APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0007766-30.2000.4.03.6000
RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA
APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
APELADO: UNIÃO FEDERAL, CESP COMPANHIA ENERGETICA DE SAO PAULO, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0007766-30.2000.4.03.6000 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP APELADO: UNIÃO FEDERAL, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO FUNAI, CESP COMPANHIA ENERGETICA DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de recursos de embargos de declaração opostos pela União e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em face de v. acórdão que, por unanimidade, deu parcial provimento ao reexame necessário e ao recurso de apelação. O v. acórdão foi proferido em julgamento de remessa oficial, tida por interposta, e de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal, em face de r. sentença que julgou improcedente a Ação Civil Pública. Para melhor compreensão, transcreve-se a ementa do v. acórdão embargado: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. REMESSA OFICIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO INDÍGENA. CONTROLE JUDICIAL. OMISSÃO DA UNIÃO FEDERAL E DA FUNAI. VIOLAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA COMUNIDADE INDÍGENA OFAYÉ-XAVANTE. AFASTADA A RESERVA DO POSSÍVEL DIANTE DA EFETIVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A SEPARAÇÃO DOS PODERES. RECURSO DE APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO PARCIALMENTE PROVIDOS. 1. A Lei da Ação Civil Pública e a Lei da Ação Popular integram o microssistema processual coletivo. Portanto, apesar de a Lei nº 7.347/85 não ter previsão expressa acerca da remessa oficial, aplica-se nos casos de improcedência ou parcial procedência da ação, por analogia, o artigo 19, da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular), uma vez que referida norma deve ser aplicada em todo o microssistema naquilo que for útil aos interesses da sociedade. Nesse sentido é o entendimento sedimentado do E. Superior Tribunal de Justiça. 2. Trata-se de remessa oficial, tida por interposta, e de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal em face de sentença proferida pelo r. Juízo da Primeira Vara Federal da Subseção Judiciária de Três Lagoas/MS, o qual julgou improcedente a Ação Civil Pública. 3 - O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação visando a reforma da r. sentença, para condenar a União Federal e a FUNAI, de forma solidária, a promover todas as ações de sua competência no sentido de zelar pelo efetivo bem-estar do povo Ofayé-Xavante, notadamente operacionalização do indígena na aldeia, preferencialmente através de remoção de servidor ao posto indígena, o qual preste atendimento constante e integral à comunidade, independentemente da criação de cargo ou função. Subsidiariamente requer que, caso não seja reconhecida a ilegalidade do Decreto nº 7.056, seja dado parcial provimento ao recurso condenando as rés a promoverem todas as ações de sua competência no sentido de zelar pelo efetivo bem-estar do povo Ofayé-Xavante designando funcionário da FUNAI para o atendimento exclusivo, integral e imediato do povo Ofayé-Xavante (2.136/2191). 4 - Compulsando-se os autos percebe-se que ao contrário do entendimento exposto na sentença, o Poder Público tem sido historicamente omisso no trato da comunidade Ofayé-Xavante. As ações do Poder Público se mostraram tardias e parciais, as quais somente foram adotadas após atuação do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário. 5 - O abandono da comunidade indígena foi evidenciado pelo Ministério Público Federal ao destacar a existência de fatos como a venda de rezes, de maquinário (trator) e outros insumos agropecuários a preços irrisórios a comerciantes da região da Brasilândia, não encontrando em nenhuma dessas negociações a presença da FUNAI. As notícias de membros da comunidade acometidos por alcoolismo, bem assim registros de práticas de condutas delituosas tendo o indígena como vítima, incluindo o estupro, o completo fracasso do projeto de desenvolvimento autossustentável, a ameaça de desaparecimento da língua Ofayé, cujo o dever de preservação já foi reconhecido por esse e. Tribunal na Ação Civil Pública nº 2006.60.0.000652-2, entre diversas outras mazelas de extrema gravidade (fls. 1084, 2025/2028). Restou comprovado que a parcial e esporádica assistência à Comunidade Indígena Ofayé-Xavante ocorreu somente após o Ministério Público Federal questionar a postura das rés e pleitear a proteção e o respeito devidos aos direitos indígenas. Saliente-se que, às fls. 2042, no próprio relatório da FUNAI, está ressaltado o curto período de permanência junto à Comunidade Indígena, não sendo possível atender de forma satisfativa as demandas existentes na época. 