Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0001447-21.2019.4.03.6181

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, ZHONGLIANG LAN

Advogado do(a) APELANTE: PAULO SALLARES DE MATTOS CARVALHO - SP409349-A
Advogados do(a) APELANTE: FERNANDO AUGUSTO SAKER MAPELLI - SP213532-A, EMERSON MARCELO SAKER MAPELLI - SP145912-A, GABRIEL ROGERIO TOMACHESKI - SP223734-A

APELADO: ZHONGLIANG LAN, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

Advogados do(a) APELADO: FERNANDO AUGUSTO SAKER MAPELLI - SP213532-A, EMERSON MARCELO SAKER MAPELLI - SP145912-A, GABRIEL ROGERIO TOMACHESKI - SP223734-A
Advogado do(a) APELADO: PAULO SALLARES DE MATTOS CARVALHO - SP409349-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0001447-21.2019.4.03.6181

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, ZHONGLIANG LAN

Advogado do(a) APELANTE: PAULO SALLARES DE MATTOS CARVALHO - SP409349-A
Advogados do(a) APELANTE: FERNANDO AUGUSTO SAKER MAPELLI - SP213532-A, EMERSON MARCELO SAKER MAPELLI - SP145912-A, GABRIEL ROGERIO TOMACHESKI - SP223734-A

APELADO: ZHONGLIANG LAN, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

Advogados do(a) APELADO: FERNANDO AUGUSTO SAKER MAPELLI - SP213532-A, EMERSON MARCELO SAKER MAPELLI - SP145912-A, GABRIEL ROGERIO TOMACHESKI - SP223734-A
Advogado do(a) APELADO: PAULO SALLARES DE MATTOS CARVALHO - SP409349-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Trata-se de recursos de apelação, interpostos pelo Ministério Público Federal e por Zhongliang Lan contra sentença (ID 155325680), por meio da qual o ora apelante foi condenado devido à prática dos delitos tipificados nos arts. 149, caput e §1º, inciso II e 149-A, inciso II, na forma do art. 69, todos do Código Penal, nos autos de ação penal pública incondicionada em face dele ajuizada pelo Ministério Público Federal.

Narrou-se na exordial acusatória (ID 155325677), em síntese, que:

“Restou comprovado nos autos que ZHONGL1AN LAN, no dia 07 de fevereiro de 2019, na Rua lvaí, 114, Tatuapé, reduzia estrangeiros a condições análogas às de escravo, submetendo-os a jornadas exaustivas de trabalho, sujeitando-os a condições degradantes de trabalho, bem como restringindo a locomoção das vítimas em razão da falta de pagamento de salários e retenção de seus documentos pessoais.

Além disso, restou apurado que ZHONGLIAN LAN, em conluio com outro indivíduo não identificado e residente na China, agenciou aliciou e alojou pessoas estrangeiras, mediante fraude, com a finalidade de submetê-las a trabalho em condições análogas às de escravo.

As condutas criminosas tiveram início em dezembro de 2017, com a vinda dos estrangeiros da China, perdurando até o dia 07 de fevereiro de 2019, com a prisão do denunciado.

2- Das Apurações

Os fatos foram apurados em diligência realizada pela Polícia Civil de São Paulo, que, recebeu denúncia de que na Rua Ivaí 114 Tatuapé, estava em funcionamento uma marcenaria clandestina, onde pessoas de origem chinesa eram mantidas; em situação irregular no país, sendo reduzidas a condições análogas às de escravo.

Em diligência realizada no dia 07 de fevereiro de 2019, a Polícia Civil identificou sete indivíduos de origem chinesa, que trabalhavam em um galpão em condições degradantes de trabalho excessivo, bem como em restrição de liberdade de locomoção, já que sem retribuição remuneratória digna e sem acesso aos seus documentos pessoais.

As vítimas identificadas no local foram ouvidas perante a Polícia Civil e narraram que foram trazidas ao Brasil no dia 28 de dezembro de 2017, mediante promessa de trabalho, sendo que havia sido combinado um valor de remuneração anual a ser pago a seus familiares na China, em moeda chinesa.

Acrescentaram que, quando chegaram ao Brasil, seus passaportes foram retidos pelo denunciado. Trabalhavam com montagem de móveis no local, no período de segunda a domingo, das 07 às 12 e das 13 às 19 horas. Não tinham descanso semanal remunerado, permaneciam confinados no imóvel e sem o fornecimento de equipamentos de segurança para o trabalho.

Além dos depoimentos testemunhais, os fatos foram presenciados pelos Policiais Civis que estiveram no local, consistente em um galpão com maquinário e materiais para confecção de móveis. Constatou-se a inexistência de equipamentos de proteção e segurança, que o local não tinha condições de salubridade, já que a iluminação e arejamento eram precários, sendo que no pavimento superior havia cômodos de alojamento, onde as vítimas dormiam e se alimentavam em péssimas condições de higiene e limpeza. Havia alimentos espalhados e exalando odores fortes, em clara demonstração de condições degradantes de trabalho e sobrevivência. Ademais, os empregados estavam sem seus documentos pessoais, que foram retidos pelo denunciado, permanecendo com ele ou com alguém a ele relacionado (outras pessoas estavam envolvidas mas não foram precisamente identificadas).

Os Policiais Civis apreenderam o Contrato de Locação presente às fis. 37, celebrado em 01 de dezembro de 2017, entre Sonia Maria Lourenço Filenti como locatária e ZHONGLIAN LAN como locador, referente ao imóvel situado na Rua Ivaí 104 e 114, Tatuapé, São Paulo.

Apurou-se que o denunciado residia em local próximo, na Rua Ulisses Cruz, 668 e, conforme relataram os Policiais Civis que participaram da diligência, reconheceu-se como o responsável pala marcenaria, acrescentando que havia um outro sócio que se encontrava na China (fis. 04, 06).

Ademais, as vítimas reconheceram ZHONGLIAN LAN como sendo o patrão no Brasil, mencionando que havia também um outro sócio na China, tendo sido trazidas ao país com promessas de trabalho. Todavia, conforme se constatou, foram aliciadas no país de origem para depois serem mantidas em condições de trabalho análogas às de escravo”.

 

Citaram-se provas iniciais de autoria e materialidade delitivas quanto aos fatos em tese criminosos.

