Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5008327-46.2017.4.03.6105

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, ESTADO DE SAO PAULO, COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SAO PAULO

Advogados do(a) APELANTE: SANDRA MARA PRETINI MEDAGLIA - SP107073-A, MARCELA BENTES ALVES BAPTISTA - SP209293-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5008327-46.2017.4.03.6105

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, ESTADO DE SAO PAULO, COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SAO PAULO

Advogados do(a) APELANTE: SANDRA MARA PRETINI MEDAGLIA - SP107073-A, MARCELA BENTES ALVES BAPTISTA - SP209293-A
APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

Trata-se de apelações e remessa oficial à sentença que, em ação civil pública ambiental ajuizada pelo Ministério Público Federal, confirmou, em parte, tutela de urgência e julgou parcialmente procedente o pedido para “(1) condenar a CETESB e o Estado de São Paulo à abstenção da concessão de novas licenças ambientais e autorizações para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar na área desta Subseção Judiciária de Campinas, a partir da safra de 2019, sem licenciamento específico que compreenda a elaboração de estudo de impacto ambiental (EIA) e relatório de impacto ao meio ambiente (RIMA) que contemplem as consequências da atividade em questão para a saúde humana e, especificamente, do trabalhador, para as áreas de preservação permanente, para os remanescentes florestais, para a atmosfera, para a temperatura global, para a flora e para a fauna, bem assim incluam os procedimentos de levantamento, monitoramento, salvamento, resgate e destinação de animais; (2) condenar a CETESB e o Estado de São Paulo, diretamente e/ou com o auxílio da polícia militar ambiental, ao cadastramento de todas as propriedades rurais ocupadas com a cultura canavieira e à verificação do atendimento das prescrições deferidas por este Juízo; (3) condenar a CETESB e o Estado de São Paulo a realizarem campanha de divulgação das novas normas atinentes à autorização para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar na área compreendida por esta Subseção Judiciária de Campinas; (4) condenar o IBAMA à fiscalização supletiva dos danos provocados à fauna silvestre pela prática da queima na área compreendida por esta Subseção Judiciária de Campinas, na forma da Lei nº 5.197/67 e da Instrução Normativa IBAMA nº 146/2007, com a adoção das providências necessárias a evitar a destruição em massa de espécimes” (grifos do original).

Apelou o Estado de São Paulo, alegando, em suma, que: (1) a paralisação abrupta no meio do período de colheita da safra corrente gera lesão grave e irreversível à economia pública, além de provocar risco à saúde e vida dos catadores de cana, já que as palhas secas são altamente inflamáveis; (2) o incômodo da queimada é sazonal e esporádico; (3) a legislação federal e estadual permite queima controlada, que é autorizada e fiscalizada pelo Estado conforme parâmetros e critérios legais, com adoção de providências necessárias para mitigação dos efeitos decorrentes; (4) não há necessidade do custoso e moroso EIA/RIMA, havendo outras formas de licenciamento e fiscalização, mais adequadas, específicas, céleres e eficazes; (5) a exigência de EIA/RIMA traria consequências negativas à produção canavieira, levando à perda de safra dos produtores rurais; e (6) “pode-se arguir a ilegitimidade passiva ad causam do Estado, haja vista a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - CETESB [...], o órgão ambiental licenciador estadual, integrante do SISNAMA, responsável pela emissão de autorizações/licenças ambientais”.

Apelou também a CETESB, alegando que: (1) é inadequada a via eleita, diante da impossibilidade de ação civil pública como meio de controle de constitucionalidade em tese, faltando interesse processual ao autor; (2) não há qualquer fundamento legal para cogitar da inconstitucionalidade do Decreto 2.661/1998, que ampara a queima controlada da palha de cana-de-açúcar em certas hipóteses; (3) é desnecessária a elaboração de EIA/RIMA para autorizar queima controlada da palha, pois não se trata de obras ou atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente, cabendo ao órgão ambiental verificar o cabimento; (4) existe controle ambiental específico para a atividade, com adoção de medidas mitigadoras de danos provocados; e (5) não há usurpação de competência, omissão ou desvio de atribuições pelo Estado de São Paulo ou CETESB no trato da atividade a justificar deslocamento do encargo fiscalizatório ao IBAMA.