6 - O artigo 231, da CF, ao reconhecer aos índios o direito de preservar sua organização social, costumes, línguas, e o direito sobre as terras, o legislador constituinte buscou resguardar não somente a proteção aparente do direito dos índios, mas, sim, a proteção efetiva, instrumentalizando a proteção aparente. Os documentos constantes dos autos são suficientes para comprovar que, em razão de omissão da União Federal e da FUNAI, a comunidade indígena encontra-se desamparada, não tendo acesso aos direitos que se inserem no chamado mínimo existencial, conjunto de bens imprescindíveis para uma existência digna. 7 - No caso em exame, percebe-se que a comunidade Ofayé não conta com os pressupostos fáticos para o exercício efetivo de sua autodeterminação. O descaso com a tribo torna-se ainda mais evidente quando analisada à luz de direitos já consagrados aos índios pelos tratados assinados pelo Brasil, em especial a Convenção 169 da OIT, internalizada por força do Decreto 5.051/2004. 8 - Ressalte-se que ficou claro que a omissão do Poder Público em designar servidor da FUNAI para atuar de forma constante na comunidade, permitiu a perpetuação de diversas mazelas, violando frontalmente a dignidade humana dos índios Ofayés, os quais vivem sem o mínimo existencial, os quais diante da ausência de tutela dos seus direitos sociais são privados também da liberdade de autodeterminação. 9 - Dessarte, sendo os índios despojados do mínimo existencial, não se legitima a aplicação da teoria da reserva do possível. Deveras, não se pode aplicar indiscriminadamente a teoria da reserva do possível principalmente no que concerne à execução de políticas públicas que busquem tutelar direitos básicos referentes à saúde, educação, alimentação, uma vez que esses integram o conceito do mínimo existencial. 10 - Qualquer demanda que objetive fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarada como sem razão (supérflua), pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro. É por essa razão que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. 11 - A alegação de falta de recursos financeiros, destituída de comprovação, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao ente público na efetivação dos direitos sociais fundamentais. Esses direitos devem ser respeitados como prioridade absoluta pelo Estado, e não podem ficar relegados indefinidamente ao desamparo e ao descaso público. 12 - Não se pode admitir a invocação da teoria da reserva do possível como escudo para o Estado se eximir do cumprimento de suas obrigações prioritárias. 13 - Quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais. Não adianta um direito ser garantido pela Constituição se não for possível garantir a efetivação desse direito. 14 - Cabe ao Poder Judiciário a emissão de um decreto judicial no sentido de garantir a aplicação da normatização específica e tornar concretos os direitos omitidos pelo Poder Público. 15 - Seria um absurdo pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido visando a garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos indígenas. 16 - De fato, no caso em análise, resta evidente que os direitos fundamentais sociais e o direito à vida e a autodeterminação da comunidade indígena Ofayé-Xavantes não estão sendo devidamente resguardados, sendo imprescindível a intervenção judicial. 17 - Cumpre salientar que, diante da omissão existente no caso em tela, não está sendo cumprida a própria Missão Institucional da FUNAI que consiste em promover e proteger os direitos dos povos indígenas. 18 - Impõe-se, dessa forma, a reforma da sentença, para reconhecer o dever das partes rés de prestação de serviço adequado a comunidade indígena, devendo promover todas as ações de sua competência no sentido de zelar pelo efetivo bem-estar do povo Ofayé-Xavante, devendo ser designado no mínimo um servidor da FUNAI para o atendimento adequado, integral e imediato do povo Ofayé-Xavante. 