Forte nisso, requereu o Ministério Público Federal o recebimento da denúncia, seu processamento e a condenação de Zhongliang La pela prática dos crimes previstos nos arts. 149, caput, §1º, inciso II, c.c art. 149 -A, inciso II, todos do Código Penal.

A denúncia foi recebida em 20 de fevereiro de 2019 (ID 155325677).

Após seguimento do feito, sobreveio sentença condenatória (ID 155325680). Entendeu o Juízo de origem terem sido comprovadas autoria e materialidade delitivas das imputações. No dispositivo, julgou procedente a pretensão punitiva deduzida na preambular, condenando Zhongliang Lan pela prática dos crimes previstos nos arts. 149, caput e §1º, inciso II e 149-A, inciso II, na forma do art. 69, todos do Código Penal, à pena de 4 anos e 8 meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, e ao pagamento de 40 dias-multa com valor unitário de 5 (cinco) salários-mínimos. Foi-lhe, ainda, concedida a liberdade provisória e fixado o valor mínimo de indenização às vítimas em R$ 200.000,00 mantido o sequestro do bem imóvel.

A sentença foi publicada em 15 de janeiro de 2020 (ID 155325680).

O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação, em cujas razões (ID 155325680) pleiteia o (i) aumento da pena-base para ambos os crimes; (ii) redução ao mínimo da fração de diminuição da pena decorrente do art. 149-A, § 2º, do Código Penal e (iii) o reconhecimento do concurso formal de crimes em razão da multiplicidade de vítimas.

A defesa do réu Zhongliang Lan também interpôs recurso de apelação em cujas razões recursais (ID 155325680) pleiteia (i) a absolvição pela falta de provas da materialidade dos delitos, alegando tratar-se se irregularidades trabalhistas apenas; (ii) a fixação das penas no mínimo legal; (iii) a aplicação da atenuante do art. 65, II, ou do art. 66, do Código Penal e (iv) a redução ou parcelamento das penas pecuniárias.

Contrarrazões apresentadas pelo Ministério Público Federal (ID 155325977) e pelo réu (ID 155325675).

A Procuradoria Regional da República opinou pelo desprovimento dos recursos (ID 158916196).

É o relatório.

Submeto a revisão, nos termos regimentais.

 

 

 

 

 


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V O T O

 

 

 

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso interposto e passo ao seu exame.

I - Da materialidade e da autoria delitivas

Imputa-se ao réu a prática amoldada aos arts. 149, caput, §1º, inciso II, c.c art. 149 -A, inciso II, todos do Código Penal, cujo teor transcrevo:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I - contra criança ou adolescente

II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:              (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)       

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;     (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;            (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)          (Vigência)

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;     (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)         

IV - adoção ilegal; ou        (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)         

V - exploração sexual.        (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)         

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.             

Como se nota pelos núcleos do tipo, não se trata apenas da escravidão antiga, em seu sentido de redução estrita de outro ser humano à condição inadmissível de propriedade de alguém. É criminalizada nos arts. 149 e 149-A do Código Penal qualquer prática que reduza substancialmente a dignidade humana em relações de controle laboral, seja por meio da redução de locomoção, seja por meio da imposição prática de jornadas exaustivas e condições degradantes de vida e trabalho. É evidente, pela própria natureza disjuntiva das condutas descritas, que nesses últimos casos não se exige qualquer restrição da liberdade física. O que há, em tais circunstâncias, é a especial exploração da vulnerabilidade econômica, física e/ou cultural das vítimas, de maneira a subjugá-las e retirar-lhes o patamar de dignidade estabelecido como piso civilizatório pelo ordenamento pátrio. Assentadas brevíssimas colocações de ordem geral, passo ao exame concreto.

A materialidade dos crimes previstos nos arts. 149 e 149-A, II, ambos do Código Penal, foram devidamente demonstradas.

Consta dos autos que, em 07 de fevereiro de 2019, policiais civis receberam notícia sobre suposta ocorrência de crimes na Rua Ivaí, nº 114, Bairro Tatuapé, neste Município. Dirigiram-se ao local e encontraram sete trabalhadores de origem estrangeira, posteriormente confirmados de nacionalidades chinesa, quais sejam, Xiaodong Zhou, Jinhuan Zhang, Tianyon Zhan, Zhengchun Fan, Fushu Lin, Xiaobin Xu e Wenxian Xu.

Os policiais identificaram a existência de um imóvel do tipo sobrado no qual funcionava uma marcenaria clandestina. Conforme consta do laudo pericial (ID 155325680), no piso inferior havia um galpão com maquinas e objetos destinados à fabricação de móveis e o imóvel funcionava também como dormitório para as vítimas, contendo uma cozinha em precárias condições de higiene, 05 (cinco) cômodos com camas, diversos objetos e vestes expostos em precárias condições, dois banheiros e um escritório.

Da análise da prova documental e oral produzida se depreende que as condições degradantes consistiam em: a) ausência de alojamento adequado; b) ausência de fornecimento de alimentação adequada; c) banheiros em precárias condições de higiene; d) impossibilidade de deixar o local em razão da falta de pagamento em moeda local e; e) sujeição à jornadas exaustivas.

O boletim de ocorrência (ID 155325676) e o laudo pericial (ID 155325680), os vídeos contidos nos IDs 155325949, 155325950 e 155325951, bem como os depoimentos dos policiais que realizaram a diligência, das vítimas e testemunhas ouvidas em sede policial e em juízo, dão conta de um quadro de vida e trabalho degradantes envolvendo os sete trabalhadores de origem chinesa.

O mesmo se diga dos consistentes relatos dos policiais que realizaram a diligência de resgate das vítimas.

Cito, a propósito, o depoimento do policial Marcos Douglas Dantas Vendrame, ouvido em juízo (ID 155325957), afirmando que ao chegarem ao local se depararam com precárias condições de habitação dos trabalhadores. Narrou que as camas estavam desarrumadas, os banheiros encontravam-se sujos, os alimentos descobertos e apresentavam forte odor, não havia geladeira para acondicionar alimentos de forma adequada, ou seja, a situação era bem precária. Afirmou que inicialmente foram inicialmente atendidos por um chinês, que não se comunicava em português e, posteriormente, chegou um rapaz que falava português e conseguiram se comunicar. Os trabalhadores disseram que não saíam do local, mesmo tendo a chave do imóvel. O policial observou, também, que não havia equipamentos de segurança para o trabalho de marcenaria e, em sua visão, as condições não eram dignas. Por fim, disse que os documentos das vítimas não foram apresentados na hora e foram informados que o patrão morava ali próximo e os passaportes estavam com ele.

