Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5004096-26.2020.4.03.6119

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

RECORRIDO: FERNANDO LISBOA DA CONCEICAO, IVANILDO GOMES NOGUEIRA

Advogados do(a) RECORRIDO: MARCOS ANTONIO LISBOA DA CONCEICAO - SP409267-A, INDALECIO RIBAS - SP260156-A, JEOVAN LISBOA MENEZES - SP403945-A
Advogado do(a) RECORRIDO: NELSON ALEXANDRE NACHE BARRIONUEVO - SP136178-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5004096-26.2020.4.03.6119

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

RECORRIDO: FERNANDO LISBOA DA CONCEICAO, IVANILDO GOMES NOGUEIRA

Advogados do(a) RECORRIDO: MARCOS ANTONIO LISBOA DA CONCEICAO - SP409267-A, INDALECIO RIBAS - SP260156-A, JEOVAN LISBOA MENEZES - SP403945-A
Advogado do(a) RECORRIDO: NELSON ALEXANDRE NACHE BARRIONUEVO - SP136178-A

OUTROS PARTICIPANTES:  

 

R E L A T Ó R I O

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Trata-se de recurso em sentido estrito (ID 153263022) interposto pelo Ministério Público Federal em face da decisão do juízo da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Guarulhos/SP, que não recebeu a denúncia oferecida em desfavor de FERNANDO LISBOA DA CONCEIÇÃO e de IVANILDO GOMES NOGUEIRA, com fulcro no art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal, por entender, em resumo, que não há justa causa para a instauração de ação penal, pela atipicidade das condutas imputadas.

Em razão de representação na Sala de Atendimento ao Cidadão eletrônica do Ministério Público Federal (ID 153263014, pp. 02-04), foi oferecida denúncia (ID 153263013) em face de FERNANDO LISBOA DA CONCEIÇÃO e IVANILDO GOMES NOGUEIRA. Na denúncia, o MPF aduz que, em 28/02/2020, os acusados, de forma livre, consciente e em unidade de desígnios, fizeram publicamente, por intermédio de vídeo publicado no sítio eletrônico YouTube, propaganda do impedimento, com violência ou grave ameaça, do livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário da União – Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, respectivamente –, praticando, assim, o delito previsto no art. 22, IV c/c art. 18 da Lei nº 7.170/83, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social.

A decisão recorrida (ID 153263020) entendeu que “o vídeo em tela não configura qualquer ilícito penal, sendo a conduta (...) atípica, mesmo em tese.”

Recebido o recurso em sentido estrito, os autos foram remetidos aos recorridos para a apresentação de contrarrazões (ID 153263029 – Fernando Lisboa da Conceição e ID 153263647 – Ivanildo Gomes Nogueira). Em suas manifestações, requereram o desprovimento do recurso ministerial.

Nesta Corte, a Procuradoria Regional da República opinou pelo desprovimento do recurso em sentido estrito (ID 153478217).

É o relatório.

Dispensada a revisão, na forma regimental.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5004096-26.2020.4.03.6119

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

RECORRIDO: FERNANDO LISBOA DA CONCEICAO, IVANILDO GOMES NOGUEIRA

Advogados do(a) RECORRIDO: MARCOS ANTONIO LISBOA DA CONCEICAO - SP409267-A, INDALECIO RIBAS - SP260156-A, JEOVAN LISBOA MENEZES - SP403945-A
Advogado do(a) RECORRIDO: NELSON ALEXANDRE NACHE BARRIONUEVO - SP136178-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

V O T O

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso interposto, e passo ao seu exame.

Consoante já relatado, o órgão recorrente interpôs o presente recurso contra a decisão que rejeitou a denúncia por entender que as condutas seriam atípicas, pois as manifestações públicas estariam dentro dos limites da liberdade de expressão.

O recurso não comporta provimento.

A denúncia pede o enquadramento das condutas dos acusados ao crime previsto no art. 18, c/c art. 22, IV, da Lei nº 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional). O conteúdo dos dispositivos é o seguinte:

Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.

 

Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:

(...)

IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

Pena: detenção, de 1 a 4 anos.

 

No que tange ao artigo 22, IV, cujo preceito primário é “fazer, em público, propaganda”, há, como constatado pelo magistrado de primeiro grau, inadequação típica formal. As duas acepções do vocábulo “propaganda” conduzem a essa mesma conclusão.

A primeira delas é a que traduz “propaganda” por ação de defesa e promoção de algo já existente, de um dado ou fato ocorrido. Para incidência do tipo penal em questão, por essa leitura, deveria antes ocorrer que o livre exercício de quaisquer dos Poderes fosse obstado, o que não se deu. Não há, portanto, sob essa ótica, propaganda, vez que inexiste fato pretérito consumado que possa ser propagandeado nos termos das declarações dos acusados.

A segunda considera “propaganda” no sentido de apologia a uma ação, ou seja, de uma tentativa de instigar ou promover determinado ato, ainda que este não esteja em realização ou já consumado por terceiros. Antes de prosseguir, considero imprescindível estabelecer uma premissa que também foi objeto de devida consideração no édito recorrido. Trata-se do fato de que a Lei de Segurança Nacional foi aprovada ainda na era da Ditadura Militar de 1964-1985, em que vigia não somente um poder autoritário, como uma lógica de proteção do poder típica das formações ditatoriais, isto é, que privilegia em termos definitivos as instituições de um regime em detrimento das margens de opinião e expressão dos indivíduos. Evidentemente, trata-se de ótica incompatível com o pluralismo e o paradigma da integral dignidade da pessoa humana que comandam a Constituição da República de 1988.

Não se cuida, aqui, de acoimar os textos normativos da Lei 7.170/83 de inconstitucionais. A defesa normativa das instituições constitui, por certo, bem jurídico da mais alta relevância também em um Estado Democrático de Direito – e mais ainda nele, pois é nessa formação estatal que o exercício da força está, sempre, submetido a normas jurídicas alinhadas a uma Constituição, e não a atos determinados por indivíduos quaisquer por puro arbítrio. O que se deve, enquanto não atualizados ou alterados pelo Poder Legislativo os dispositivos que regem tal proteção, é realizar a adequada e sistemática filtragem constitucional da Lei de Segurança Nacional, de maneira a cumprir o dever de compatibilizar os comandos constitucionais de defesa e manutenção das instituições republicanas (de um lado) e os direitos individuais que envolvem a expressão, a crítica e a manifestação de convicções, inclusive de teores potencialmente extremados (de outro). Sem tal filtragem hermenêutica, transforma-se a Lei de Segurança Nacional – caso se parta de interpretação literalista ou descontextualizada do paradigma constitucional informador de todas as normas do Direito brasileiro – em uma legislação abusiva em relação à liberdade de expressão, que não distingue o discurso de ódio das críticas, ainda que severas, não polidas e verbalmente agressivas.

Cito a parcela da sentença em que se cuidou do tema:

Preliminarmente, deve-se ter em conta que se trata aqui de tipos penais da Lei de Segurança Nacional, de dezembro de 1983, ainda sob governo ditatorial, embora em decadência, muito antes da Constituição de 1988, portanto de sua interpretação histórica se extrai que originada sob espírito autoritário e intolerante do regime da época, incorporado em todos os seus dispositivos, por característica congênita, este viés de restrição às liberdades políticas (...).

Assim, é com este superveniente espírito que deve ser interpretada, conforme os princípios da Constituição de 1988, que devem se incorporar a cada exame de sua aplicação, buscando, com especial relevância, que se verifique no caso concreto se, além da tipicidade formal, há também, e principalmente, lesão ou ameaça de lesão efetiva e grave aos bens jurídicos democráticos aos quais sua proteção pretenda se adaptar.

(...)