19 - Quanto ao pedido de declaração de ilegalidade do Decreto nº 7.056/2009, o qual extinguiu os postos indígenas que tratavam os Decretos nº 4645/03 e 5833/06, esse não pode ser acolhido, cabendo que o decreto guerreado foi revogado, estando em vigor o Decreto 9.010/2017. O Decreto 9.010/2017 também não prevê o estabelecimento de postos indígenas, bem como não há provas de que os povos interessados não foram previamente consultados, não existindo indícios claros de sua ilegalidade. 20 - Compete a FUNAI, através das coordenações técnicas locais zelar pela efetivação dos direitos sociais dos povos indígenas, direitos esses flagrantemente violados no caso em tela, violação essa decorrente da omissão da FUNAI e da União Federal que não promoveram as ações de sua competência para resguardar o bem-estar da comunidade Ofayé-Xavante. 21 - Remessa Oficial e recurso de apelação parcialmente providos para condenar solidariamente as rés, União Federal e FUNAI, à prestação de serviço adequado à comunidade indígena Ofayé-Xavante, de maneira a promover todas as ações de sua respectiva competência no sentido de zelarem pelo efetivo bem-estar do povo Ofayé-Xavante, devendo ser designado no mínimo um servidor da FUNAI para o atendimento adequado, integral e imediato do povo Ofayé-Xavante, sob pena de multa diária fixada no valor de R$1.000,00 (mil reais). Alega a embargante União que se mostra “necessária a manifestação dessa C. Turma a respeito da incidência, no caso dos autos, dos comandos contidos no art. 1º da Lei 5.371/67, c/c arts. 932, I e II, do Código Civil, art. 70 da Lei n° 6.001/1973, Decreto-Lei n° 200/67, e arts. 2°, 61, §1°, II, "a", e 84, todos da Constituição Federal, bem como do próprio Decreto n° 9.010/2017, atualmente em vigor, os quais atribuem à entidade dotada de personalidade jurídica própria - no caso, a FUNAI -, o ônus de suportar o decreto condenatório levado a cabo neste feito, eis que criada especialmente para tal fim, consoante sustentado por este ente público federal” (ID Num. 108309571 - Págs. 13-14). Além disso, requer “sejam descritas/especificadas as condutas omissivas praticadas diretamente pela União (ente federativo) ou seus agentes (administração pública federal direta), em prejuízo do bem-estar da citada comunidade indígena, que, no entender dessa C. Turma, levaram à sua responsabilização nestes autos, prequestionando-se o art. 186, do CC”. Por fim, também pleiteia o necessário pronunciamento “acerca dos arts. 15 e 16 da Lei Complementar 101/2000, c/c o art. 374, I, do CPC, tendo em vista o caráter público e notório da ausência de recursos orçamentários para a consecução das mais elementares políticas públicas, tendo em vista a grave crise financeira que tem assolado o pais - inclusive aquelas voltadas à população indigenista -, circunstância que afasta, s.m.j., a necessidade de comprovação da falta de recursos orçamentários, exigida pelo v. acórdão” (ID Num. 108309571 - Pág. 15). A embargante FUNAI aduz que a obrigação de fazer imposta no v. acórdão embargado já foi objeto de acordo extrajudicial firmado entre ela e o Ministério Público Federal, homologado por sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública n° 2003.60.03.000742-2, razão pela qual teria havido perda do objeto, por falta de interesse de agir superveniente. Afirma que cabe ao MPF, tão somente, fiscalizar e, se for o caso, pleitear o respectivo cumprimento, sendo desnecessário um outro provimento jurisdicional que imponha uma obrigação de fazer que já foi objeto de acordo. Regularmente intimada, a parte embargada apresentou resposta. É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0007766-30.2000.4.03.6000 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP APELADO: UNIÃO FEDERAL, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO FUNAI, CESP COMPANHIA ENERGETICA DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Como é cediço, os embargos de declaração, a teor do disposto no art. 1.022 do CPC, somente têm cabimento nos casos de obscuridade ou contradição (inc. I), de omissão (inc. II) ou de erro material (inc. III). Quanto aos embargos de declaração opostos pela União, consta da decisão embargada os argumentos adotados por este Relator para reconhecer a sua responsabilidade pelos danos ocorridos na comunidade indígena Ofayé-Xavante (ID Num. 108309570 - Pág. 246-249): Compulsando-se os autos percebe-se que ao contrário do entendimento exposto na sentença, o Poder Público tem sido historicamente omisso no trato da comunidade Ofayé-Xavante. As ações do Poder Público se mostraram tardias e parciais, as quais somente foram adotadas após atuação do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário. O abandono da comunidade indígena foi