No mesmo sentido e com teor similar foi o depoimento do policial civil Gerson Sargo (ID 155325956). Disse que recebeu denúncia anônima de que alguns estrangeiros estariam proibidos de sair e exercendo trabalho escravo em um galpão. Narrou que na parte inferior do imóvel tinha maquinários de uma marcenaria e os trabalhadores estavam fabricando móveis. Em relação ao local de habitação das vítimas, havia quartos, banheiro, camas, e informou-se a existência de um contrato de locação de alguém que morava próximo. Afirmou que o local tinha características de habitação coletiva, mas estava sem organização, o banheiro estava sem porta, papel higiênico no chão, não foi localizado chuveiro, da mesma forma que não foram localizados equipamentos de proteção para o trabalho, como capacete, máscara e protetor auricular.

Frisa-se que os depoimentos dos policiais civis colhidos em juízo corroboram o teor do depoimento prestado em sede policial (ID 155325676).

As precárias condições de trabalho e habitação foram bem ilustradas nas fotografias constantes do laudo pericial, nas quais se observa local de trabalho improvisado com instalações precárias. As condições de habitação a que estavam submetidos os trabalhadores eram igualmente precárias, já que é possível observar camas em número insuficiente, lixo exposto e alimentos sem armazenamento adequado para consumo. Transcrevo trecho elucidativo do laudo pericial (ID 155325680):

“O local indicado pela Autoridade Policial corresponde a Rua Ivaí, 114 - Tatuapé. 2 Trata-se de um imóvel do tipo sobrado construído no nível e alinhamento da via pública, vedado em sua testada por um portão metálico para acesso de veículos e uma porta de metal e vitro para acesso a pedestres.

Na área interna térrea observou-se um amplo salão dividido em ambientes com maquinário e material característico de oficio marcenaria.

No piso superior observou-se uma cozinha em precárias condições de higiene e com a características de uso recente, conforme ilustrações fotográficas a seguir: (...)

Observou-se ainda 05 (cinco) cômodos com camas e diversos objetos e vestes dispostos de forma irregular e em precárias condições de higiene, conforme ilustrações fotográficas a seguir: (...)”

Além disso, depreende-se dos autos que os trabalhadores eram submetidos a constrangimentos de variadas ordens, como jornada de trabalho exaustiva, salários retidos pelo réu e condições de trabalho degradantes, em clara ofensa ao direito à dignidade humana. Isso porque, conforme consta da r. sentença:

“a) os salários não estavam sendo pagos regular e pontualmente, inexistente o valor acordado quando da contratação. No período de um ano e três meses, foram apenas depositados pequenos valores em cartão cujo saque seria possível na China, não tendo os trabalhadores recebido valores em reais ou sendo-lhes possibilitado saques. Quando recebiam valores em espécie para compras rotineiras, estes lhes eram descontados; b) os trabalhadores estavam desprovidos de seus passaportes no momento da diligência. Os documentos foram exibidos apenas da Delegacia, horas depois, não tendo se esclarecido quem os apresentou; c) os trabalhadores desejavam retomar a seu país, mas foram impedidos pelo réu, que retinha os salários; d) apesar de possuírem a chave, nenhum dos trabalhadores deixava o local de residência (exceto uma das esposas para comprar comida), pois tinham metas de produtividade a cumprir e não falavam o idioma português; e) a jornada de trabalho era exaustiva, em média de onze horas diárias, frequentemente estendidas para catorze, incluindo sábados e domingos; f) a alimentação era preparada pelas vítimas no próprio local e os mantimentos eram comprados diariamente, pois não havia geladeira para armazenamento”.

Assim, a tese da defesa de que se trataria de meras irregularidades trabalhistas deve ser rechaçada.

Ouvido em juízo (IDs 155325965, 155325966, 155325967 e 155325968), o réu negou as acusações e atribuiu a autoria a pessoa residente na China e a um trabalhador presente no momento de sua prisão em flagrante. Conforme consta na r. sentença, em seu interrogatório, o réu afirmou:

“Disse não saber porque está sendo acusado. Na China tem um amigo cuja esposa é da mesma província que ele- LEI (LOU), por isso lhe emprestou o nome para ser usado no contrato de locação. Não ganhou nada com isso. Não sabia para qual finalidade seria usado o imóvel. A casa seria uma oficina de manutenção, o que sabe porque frequentava o local, foi lá três vezes, sua casa fica a dois minutos a pé do galpão. A primeira vez foi junto com LEI para visitar o imóvel, na segunda para ajudá-lo a falar com o proprietário. Não identificou LEI porque não sabe como, sabe seu endereço antigo, mas não sabe se é o mesmo até hoje. Nunca lhe foi perguntado o telefone e endereço de LEI. Não sabe como a polícia chegou em seu apartamento dele. Não sabe porque as vítimas falaram que ele é o patrão. Nunca viu XU. Não sabe porque ele disse em Juizo ter sido seu empregado. Não sabe porque sua defesa está falando que XIOBIN e XU são os chefes, pois não sabe o que estes têm a ver com a marcenaria. Sobre o contrato de locação apreendido: não sabe porque XIAOBIN ainda não tinha assinado. Se encontrou uma vez com o proprietário no Shopping São Paulo. Neste encontro estava também o sr. LEI, que chamou XIAOBIN. Em janeiro lei pediu para que YE entregasse o dinheiro a LAN, para pagamento do aluguel. A pessoa de nome YE era quem trazia o dinheiro em espécie. YE não pagava direto o proprietário. Sobre as 23 caixas de óculos, eram de um chinês chamado ZHONG. Não sabia que sete pessoas moravam no imóvel da rua Ivaí. Quando foi visitar o imóvel, ele era um galpão. LEI falou para ele que o imóvel seria uma marcenaria. Tinha empresa em Curitiba e abriu uma empresa em 2017 em seu nome. Quis ajudar as vítimas apenas para tentar acabar com o processo. Declara todos os seus bens em imposto de renda. Não sabe quanto vale o apartamento, porque foi financiado. Não conhece os amigos de LEI no Brasil. Só recepcionou LEI uma vez, em outubro de 2017. Diz que tem medo de ser condenado por algo que LEI fez, já ficou preso 14 dias e foram os piores dias de sua vida. Não sabe se alguém teria motivos para mentir e prejudica-lo. Os policiais devolveram os óculos para ele, porque tinham nota fiscal. 0 proprietário do imóvel ficou com o maquinário (miclia audiovisual de fi. 496).”