Apelou, ainda, o IBAMA, alegando que: (1) o Juízo é absolutamente incompetente, pois suposto conflito de competência entre autarquia federal e Estado-membro deve ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal; (2) o pedido ainda é juridicamente impossível, inexistindo previsão legal a obrigar a autarquia a fiscalizar e realizar campanhas de divulgação relativas à queima controlada de palha de cana-de-açúcar, o que, inclusive, implica violação ao princípio federativo; (3) não tem legitimidade passiva, não sendo responsável pelas licenças expedidas pela CETESB, objeto do pedido de nulidade; (4) além de não ter atribuição, não possui recursos financeiros, humanos e materiais, ou mesmo logística para a fiscalização da atividade; (5) no caso de omissão ou má atuação do órgão estadual, a competência é exclusiva do Estado-membro, não existindo previsão na LC 140/2011 de competência supletiva do IBAMA por omissão estadual; (6) não cabe ao Poder Judiciário interferir no mérito dos critérios técnicos adotados para avaliação do impacto ambiental, sob pena de ofensa à separação de poderes; (7) a competência para licenciar do IBAMA, prevista no artigo 7º, XIV, LC 140/2011, não contempla a hipótese pleiteada pelo parquet, sendo a queima controlada da palha da cana-de-açúcar questão local, preponderantemente; e (8) é prescindível EIA/RIMA para a queima da palha de cana-de-açúcar, não sendo, inclusive, instrumento adequado de análise dos impactos decorrentes de tal atividade.

Houve contrarrazões.

Os autos foram redistribuídos da 2ª Turma para esta Turma.

Não houve parecer ministerial nesta instância (ID 138835773).

É o relatório. 

 

 


APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5008327-46.2017.4.03.6105

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, ESTADO DE SAO PAULO, COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SAO PAULO

Advogados do(a) APELANTE: SANDRA MARA PRETINI MEDAGLIA - SP107073-A, MARCELA BENTES ALVES BAPTISTA - SP209293-A
APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

  

 

V O T O

 

 

Senhores Desembargadores, a presente ação civil pública objetiva, em suma, a declaração de nulidade das licenças ambientais expedidas pela CETESB e pelo Estado de São Paulo, a fim de impedir queimadas de plantação de cana-de-açúcar na região de Campinas, prática adotada para facilitar a colheita com eliminação da palha, o que causaria dano ambiental à coletividade regional. O pedido foi assim expresso (ID 138513707, f. 52/3):

 

“b)o julgamento de procedência dos pedidos, a fim de que:

b.1) sejam declaradas nulas todas as licenças e autorizações já expedidas pela CETESB e pelo ESTADO DE SÃO PAULO tendo como objeto autorização para a queima controlada da palha da cana-de-açúcar na área compreendida por esta Subseção, paralisando-se, de forma imediata, as atividades de queima, seja em razão da ausência de estudo de impacto ambiental prévio, seja devido à ausência de licenciamento com base nas normas válidas;

b.2) seja determinado à CETESB e ao ESTADO DE SÃO PAULO, através de sua Secretaria de Estado do Meio Ambiente, que se abstenham de conceder novas licenças ambientais e autorizações, tendo como objeto autorização para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar da área compreendida por esta Subseção sem o cumprimento das normas jurídicas relativas a exigência de licenciamento específico e de prévio estudo de impacto ambiental (EIA) e elaboração de relatório de impacto ao meio ambiente (RIMA), nos termos da Constituição Federal (art. 225), Lei n.º 6.938/81 e da Resolução n.º 237/97, do CONAMA. Caso haja pedido de licenciamento da referida atividade, que sempre se exija EIA/RIMA como condição para o licenciamento. Esse EIA/RIMA deverá ser abrangente, levando-se em consideração as consequências para a saúde humana, para a saúde do trabalhador, para áreas de preservação permanente, para os remanescentes florestais, para a flora e fauna, bem como as mudanças na atmosfera relacionadas ao efeito estufa e ao consequente aquecimento global. No tocante à fauna, requer-se sejam observadas, no que couber, as providências indicadas na Instrução Normativa n.º 146/2007, do IBAMA, especialmente os procedimentos de levantamento, monitoramento, salvamento, resgate e destinação da fauna;