(...) parece evidente que os vídeos ora discutidos nada mais são que demonstração exaltada do descontentamento destes dois cidadãos, sem deveres especiais de decoro ou políticos- administrativos, com o estado de coisas atual, na tentativa de inflamar manifestações populares pacíficas e gerar empatia com suas frustrações enquanto colocam-nas para fora, sem nenhuma aptidão séria e provável de lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados’, ou de abalar a ‘existência e à incolumidade dos órgãos supremos do Estado e a inviolabilidade do regime político vigente’, tanto que já faz um tempo que os vídeos foram publicados e não se tem notícia de que os acusados tenham sido alçados a líderes relevantes de seu campo ideológico, muito menos motivado ações efetivamente violentas de qualquer natureza, com ou sem estes vídeos.

Como anteriormente exposto, o princípio da fragmentariedade do Direito Penal tem especial importância no trato da Lei de Segurança Nacional, não cabendo seu emprego em face de condutas evidentemente sem sequer o potencial de vulnerar a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, ou a pessoa dos chefes dos Poderes da União.

 

 

Posto isso, examino o teor dos atos narrados na exordial.

As transcrições das falas de Fernando e Ivanildo – reproduzidas na denúncia, na decisão e no parecer – conclamam, genericamente, que a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal sejam fechados por intervenção do Presidente da República; Ivanildo, além disso, sugere que os seus membros sejam substituídos por militares. Disso não se extrai emprego de grave ameaça ou violência que denote tentativa real ou possibilidade concreta de impedir o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos estados-membros e aptas, portanto, a agredirem de forma relevante o Estado Democrático de Direito.

Para que declarações pudessem adquirir um tal caráter, isto é, ser consideradas juridicamente como “propaganda” do impedimento ao exercício e funcionamento regular dos Poderes Constitucionais, teria de haver um contexto concreto que denotasse o real alcance, deliberação e potencial lesivo das ações. Isso porque não se cuida, aqui, de lei voltada a coibir ataques à honra de pessoas particulares; a legislação em tela tem como enfoque a defesa das instituições contra ataques que as coloquem em risco, ou propagandas que efetivamente visem a mobilizar setores para uma ação de violência ou desrespeito prática ao aparato institucional previsto na Constituição. Nesse contexto, deve haver a cuidadosa análise acerca de questões objetivas e subjetivas atinentes ao agente e seu contexto de ação. Pessoas comuns, sem ressonância social ou influência sobre grupos sociais, têm, em regra, impacto diminuto, sendo improvável que suas ações não violentas fisicamente pudessem ser catalogadas juridicamente como propaganda efetiva de desestabilização dos Poderes.

O caso concreto se amolda a essa hipótese geral. Os denunciados não eram lideranças de grupos sociais, nem figuras de alta relevância ou capacidade de difusão de ideias junto a amplos públicos. Tampouco há demonstração de que conspirassem de forma concreta para realizar ou para inspirar atos efetivos contra os Poderes. Para que pudessem ter seus atos amoldados como “propaganda” de atos atentatórios aos Poderes da República, teriam eles de ter relevância junto a seu público-alvo de modo a sugerir um potencial concreto de lesão. Poderia ser o caso se se tratasse, e.g., de lideranças políticas, midiáticas ou religiosas que passassem a ataques deliberados que tivessem como foco gerar o alastramento de ideias fisicamente violentas em detrimento das instituições, de modo a instigar contingentes de pessoas a investirem contra o aparato estatal garantidor da democracia e do Direito.

Não é esse o caso. Os agentes não detinham condições fáticas de exercer tal tipo de influência ou de terem suas palavras propagadas com ampla difusão ou com alta intensidade (isto é, seja para um enorme número de pessoas, seja com impacto de especial relevância e consideração junto a algumas pessoas); tampouco exerciam posições eminentes de poder fático ou jurídico.

Assim, suas condutas, ainda que possam ser tidas como extremistas e levianas, não se amoldam a crimes contra a Segurança Nacional no ordenamento vigente. As instituições devem conviver com pensamentos dos mais variados tipos, ainda que beirem convicções extremistas, desde que veiculados sem violência física (real ou iminente) e sem atentado à dignidade de pessoas ou grupos (culturais, étnicos, religiosos), é dizer, vedados discursos de ódio ou que tenham por único escopo inspirar de forma imediata a derrubada violenta das (ou o ataque físico às) instituições constitucionais.

