece, em seu art. 4º, parágrafo único, que "a capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial". Por sua vez, a Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) institui, em seu Capítulo II (artigos 7º a 11), um regime especial tutelar civil individual e coletivo aos indígenas. Tais normas dispõem que os índios "não integrados à comunhão nacional" não se encontram investidos na plenitude da capacidade civil, razão pela qual se submetem ao regime tutelar estabelecido pelo referido diploma normativo, ficando condicionada a emancipação do índio à satisfação de requisitos legalmente estabelecidos.

2. Ocorre que tal conjunto normativo mostra-se incompatível com a Constituição da República de 1988, bem como com a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (internalizada pelo Decreto nº 5.051/2004). Nesse sentido, observa-se que a atual disciplina acerca da capacidade civil dos índios, estabelecida pelo vigente regime constitucional, mostra-se incompatível com a limitação instituída pelo Estatuto do Índio. A Constituição da República, em seu art. 232, dispõe que os índios são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, devendo o Ministério Público intervir como fiscal da ordem jurídica, em consonância com o disposto no art. 129, V, da Constituição, e no art. 178, do Código de Processo Civil.

3. Consoante dispõe o Código de Processo Civil, somente possui capacidade para estar em juízo aquele se encontre no exercício de seus direitos (art. 70). Depreende-se, portanto, que a vedação ao pleno exercício dos direitos civis pelos indígenas, estabelecida pela Lei 6.001/73, não deve subsistir, posto que não recepcionada pela ordem constitucional de 1988, tendo em vista a igualdade de direitos prevista pelo caput do art. 5º da Constituição da República, bem como pelo fato de que o texto constitucional, ao conferir capacidade processual e postulatória aos indígenas, reconheceu, por conseguinte, sua capacidade jurídica plena.

4. Por outro lado, a Convenção 169, da OIT, estabelece, em art. 8.3, ser vedado qualquer impedimento ao exercício, pelos indígenas, dos direitos reconhecidos para todos os demais cidadãos. Mostra-se inconvencional, portanto, a limitação estabelecida pela Lei 6.001/73 à capacidade civil do índio, com base no superado conceito de "não integração" do indígena à sociedade envolvente. Tal convenção - conforme entendimento sedimentado pelo STF no julgamento do RE 349.703/RS -, enquanto tratado internacional de direitos humanos, incorpora-se ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma jurídica supralegal e, portanto, encontra-se hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, estando submetida apenas à conformação com as normas constitucionais.

5. Ante o exposto, constata-se que o regime especial tutelar civil previsto pelo Estatuto do Índio é incompatível com a ordem jurídica vigente, de modo que a capacidade do índio para exercer direitos e contrair obrigações não se encontra vinculada à tutela do Estado e, portanto, independe da intervenção da Administração Pública.

6. À FUNAI incumbe estabelecer diretrizes ao cumprimento da política indigenista, zelando pela preservação das instituições e comunidades tradicionais e pelo respeito à diversidade cultural, devendo a intervenção da Autarquia orientar-se por tais princípios. Tal intervenção não se confunde com o superado regime especial tutelar civil individual e coletivo conferido aos índios pela Lei 6.001/73, os quais, consoante exposto, devem ser tratados como indivíduos com plena capacidade civil.

7. Ante o exposto, no caso em análise, devem ser afastados quaisquer fundamentos que busquem atribuir responsabilização integral à FUNAI, por atos ilícitos praticados por índios, com supedâneo em um regime especial de tutela.

8. No caso concreto, em que pese a ausência de responsabilidade da FUNAI por eventuais atos ilícitos praticados pelos indígenas, nos termos acima expostos, impende registrar que a ação indenizatória foi ajuizada contra a FUNAI e também contra a COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ, que foi citada e está devidamente representada nos autos pela Procuradoria Federal.

9. Nessa senda, observo, da leitura atenta da sentença, que a questão da ausência dos pressupostos ensejadores da responsabilidade civil foi analisada apenas em relação à corré FUNAI, deixando o magistrado sentenciante de examinar a presença ou não de tais requisitos no que concerne à corré COMUNIDADE INDÍGENA ITAGUÁ.

10. Desse modo, assiste razão aos apelantes ao pugnarem pelo reconhecimento de sentença citra petita no caso, pelo viés subjetivo do instituto.

11. Por conseguinte, constatada a falta de análise acerca dos pressupostos da responsabilidade civil em relação à corré COMUNIDADE ITAGUÁ, impõe-se a anulação da sentença e o retorno dos autos à Vara de origem, para o pertinente exame da questão, sob pena de indevida supressão de instância.

12. Apelação parcialmente provida. Sentença anulada.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, com a apresentação do voto-vista do senhor Desembargador Federal Wilson Zauhy, a Primeira Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso de apelação dos autores, para o fim de anular a sentença, determinado o retorno dos autos à Vara de origem, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.