b.3) seja determinado ao IBAMA a obrigação de exercer, de forma direta e efetiva, a fiscalização no tocante aos danos provocados a fauna silvestre pela prática da queima na área compreendida por esta Subseção, seguindo-se os trâmites da legislação nacional pertinente, mormente a Lei n.º 5.197/67 e a Instrução Normativa IBAMA n.º 146/2007, adotando as providências necessárias a fim de evitar a destruição em massa de espécimes;

b.4) seja determinado à CETESB e ao ESTADO DE SÃO PAULO que realize o cadastramento de todas as propriedades rurais ocupadas com a cultura canavieira, verificando se estão sendo cumpridas as prescrições deferidas pelo Juízo, diretamente e/ou com auxílio da POLÍCIA MILITAR AMBIENTAL;

b.5) Em caso de descumprimento da medida judicial em qualquer de suas circunstâncias, requer desde já a imposição de multa diária em valores a serem determinados segundo o prudente arbítrio judicial, mas não inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais);”

 

Preliminarmente, rejeita-se a alegação de que a via eleita não seria adequada, pois a inconstitucionalidade de norma é invocada, no caso, apenas como causa de pedir, e não como pedido principal. 

A propósito, assim tem decidido a instância superior: 

 

RE 424.993-6, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA. DJe 12/09/2007: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. OCUPAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS NO DISTRITO FEDERAL. PEDIDO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDER TANTUM DA LEI 754/1994 DO DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSO DO DISTRITO FEDERAL DESPROVIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL PREJUDICADO. Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal com pedidos múltiplos, dentre eles, o pedido de declaração de inconstitucionalidade incider tantum da lei distrital 754/1994, que disciplina a ocupação de logradouros públicos no Distrito Federal. Resolvida questão de ordem suscitada pelo relator no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade da lei 754/1994 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal não torna prejudicado, por perda de objeto, o recurso extraordinário. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que se pode pleitear a inconstitucionalidade de determinado ato normativo na ação civil pública, desde que incider tantum. Veda-se, no entanto, o uso da ação civil pública para alcançar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos erga omnes. No caso, o pedido de declaração de inconstitucionalidade da lei 754/1994 é meramente incidental, constituindo-se verdadeira causa de pedir. Negado o provimento ao recurso extraordinário do Distrito Federal e julgado prejudicado o recurso extraordinário ajuizado pelo Ministério Público do Distrito Federal”. 

 