Observo, por pertinente, que a relação de tensão entre o exercício extremado de liberdades e a defesa das próprias condições de vida plurais e democráticas (que pressupõem instituições guiadas por esses mesmos paradigmas jurídico-políticos) foi abordada, entre outros, por Karl Popper, em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos”. No capítulo 7, nota 4, do volume 1, o filósofo discorre sobre o paradoxo da tolerância e defende que não se deve suprimir (a supressão seria insensata) a expressão de filosofia intolerantes, enquanto for possível contradizê-las pelo argumento racional e mantê-las em xeque pela opinião pública. O direito de não tolerar os intolerantes deve ser reivindicado, em nome da tolerância, somente na hipótese do uso de violência (uso dos punhos ou pistolas, como diz o autor). Portanto, a intolerância aos intolerantes seria apenas aplicada em situações de violência.

Disso se extrai – e com base na sistemática de um ordenamento jurídico fundamentado por uma constituição social e democrática – deverem ser diferenciadas práticas objetivamente violentas e extremistas (discursos de ódio, ataques de ordem racial, cultural ou religiosa, atos físicos de violência), de um lado, e a expressão de ideias no interior da democracia (de outro), ainda que contundentemente críticas às instituições (seja a seu funcionamento, seja mesmo à sua existência).

O parecer da PRR-3 foi lançado também no mesmo sentido [grifei]:

No caso em tela, não se vê, em tais declarações, nenhum ato efetivo de violência ou grave ameaça, ou instigação dos mesmos a um fato determinado para desestabilizar o regime democrático de governo, a forma federativa de estado ou, mesmo ofender, de forma efetiva, a integridade territorial, a soberania nacional ou a pessoa do presidente da república (...).

Ausente a lesividade clara aos bens jurídicos protegidos no diploma legal, deve-se, em prol também da liberdade de expressão, reconhecer a viabilidade jurídica de manifestações, ainda que reveladoras de opiniões extremamente mal embasadas do ponto de vista histórico, empírico, jurídico, filosófico e científico, ou mesmo apenas por contradizer as crenças do representante. Tratam-se (sic) de opiniões. Restringem-se à esfera das opiniões e embates das ideias.

 

 

Reitero o exposto linhas acima: há, sim, limites à liberdade de expressão protegida pelo Direito, sob pena, em tese e em determinados contextos concretos, de se caracterizar efetivo crime contra as instituições da República, a impor a atuação do direito penal e do aparato de punição estatal. No entanto, para que isso se dê no contexto específico de ataques ou invectivas a instituições, deve haver o prévio reconhecimento de um contexto de ação marcado por postura de efetiva agressão, de tentativa concreta de união de esforços (ou participação deliberada) em combate aos Poderes constitucionais, o que pressupõe discurso que escape a qualquer margem de debate, voltando-se a uma conclamação efetiva pela ação violenta, somada a uma aptidão para potencialmente obter a adesão expressiva de terceiros ou a obtenção de efeitos desestabilizadores. Mesclam-se, assim, elementos objetivos e subjetivos na própria compleição do crime em tela, devendo tais elementos – a capacidade efetiva de influência ou “propaganda” e um ânimo efetivo de iniciar ou inspirar procedimentos de combate aos Poderes e ao Estado Democrático – estar presentes de alguma maneira para que se possa cogitar, em tese, do crime em questão.

 

Concluo. As críticas dos acusados são difusas e não utilizam de grave ameaça ou violência contra os Poderes, estando dentro da liberdade de expressão. Não há referência a uso de meios violentos ou grave ameaça que possam dar concretude ao exposto por eles. Portanto, no caso em questão, a produção, pelos acusados, de críticas e pedidos contundentes/incisivos, ainda que descabidos, não importaram em qualquer forma de violência ou grave ameaça, ou em efetiva inspiração e exortação à ação violenta por parte de terceiros influenciáveis pelos autores dos discursos. Dessa feita, e constatada a inadequação das condutas, em tese, a tipos penais, de rigor a rejeição da denúncia.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso em sentido estrito e mantenho, portanto, a rejeição à denúncia.

