Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
5ª Turma

HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5026809-82.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

IMPETRANTE: DANIEL LEON BIALSKI, LUIS FELIPE D ALOIA, GUSTAVO ALVARES CRUZ
PACIENTE: KALED SMAILI, LAMIA SMAILI

Advogados do(a) PACIENTE: GUSTAVO ALVARES CRUZ - SP386305-A, LUIS FELIPE D ALOIA - SP336319, DANIEL LEON BIALSKI - SP125000-A
Advogados do(a) PACIENTE: GUSTAVO ALVARES CRUZ - SP386305-A, LUIS FELIPE D ALOIA - SP336319, DANIEL LEON BIALSKI - SP125000-A

IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE GUARULHOS/SP - 6ª VARA FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5026809-82.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

IMPETRANTE: DANIEL LEON BIALSKI, LUIS FELIPE D ALOIA, GUSTAVO ALVARES CRUZ
PACIENTE: KALED SMAILI, LAMIA SMAILI

Advogados do(a) PACIENTE: GUSTAVO ALVARES CRUZ - SP386305-A, LUIS FELIPE D ALOIA - SP336319, DANIEL LEON BIALSKI - SP125000-A
Advogados do(a) PACIENTE: GUSTAVO ALVARES CRUZ - SP386305-A, LUIS FELIPE D ALOIA - SP336319, DANIEL LEON BIALSKI - SP125000-A

IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE GUARULHOS/SP - 6ª VARA FEDERAL

 

 

 R E L A T Ó R I O

 

 

 

Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Kaled Smaili e Lamia Smaili, em face de decisão do Juízo da 6ª Vara Federal de Guarulhos (SP), que impôs medidas cautelares alternativas à prisão de proibição de contratar com a administração pública e entrega de passaportes.

Alega-se, em síntese, os seguintes argumentos:

a) Kaled Smaili é sócio proprietário e representante legal da empresa Cambaras Administração Agrícola Eireli, especializada na compra e venda de imóveis, enquanto sua irmã, Lamia Smaili, é sócia-administradora da Gothan Burguer e Ice Criam Eireli, mantendo ainda a titularidade da empresa KL Promo Ltda em sociedade com sua mãe, Awatef Radi Smaili, e seu filho, Rafael Smaili, sócio da Gelateria Sorveto Ltda.;

b) o paciente Kaled, durante trinta anos de atividade no setor de serviços privado, manteve apenas dois contratos com o Poder Público, ou seja, Prefeituras de Caraguatatuba e São Sebastião, por intermédio da empresa KL Promo Ltda., sendo o objeto satisfatoriamente entregue, devendo-se a mal-entendido e confusão da Autoridade Policial considerar Kaled como sócio administrador da empresa Gothan Burguer e Ice Cream Eirelli, de propriedade de sua irmã, bem como as demais pessoas jurídicas pertencentes aos seus familiares;

c) “consta dos Autos do IPL n. 5007677-49.2020.4.03.6119, instaurado a partir de informações encaminhadas pelo Tribunal de Contas da União, que possíveis irregularidades teriam sido cometidas na contratação da empresa GOTHAM BURGUER E ICE CREAM para o fornecimento emergencial de alimentos em favor do pioneiro Hospital de Campanha instalado pela Prefeitura de Guarulhos/SP, ainda na fase crítica e imprevisível de início da crise sanitária da COVID-19” (Id n. 206633176, p. 2), para apuração de eventual cometimento dos crimes previstos nos arts. 312 do Código de Processo Penal e 89 e 90 da Lei n. 8.666/93, ante a dispensa de licitação emergencial causada pela pandemia do Covid-19;

d) a estrutura física e de pessoal do restaurante, seja para servir hambúrgueres seja para servir refeições balanceadas, é a mesma;

e) durante a construção do hospital de campanha a Gotham Burguer e Ice Cream serviu centenas de refeições aos colaboradores de maneira gratuita, considerando que o estoque da empresa iria deteriorar e todo o alimento armazenado vira a ser descartado, tal como procederam outras empresas, como a Cacau Show, por exemplo;

f) no cenário de fechamento de portas de restaurantes causado pela pandemia, surgiu a oportunidade de celebrar junto ao Poder Público o contrato de prestação de serviços com o objetivo de fornecimento de alimentação individualizada, balanceada e em condições higiênico-sanitárias aos colaboradores do Hospital de Campanha, de modo a possibilitar que a paciente Lamia Smaili pudesse honrar com as dívidas contraídas para o desenvolvimento do negócio e com o pagamento de salários dos funcionários empregados;

g) o serviço prestado ao Poder Municipal pela paciente Lamia foi exemplar e com excelência, não existindo queixas a respeito e somente não se prorrogou em razão do desinteresse da paciente, que estava acometida de trombose e vinha sendo submetida às notícias caluniosas, tais como que a empresa Gotham estaria servindo lanches aos colaboradores do Hospital de Campanha, uma vez que, em verdade, foram servidas refeições aos funcionários, sendo tais refeições preparadas sob orientação de nutricionistas;

h) a Autoridade Policial aduziu em sua representação pela decretação de medidas cautelares pelo fato de Kaled ter ocupado o cargo de Secretário de Administração e Tecnologia do município de Guarulhos (SP) no ano de 2011 e por ser filiado ao Partido Verde (PV), presumindo algum tipo de influência junto ao governo atual, sendo, contudo, público e notório que o PV não apoiou a candidatura do atual prefeito, conforme declaração prestada pelo atual Presidente da sigla em São Paulo;

i) ademais, o Governo Municipal deixou de adimplir a última das quatro parcelas do pagamento referente ao contrato com a empresa Gotham, tendo sido notificado extrajudicialmente em mais de uma oportunidade a adimplir o pagamento da nota fiscal correspondente aos serviços prestados no mês de julho de 2020, no valor de R$ 178.200,00 (cento e setenta e oito mil e duzentos reais), passível de execução contratual pela paciente, a demonstrar a inexistência de conluiou entre os pacientes e os agentes públicos;

j) após o indeferimento inicial das medidas cautelares pleiteadas pela Autoridade Policial foi a Autoridade Coatora induzida em erro por presunções equivocadas derivadas de reportagem jornalística, vindo a deliberar pela decretação de medidas cautelares de proibição de firmar contratos com a Administração Pública e retenção de passaportes, sob a premissa de gravidade dos fatos e presença de indícios de prática criminosa, sendo mantida a decisão pelo Juízo a quo após requerimento defensivo;

k) as medidas cautelares devem ser mitigadas, uma vez que inexiste contemporaneidade e necessidade de proibir a contratação com a Administração Pública em geral, pois o contrato somente teve vigência até julho de 2020, e a decisão impugnada foi prolatada somente um ano após exaurido o contrato, bem como não há informação sobre eventual reiteração delitiva, uma vez não renovado o contrato;

l) não houve sobreposição de objetos contratados no que se refere à empresa Gotham e à empresa Imedis (Instituto Medizim), conforme se depreende das defesas dos agentes públicos ofertadas em ação popular;

m) não há que falar em falta de justificativa para o convite enviado para a empresa Gotham, pois esta, ao servir gratuitamente alimentação aos colaboradores nos dias iniciais, assim como outras empresas, chamou a atenção de todos no município;

n) o fato da empresa ser especializada em servir hambúrgueres não retira dela a qualidade de empresa de alimentação, que possui a expertise e o material necessários à prestação do serviço contratado de forma emergencial e com dispensa de licitação, estando o preço apresentado pela empresa dentro do valor de mercado, sendo, aliás, dispensável se proceder a pesquisa de preço, nos termos do art. 4º-E da Medida Provisória n. 926/20, e sendo alegado pela defesa do Município de Guarulhos em sede de ação popular que o preço oferecido pela empresa Gotham estava dentro da média do valor do mercado e abaixo de outra proposta recebida;