No entanto, a versão apresentada pelo réu é infirmada pelas narrativas das testemunhas e das vítimas.

A vítima Xiaobin Xu, ouvido em sede policial (ID 155325676), declarou que:

“CHEGOU NO BRASIL DIA 28 DE DEZEMBRO DE 2.017 NA PROMESSA DE TRABALHO; QUE FOI ACORDADO QUE RECEBERIA 250.000,00 (MOEDA POPULAR DA CHINA) QUE CONVERTIDO PARA UMA REAIS SERIA APROXIMADAMENTE R$ 150.000 (CENTO E CINQUENTA MIL REAIS) ANUAL: QUE DESTE VALOR 0 PATRAO ENVIOU AOS SEUS FAMILIARES 0 EQUIVALENTE A 115 (UM QUINTO) DOS VALORES PROMETIDO 0 QUE CORRESPONDE A R$ 30.000,00 (TRINTA MIL REAIS);QUE ASSIM QUE CHEGOU NO BRASIL SEU PASSAPORTE FOI RETIDO POR UM INDIVIDOU QUE Só VIU UMA VEZ; QUE ESTE INDVÍDUO DISSE QUE ENTREGARIA 0 PASSAPORTE QUANDO COMPRASSE SUA PASSAGEM DE VOLTA; QUE SEU TRABALHO SE DAVA EM CORTES E MONTAGEM DE MOVEIS, POIS 0 LOCAL ERA FABRICA DE MOVEIS; QUE SEU PERIODO DE TRABALHO SE DAVA DAS 07:00 AS 12:00 HS E DAS 13:00 HS AS 19:00 HS, DE SEGUNDA A DOMINGO; QUE ESTAVA CONFINADO NO SEU LOCAL DE TRABALHO; QUE NÃO USAVA EQUIPAMENTO DE SEGURANÇA PARA 0 TRABALHO, PRINCIPALMENTE PROTETOR AURICULAR; QUE FAZIA SUAS REFEIÇÕES, SUA HIGIENE PESSOAL E DORMIA NO MESMO LOCAL EM QUE TRABALHAVA, JUNTAMENTE COM MAIS SEIS CHINESES; ESCLARECE QUE QUANDO ESTAVA NA CHINA, TRABALHAVA EM UMA FABRICA DE PROPRIEDADEDE DE OUTRO SOCIO DE SEU PATRÃO;, TAMBEM CHINES, RESIDENTE NO BRASIL; QUE 0 CONVITE PARA VIM TRABALHAR NO BRASIL, PARTIU DO SOCIO QUE FICA NA CHINA E NÃO SABE INDENTIFICA-LO; QUE NO INICIO DA TARDE DE HOJE, TRABALHAVA NO LOCAL, QUANDO CHEGARAM POLICIAIS E OS CONDUZIRAM PARA ESTE DISTRITO; QUE NÃO QUER RETORNAR PARA 0 SEU LOCAL DE TRABAI-40; POIS TEME REPRESALIAS.QUE RECONHECE ZHONGI IANG LAN COMO SEU PATRÃO AQUI NO BRASIL”.

As demais vítimas, também ouvidas em sede policial, informaram que estavam submetidas às mesmas condições de trabalho e de habitação e foram uníssonas em afirmar que não recebiam salário e que não estavam com os passaportes, que se encontravam retidos com o réu, além de terem narrado que o réu foi o responsável pela vinda dos trabalhadores ao Brasil e também por os alojar e acolher. 

Em juízo, as vítimas afirmaram (IDs 155325937 a 155325947), que foram recrutados na China, transportados até o Brasil, recebidos e alojados pelo réu que posteriormente os submeteu às condições de vida e trabalho degradantes expostas no laudo pericial. A contratação teria sido realizada por indivíduo de nome Lou Zhengua proprietário de uma fábrica de móveis na China, que teria um sócio no Brasil recrutando trabalhadores. Afirmaram que a contraprestação oferecida era muito superior àquela que eles receberiam em seu país de origem, além de não terem o custeio das despesas de viagem. Já no Brasil foram recebidas e alojadas pelo réu, que foi o responsável por mantê-las naquelas condições. Além disso, no momento do resgate das vítimas, o réu foi apontado como sendo o “chefe”, a pessoa responsável pela fábrica que ali funcionava, sendo que havia contrato de locação firmado pelo réu com o locador do imóvel no mesmo mês em que as vítimas desembarcaram no Brasil (locação firmada entre o réu e Sonia Maria Lourenço Filentini, tendo como objeto o imóvel situado na Rua Ivaí, n. 114, celebrado em 01 de dezembro de 2017).

Tianyon Zhan, ouvido em juízo (ID 155325939), declarou que veio para o Brasil em 2018 e na China trabalhava juntamente com sua esposa e se viravam como dava, mas gostariam de ganhar mais. Disse que estudou até a quarta série e que veio para o Brasil com a promessa de que ganharia mais dinheiro do que ganhava na China, sem qualquer contrato escrito. Narrou que a pessoa que realizava os poucos pagamentos que recebeu foi o réu, a mesma pessoa que os recepcionou no aeroporto e os levou e os alojou no galpão onde residiam. Disse, também, que esses pagamentos foram feitos pelo réu após muita insistência, pois não recebia o acordado, sendo que o réu não dava nenhuma justificativa. Afirmou que trabalhava a das 7h30 as 11h30, das 13h às 19h, às vezes trabalhava à noite até às 21h e não tinham finais de semana, se havia trabalho eles trabalhavam de final de semana também.

A vítima Zhenchun Fan (ID 155325680) afirmou que veio para o Brasil junto com seu marido e seus filhos permaneceram na China. Narrou que vieram ao Brasil com a promessa de que receberiam mais do ganhavam na China e que tem receio de que o patrão lhe faça algum mal, pois não os pagou como prometido e sempre que o questionavam ele respondia que não tinha dinheiro para fazer os pagamentos. Disse que o pagamento prometido era mensal, depois anual, mas que não lhe pagaram nada. Na china trabalhava em uma fábrica de um chinês chamado Lou, que seria sócio do réu. Sobre o horário de trabalho, disse que começava 7h30 da manhã e ia até às 19h, incluindo finais de semana. Afirmou que o réu ia raramente ao galpão e fornecia algum dinheiro para comprarem mantimentos, mas que não tinham geladeira, compravam só o que iam comer.