É como voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5004096-26.2020.4.03.6119

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

RECORRIDO: FERNANDO LISBOA DA CONCEICAO, IVANILDO GOMES NOGUEIRA

Advogados do(a) RECORRIDO: MARCOS ANTONIO LISBOA DA CONCEICAO - SP409267-A, INDALECIO RIBAS - SP260156-A, JEOVAN LISBOA MENEZES - SP403945-A
Advogado do(a) RECORRIDO: NELSON ALEXANDRE NACHE BARRIONUEVO - SP136178-A

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V O T O   -   V I S T A

 

 

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS: Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal em face da decisão prolatada pelo Juízo Federal da 2ª Vara de Guarulhos/SP, que REJEITOU a denúncia ofertada contra FERNANDO LISBOA DA CONCEIÇÃO e IVANILDO GOMES NOGUEIRA, nos termos do artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal, entendendo ser atípica a conduta nela descrita.

A denúncia fora ofertada em 20.05.2020, em face de FERNANDO LISBOA DA CONCEIÇÃO e IVANILDO GOMES NOGUEIRA, por terem, em 28 de fevereiro de 2020, livre, conscientemente e em unidade de desígnios, feito, em público, propaganda do impedimento, com violência ou grave ameaça, do livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, praticando assim o delito previsto no art. 22, IV c/c art. 18 da Lei n 7.170/83, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social.

Por seu turno, o Juízo a quo REJEITOU a exordial acusatória por entender atípica a conduta nela descrita.

Na sessão realizada em 05.08.2021, o e. Relator apresentou voto no sentido de negar provimento ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Parquet Federal, de modo a manter a rejeição da denúncia, no que foi acompanhado pelo Desembargador Federal Nino Toldo.

Pedi vista dos autos para melhor aquilatar as particularidades do caso concreto.

Passo ao meu voto.

O Ministério Público Federal ofertou denúncia em desfavor de FERNANDO LISBOA DA CONCEIÇÃO e IVANILDO GOMES NOGUEIRA como incursos no artigo 22, inciso IV, c.c. o artigo 18, ambos da Lei de Segurança Nacional (Lei n.º 7.170, de 14 de dezembro de 1983), a seguir transcritos:

Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

(...)

Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:

(...)

IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

Pena: detenção, de 1 a 4 anos.

 

Em síntese, a exordial acusatória relata a divulgação de vídeo intitulado “Agora não tem mais volta – fecha o STF, fecha o Senado, fecha a Câmara – Bolsonaro” nos canais “Pátria Amada PE” e “Vlog do Lisboa”, ambos hospedados na plataforma YouTube, em suposta afronta à harmonia e divisão dos poderes constitucionalmente constituídos.

De acordo com a exordial acusatória, os denunciados produziram e divulgaram na internet conteúdo que faz explícita propaganda do ‘fechamento’, pelo Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, sugerindo a substituição de membros dos Poderes Legislativo e Judiciário da União por militares.

Após meu pedido de vista, na sessão de 05.08.2021, foi editada a Lei n.º 14.197, de 1º de setembro de 2021, acrescentando o Título XII na Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), tipificando crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Na oportunidade, o artigo 4º da novel lei revogou expressamente a Lei n.º 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional).

Da análise dos tipos penais acrescentados ao Código Penal, sob o título “Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito”, destaca-se o artigo 359-L, que possui a seguinte redação:

Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Esse tipo penal guarda correspondência, embora não seja idêntico, com o delito anteriormente previsto no artigo 18 da Lei de Segurança Nacional.

Assim, em razão do princípio da continuidade normativa-típica, o caráter proibido da conduta prevista no artigo 18 da Lei de Segurança Nacional estaria mantido, uma vez que apenas houve o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal.

Todavia, o delito previsto no artigo 22, inciso IV, da Lei de Segurança Nacional, que criminalizava a propaganda, em público, de quaisquer dos crimes nela previstos, não mais subsiste no ordenamento jurídico pátrio.