o) não se olvide que na época da contratação o Município se encontrava na fase vermelha, não existindo local para que os funcionários recebessem vale alimentação, de modo a não haver local para utilizá-los, e o preço de R$ 49,50 (quarenta e nove reais e cinquenta centavos), cobrado pela paciente, englobava três refeições diárias, resultando em preço médio de R$ 16,50 (dezesseis reais e cinquenta centavos) por refeição, a ser produzida no começo da pandemia, quando a grande maioria dos fornecedores estava fechada, ensejando a elevação do preço da matéria-prima e, por consequência, o custo daqueles que detinham o serviço;

p) a celeridade da contratação decorreu da própria celeridade exigida dos governantes para combater a pandemia da Covid-19 e poupar vidas, o que deu ensejo à edição da própria Lei n. 13.979/20, que em seu art. 4º dispensava a licitação para aquisição de bens serviços e insumos em razão da emergência de saúde pública, bem como a municipalidade de Guarulhos expediu o Decreto Municipal n. 36.711/20, que dispensava, nos mesmos termos, a licitação;

q) A MP n. 926/20 alterou a Lei n. 13.979/20 para disciplinar nova modalidade de dispensa de licitação, em seus arts. 4º-B, 4º-C e 4º-E, sendo ainda editada a MP n. 961 que dispôs sobre autorização de pagamentos antecipados nas licitações, de modo a ampliar o uso do regime diferenciado de contratações públicas durante a pandemia, a comprovar que legislação editada fez concessões excepcionais em prol do bem maior da vida;

r) não configura irregularidade a data da proposta ser a mesma do ofício municipal que solicitou a apresentação de propostas, haja vista o argumento da urgência e emergência para combater o número de mortes e para que a empresa se mantivesse aberta;

s) está equivocado o argumento de não houve registro de outras empresas convidadas, pois como consta do próprio inquérito policial houve convite e proposta oficial da empresa Supera, ainda que o procedimento fosse dispensado pela legislação e medidas provisórias editadas, conforme já apontado;

t) o regime especial de dispensa de licitação não previa a necessidade de atestado de aptidão, bem como o cumprimento de forma exemplar do contrato afasta cogitar-se de inaptidão;

u) presentes o fumus boni iuris pela ausência de mínima fundamentação e proporcionalidade na fixação das medidas cautelares, e o periculum in mora, consistente no risco de que a manutenção da medida leve à falência as empresas pertencentes aos pacientes, bem como violação à dignidade dos pacientes, por conta do constrangimento de um processo indevido;

v) requer seja deferida a liminar para afastar a proibição de os pacientes firmarem contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente, até o julgamento final do presente writ, sendo confirmada a liminar por ocasião do julgamento do mérito, com a concessão da ordem “para que se revogue o item ‘a’ das decisões questionadas permitindo que os Pacientes possam firmar contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente” (Id n. 206633176).

Foram juntados documentos (Ids ns. 206633188, 206633591, 206633594, 206633597, 206633599, 206633602, 206633606, 206633609, 206633612, 206633614, 206633616, 206633620, 206633622, 206633625, 206633627, 206633630, 206633932, 206633937, 206633940, 206633943, 206633945, 206633949, 206633961 e 206633963).

O pedido liminar foi indeferido (Id n. 209995508).

A autoridade impetrada prestou informações (Id n. 210295546).

A Ilustre Procuradora Regional da República, Dra. Adriana da Silva Fernandes, manifestou-se pela denegação da ordem de habeas corpus (Id n. 216638588).

É o relatório.

 

 


HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5026809-82.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

IMPETRANTE: DANIEL LEON BIALSKI, LUIS FELIPE D ALOIA, GUSTAVO ALVARES CRUZ
PACIENTE: KALED SMAILI, LAMIA SMAILI

Advogados do(a) PACIENTE: GUSTAVO ALVARES CRUZ - SP386305-A, LUIS FELIPE D ALOIA - SP336319, DANIEL LEON BIALSKI - SP125000-A
Advogados do(a) PACIENTE: GUSTAVO ALVARES CRUZ - SP386305-A, LUIS FELIPE D ALOIA - SP336319, DANIEL LEON BIALSKI - SP125000-A

IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE GUARULHOS/SP - 6ª VARA FEDERAL

 

 

 V O T O

 

 

A impetração requer que seja revogada a proibição de contratar com o Poder Público imposta aos pacientes, aduzindo a ausência dos pressupostos para manutenção das medidas cautelares, fundamentação genérica e ofensa aos princípios da preservação da empresa e da dignidade da pessoa humana, entre outros.

Conforme consta dos autos, trata-se de decisão imposta no âmbito de inquérito policial relativo à Operação Joker que apura, em resumo, a dispensa irregular e direcionamento de licitação, peculato e associação criminosa a existência de delitos previstos nos arts. 312 e 288, ambos do Código Penal c. c. os arts. 89 e 90 da Lei n. 8.666/93, praticados em tese pela empresa Gothan Burguer e Ice Cream Eireli, CNPJ 35.403.733/0001-51, e seus administradores/sócios, pelo Município de Guarulhos tendo por objeto a prestação de serviços de alimentação individualizada destinada aos colaboradores do Hospital de Campanha, no valor de R$ 712.800,00 por meio de dispensa de licitação n. 19.951/2020, firmada em 27.03.2020 e com previsão de término em 27.07.2020, com utilização de verbas originárias da União (cfr. representação policial de Id n. 206633625).

Como se vê, a aplicação de medidas cautelares foi embasada em fatos concretos a fim de evitar a reiteração delitiva e a lesão aos cofres públicos, supostamente praticada pelos pacientes, de modo a estar evidenciada a necessidade de garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e de assegurar a aplicação da lei penal.

Em 13.07.21, o Juízo a quo deferiu medidas cautelares contra os pacientes requeridas pela autoridade policial, com fulcro nos indícios de autoria e materialidade dos crimes nos arts. 312 e 288, ambos do Código Penal e 89 e 90 da Lei n. 8.666/93, a necessidade de garantir a ordem pública e preservação da aplicação da lei penal:

 

Trata-se de representação policial pela decretação de medidas cautelares de busca e apreensão, afastamento de sigilo telemático e fixação de outras medidas alternativas à prisão, nos moldes do art. 319 do Código de Processo Penal, em decorrência de investigação conduzida no Inquérito Policial nº 5007677-49.2020.403.6119, relativo à denominada “Operação Joker”, que apura, em síntese, a existência de delitos previstos no artigo 312 do Código Penal c. c. os artigos 89 e 90 da Lei nº 8.666/93 e artigos 288, 317 e 333, também do Código Penal, relacionados à contratação da empresa GOTHAN BURGUER E ICE CREAM EIRELI (CNPJ 35.403.733/0001-51) pela Secretaria Municipal de Saúde de Guarulhos para prestação de serviços de alimentação destinada aos colaboradores do Hospital de Campanha, no valor de R$ 712.800,00 (setecentos e doze mil e oitocentos reais), mediante a utilização de recursos federais.

As investigações tiveram início a partir de pesquisas em fontes abertas de consulta encetadas pela equipe de inteligência da Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros em Guarulhos/SP, ocasião em que foi identificada a contração realizada pela Prefeitura de Guarulhos/SP com a empresa Gotham Burguer e Ice Cream Eireli para a prestação de serviços de alimentação individualizada destinada aos colaboradores do hospital de campanha instalado no município para combate à pandemia de COVID-19.