O depoimento das demais vítimas converge no mesmo sentido.

Ouvido em juízo, Ricardo Filenti Moedano (IDs 155325953, 155325954 e 155325955), filho da proprietária do imóvel, foi ouvido como testemunha nos autos e confirmou ter sido o réu responsável pela locação. Narrou que Lan entrou em contato demonstrando interesse na locação do imóvel. Afirmou que a comunicação era feita através da esposa do réu que falava português e disseram que o imóvel teria destinação comercial, mas a casa seria utilizada também para moradia dos funcionários. Por fim, informou que o contrato foi firmado em 01/12/2017 e os pagamentos eram realizados através de deposito bancário em nome do réu.

Ainda que o primeiro contato com as vítimas ainda no seu país de origem tenha sido feito pelo indivíduo de nome Lou, certo é que a prova oral colhida sob o crivo do contraditório deixa claro que o réu era a pessoa a quem se reportavam, ou seja, o responsável pela sua vinda ao Brasil, por tê-los recebidos e alojado no galpão, além de também ser o responsável pelas condições degradantes a que estavam submetidas, já que o reconheciam como “patrão” ou “chefe”, comprovando-se que teria sido ele, também, um dos responsáveis pela vinda das vítimas ao Brasil.  

Por fim, destaque-se que as vítimas eram pessoas estrangeiras, de origem humilde, possivelmente semianalfabetas e que se comunicavam em uma espécie de idioma, que diverge do mandarim, atraídas pela oportunidade de emprego em questão e pela falácia de que no Brasil teriam condições de emprego e vida muito superiores às da China. Isso se afigura de especial importância no caso concreto. Ocorre que, confiavam nas condições de trabalho acordadas apenas verbalmente com o réu ou com terceira pessoa que, no entanto, não eram cumpridas. Em razão da necessidade do trabalho, tornavam-se facilmente exploráveis, "aceitando" as jornadas e condições degradantes impostas pelo empregador de maneira a obterem recursos mínimos, para si mesmos e, em alguns casos, para suas famílias que ficaram na China. Desse modo, embora não haja prova de violência física por parte do empregador, apesar de haver prova da restrição visível à liberdade de locomoção das vítimas que tiveram seu passaporte apreendido e ficavam sem comunicação e sem possibilidade de retornar ao seu país de origem, fica evidenciado o aproveitamento de sua vulnerabilidade e pobreza como mecanismo de perpetuação da exploração sob condições degradantes de vida e extenuantes de trabalho.

Convém destacar novamente, neste ponto, que a redução de outrem à condição análoga à de escravo, por óbvio, não se resume aos estritos casos de restrição total da liberdade e de coação física absoluta. É evidente que o conceito jurídico e sociológico de condição análoga à escravidão é mais amplo, mormente diante dos avanços éticos, sociais e materiais da humanidade nos últimos séculos. De resto, se se tratasse do conceito mais restrito, não se trataria de condição "análoga à de escravo", mas sim de pura e simples escravidão, que é a espécie mais grave e perniciosa que se pode extrair das elementares do art. 149 do Código Penal. O trabalho exercido em condições degradantes, claramente prejudiciais à saúde ou à dignidade humana, se amolda ao precitado tipo penal, em cujo caput se lê expressamente constituir modalidade de prática do crime de redução de outrem a condições análogas às de escravo submeter alguém a "condições degradantes de trabalho".

Comprovado um conjunto de circunstâncias gravíssimas (individualmente, e, em especial, quando vistas em seu todo, como diminuidoras da dignidade e do desenvolvimento efetivamente livre das vítimas), tem-se a vinda dos trabalhadores ao Brasil por intermédio do réu e o trabalho exercido em condições degradantes, com a submissão de seres humanos a jornadas exaustivas de trabalho, situações que, reitero, se amoldam aos tipos penais constantes dos arts. 149 e 149-A, II, do Código Penal.

Faço um derradeiro esclarecimento no que tange à materialidade. Conforme constou na r. sentença, não se está a ignorar circunstâncias que não foram totalmente esclarecidas durante a investigação ou o curso do processo, como por exemplo, como algumas das vítimas conseguiram deixar o país ou quem as auxiliou após o resgate. Ocorre que estas circunstâncias não infirmam o amplo conjunto probatório amealhado nos autos e demonstrativo do efetivo estado a que os empregados do réu eram submetidos, com condições degradantes e indignas de trabalho e manutenção, especialmente diante dos muitos relatos colhidos pela autoridade policial e em juízo (impedindo qualquer cogitação de conluio malicioso em desfavor do réu), somado à narrativa das demais testemunhas e dos documentos juntados a estes autos. Não há indícios que qualquer dessas pessoas ostentavam qualquer predisposição contra o réu, posto que nem mesmo o conheciam antes do início das fiscalizações, o que impede qualquer pensamento hipotético de que estivessem a tentar prejudicá-lo. Outrossim, a clareza dos depoimentos torna cristalina a situação geral dos trabalhadores vitimados pelas ações do réu/empregador.

Devidamente demonstrada, pois, a ocorrência objetiva, nas condições de espaço e tempo descritas na denúncia, de práticas dos crimes previstos nos arts. 149 e 149-A, II, ambos do Código Penal. A autoria é incontroversa, posto que o réu era reconhecido como sendo o chefe das vítimas e a pessoa responsável pelo contrato de locação do imóvel e pelos pagamentos ao locador. O mesmo se o diga quanto ao elemento subjetivo, tendo em vista que o réu conduziu sua conduta ao longo de vários anos, sendo certo que exercia o comando direto e a gerência dos negócios em que se deu a redução das vítimas a condições análogas à escravidão, em plenas condições físicas e psíquicas, tendo, pois, consciência e vontade voltadas à execução das práticas.