evidenciado pelo Ministério Público Federal ao destacar a existência de fatos como a venda de rezes, de maquinário (trator) e outros insumos agropecuários a preços irrisórios a comerciantes da região da Brasilândia, não encontrando em nenhuma dessas negociações a presença da FUNAI. As notícias de membros da comunidade acometidos por alcoolismo, bem assim registros de práticas de condutas delituosas tendo o indígena como vítima, incluindo o estupro, o completo fracasso do projeto de desenvolvimento autossustentável, a ameaça de desaparecimento da língua Ofayé, cujo o dever de preservação já foi reconhecido por esse e. Tribunal na Ação Civil Pública nº 2006.60.0.000652-2, entre diversas outras mazelas de extrema gravidade (fls. 1084, 2025/2028). Restou comprovado que a parcial e esporádica assistência à Comunidade Indígena Ofayé-Xavante ocorreu somente após o Ministério Público Federal questionar a postura das rés e pleitear a proteção e o respeito devidos aos direitos indígenas. Saliente-se que, às fls. 2042, no próprio relatório da FUNAI, está ressaltado o curto período de permanência junto à Comunidade Indígena, não sendo possível atender de forma satisfativa as demandas existentes na época. Desse modo, sempre existiu, por parte da FUNAI e da União Federal, um claro descaso e omissão, conforme bem demonstrado nos autos. (...) Cumpre salientar que, às fls. 2242, o Ministério Público Federal ressaltou que em 2015 ainda persistia a negligência e a inercia da União Federal e da FUNAI na prestação de serviços sociais e de saúde à Comunidade Indígena. No mais, os documentos constantes dos autos são suficientes para comprovar que, em razão de omissão da União Federal e da FUNAI, a comunidade indígena encontra-se desamparada, não tendo acesso aos direitos que se inserem no chamado mínimo existencial, conjunto de bens imprescindíveis para uma existência digna. (...) No caso em exame, percebe-se que a comunidade Ofayé não conta com os pressupostos fáticos para o exercício efetivo de sua autodeterminação. O descaso com a tribo torna-se ainda mais evidente quando analisada à luz de direitos já consagrados aos índios pelos tratados assinados pelo Brasil, em especial a Convenção 169 da OIT, internalizada por força do Decreto 5.051/2004. (...) Ressalte-se que, no caso dos autos, ficou claro que a omissão do Poder Público em designar servidor da FUNAI para atuar de forma constante na comunidade, permitiu a perpetuação de diversas mazelas, violando frontalmente a dignidade humana dos índios Ofayés, os quais vivem sem o mínimo existencial, os quais diante da ausência de tutela dos seus direitos sociais são privados também da liberdade de autodeterminação. No que tange aos questionamentos acerca de omissão quanto a matéria orçamentária, consta do voto embargado a análise da questão das políticas públicas, concluindo pela impossibilidade de se invocar o princípio da reserva do possível diante do mínimo existencial (ID Num. 108309570 - Págs. 249-252): Dessarte, sendo os índios despojados do mínimo existencial, não se legitima a aplicação da teoria da reserva do possível. Deveras, não se pode aplicar indiscriminadamente a teoria da reserva do possível principalmente no que concerne à execução de políticas públicas que busquem tutelar direitos básicos referentes à saúde, educação, alimentação, uma vez que esses integram o conceito do mínimo existencial. (...) É por essa razão que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. (...) No caso em tela, analisando-se a razoabilidade e a existência de recursos, percebe-se que é um dever do Estado garantir a proteção da população indígena, garantindo a efetivação dos direitos sociais e a autodeterminação, não tendo a União e FUNAI demonstrado de forma clara a inexistência de recursos, ou que os recursos existentes já estavam alocados devidamente para outros direitos fundamentais essenciais. Por óbvio, a alegação de falta de recursos financeiros, destituída de comprovação, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao ente público na efetivação dos direitos sociais fundamentais. Esses direitos devem ser respeitados como prioridade absoluta pelo Estado, e não podem ficar relegados indefinidamente ao desamparo e ao descaso público. A reserva do possível jurídica, por sua vez, refere-se à possibilidade de que os recursos sejam gastos sem infringência do ordenamento jurídico. No caso do Brasil, muitos utilizam o argumento da reserva do possível para a não efetivação de uma política pública, afirmando