O contrato nº 19.951/2020, que se deu por meio de dispensa de licitação e foi firmado no dia 27/03/2020, com previsão de término no dia 27/07/2020, foi objeto de fiscalização do Tribunal de Contas da União, ocasião em que foram constatadas diversas irregularidades: sobreposição de serviços de alimentação prestados pela Gotham Burger aos colaboradores do hospital de companha com os contratos de gestão desse hospital celebrados entre a prefeitura e o Instituto Medizin de Saúde (IMEDIS), indícios de direcionamento da contratação, bem como ausência de apresentação de atestado de aptidão para desempenho de atividade.

Sendo assim, a autoridade policial representou pela expedição de mandados de busca e apreensão de documentos, agendas, registros contábeis, celulares particulares e funcionais, computadores, hard disks (HDs) ou quaisquer outros tipos de meio magnético ou digital de armazenamento de dados na empresa Supera Alimentação e Serviços Ltda., na residência de seu responsável legal, Haroldo Dalazoana Afonso Durães, na sede da empresa Gotham Burger e Ice Cream Eireli, na residência de sua sócia, Lamia Smaili e de seu irmão, Kaled Smaili, bem como na residência do então Secretário de Saúde de Guarulhos/SP José Mario Stranghetti Clemente e, ainda, na Secretaria de Saúde e na Divisão de Compras e Licitações da Prefeitura Municipal de Guarulhos/SP. Em momento posterior ao deferimento das medidas, a autoridade policial requereu: a) autorização para participação de servidores do Tribunal de Contas da União no cumprimento das diligências e compartilhamento de provas coligidas na investigação para fins de análise conjunta; b) autorização para realização de perícia nos equipamentos de informática (hard disks de computadores e smartphones) eventualmente apreendidos, permissão para acesso do conteúdo de dispositivos eletrônicos apreendidos, abrangendo todos os arquivos armazenados, nos termos do artigo 7º, inciso III, da Lei nº 12.965/2014, bem como autorização expressa para arrombamento de portas e cofres eventualmente existentes nas residências e sedes empresariais, caso os investigados se neguem a abre-los; c) autorização para devolução do material apreendido se, após ser examinado, for constatado que não mais interessa às investigações; d) levantamento do sigilo dos autos, superada a fase sigilos da investigação com o cumprimento dos mandados de busca e apreensão aqui representados.

A representação policial (d. 152531912) veio acompanhada de documentos (id. 152531913, id. 152531914, id. 153531915, id. 152531916, id. 152531917) e foi distribuída ao Juízo desta 6ª Vara Federal de Guarulhos/SP.

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo indeferimento da decretação das medidas requeridas pela autoridade policial (id. 152531919), requerimento que foi encampado pelo Juízo (id. 152531920).

Instado a se manifestar sobre a competência para processar este feito e outros conexos com a denominada “Operação Joker”, o órgão ministerial opinou pela prevenção do Juízo da 6ª Vara Federal de Guarulhos/SP para processar os fatos investigados no Inquérito Policial nº 5007677-49.2020.4.03.6119 (originário do presente pedido de busca e apreensão), bem como no Inquérito Policial nº 5005993-89.2020.4.03.6119 e em seu respectivo pedido de busca e apreensão nº 5008050-2020.4.03.6119 (id. 152531922).

Em seguida, o Juízo desta 6ª Vara Federal de Guarulhos/SP reconheceu sua competência para apreciar os feitos Busca e Apreensão nº 5007584-41.2020.4.03.6119 e IPL nº 5007677-49.2020.4.03.6119, Busca e Apreensão nº 5008050-80.2020.4.03.6119 e IPL nº 5005993-89.2020.4.03.6119 e Busca e Apreensão nº 5008127-89.2020.4.03.6119 e IPL nº 5006347-17.2020.4.03.6119 (id. 152531923).

O Ministério Público Federal, então, encampou parcialmente a representação policial e requereu a decretação de medida de busca e apreensão e afastamento de sigilo de comunicação telemática (id. 152531930).

Nesse contexto, este Juízo, considerando o potencial envolvimento direto do Prefeito Municipal, Gustavo Henric Costa, na formalização dos contratos sob investigação, reconheceu a sua incompetência e determinou a remessa dos autos de pedidos de busca e apreensão nº 5007684-41.2020.4.03.6119, nº 5008050-80.2020.4.03.6119 e nº 5008127-89.2020.4.03.6119 a esse Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com fundamento no artigo 29, inciso X, da Constituição Federal e na súmula 702 do Supremo Tribunal Federal (id. 152532409).

Nos termos da r. decisão monocrática prolatada pelo Exmo. Desembargador Federal Maurício Kato, o e. TRF3 declinou da competência para processamento da representação policial e determinou a devolução dos autos ao Juízo da 6ª Vara Federal de Guarulhos/SP.

Com o retorno dos autos, foi proferida decisão com o seguinte desfecho: a) indeferindo a busca e apreensão em relação a SUPERA ALIMENTAÇÃO E SERVIÇOS LTDA., Haroldo Dalazoana Afonso Durães e Kaled Smaili; b) deferindo a BUSCA E APREENSÃO nas demais residências, empresa e órgãos públicos, com a finalidade de colher novos elementos de convicção, apreender quaisquer documentos ou outras provas relacionadas aos crimes ora investigados, incluindo registros contábeis, agendas, documentos, “smartphones”, computadores e quaisquer outros tipos de meio magnético ou digital de armazenamento de dados; c) autorizando a participação de representantes do Tribunal de Contas da União no cumprimento das diligências e compartilhamento de provas coligidas, para fins de análise conjunta do material apreendido; d) autorizando a realização de perícia nos equipamentos de informática apreendidos, observada a privacidade dos investigados no que se refere a fatos estranhos ao inquérito; e) autorizando a devolução de documentos e de equipamentos de informática aos investigados e/ou seus advogados, após serem examinados, após certificação pela autoridade policial quanto à ausência de interesse para as investigações; f) reservando apreciação do pedido de levantamento do sigilo dos autos para momento posterior ao cumprimento das medidas cautelares (id. 53206170).

A autoridade policial apresentou representação complementar pela decretação das seguintes medidas cautelares diversas da prisão: i) Probição de acesso e frequência a dependências de sedes do Poder Executivo Municipal de Guarulhos e de manter contato com funcionários públicos da municipalidade; ii) Proibição de se ausentarem da Comarca e comparecimento periódico em Juízo; iii) Proibição de contratação com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente; iv) Suspensão do exercício de função pública. Adicionalmente, representou pelo afastamento do sigilo telemático dos investigados e pela decretação de medidas cautelares em relação ao investigado KALED SMAILI, ante a apresentação de novos elementos informativos colhidos na investigação (id. 56123056).

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo deferimento da decretação das medidas requeridas pela autoridade policial em caráter complementar (id. 56706894).

É o relatório.

Decido.

 

a) Dos indícios de materialidade e autoria necessários ao deferimento das medidas cautelares

A concessão das medidas cautelares que foram objeto da representação policial encampada pelo Ministério Público Federal pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos: indícios de materialidade e autoria (fumus comissi delicti), bem como a observância dos requisitos dispostos nos incisos I e II, do artigo 282, do CPP, quais sejam: necessidade da medida para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais, bem como adequação à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

Nesse sentido caminha a jurisprudência do e. Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

 

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ARTIGO 319 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NATUREZA ACESSÓRIA À PRISÃO PREVENTIVA. ORDEM CONCEDIDA. 1. As medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319, do Código de Processo Penal detém a eficácia e a natureza garantidora atribuídas à prisão preventiva, prestando-se, por conseguinte, a garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou a assegurar a aplicação da lei penal, desde que presentes prova da existência do crime e indício suficiente da autoria. 2. Uma vez considerados ausentes os requisitos necessários à decretação da prisão preventiva, não há como se impor as medidas cautelares alternativas à prisão previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. 3. Ordem concedida.