Provadas autoria e materialidade delitivas, bem como o elemento subjetivo, e ausentes excludentes de qualquer espécie, deve ser mantida a condenação de Zhongliang Lan pela prática dos delitos tipificados nos arts. 149, caput e §1º, inciso II e 149-A, inciso II, na forma do art. 69, todos do Código Penal.

b) Da dosimetria da pena

Em seu apelo, o Ministério Público Federal requer o aumento da pena-base para ambos os crimes, a redução ao mínimo da fração de diminuição da pena decorrente do art. 149-A, § 2º, do Código Penal e o reconhecimento do concurso formal de crimes em razão da multiplicidade de vítimas.

Já a defesa do réu Zhongliang Lan pleiteia a fixação das penas no mínimo legal, a aplicação da atenuante do art. 65, II, ou do art. 66, do Código Penal e a redução ou parcelamento das penas pecuniárias.

A dosimetria das penas foi assim fixada pelo magistrado a quo:

1ª fase - Circunstâncias judiciais

Na análise do artigo 59 do CP, merecem registro as seguintes circunstâncias judiciais:

A) culpabilidade: conforme é cediço, a culpabilidade está ligada à intensidade do dolo ou grau de culpa do agente, tendo em Vista a existência de um plus de censurabilidade e reprovação social da conduta praticada, que poderia ser evitada. A frieza do agente e a premeditação, por exemplo, são características a serem examinadas nessa oportunidade. Na espécie, o acusado é culpável, pois tinha conhecimento do caráter ilícito do fato e condições de autodeterminação. Apresentava e apresenta sanidade mental que lhe permitia não realizar a conduta ilícita, sendo exigível que agisse de modo diverso. Não há nos autos qualquer prova da existência de causa excludente da culpabilidade. Nesse tópico, tenho que a mencionada culpabilidade deve ser considerada em seu grau normal, não havendo motivos que determinem necessidade de acentuação;

B) antecedentes: trata-se de requisito objetivo, que impede qualquer análise subjetiva do julgador, nada havendo que desabone o réu (apenso);

C) conduta social e da personalidade: nada digno de nota foi constatado, além do desvio que o levou à prática delitiva;

D) motivo: não se desbordou do previsto pelo tipo penal em comento;

E) circunstâncias: as circunstâncias do crime são elementos ou dados tidos como acessórios ou acidentais que cercam a ação delituosa e, embora não integrem ou componham a definição legal do tipo, exercem influência sobre a gradação da pena, pois promovem mudança qualitativa e quantitativa na reprovabilidade da conduta. De acordo com a lição de Bitencourt, "as circunstâncias referidas no art. 59 não se confundem com as circunstâncias legais relacionadas no texto legal (arts. 61, 62, 65, 66 do CP), mas defluem do próprio fato delituoso, podendo-se mencionar: 'forma e natureza da ação delituosa, os tipos de meios utilizados, objeto, tempo, lugar, forma de execução e outras semelhante'.

No caso em tela as vítimas eram pessoas simples, analfabetas, não falavam qualquer outro idioma, ou seja, não podiam se comunicar com pessoas locais ou procurar as autoridades, o que as torna mais indefesas e vulneráveis, facilitando a exploração, o que agrava mais o crime. A título exemplificativo, cite-se terem as vítimas narrado que nunca saíam da casa (apesar de possuírem a chave), pois não sabiam sequer onde estavam, sendo que deviam ainda apresentar produtividade no trabalho. Assim, as circunstâncias devem ser valoradas em prejuízo do acusado;

F) consequências do crime: as consequências são naturais ao tipo penal em comento, nada havendo que se valorar;

G) comportamento da vítima: os comportamentos das vítimas em nada influenciaram no cometimento do delito.

Assim, considerando as penas abstratamente cominadas no preceito secundário do artigo 149 do CP entre os patamares de 02 (dois) a 08 (oito) anos de reclusão e multa, fixo a pena -base em 03 (três) anos de reclusão e 30 (trinta) dias -multa. Considerando as mesmas circunstâncias e as penas abstratamente cominadas no preceito secundário do artigo 149-A do Código Penal Brasileiro entre os patamares de 04 a 08 anos de reclusão e multa, seguindo-se a mesma lógica aplicada acima, fixo a pena -base acima em O5 (cinco) anos de reclusão e 20 (vinte) dias- multa.

2ª fase - Circunstâncias atenuantes e agravantes

Não há circunstâncias agravantes ou atenuantes a serem consideradas nesta fase de aplicação da pena.

3ª fase - Causas de diminuição e causas de aumento

Não há causas de aumento ou diminuição a serem valoradas em relação ao crime previsto no art. 149 do CP.

A pena definitiva para o crime do art. 149, caput, §1º, inciso II do CP fica, então, definitivamente estabelecida em 03 (três) anos de reclusão e 30 (trinta) dias -multa.

No tocante ao art. 149-A do Código Penal incide, contudo, a causa de diminuição prevista no parágrafo 2º, segundo a qual haverá redução de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.

Considerando outras hipóteses de causas de diminuição na legislação brasileira, como o §4º do artigo 33 da Lei de Drogas, seria possível dizer que o objetivo do legislador seria penalizar mais severamente aquele que se dedica ao tráfico de pessoas, praticando o crime de forma não eventual e em associação.

O réu atende aos requisitos necessários, pois não possui antecedentes criminais, conforme apenso respectivo, nada havendo que lhe desabone, além de inexistir qualquer referência nos autos à possível organização criminosa. A fração a ser utilizada deve ser a de 2/3, pois inexistem elementos que justifiquem menor redução.

Assim, fica a pena definitivamente estabelecida em 01 (um) ano e 08 (oito) meses de reclusão e 10 (dez) dias -multa pela prática do delito previsto no art. 149-A do CP.

Somadas as duas penas nos termos do art. 69 do CP, pois trata-se de concurso material de crimes, a pena final do réu fica fixada em 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses de reclusão, assim como 40 (quarenta) dias -multa.

Havendo informações sobre a condição socio-econômica do réu, fl. 495, fixo o valor unitário do dia -multa no valor de 05 (cinco) salários mínimos vigentes ao tempo dos fatos, atualizados monetariamente, na forma do § 20 do art. 49 do CP, sendo que a liquidação da pena de multa deve se fazer em fase de execução.

Fixo, ainda, o regime inicial semiaberto nos termos do art. 33, caput: e §20, "b", do Código Penal, por observância à quantidade de pena fixada e aos critérios previstos no art. 59 deste Código”.