que não há autorização na lei orçamentária para que o gasto seja realizado. No entanto, sujeitar a efetivação de direitos fundamentais relacionados a uma minoria à reserva do possível jurídica, vale dizer, à previsão do gasto no orçamento, seria o mesmo que subordinar o direito fundamental, que é contramajoritário, à decisão da maioria política no parlamento, o que revelar-se-ia incompatível com a própria lógica da supremacia da Constituição. (...) Não se pode admitir a invocação da teoria da reserva do possível como escudo para o Estado se eximir do cumprimento de suas obrigações prioritárias. Deve-se destacar que, no que concerne à aplicação dos direitos fundamentais, vigora a proibição da proteção deficiente, ou seja, o dever do Estado de efetivar tais direitos de forma devida. Assim, quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais. Não adianta um direito ser garantido pela Constituição se não for possível garantir a efetivação desse direito. Com relação aos embargos de declaração da FUNAI, antes de serem apreciados, cumpre estabelecer algumas premissas. Na presente demanda, busca o Parquet a condenação dos corréus nos seguintes termos (ID Num. 108307855 - Págs. 27-28, grifei): Seja, ao final, julgada procedente a presente ação, para o fim de DECLARAR a NULIDADE do Termo Aditivo firmado entre a CESP e a FUNAI em 23.12.97, especialmente na parte em que esse documento prevê a revogação da alínea "g", do inciso II, da cláusula 3º do Convênio nº 004/94 e CONDENAR: (...) II -A segunda e terceira rés: a) promover todas as ações de sua competência no sentido de zelar pelo efetivo bem-estar do povo Ofayé-Xavante, notadamente, a instalação de um Posto Indígena na área por eles ocupada. No decorrer do trâmite procedimental, em petição protocolada em 12/06/2006, o MPF requereu a concessão de tutela antecipada com os seguintes pedidos (ID Num. 108309536 - Pág. 86-87, grifei): Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL requer: a) Instalação, no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária de 10.000,00 (dez mil reais), de um Posto da FUNAI na aldeia Ofayé-Xavante, localizada no Município de Brasilândia/MS, sendo certo que já há Galpão para tanto, situado no interior da Comunidade, consoante noticiam os próprios ofayés, no documento redigido por eles ora juntado. b) Remanejamento de dois técnicos especializados (ou de pelo menos um) nas questões indigenistas para este Posto, do quadro de servidores da própria FUNAI, devendo-se ser autorizada, por ordem judicial, a concessão do DAS 101.1, para a nomeação de seu titular, nos termos do que prevê o Decreto n.° 4.645, de 25 de março de 2003, desconsiderando-se o limite máximo de 337 postos em todo o país, este informado pelo presidente substituto da FUNAI (doc. anexo). Em 16/06/2006, foi concedida em parte a tutela provisória (ID Num. 108309536 - Pág. 130, grifei): Diante de todo o exposto, CONCEDO EM PARTE A LIMINAR pleiteada para determinar que FUNAI dê a tribo Ofayé-Xavante assistência efetiva, com a instalação do posto, ainda que provisório, com o deslocamento de pelo menos um funcionário técnico especializado em questões indígenas para a localidade. Sustenta a embargante FUNAI que, nos autos da Ação Civil Pública n° 2003.60.03.000742-2, foi celebrado Termo de Acordo Extrajudicial, em 19/10/2005, firmado entre o MPF e a autarquia, oportunidade em que restou consignada a seguinte obrigação da FUNAI (ID Num. 108309536 - Pág. 155): Fica ajustado, conjunta e amigavelmente, a assunção das seguintes obrigações a serem executadas pela FUNAI, quais sejam: 1) A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) encaminhará, mensalmente, Comunidade Ofaye-Xavante um funcionário de seus quadros, com o escopo de zelar pelo bem estar da comunidade. Referido funcionário verificará – in loco - as condições de coesão social, e se os índios vêm se mantendo adequadamente (com verificação de se as práticas agrícolas estão adequadas e se suas terras não estão sendo ameaçadas pelos proprietários vizinhos), bem como irá monitorar a comunidade no que tange aos vícios do álcool, se há invasão de outras etnias, e analisar contratos de equipe; quanto às condições de saúde e educação, a obrigação do funcionário será apenas de verificação (inclusive se os menores estão aprendendo a língua materna), se estão sendo prestados ou não esses serviços pelos órgãos competentes; Analisando os mencionados fatos, entendo não há como subsistir a omissão suscitada pela FUNAI. Segundo o Termo