(TRF 3ª Região, 5ª Turma, HCCrim - HABEAS CORPUS CRIMINAL - 5032784-22.2020.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal MAURICIO YUKIKAZU KATO, julgado em 23/02/2021, Intimação via sistema DATA: 04/03/2021)

 

Os indícios de materialidade em relação à prática, em tese, dos delitos previstos nos 312 e 288 do Código Penal c. c. os artigos 89 e 90 da Lei nº 8.666/93, também do diploma penal, envolvendo a contratação da sociedade empresária GOTHAM BURGUER pela Secretaria Municipal de Guarulhos (Contrato nº 1202/2020-FMS) são identificados a partir de elementos colhidos da investigação criminal e em relatórios elaborados pelos Tribunais de Contas da União:

i. sobreposição do objeto do contrato (fornecimento de alimentação aos colaboradores do Hospital de Campanha) com outros contratos de gestão desse hospital celebrados pela prefeitura de Guarulhos com uma Organização Social denominada Instituto Medizin de Saúde – IMEDIS (contratada pela instalar, equipar e gerir o Hospital de Campanha do município de Guarulhos, com exceção da contratação de médicos – vide contratos de serviços nº 802/2020-FMS e 1102/2020-FMS);

II. ausência de justificativa para o direcionamento da contratação à sociedade que contava, à época, com apenas quatro meses de existência, sem qualquer histórico de prestação de serviços a entes públicos (em que pese o amplo número de fornecedores habilitados a prestar serviços de alimentação em Município com a 13ª maior população do Brasil). Apenas para realçar a desproporção, conforme informação policial nº 120/2020-SR/PF/SP, o capital social da empresa corresponde a R$ 99.800, o que equivale a 14% do valor do contrato;

iii. objeto do contrato (fornecimento recorrente de alimentação) suscita estranheza quando examinado à luz do tipo de alimentação fornecida por hamburgueria temática localizada em shopping center da cidade, cujo cardápio é composto tão somente de hambúrgueres, batatas fritas e frango empanado;

iv. a contratação foi formalizada por meio de dispensa de licitação em apenas 3 dias (de 25 a 27 de março foram praticados todos os atos, inclusive a assinatura do contrato);

v. a data da proposta da Gothan Burguer é a mesma do Ofício 164/2020-SS, por meio do qual a Secretaria de Saúde municipal solicitou a apresentação de propostas comerciais, circunstância que indica que a proposta já estaria pronta antes mesmo do recebimento do ofício;

vi. não há registro de outras empresas convidadas pela Secretaria a concorrer à contratação;

vii. desatendimento à exigência constante do anexo II do Ofício 164/2020-SS, pois não teria sido apresentado atestado expedido por pessoa jurídica de direito público ou privado atestando a aptidão da Gothan Burguer para o desempenho da atividade (condição exigida no termo de referência para formalização do contrato);

 

Com efeito, verifico que o caráter emergencial da contratação pública não é capaz de dissipar ou justificar as irregularidades identificadas. Conforme destacado pelo Tribunal de Contas da União em seu relatório, “seria esperado que a administração procurasse o maior número possível de organizações interessadas, já que o disparo de e-mails ou o envio de ofícios para quantidade significativa de OS não acarretaria esforços adicionais de trabalho nem demandaria tempo adicional para a realização de procedimento simplificado de cotação de preços” (id. 40445965, fl. 9).

Os indícios de autoria quanto aos investigados decorrem do seu envolvimento com os fatos narrados acima, consistindo em agentes de alguma forma ligados à administração da empresa contratada, assim como servidores públicos e agentes privados que atuaram diretamente na contratação objeto da investigação.

Isto é, GOTHAM BURGUER E ICE CREAM EIRELI é a própria empresa contratada por meio do processo cujas irregularidades foram indicadas acima; LAMIA SMAILI é a administradora da sociedade empresária; JOSÉ MARIO STRANGHETTI CLEMENTE era o Secretário de Saúde Municipal à época dos fatos, e, nessa condição, firmou o contrato em procedimento eivado das suspeitas de fraude expostas acima.

Por sua vez, em relação ao investigado KALED SMAILI, identifico a presença de novos indícios capazes de alterar a decisão lançada no id. 53206170. Naquela oportunidade, restaram indeferidas as medidas formuladas na representação original quanto a esse investigado, visto que, até aquele momento, não constavam nos autos elementos suficientes a demonstrar a sua alegada participação nos fatos em apuração. Contudo, ante novos elementos trazidos pela autoridade policial, os quais dão conta que o investigado em questão possui vínculos de fato com a empresa Gotham Burguer, identifico razões suficientes para modificar o posicionamento.

Se o mero parentesco com outro investigado e a menção a relações pretéritas com figuras políticas municipais são dados absolutamente frágeis para evidenciar qualquer participação de KALED SMAILI na contratação sob investigação, é certo que os novos elementos indicados pela autoridade policial, sobretudo às fls. 21/24 do id. 56123056, configuram indícios firmes de que o investigado desempenhou função relevante na administração da sociedade empresária Gothan Burguer e, sobretudo, na contratação que é objeto da apuração.

Conforme reportagem realizada pelo meio de comunicação “VOZ de Guarulhos”, KALED se apresentou como legítimo porta-voz da empresa, respondendo às denúncias envolvendo a contratação com a Prefeitura de Guarulhos, expressamente defendendo a lisura do ato e se colocando como um dos beneficiários dos valores pagos à Prefeitura. Consta da entrevista trecho em que KALED disse ao veículo: “todas as refeições pelas quais estamos recebendo estão sendo entregues conforme acordado”. (id. 40445982, fl. 5). Não bastasse o conteúdo da resposta, o simples fato de KALED tê-la respondido já configura relevante indicativo dos seus vínculos com a sociedade, pois a questão formulada pressupõe íntima ligação com a atividade de administração da empresa, que não cabe ser endereçada por indivíduos estranhos aos quadros da pessoa jurídica, ou alheios à condução das suas atividades.

 

b) Da busca e apreensão

Ante os indícios apresentados acima acerca do envolvimento do investigado KALED SMAIL nos fatos sob investigação, faz-se necessário, em adição às ordens de busca e apreensão decretadas na decisão de id. 53206170, deferir a medida também em relação a esse investigado.

Assim, tal qual registrado naquela oportunidade, verifico que a busca e apreensão prevista no artigo 240 do Código de Processo Penal se apresenta como medida compatível com o intuito da Polícia Federal de apurar os delitos identificados nas averiguações promovidas pelo Tribunal de Contas da União, podendo descobrir objetos necessários à prova da infração, apreender mensagens e comunicações destinadas aos acusados ou em seu poder, visando à elucidação dos fatos, e permitir a colheita de elementos de convicção que viabilizem a formação da opinio delicti pelo Ministério Público Federal.

 

c) Das medidas cautelares alternativas à prisão

As medidas cautelares pessoais alternativas à prisão, como visto acima, pressupõem além dos indícios de materialidade e autoria (já examinados), a demonstração de que são necessárias à tutela dos seguintes bens jurídicos indicados no artigo 282 do Código de Processo Penal, quais sejam: (i) o resguardo da apuração dos fatos, sob a ótica da conveniência da investigação ou da instrução do processo, e da aplicação da lei penal; (ii) a garantia da ordem pública ou econômica, sobretudo para evitar o risco de reiteração criminosa ou à higidez do sistema econômico/financeiro.