Passo, portanto, a analisar a dosimetria da reprimenda do réu com fundamento nas balizas do art. 59 do Código Penal e o faço conjuntamente para ambos os crimes conforme realizado na sentença recorrida.

1ª fase da dosimetria

A acusação requer o aumento da pena-base para ambos os crimes e a defesa do réu pleiteia a fixação no mínimo legal.

Conforme consta da sentença, a pena deve ser fixada em patamar superior ao mínimo legal para ambos os crimes.

No entanto, a análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal deve sofrer alteração, visto que o juiz valorou negativamente as circunstâncias do crime, porém utilizou patamar de aumento diverso para os dois crimes, aumentando metade da pena para o crime previsto no art. 149 do CP e no patamar de ¼ para o crime previsto no art. 149-A do mesmo Diploma Legal. 

Entendo que deve ser mantida a valoração negativa das circunstâncias do crime, já que a análise dos autos revela que, de fato, as vítimas eram pessoas simples, analfabetas, não falavam qualquer outro idioma além do dialeto em que se comunicavam na China, de forma que não podiam se comunicar com pessoas locais ou procurar as autoridades, o que as torna mais indefesas e vulneráveis, facilitando a exploração.

Nesse ponto, observo que a exasperação da pena também deve levar em consideração que a conduta delituosa envolveu elevado número de vítimas (sete). Assim, entendo que o aumento em relação ao art. 149-A, II, do CP também deve ser fixado no patamar de ½ (metade).

No que tange às demais circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código Penal, entendo que devem ser consideradas como circunstâncias neutras.

Dessa forma, a pena-base do art. 149-A deve ser estabelecida em 06 (seis) anos de reclusão e 15 (quinze) dias-multa e a do art. 149 do CP mantida em 03 (três) e 15 (quinze) dias-multa.

2ª fase da dosimetria

Na segunda fase da dosimetria da pena, a defesa pleiteia a aplicação da atenuante do art. 65, II, ou do art. 66, do Código Penal.

Entendo, no entanto, que não assiste razão à defesa do réu. Isso porque, conforme o próprio réu narrou em seu interrogatório judicial, ele já vivia há alguns anos no Brasil juntamente com sua esposa e aqui já trabalhavam como comerciantes, de forma que conheciam minimamente a legislação trabalhista e tinha conhecimento da ilicitude de sua conduta. Ainda, nos termos do parecer do Ministério Público Federal (ID 158916196): “Quanto ao acerto financeiro para compra de passagens e despesas de viagens dos trabalhadores, tem-se que o fato não é suficiente para atenuar a pena, porquanto apenas fez retornar às vítimas do crime ao seu status quo ante, não configurando reparação pelos danos causados pelo réu”.

Dessa forma, rejeito o pleito defensivo. 

3ª fase da dosimetria

Inexistem causas de aumento ou diminuição a serem consideradas em relação ao crime previsto no art. 149 do CP.

Já quanto ao art. 149-A do CP, na terceira fase, a acusação requer a redução da fração de diminuição da pena do art. 149-A, § 2º, do CP, para 1/3 (um terço), sob o fundamento de que embora não tenha sido provado que o réu integre organização criminosa, há nos autos indícios de que recebeu auxílio de pessoas não identificadas para trazer os trabalhadores da China.

Rejeito o pleito acusatório e mantenho o quantum fixado na sentença, pois a mera existência de indícios de que teria recebido auxílio de pessoas na China para trazer os trabalhadores ao Brasil, sem demonstração suficiente e segura da sua existência, não autoriza a pretendida diminuição da fração da causa de aumento, de forma que fixo a pena.

Fixo, portanto, a pena definitiva para o crime previsto no art. 149-A do CP em 02 (dois) anos de reclusão e 05 (cinco) dias-multa e para o crime do art. 149 do CP em 03 (três) de reclusão e 15 (quinze) dias-multa.

No que tange ao valor unitário do dia-multa, mantenho a fixação em 5 (cinco) salários mínimos cada, já que há demonstrativo suficiente nos autos da boa condição econômica do réu (IDs 155325970 e 155325972). Pontuo que a quantidade de dias-multa foi redimensionada utilizando-se o mesmo critério de fixação das penas corporais.

Quanto ao pedido de redução ou parcelamento das penas pecuniárias, destaco que eventual impossibilidade de pagamento em parcela una poderá ser demonstrada junto ao Juízo de Execuções competente, possibilitando pleito de eventual parcelamento de seu pagamento.

O pleito de reconhecimento do concurso formal de crimes (art. 70 do CP) em razão da multiplicidade de vítimas também deve ser rejeitado, pois conforme bem lançado parecer do Ministério Público Federal, não foi deduzido em primeiro grau e sua análise por este Tribunal configuraria supressão de instância. Além disso, a quantidade de vítimas foi considerada para o estabelecimento da pena-base de ambos os crimes.

Assim, somadas as duas penas nos termos do art. 69 do CP, pois trata-se de concurso material de crimes, a pena final do réu fica fixada em 05 (cinco) anos de reclusão, além de 20 (vinte) dias -multa.

c) Regime inicial de cumprimento de pena

Mantenho o regime inicial de cumprimento da pena como semiaberto, com fundamento no art. 33, § 2º, "b", do Código Penal, pois a pena privativa de liberdade fixada não excede oito anos de prisão, além do afastamento da substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, já que não preenchidos os requisitos legais (art. 44 do Código Penal).

Ante o exposto, conheço dos recursos interpostos e, no mérito, DOU PARCIAL PROVIMENTO aos recursos de apelação da defesa e da acusação para majorar o quantum de aumento da pena-base do art. 149-A para ½ (metade) e redimensionar a quantidade de dias-multa para ambos os crimes, fixando-se a pena do réu em 02 (dois) anos de reclusão e 05 (cinco) dias-multa para o crime do art. 149-A, II, do Código Penal e para o crime do art. 149, caput, do CP em 03 (três) de reclusão e 15 (quinze) dias-multa, mantidos os demais termos da sentença.  

 

 

 

 

 

 

 

 


V O T O

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO:

Acompanho o e. Relator quanto ao mérito e à maior parte da dosimetria, mas divirjo, com a devida vênia, em relação à pena de multa relativa ao crime do art. 149-A, II, do Código Penal, pois entendo que sua fixação não pode ser inferior a 10 (dez) dias-multa, em atenção ao disposto no art. 49 do Código Penal. Então, fixo essa pena em 10 (dez) dias-multa e, no total, a pena de multa somada fica em 25 (vinte e cinco) dias-multa.