AResp 1.852.426, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 31/08/2021: “PROCESSUAL CIVIL. CARGO EM COMISSÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA À REGRA DO CONCURSO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. POSSIBILIDADE. 1. Trata-se, na origem, de Ação Civil Pública em que se apontou, com fundamento na regra de concurso público, inconstitucionalidade na nomeação para o cargo em comissão de Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Casa Branca/SP. 2. Reformando a sentença que julgara os pedidos procedentes, o Tribunal de origem extinguiu o processo sem resolução do mérito (CPC, art. 485, VI), sob a seguinte fundamentação: ‘embora descrita como pedido incidental, a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos legais em tese caracteriza o objeto principal desta ação civil pública, sendo os demais pedidos suas consequências lógicas. Trata-se de pleito que deve ser deduzido em caráter de controle concentrado’ (fl. 533, e-STJ). 3. Inicialmente, deve-se assentar que o Recurso Especial merece conhecimento, porquanto nele se formula questionamento de natureza processual, estritamente jurídica, e que independe de interpretação de lei local. 4. Quanto ao mérito, ‘é pacífico o entendimento nesta Corte Superior no sentido de que a inconstitucionalidade de determinada lei pode ser alegada em ação civil pública, desde que a título de causa de pedir - e não de pedido - uma vez que, neste caso, o controle de constitucionalidade terá caráter incidental’ (AgRg, no REsp 1.106.972/RS, Relator Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 6.8.2009). Nesse sentido: REsp 419.781/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, Dje 19.11.2002; EREsp 439.539/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira Seção, DJ 28.10.2003; EResp 303.174/DF, Rel. Min. Franciulli Neto, Primeira Seção, DJ de 1.9.2003. 5. De acordo com essa orientação, ‘Não há óbice à propositura de ação civil pública fundada na inconstitucionalidade de lei, desde que a declaração de incompatibilidade com o texto constitucional seja causa de pedir, fundamento ou mera questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal, em torno da tutela do interesse público” (REsp 610.439/DF, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 1.9.2006, destacado). 6. Na mesma direção, ‘O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público [...] desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina’. (Rcl 1.898DF, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 6.8.2014, destacado). 7. No No caso, pediu-se na Petição Inicial: "seja julgada procedente a presente demanda, para o fim de declarar, de forma incidental, a inconstitucionalidade de todos os dispositivos de leis municipais, especialmente as previsões de cargos em comissão de Assessor Jurídico (Lei Complementar n° 02/2014) da Câmara Municipal, ou atos administrativos que declaram de livre provimento os referidos cargos Jurídicos, impondo à requerida as obrigações de fazer e não fazer, consistentes na proibição de nomeação ou contratação de novos servidores para o Jurídico e na exoneração de todos aqueles que ocupam cargos ou funções em comissão, no prazo de 06 (seis meses), sendo que a nomeação de novos servidores para tais cargos ou funções, a partir de tal data, somente pode ocorrer mediante concurso de provas e títulos, na forma prevista na Constituição Federal [...], além da responsabilidade pessoal da autoridade responsável pelo ato" (fl. 33, e-STJ). 8. Como se vê, embora tenha requerido provimento que viesse a "declarar [...] a inconstitucionalidade de todos os dispositivos de lei", o autor expressamente o requereu "de forma incidental". Deve, assim, o pedido ser interpretado de acordo com o conjunto da postulação (CPC, art. 322), sobretudo porque no caso foi postulada a imposição de concretas obrigações de fazer e não fazer, tudo a indicar que a admissão da Ação Civil Pública encontra amparo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.9. Agravo conhecido, para dar provimento ao Recurso Especial, com devolução dos autos à origem, a fim de que, reconhecida a admissibilidade da via eleita, tenha prosseguimento o julgamento.

 

Também não procede a incompetência absoluta da Justiça Federal, pois, como bem observou a sentença, “as causas e os conflitos entre União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta (alínea ‘f’, artigo 102, inciso I, da Constituição Federal), que atraem a competência do Supremo Tribunal Federal são aqueles em que esses entes atual como legitimados ordinários ou, em outros termos, em que disputam direitos defendidos como próprios em face uns dos outros, o que não ocorre na espécie”. De resto, não se vislumbra sequer, propriamente, conflito entre o Estado de São Paulo, CETESB e IBAMA, até porque, em muitos ponto, são convergentes os respectivos interesses, dirigidos à impugnação da pretensão ministerial, de forma direta ou indireta. 

As demais preliminares suscitadas, de ilegitimidade passiva do Estado de São Paulo e IBAMA, assim como de impossibilidade jurídica do pedido frente à autarquia federal, confundem-se com o mérito, a seguir analisado.

A controvérsia acerca do procedimento de queima da palha da cana-de-açúcar é complexa, por envolver, na definição da legislação aplicável e responsabilidade administrativa pelo licenciamento, tanto princípio como regras do regime federativo e, quanto ao "mérito" em si, a própria ponderação entre relevantes valores constitucionalmente tutelados.