Das diversas medidas restritivas veiculadas na representação policial, identifico que apenas duas delas têm investigados aptidão para resguardar alguma das finalidades indicadas acima, quais sejam: (a) proibir os – e as pessoas jurídicas das quais são sócios - de firmar contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente; (b) proibir os investigados de se ausentarem do país, devendo entregar os passaportes de todas as nacionalidades que possuam;

Isso porque, como visto acima, a gravidade em concreto das ilicitudes alegadamente praticadas pelos réus é demonstrada pelos elevados valores dos contratos firmados com a municipalidade. Considerada apenas as contratações públicas investigadas nestes autos, o montante atinge R$ 712.800,00. Caso somada às demais investigações autuadas sob os números 5008050-80.2020.4.03.6119 e 5008127-89.2020.4.03.6119, que tratam de pedidos de busca e apreensão e outras medidas cautelares formulados a partir de investigações semelhantes, envolvendo irregularidades em contratações pelo Município de Guarulhos, o montante ultrapassaria 50 milhões de reais.

Assim, dada a gravidade dos fatos sob investigação e os indícios existentes em relação aos investigados (analisados acima), a intervenção cautelar mostra-se não apenas necessária para evitar a reiteração delitiva e minimizar os danos ao erário público, mas adequada às condições pessoais dos agentes, segundo critério de proporção entre os crimes e as medidas restritivas impostas (artigo 282, II, do Código de Processo Penal).

Por outro lado, as demais medidas pleiteadas se mostram ora excessivas, ora impertinentes ao alcance das finalidades indicadas acima.

Justifico.

Em relação às cautelares relativas à proibição de acesso a determinadas repartições públicas e de manter contato com funcionários públicos, trata-se de medida que pressupõe risco concreto à atividade investigatória/instrutória, elemento que não foi demonstrado pela autoridade policial. Não bastasse isso, há outras medidas capazes de resguardar a coleta de provas, quais sejam a busca e apreensão (já deferida em decisão anterior) e, como será visto abaixo, a quebra de seu sigilo telemático.

Por razões semelhantes, não vislumbro risco suficiente à aplicação da lei penal a ensejar a aplicação das medidas de proibição de mudar de residência e/ou de comparecimento mensal em juízo, sendo certo que a proibição de viagem ao exterior cumulada com a retenção dos passaportes poderá alcançar os mesmos objetivos com menores restrições.

Por fim, considerando a proibição de contratar com a Administração Pública deferida acima, reputo desnecessária, por ora, a suspensão do exercício de função pública por parte dos investigados. Isso porque, ao contrário da situação registrada à época dos fatos, quando ao menos dois dos investigados ocupavam cargos na alta cúpula do Executivo Municipal, atualmente nenhum desempenha função com aptidão para facilitar a prática dos crimes sob investigação. Especificamente em relação ao investigado JOSÉ MARIO STRANGHETTI CLEMENTE, que possui cargo de médico pela prefeitura de Guarulhos, faz-se oportuno frisar que, diferentemente do cargo de Secretário Municipal da Saúde, a função atualmente exercida não lhe assegura qualquer contato direto com os gestores públicos. Logo, se o risco que se busca conter é representado pela possível influência do investigado sobre testemunhas e na apuração dos fatos junto aos órgãos municipais, é certo que a mera suspensão da sua atuação como médico é indiferente para tanto.

Como é da natureza das medidas cautelares, a evolução das apurações poderá apresentar elementos capazes de alterar as medidas fixadas, seja para suprimi-las, seja para recrudescê-las.

Assim, com fulcro no artigo 319 do Código de Processo Penal, é adequada e proporcional a fixação das seguintes cautelares a cada um dos investigados (sendo a primeira delas extensível inclusive às pessoas jurídicas):

a. proibição de firmar contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente

b. proibição de deixar o País, devendo entregar o(s) seu(s) passaporte(s) à autoridade policial por ocasião do cumprimento dos mandados de busca e apreensão.

 

d) Do afastamento do sigilo telemático

A Constituição Federal garante o sigilo à intimidade e vida privada, de forma que estabelece como inviolável, dentre outros, o sigilo de dados. Contudo, tal garantia não se reveste de caráter absoluto e cede diante de interesse público relevante, havendo permissão constitucional de, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, esse sigilo ser afastado ou relativizado (artigo 5º, XII).

A quebra do sigilo telemático pressupõe a existência de indícios da prática da infração penal e a demonstração da necessidade da medida para o resultado útil da investigação (Vide: STJ, HC 587.732/RJ, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 20/10/2020, DJe 26/10/2020; STJ, HC 444.024/PR, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Rel. p/ Acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 02/04/2019, DJe 02/08/2019).

Na esteira dos indícios examinados acima, o primeiro requisito está preenchido em virtude da demonstração do fumus comissi delicti em relação aos investigados (vide tópico acima).

Em relação ao segundo requisito, o seu preenchimento é demonstrado a partir da análise dos objetivos buscados pela autoridade policial a partir da decretação da medida, os quais estão expostos na representação complementar juntada no id. 56230329, fls. 15/16:

“No caso em análise, o afastamento do sigilo dos e-mails utilizados pelos investigados e conteúdo armazenado em nuvem tem por objetivo:

a) viabilizar a coleta e a preservação de provas que confirmem as hipóteses criminais, seja por meio de imagens ou texto contidos nos e-mails e conversas privadas;

b) viabilizar a coleta de informações e preservação de provas sobre contratações com o poder público, contatos entre os investigados, combinação prévia de resultado de procedimentos licitatórios, produção, por particulares, de documentos emitidos pela municipalidade de Guarulhos, planilhamento da obtenção de recursos públicos e destinatários, provas de pagamento de propina por diversos meios, desde pagamentos em espécie a compras de objetos, joias, móveis, imóveis, ações, moeda estrangeira, realização de reformas em imóveis etc.;

c) analisar a eventual existência de documentos que revelem o destino das verbas recebidas com recursos do erário;

d) identificar potenciais outros envolvidos nos fatos e coletar provas que elucidem com profundidade o ocorrido no período investigado.”

 

Nesse particular, é da própria essência dos crimes sob investigação o recurso a subterfúgios que visam a impedir o conhecimento da atividade criminosa. Ao contrário de outros crimes cuja prática dispensa qualquer grau de sofisticação, os meios fraudulentos empregados para lesar os cofres públicos somente podem ser inteiramente esclarecidos a partir do recurso a meios de investigação igualmente sofisticados e que permitam captar eventuais trocas de mensagens entre os envolvidos e eventualmente apontar a participação de terceiros até então desconhecidos. Em função de tais particularidades presentes nesta investigação, não vislumbro qualquer alternativa capaz de atingir tais resultados, razão pela qual a medida de flexibilização do sigilo telemático se mostra indispensável, entre outras finalidades, à prova do liame subjetivo entre os investigados, à identificação, com precisão, da atividade desenvolvida pelos alvos principais, à revelação do modus operandi utilizado e das pessoas a eles associadas. De outro lado, tal medida permitirá, a depender do material coletado, que se conclua em sentido contrário àquele apontado pelos indícios até então trazidos aos autos, reforçando eventuais teses em favor da inocência dos investigados.

Portanto, deve ser deferido o afastamento do sigilo telemático dos e-mails dos investigados indicados pela autoridade policial nas tabelas formuladas no id. 56230329, fls. 19/21 e id. 57718708, fl. 6, no período de 1º de fevereiro de 2020 até a data em que prolatada esta decisão judicial.