Divirjo, outrossim, no que tange à condenação da acusada na reparação dos danos causados pela infração (CPP, art. 387, IV).

Com efeito, a ausência de pedido do Ministério Público Federal, na denúncia, para a aferição desses valores e, consequentemente, manifestação da defesa acerca do tema, impossibilita sua aplicação.

Segundo entendimento recorrente dos Tribunais, a existência de um requerimento expresso de arbitramento do montante civilmente devido é imprescindível, mas não suficiente ao seu acolhimento. A jurisprudência tem exigido, também, que seja concedido ao acusado a oportunidade de, especificamente sobre o tema, se pronunciar e produzir provas, o que não ocorreu no caso concreto.

Posto isso, divirjo do e. Relator para fixar a pena de multa relativa ao crime do art. 149-A, II, do Código Penal em 10 (dez) dias-multa e, no total, a pena de multa somada fica definitivamente estabelecida em 25 (vinte e cinco) dias-multa, bem como, DE OFÍCIO, excluir da condenação de ZHONGLIANG LAN a fixação de valor mínimo para a reparação do dano (CPP, art. 387, IV).

É o voto.


E M E N T A

 

 

DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CÓDIGO PENAL. ARTIGO 149 e 149-A, II, AMBOS DO CP. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. DOLO ATESTADO. DOSIMETRIA. PENA PARCIALMENTE REDIMENSIONADA. PENA-BASE DO ART. 149-A DO CP MAJORADA. QUANTIDADE DE DIAS-MULTA REDIMENSIONADA. PROPORCIONALIDADE COM A PENA CORPORAL. RECONHECIMENTO DO CONCURSO FORMAL (ART. 70 DO CP) AFASTADO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PARCELAMENTO DA PENA DE MULTA. JUÍZO DA EXECUÇÃO. APELAÇÕES DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA PARCIALMENTE PROVIDAS.

1. Recursos de apelação interpostos pela acusação e pela defesa contra sentença em que foi o réu condenado pela prática dos delitos tipificados nos arts. 149, caput, e 149-A, II, ambos do Código Penal.

2. Autoria e materialidade. Comprovação para ambos os delitos. Tese de meras irregularidades trabalhistas rejeitada. Prova testemunhal e documental. Documentos juntados aos autos e depoimentos das vítimas e testemunhas ouvidas em sede policial e em juízo, dão conta de um quadro de vida e trabalho degradantes envolvendo as vítimas. Práticas do réu que as trouxe da China prometendo condições de trabalho que nunca existiram e, aproveitando-se da vulnerabilidade concreta das vítimas, a elas impingia jornadas exaustivas de trabalho em condições degradantes. Trabalhadores eram submetidos a constrangimentos de variadas ordens, como jornada de trabalho exaustiva, salários retidos pelo réu e condições de trabalho degradantes, em clara ofensa ao direito à dignidade humana. Dolo patente na execução da conduta.

3. Não se trata apenas da escravidão antiga, em seu sentido de redução estrita de outro ser humano à condição inadmissível de propriedade de alguém. É criminalizada nos arts. 149 e 149-A, II, do Código Penal qualquer prática que reduza substancialmente a dignidade humana em relações de controle laboral, seja por meio da redução de locomoção, seja por meio da imposição prática de jornadas exaustivas e condições degradantes de vida e trabalho. É evidente, pela própria natureza disjuntiva das condutas descritas, que nesses últimos casos não se exige qualquer restrição da liberdade física. O que há, em tais circunstâncias, é a especial exploração da vulnerabilidade econômica, física e/ou cultural das vítimas, de maneira a subjugá-las e retirar-lhes o patamar de dignidade estabelecido como piso civilizatório pelo ordenamento pátrio. Condenações mantidas.

4. Dosimetria. Alterações.

4.1. Majoração da pena-base do art. 149-A, II, do CP pela valoração negativa das circunstâncias do crime para o patamar de ½ (metade). Consideração também do número de vítimas.  

4.2. Quantidade de dias-multa redimensionado. Critério proporcional ao utilizado para a pena corporal.

4.3. Pleito de reconhecimento do concurso formal de crimes (art. 70 do CP) em razão da multiplicidade de vítimas rejeitado, pois não foi deduzido em primeiro grau e sua análise por este Tribunal configuraria supressão de instância. Além disso, a quantidade de vítimas foi considerada para o estabelecimento da pena-base de ambos os crimes.

4.4. Mantido o regime inicial de cumprimento da pena como semiaberto, com fundamento no art. 33, § 2º, "b", do Código Penal.

4.5. Quanto ao pedido de redução ou parcelamento das penas pecuniárias, eventual impossibilidade de pagamento em parcela una poderá ser demonstrada junto ao Juízo de Execuções competente, possibilitando pleito de eventual parcelamento de seu pagamento.

5. Recursos parcialmente providos.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Décima Primeira Turma, POR UNANIMIDADE, decidiu conhecer dos recursos interpostos e, no mérito, DAR PARCIAL PROVIMENTO aos recursos de apelação da defesa e da acusação para majorar o quantum de aumento da pena-base do art. 149-A para 1/2 (metade) e redimensionar a quantidade de dias-multa para ambos os crimes, fixando-se a pena do réu em 02 (dois) anos de reclusão para o crime do art. 149-A, II, do Código Penal e para o crime do art. 149, caput, do CP em 03 (três) de reclusão e 15 (quinze) dias-multa, nos termos do voto do DES. FED. RELATOR. Prosseguindo, a Turma, POR MAIORIA, decidiu redimensionar a quantidade de dias-multa em 05 (cinco) dias-multa para o crime do art. 149-A, II , do Código Penal, e fixar a pena total de multa em 20 (vinte) dias-multa, nos termos do voto do DES. FED. RELATOR, com quem votou o DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS. Vencido o DES. FED. NINO TOLDO que fixava a pena de multa relativa ao crime do art. 149-A, II, do Código Penal em 10 dias-multa e, no total, a pena de multa somada em 25 dias-multa, bem como, DE OFÍCIO, excluía da condenação de ZHONGLIANG LAN a fixação de valor mínimo para a reparação do dano (CPP, art. 387, IV). LAVRARÁ O ACÓRDÃO O DES. FED. RELATOR, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.