de Acordo Extrajudicial, ao menos do seu aspecto redacional, verifica-se que restou acordado o encaminhamento mensal de um funcionário da FUNAI. Contudo, nesta lide, o Parquet não delimitou o aspecto temporal do servidor público, entendimento este por mim encampado quando determinei a designação de “no mínimo um servidor da FUNAI para o atendimento adequado, integral e imediato do povo Ofayé-Xavante” (ID Num. 108309570 - Pág. 256, grifei). Além do aspecto meramente temporal, o próprio cumprimento da avença não restou demonstrado pela FUNAI. Em verdade, os fatos descritos nestes autos apontam em sentido diametralmente oposto. Na petição inicial, o Parquet requereu a obrigação de fazer consistente em instalar “um Posto Indígena na área por eles [Comunidade Ofayé-Xavante] ocupada”. No pedido de antecipação de tutela formulado em 12/06/2006, o MPF reiterou a instalação do mencionado Posto, bem como o remanejamento de dois técnicos especializados nas questões indigenistas, o que fora parcialmente concedido em decisão datada de 16/06/2006. Ocorre que o Termo de Acordo Extrajudicial firmado nos autos da ACP nº 2003.60.03.000742-2 fora assinado em 19/10/2005, ou seja, quase 8 meses antes do pedido ministerial de 12/06/2006. Tal fato demonstra, por si só, que subsistia a omissão do Poder Público em implementar as políticas necessárias em favor da Comunidade Ofayé-Xavante. Dada a proteção que a Constituição Federal outorga às Comunidades Indígenas, entendo que o simples fato da designação de um funcionário técnico especializado estar previsto tanto no pedido de tutela provisória como no Termo de Acordo Extrajudicial, por si só, não se mostra relevante a ponto de considerar que, nesta demanda, houve superveniente perda do objeto. Até porque, conforme consignei em meu voto, “às fls. 2242, o Ministério Público Federal ressaltou que em 2015 ainda persistia a negligência e a inercia da União Federal e da FUNAI na prestação de serviços sociais e de saúde à Comunidade Indígena” (ID Num. 108309570 - Pág. 247). Ou seja, segundo o MPF, passados mais de 10 anos da assinatura do citado Termo de Acordo Extrajudicial, ainda não haviam sido adotadas as medidas públicas essenciais para salvaguardar a Comunidade Ofayé-Xavante. Em suma, analisando-se a decisão embargada, percebe-se claramente que ela não apresenta qualquer dos vícios alegados pelos embargantes. Da simples leitura do voto acima transcrito, verifica-se que o julgado abordou devidamente todas as questões debatidas pelas partes e que foram devidamente explicitadas no voto. Desse modo, fica claro que o recurso não pode ser acolhido, uma vez que os embargos de declaração possuem a função de integrar as decisões e não de rejulgar a matéria. Sob outro aspecto, impende salientar que o Juízo não está adstrito a examinar a exaustão todos os argumentos trazidos no recurso se estes não forem capazes de infirmar a conclusão adotada, sem qualquer violação ao disposto no artigo 489, §1º, inciso IV, do Código de Processo Civil, bastando que decline fundamentos suficientes para lastrear sua decisão. Nesse sentido é o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça (EDcl no MS 21.315-DF, Rel. Min. Diva Malerbi - Desembargadora convocada do TRF da 3ª Região -, julgado em 8/6/2016). Ainda assim, é preciso ressaltar que o v. acórdão embargado abordou as questões apontadas pelos recorrentes, inexistindo nele, pois, qualquer contradição, obscuridade ou omissão. Por fim, o escopo de prequestionar a matéria, para efeito de interposição de recurso especial ou extraordinário, perde a relevância, em sede de embargos de declaração, se não demonstrada a ocorrência de qualquer das hipóteses previstas no art. 1.022, incisos I, II e III, do Código de Processo Civil. Ante o exposto, rejeito o recurso de embargos de declaração. É como voto.
E M E N T A
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO INEXISTENTES. RECURSO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADO.
1. Dispõe o art. 1022, incisos I, II, e III do Código de Processo Civil, serem cabíveis embargos de declaração quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade, contradição, omissão ou erro material.
2. Não existindo no acórdão embargado omissão a ser sanada, uma vez que foi devidamente fundamentado, rejeitam-se os embargos opostos sob tais fundamentos.
3. Os embargos de declaração objetivam complementar as decisões judiciais, não se prestando à impugnação das razões de decidir do julgado.
4. Embargos de declaração rejeitados.