 

e) Disposições finais

ANTE O EXPOSTO, defiro parcialmente a representação policial, cuja execução deverá respeitar todas as cautelas necessárias para que a medida seja realizada da forma mais discreta e menos constrangedora possível para o serviço municipal, nos seguintes termos:

 

i. defiro a busca e apreensão em face do investigado KALED SMAILI, com fundamento no art. 5º, XI, da Constituição Federal, e no art. 240, § 1º, notadamente alíneas “d”, “e”, “f” e “h”, do Código de Processo Penal, com a consequente expedição de mandado de busca e apreensão, com prazo de validade de 60 dias, no endereço indicado no id. 57727687, fl. 4, a saber: Av. Padre Noronha, nº 50, apartamento 221, Torre 02, Bosque Maia, Guarulhos/SP, com a finalidade de colher novos elementos de convicção, apreender quaisquer documentos ou outras provas relacionadas aos crimes ora investigados, incluindo registros contábeis, agendas, documentos, “smartphones”, computadores e quaisquer outros tipos de meio magnético ou digital de armazenamento de dados;

i. autorizo o acesso ao conteúdo de quaisquer dispositivos eletrônicos apreendidos, abrangendo todos os arquivos neles armazenados e a realização de perícia, com fulcro no art. 7º, inciso III, da Lei nº 12.965/2014, constando autorização;

i. fixo as seguintes medidas cautelares diversas da prisão em face dos investigados LAMIA SMAILI (CPF 047.514.098-24), JOSÉ MARIO STRANGHETTI CLEMENTE (CPF 002.918.728-16) e KALED SMAILI (CPF 134.159.588-92) e da pessoa jurídica GOTHAM BURGUER E ICE CREAM EIRELI (no que for cabível), com fundamento nos artigos 282, caput, §§ 1º e 2º, c. c. 319, ambos do Código de Processo Penal:

a. proibição de firmar contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente (medida extensível às pessoas jurídicas indicadas acima);

b. proibição de deixar o País, devendo entregar os passaportes de todas as nacionalidades que possuam - à autoridade policial por ocasião do cumprimento dos mandados de busca e apreensão.

(...)

Observe-se o art. 245 do Código de Processo Penal, ficando desde logo autorizada a entrada forçada nos imóveis, bem como o arrombamento de portas e cofres, em caso de resistência ao cumprimento do mandado.

Destaco que, nos termos do §5º, do artigo 282, do CPP, as medidas cautelares diversas à prisão ora impostas poderão ser eventualmente revistas ou adequadas em caso de surgimento de elementos concretos e pormenorizados que possam levar a uma conclusão em sentido contrário daquela acima exposta.

Mantenho as demais determinações estipuladas na decisão proferida no id. 53206170, em especial as autorizações para: (i) participação de representantes do Tribunal de Contas da União no cumprimento das diligências e compartilhamento de provas coligidas, para fins de análise conjunta do material apreendido; (ii): realização de perícia nos equipamentos de informática apreendidos, observada a privacidade dos investigados no que se refere a fatos estranhos ao inquérito; (iii) devolução de documentos e de equipamentos de informática aos investigados e/ou seus advogados, após serem examinados, após certificação pela autoridade policial quanto à ausência de interesse para as investigações.

Adicionalmente, considerando o vencimento do prazo dos mandados de busca e apreensão expedidos por força da decisão proferida no id. 53206170, e, inalteradas as razões pelo deferimento das medidas, faz-se necessária a renovação dos mandados. Expeçam-se, portanto, os mandados de busca e apreensão, com prazo de 60 (sessenta) dias para cumprimento, nos endereços indicados pela autoridade policial no id. 57727687, fl. 4 (considerando as diligências para atualização de endereços de alguns dos investigados abrangidos pela decisão lançada no id. 53206170).

Comunique-se à Polícia Federal e Ministério Público Federal sobre o teor desta decisão.

A fim de assegurar a efetividade das investigações, a intimação dos investigados deverá ser realizada somente após a deflagração da fase ostensiva com a realização das buscas deferidas por este Juízo. (destaques do original, Id n. 206633627)

 

Em 17 de setembro do corrente ano, em pedido de reconsideração, o Magistrado de origem indeferiu a revogação das medidas nos seguintes moldes:

 

Trata-se de requerimento formulado pela defesa de Lamia Smaili, Gotham Burguer e Ice Cream Eireli e Kaled Smaili, para revogação das medidas restritivas impostas pela decisão proferida no id 5772857.

Afirma-se, em síntese, que:

“Data máxima vênia, com elevado respeito, diante do apontado e comprovado neste pedido, reestabelecendo-se a verdade dos fatos, constatando-se que os Suplicantes não se envolveram e nem praticaram qualquer irregularidade e ou infração penal, difusamente aliás, e que apenas celebraram regular contrato de prestação de serviços junto ao Poder Público Municipal, restando-o efetivamente, clama-se sejam REVOGADAS as medidas restritivas impostas, seja pela ausência de condição sine qua non necessário – indícios de autoria e materialidade de crime, seja falta absoluta de justa causa, necessidade e especialmente porque extemporâneas”.

 

Instado a se manifestar, o Ministério Público Federal requer a manutenção das medidas impostas, aduzindo, também em suma:

 

“Por essa razão, o perigo, no presente caso, traduz-se, principalmente, na manutenção da relação dos envolvidos no esquema criminoso com esses órgãos e estruturas públicas, vínculos que a decretação das medidas cautelares em análise visou romper, com o fim de impedir a continuidade e a reiteração das práticas criminosas. Há, portanto, contemporaneidade a justificar a manutenção das medidas fixadas e elementos suficientes a demonstrar a gravidade concreta da situação fática, a qual não foi esvaziada pelo decurso do tempo. Logo, as medidas cautelares foram corretamente decretadas, impedindo a contratação com o Poder Público, direta ou indiretamente, e proibindo os investigados de deixar o País, com o objetivo de cessar a prática criminosa, evitar a reiteração e o comprometimento mais profundo do erário com práticas escusas que já representaram a malversação de grandes quantias em dinheiro.

3. Conclusão É de todo esse contexto que se extrai a pertinência, isto é, a necessidade e a adequação das medidas decretadas pelo juízo, cuja manutenção é imperiosa no presente caso, NÃO devendo ser acolhido o pleito deduzido pelos investigados na Id. 76937859, salientando-se que não houve alteração alguma no panorama fático, desde a decretação das cautelares, que seja capaz de alterar os fundamentos da decisão proferida no Id. 57728573.”

 

DECIDO

A concessão das medidas cautelares pressupõe indícios de materialidade e autoria (fumus comissi delicti), bem como a observância dos requisitos dispostos nos incisos I e II, do artigo 282, do CPP, quais sejam: necessidade da medida para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais, bem como adequação à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

De acordo com as investigações apresentadas pela Autoridade Policial (id 40445572), tem-se no caso vertente que:

 

“A Gothan Burguer e Ice Cream Eireli, CNPJ 35.403.733/0001-51 foi contratada pela prefeitura de Guarulhos (Contrato nº 1202/2020-FMS), para fornecer alimentos aos colaboradores do Hospital de Campanha do município, embora já houvesse contrato nesse sentido firmado com o IMEDIS (sobreposição de contrato). Como visto, o quadro probatório aponta para um possível redirecionamento para a empresa Gothan Burguer, cuja proprietária é irmã de pessoa muito próxima do atual prefeito. De mais a mais, a empresa não apresentou documentação exigida pela Prefeitura, mas mesmo assim o contrato foi formalizado sem qualquer questionamento. Vale lembrar que a contratação pela Prefeitura de Guarulhos de hamburgueria temática do personagem Batman situada em shopping center, sem qualquer experiência anterior junto à administração pública e com apenas 4 meses de funcionamento para fornecer alimentação em Hospital de Campanha ganhou destaque negativo da mídia (v. relatório apresentado pelo TCU). Além disso, há processos sobre a contratação no TCE-SP (00014385.989.20-7 e 00014968.989.20-2) e no Poder Judiciário (Ação Popular 1015826-61.2020.8.26.0224, em trâmite na 2ª Vara da Fazenda Pública de Guarulhos).”