Assim, a teor das normas atualmente vigentes, o delito de propaganda de crimes contra o Estado Democrático de Direito, nos termos anteriormente estatuídos pela Lei de Segurança Nacional, não mais se encontra explicitamente previsto no sistema de proteção penal.

Seria possível, outrossim, cogitar-se da prática, em tese, do delito de incitação ao crime, previsto no artigo 286 do Código Penal, o qual dispõe o seguinte:

Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:

Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade. 

Em relação ao delito previsto no artigo 286 do Código Penal, a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o estímulo à prática delitiva seja feito de forma clara, precisa e determinada, em que estejam bem delineadas as dimensões típicas e antijurídicas da conduta instigada. Nesse caso, o simples encorajamento genérico a determinada conduta caracterizadora de delito não se prestaria à configuração do delito em comento.

No caso concreto, para que pudesse restar configurado o crime de incitação ao crime seria necessário que o vídeo disponibilizado na plataforma do YouTube visasse estimular a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, mediante violência ou grave ameaça.

Conforme exposto pelo e. Relator, a transcrição das falas dos denunciados, reproduzida na denúncia, conclamam, genericamente, que a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal sejam fechados por intervenção do Presidente da República; Ivanildo, além disso, sugere que os seus membros sejam substituídos por militares. 

Todavia, as frases do vídeo transcritas na exordial acusatória não demonstram ter havido incitação para que fosse tentado o uso de violência ou grave ameaça para o fechamento dos poderes constituídos.

Na realidade, como bem posto na decisão recorrida, teria havido insurgência contra os ocupantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, por parte do denunciado FERNANDO LISBOA DA CONCEIÇÃO. De outro giro, o denunciado IVANILDO GOMES NOGUEIRA teria manifestado indignação difusa contra supostos episódios de corrupção.

Porém, em que pese o viés antidemocrático na insurgência externada pelos denunciados, as condutas descritas configuram manifestações públicas de indignação expressas dentro dos limites de liberdade de expressão e reunião.

Não há nos elementos colacionados aos autos qualquer alusão a eventual uso de violência ou grave ameaça para a consecução dos propósitos defendidos pelos denunciados, o que denota a inexistência de conduta típica, visto que o caráter violento é elemento essencial do tipo penal sob análise.

Em verdade, está-se diante de manifestação que não configura a prática de crime, mas antes constitui manifestação que externou palavras de ordem e inconformismo com os ocupantes dos Poderes referidos.

Ademais, não sendo os denunciados detentores de cargos públicos, com ascendência sobre grupo social, constituindo meros cidadãos que não se encontram jungidos a deveres de decoro ou político-administrativos, não se verifica, ainda, tipicidade material, uma vez que as condutas descritas na exordial não teriam aptidão concreta para fomentar lesão real ou potencial aos bens jurídicos tutelados pela norma penal.

Dessa maneira, deve ser mantida a decisão de rejeição da denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal.

Ante o exposto, voto no sentido de acompanhar o e. Relator.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


E M E N T A

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO QUE REJEITOU A DENÚNCIA. LEI Nº 7.170/83. LEI DE SEGURANÇA NACIONAL. INAPLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE ILICITUDE. CONDUTA ATÍPICA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. REJEIÇÃO DA DENÚNICA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

1. O recorrente interpôs recurso em sentido estrito com base no art. 581, I, do Código de Processo Penal (decisão que rejeitou a denúncia).

2. De acordo com a denúncia, os acusados fizeram, publicamente, em 28/02/2020, por intermédio de vídeo divulgado no YouTube, propaganda do impedimento, com violência ou grave ameaça, do livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário da União – Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, respectivamente –, praticando, assim, o delito previsto no art. 22, IV c/c art. 18 da Lei nº 7.170/83, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social.