 

A r. decisão proferida no id 57728573 determinou a aplicação de medidas cautelas alternativas à prisão, nos seguintes termos:

 

c) Das medidas cautelares alternativas à prisão

As medidas cautelares pessoais alternativas à prisão, como visto acima, pressupõem além dos indícios de materialidade e autoria (já examinados), a demonstração de que são necessárias à tutela dos seguintes bens jurídicos indicados no artigo 282 do Código de Processo Penal, quais sejam: (i) o resguardo da apuração dos fatos, sob a ótica da conveniência da investigação ou da instrução do processo, e da aplicação da lei penal; (ii) a garantia da ordem pública ou econômica, sobretudo para evitar o risco de reiteração criminosa ou à higidez do sistema econômico/financeiro.

Das diversas medidas restritivas veiculadas na representação policial, identifico que apenas duas delas têm aptidão para resguardar alguma das finalidades indicadas acima, quais sejam: (a) proibir os investigados – e as pessoas jurídicas das quais são sócios - de firmar contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente; (b) proibir os investigados de se ausentarem do país, devendo entregar os passaportes de todas as nacionalidades que possuam;

Isso porque, como visto acima, a gravidade em concreto das ilicitudes alegadamente praticadas pelos réus é demonstrada pelos elevados valores dos contratos firmados com a municipalidade. Considerada apenas as contratações públicas investigadas nestes autos, o montante atinge R$ 712.800,00. Caso somada às demais investigações autuadas sob os números 5008050-80.2020.4.03.6119 e 5008127-89.2020.4.03.6119, que tratam de pedidos de busca e apreensão e outras medidas cautelares formulados a partir de investigações semelhantes, envolvendo irregularidades em contratações pelo Município de Guarulhos, o montante ultrapassaria 50 milhões de reais.

Assim, dada a gravidade dos fatos sob investigação e os indícios existentes em relação aos investigados (analisados acima), a intervenção cautelar mostra-se não apenas necessária para evitar a reiteração delitiva e minimizar os danos ao erário público, mas adequada às condições pessoais dos agentes, segundo critério de proporção entre os crimes e as medidas restritivas impostas (artigo 282, II, do Código de Processo Penal).

Por outro lado, as demais medidas pleiteadas se mostram ora excessivas, ora impertinentes ao alcance das finalidades indicadas acima.

Justifico.

Em relação às cautelares relativas à proibição de acesso a determinadas repartições públicas e de manter contato com funcionários públicos, trata-se de medida que pressupõe risco concreto à atividade investigatória/instrutória, elemento que não foi demonstrado pela autoridade policial. Não bastasse isso, há outras medidas capazes de resguardar a coleta de provas, quais sejam a busca e apreensão (já deferida em decisão anterior) e, como será visto abaixo, a quebra de seu sigilo telemático.

Por razões semelhantes, não vislumbro risco suficiente à aplicação da lei penal a ensejar a aplicação das medidas de proibição de mudar de residência e/ou de comparecimento mensal em juízo, sendo certo que a proibição de viagem ao exterior cumulada com a retenção dos passaportes poderá alcançar os mesmos objetivos com menores restrições.

Por fim, considerando a proibição de contratar com a Administração Pública deferida acima, reputo desnecessária, por ora, a suspensão do exercício de função pública por parte dos investigados. Isso porque, ao contrário da situação registrada à época dos fatos, quando ao menos dois dos investigados ocupavam cargos na alta cúpula do Executivo Municipal, atualmente nenhum desempenha função com aptidão para facilitar a prática dos crimes sob investigação. Especificamente em relação ao investigado JOSÉ MARIO STRANGHETTI CLEMENTE, que possui cargo de médico pela prefeitura de Guarulhos, faz-se oportuno frisar que, diferentemente do cargo de Secretário Municipal da Saúde, a função atualmente exercida não lhe assegura qualquer contato direto com os gestores públicos. Logo, se o risco que se busca conter é representado pela possível influência do investigado sobre testemunhas e na apuração dos fatos junto aos órgãos municipais, é certo que a mera suspensão da sua atuação como médico é indiferente para tanto.

Como é da natureza das medidas cautelares, a evolução das apurações poderá apresentar elementos capazes de alterar as medidas fixadas, seja para suprimi-las, seja para recrudescê-las.

Assim, com fulcro no artigo 319 do Código de Processo Penal, é adequada e proporcional a fixação das seguintes cautelares a cada um dos investigados (sendo a primeira delas extensível inclusive às pessoas jurídicas):

a. proibição de firmar contratos com a Administração Pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente

b. proibição de deixar o País, devendo entregar o(s) seu(s) passaporte(s) à autoridade policial por ocasião do cumprimento dos mandados de busca e apreensão.”

 

Diante de tal panorama, não identifico, na argumentação trazida pelos requerentes no pedido do id 76937859, motivo para revogação das medidas cautelares impostas.

Como se nota, os requerentes trazem em verdade sua inocência como argumento central em favor do levantamento das restrições, mas a existência ou não de culpa deve ser aferida ao longo da instrução processual, revelando-se prematura qualquer medida pelo Juízo, neste momento, que pressuponha declaração de inexistência do crime investigado pela Polícia Federal.

Há que se aguardar o desenvolvimento do devido processo legal e, até que isso aconteça, permanecem presentes os fundamentos da decisão proferida no id 27728573 dos autos.

Isso posto, INDEFIRO o pedido de revogação das restrições impostas a LAMIA SMAILI, GOTHAM BURGUER E ICE CREAM EIRELI e KALED SMAILI. (destaques do original, Id n. 206633932)

 

De acordo com as informações extraídas dos autos os pacientes estavam vinculados, à época dos fatos, à empresa Gothan Burguer e Ice Cream Eireli, CNPJ 35.403.733/0001-51.

Consoante excerto da manifestação do MPF extraída da decisão de Id n. 206633932, a decretação das medidas cautelares em análise visou romper o vínculo dos envolvidos no esquema criminoso com esses órgãos e estruturas públicas, com o fim de impedir a continuidade e a reiteração das práticas criminosas, cessar a prática criminosa, evitar a reiteração e o comprometimento do erário mediante práticas escusas de malversação de grandes quantias em dinheiro. Ademais, presente a contemporaneidade a justificar a manutenção das medidas fixadas e elementos suficientes a demonstrar a gravidade concreta da situação fática, a qual não foi esvaziada pelo decurso do tempo. Conclui que há necessidade e adequação das medidas impostas, notadamente a proibição de contratar com o Poder Público.

As decisões, a que determinou as cautelares e a que as manteve, foram devidamente fundamentadas e descreveram as condutas e suas possíveis consequências para os cofres da Municipalidade e da União, não havendo que se cogitar de falta de fundamentação.

Quanto à alegação de que a empresa Gotham Burguer, ainda que tenha iniciado as suas atividades à, tão-somente, quatro meses anteriormente aos fatos, apresentou a proposta mais vantajosa, há que considerar que a representação da Autoridade Policial refere que a Supera Alimentação, a outra pessoa jurídica que se manifestou quanto ao Ofício 164/2020-SS, por meio do qual a Municipalidade de Guarulhos (SP) solicitou proposta para prestação de serviços de alimentação, apresentou cotação de maior valor que a empresa Gotham Burguer, mas o Tribunal de Contas da União apontou que a suposta proposta apresentava ausência de data, assinatura e identificação do responsável pela proposta.

O Código de Processo Penal, em seu art. 319, VI, acrescentado pela Lei n. 12.403, de 04.05.11, inclui dentre as medidas cautelares a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais. A dificuldade na aplicação desse dispositivo consiste no risco de, indiretamente, violar direito ao livre exercício de atividade econômica, por sua vez considerado um direito social (CR, art. 170, caput e parágrafo único), que pode ser exercido desembaraçadamente, salvo casos previstos em lei.

Não obstante tais dificuldades, a circunstância de os pacientes exercerem a profissão de empresários não os torna refratários às medidas cautelares, mesmo porque foi imposta uma limitação parcial à atividade econômica, dada a gravidade dos fatos investigados e não foi comprovado que a empresa esteja sob eventual risco de sobrevivência pela impossibilidade de angariar clientes junto ao Setor Público, tanto mais que constituída há não muito tempo, dentro de um centro comercial (shopping center) e especializada em lanches, ou seja, hambúrgueres, portanto vocacionada ao atendimento do público privado, que, ainda assim, foi contratada sem qualquer tipo de concorrência, de forma que, tampouco, há que falar em afronta aos princípios de continuidade da empresa, livre concorrência, dignidade da pessoa humana, entre outros..

Outrossim, como referem as decisões acima mencionadas, a investigação apresenta diversos fatos que precisam ser objeto de apuração mais aprofundada e que não restam esclarecidos, como, por exemplo, a sobreposição de contratos entre a empresa objeto do inquérito em tela e o Instituto Medizin de Saúde (IMEDIS), cujo contrato de gestão do Hospital de Campanha, em tese, já abrigaria a necessidade de prover a alimentação dos colaboradores, bem como não consta existir a oitiva dos ora pacientes e de outros envolvidos, o que pode, a depender do desenvolvimento das investigações, resultar no afastamento pelo Juízo impetrado das medidas ora combatidas, ou seja, sem o deslinde da investigação em pauta remanesce o interesse na manutenção das medidas cautelares impostas.

No mesmo sentido, manifestou-se a Procuradoria Regional da República:

 

Os impetrantes trazem à baila diversos argumentos de ordem fática para argumentar ausência de materialidade delitiva e justificar a revogação das restrições impostas. Entretanto, a análise de tais fatos é inviável na via estreita do writ.

Com efeito, é cediço na jurisprudência do Col. STJ que a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão não exigem o mesmo juízo de certeza àquele utilizado para a prolação de sentença penal condenatória, sendo inviável a análise, no âmbito restrito d o habeas corpus, de teses que, por sua própria natureza, demandam dilação probatória. Dessa forma, as provas dos autos devem ser apreciadas durante a instrução criminal, sob o crivo do contraditório, não sendo esta a via adequada para a sua revisão. Nesse sentido:

(...)

Correta, portanto, a r. decisão da autoridade impetrada, que deferiu a representação policial para decretar medidas cautelares diversas da prisão, consistentes em (a) proibição de firmar contratos com a administração pública de qualquer ente federativo, direta ou indiretamente e (b) proibição de deixar o País, com a retenção de passaportes.

Anote-se que a proibição de deixar o país, com a retenção de passaportes, é medida prevista no art. 320 do CPP, acima transcrito.

Quanto à proibição de firmar contratos com a administração pública, tal medida nada mais é do que uma limitação parcial da atividade econômica, prevista no art. 319, VI, do CPP, sendo que foi aplicada, na espécie, de modo devidamente fundamentado, revelando-se cautela adequada, tendo em vista a necessidade de obstar novas práticas criminosas.

Aduzem os impetrantes, ainda, que a medida se traduz em perigo de falência das empresas particulares pertencentes aos pacientes, tornando-se ainda mais evidente ao passo que o setor privado tem se recuperado lentamente da crise provocada pela pandemia da COVID19.

Entretanto, à míngua de prova em contrário, a proibição de contratar com o Poder Público não representa risco à sobrevivência das empresas dos pacientes, pois não as impede de exercer suas atividades econômicas, contratando com outros clientes que não o poder público.

(...)

Não se vislumbra, portanto, qualquer ilegalidade ou abuso de poder no ato praticado pela autoridade impetrada.

III – CONCLUSÃO

Em face de todo o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL manifesta-se pela DENEGAÇÃO da ordem de habeas corpus, nos termos acima expendidos. (Id n. 216638588, pp. 11/15)

 

Portanto, a investigação apresenta fatos que demandam apuração mais aprofundada, inclusive com possível oitiva do ora paciente, remanescendo o interesse na manutenção das medidas cautelares impostas, haja vista o interesse em impedir futuras situações prejudiciais ao Erário.

Ante o exposto, DENEGO a ordem de habeas corpus.

É o voto.



E M E N T A

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. MEDIDA CAUTELAR PENAL. PROIBIÇÃO DE CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO E RETENÇÃO DE PASSAPORTE. SUSPEITA DE COMETIMENTO DOS DELITOS PREVISTOS NO ART. 312 DO CÓDIGO PENAL C. C. OS ARTS. 89 E 90 DA LEI N. 8.666/93 E ARTS 288, 317 E 333, TODOS DO CÓDIGO PENAL. NECESSIDADE DE EVITAR A REITERAÇÃO DELITIVA. POSSIBILIDADE.

1. As decisões, a que determinou as cautelares e a que as manteve, foram devidamente fundamentadas e descreveram as condutas e suas possíveis consequências para os cofres da Municipalidade e da União, não havendo que se cogitar de falta de fundamentação.

2. O Código de Processo Penal, em seu art. 319, VI, acrescentado pela Lei n. 12.403, de 04.05.11, inclui dentre as medidas cautelares a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais. A dificuldade na aplicação desse dispositivo consiste no risco de, indiretamente, violar direito ao livre exercício de atividade econômica, por sua vez considerado um direito social (CR, art. 170, caput e parágrafo único), que pode ser exercido desembaraçadamente, salvo casos previstos em lei.

3. A circunstância de os pacientes exercerem a profissão de empresários não os torna refratários às medidas cautelares, mesmo porque foi imposta uma limitação parcial à atividade econômica, dada a gravidade dos fatos investigados e não foi comprovado que a empresa esteja sob eventual risco de sobrevivência pela impossibilidade de angariar clientes junto ao Setor Público, tanto mais que constituída há não muito tempo, dentro de um centro comercial (shopping center) e especializada em lanches, ou seja, hambúrgueres, portanto vocacionada ao atendimento do público privado, que, ainda assim, foi contratada sem qualquer tipo de concorrência, de forma que, tampouco, há que falar em afronta aos princípios de continuidade da empresa, livre concorrência, dignidade da pessoa humana, entre outros.

4. A investigação apresenta diversos fatos que precisam ser objeto de apuração mais aprofundada e que não restam esclarecidos, como, por exemplo, a sobreposição de contratos entre a empresa objeto do inquérito em tela e o Instituto Medizin de Saúde (IMEDIS), cujo contrato de gestão do Hospital de Campanha, em tese, já abrigaria a necessidade de prover a alimentação dos colaboradores, bem como não consta existir a oitiva dos ora pacientes e de outros envolvidos, o que pode, a depender do desenvolvimento das investigações, resultar no afastamento pelo Juízo impetrado das medidas ora combatidas, ou seja, sem o deslinde da investigação em pauta remanesce o interesse na manutenção das medidas cautelares impostas.

5. A investigação apresenta fatos que demandam apuração mais aprofundada, inclusive com possível oitiva do ora paciente, remanescendo o interesse na manutenção das medidas cautelares impostas, haja vista o interesse em impedir futuras situações prejudiciais ao Erário

6. Ordem de Habeas Corpus denegada.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Turma, por unanimidade, decidiu, DENEGAR a ordem de habeas corpus, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.