3. A defesa normativa das instituições constitui, por certo, bem jurídico da mais alta relevância também em um Estado Democrático de Direito – e mais ainda nele, pois é nessa formação estatal que o exercício da força está, sempre, submetido a normas jurídicas alinhadas a uma Constituição, e não a atos determinados por indivíduos quaisquer por puro arbítrio. O que se deve, enquanto não atualizados ou alterados pelo Poder Legislativo os dispositivos que regem tal proteção, é realizar a adequada e sistemática filtragem constitucional da Lei de Segurança Nacional, de maneira a cumprir o dever de compatibilizar os comandos constitucionais de defesa e manutenção das instituições republicanas (de um lado) e os direitos individuais que envolvem a expressão, a crítica e a manifestação de convicções, inclusive de teores potencialmente extremados (de outro).

4. As condutas dos acusados são atípicas. As duas acepções do vocábulo “propaganda” (caracterizador da conduta típica disposta no art. 22, IV, da Lei 7.170/83) conduzem a essa mesma conclusão.

5. A primeira delas é a que traduz “propaganda” por ação de defesa e promoção de algo já existente, de um dado ou fato ocorrido. Para incidência do tipo penal em questão, por essa leitura, deveria antes ocorrer que o livre exercício de quaisquer dos Poderes fosse obstado, o que não se deu. Não há, portanto, sob essa ótica, propaganda.

6. A segunda considera “propaganda” no sentido de apologia a uma ação, ou seja, de uma tentativa de instigar ou promover determinado ato, ainda que este não esteja em realização ou já consumado por terceiros.

6.1  As falas dos acusados conclamam, genericamente, que a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal sejam fechados por intervenção do Presidente da República. Disso não se extrai emprego de grave ameaça ou violência que denote tentativa real ou possibilidade concreta de impedir o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos estados-membros e aptas, portanto, a agredirem de forma relevante o Estado Democrático de Direito.

6.2 Os denunciados não eram lideranças de grupos sociais, nem figuras de alta relevância ou capacidade de difusão de ideias junto a amplos públicos (ou públicos organizados). Tampouco há demonstração de que conspirassem de forma concreta para realizar ou para inspirar atos efetivos contra os Poderes. Para que pudessem ter seus atos amoldados como “propaganda” de atos atentatórios aos Poderes da República, teriam eles de ter relevância junto a seu público-alvo de modo a sugerir um potencial concreto de lesão às instituições.

7. Há, sim, limites à liberdade de expressão protegida pelo Direito, sob pena, em tese e em determinados contextos concretos, de se caracterizar efetivo crime contra as instituições da República, a impor a atuação do direito penal e do aparato de punição estatal. No entanto, para que isso se dê no contexto específico de ataques ou invectivas a instituições, deve haver o prévio reconhecimento de um contexto de ação marcado por postura de efetiva agressão, de tentativa concreta de união de esforços (ou participação deliberada) em combate aos Poderes constitucionais, o que pressupõe discurso que escape a qualquer margem de debate, voltando-se a uma conclamação efetiva pela ação violenta, somada a uma aptidão para potencialmente obter a adesão expressiva de terceiros ou a obtenção de efeitos desestabilizadores.

8. As instituições devem conviver com pensamentos dos mais variados tipos, ainda que beirem convicções extremistas, desde que veiculados sem violência física (real ou iminente) e sem atentado à dignidade de pessoas ou grupos (culturais, étnicos, religiosos), é dizer, vedados discursos de ódio ou que tenham por único escopo inspirar de forma imediata a derrubada violenta das (ou o ataque físico às) instituições constitucionais.

9. No caso presente, as críticas divulgadas pelos acusados, conquanto extremadas e dissonantes da tripartição de Poderes insculpida como cláusula pétrea do ordenamento pátrio, encontram-se dentro dos limites da liberdade de expressão próprios de um regime de democracia constitucional. Portanto, a manutenção da decisão que rejeitou a denúncia é medida que se impõe.

10. Recurso em sentido estrito desprovido.

 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS, no sentido de acompanhar o DES. FED. RELATOR, foi proclamado o seguinte resultado: A Décima Primeira Turma, POR UNANIMIDADE, decidiu negar provimento ao recurso em sentido estrito e manter, portanto, a rejeição à denúncia, nos termos do DES. FED. RELATOR. LAVRARÁ O ACÓRDÃO O DES. FED. RELATOR , nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.