Na espécie, não restou configurado nos autos o alcance regional do dano ambiental narrado para que, assim, se defina a competência do órgão federal para o controle de tais atividades, contra o que tem sido feito pelos órgãos estaduais de controle do meio ambiente.

Cabe observar, para tanto, que a queima da palha da cana-de-açúcar é fenômeno próprio de algumas regiões do Estado de São Paulo.

Não se equipara, por evidente, o patrimônio ambiental e ecológico representado pela Amazônia ou Pantanal, que abrangem mais de uma unidade federativa, com a plantação de cana-de-açúcar em algumas regiões dentro de um mesmo Estado. Ainda que possam atingir porções territoriais significativas, não se tem, a partir da situação descrita no processo, em curso em Campinas, a dimensão interestadual ou nacional do dano ambiental pela queima da palha da cana-de-açúcar, daí porque não ser possível excluir da competência administrativa do próprio Estado de São Paulo o licenciamento ambiental de tal procedimento.

Embora evidentemente caiba à União atuar nas relações internacionais, na condição de representante da Federação Brasileira (artigo 21, I, CF), disto não resulta, porém, que as atividades internas de execução e cumprimento do que foi convencionado em tratados internacionais sejam de responsabilidade exclusiva de órgãos federais. Assim porque não é o tratado internacional, mas, sim, a própria Constituição da República que se revela como fonte originária das regras estruturais de repartição de competência em nosso regime federativo.

E, neste sentido, o que prevê a Constituição Federal é que "Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas".

E mais, o regime de execução federativa de tal competência comum é orientado pelo princípio da cooperação (parágrafo único do artigo 23, CF), cada qual dos entes federativos, através de seus órgãos próprios, inclusive autarquias, atuando no campo próprio que lei, editada pelo Congresso Nacional, estabelecer a este propósito.

No campo da proteção ambiental, diante da própria competência concorrente para legislar sobre "florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição" (artigo 24, VI, CF), é federal a lei que trata de normas gerais, sem prejuízo da competência suplementar dos Estados (artigo 24, §§1º e 2º, CF).

Trata-se da Lei 6.938/1981, instituindo a Política Nacional do Meio Ambiente, que estabeleceu, a propósito da competência administrativa no campo da proteção ambiental, que "os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA" (artigo 6º, caput) e, ainda, que "os Estados, na esfera de suas competências e nas áreas de sua jurisdição, elaborarão normas supletivas e complementares e padrões relacionados com o meio ambiente, observados os que forem estabelecidos pelo CONAMA" (§ 1º).

A competência para licenciamento para atividades de risco efetivo ou potencial cabe, constitucional e legalmente, ao órgão estadual de proteção ao meio ambiente, sendo do IBAMA a competência meramente supletiva, na ausência de atuação daquele órgão, nos termos do artigo 10, § 3º, da Lei 6.938/81, na redação anterior à LC 140/2011.

O CONAMA, "no uso das atribuições e competências que lhe são conferidas pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e considerando a necessidade de ser estabelecido critério para exercício da competência para o licenciamento a que se refere o artigo 10 da referida lei", editou a Resolução 237/97, definindo que empreendimentos e atividades sujeitas a licenciamento ambiental seriam as citadas no Anexo I (artigo 2º), dentre as quais não se encontra a queima da palha de cana-de-açúcar. Ratificou, ainda, a competência do IBAMA e, mesmo assim, delegável aos Estados, para licenciamento de tais atividades, exclusivamente na hipótese em que impactos ambientais diretos delas decorrentes ultrapassarem os limites territoriais do país ou de um ou mais Estados (artigo 4º, III, e § 2º).

Confirmou, ainda, que a competência de licenciar empreendimentos e atividades é do órgão estadual de proteção do meio-ambiente, mesmo quando os impactos ambientais diretos decorrentes ultrapassarem os limites territoriais de um ou mais Municípios (artigo 5º, III), determinando, ainda, que "o órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento" (parágrafo único).

Quanto à prática da queimada, em si, dispôs o antigo Código Florestal (Lei 4.771/65, artigo 27) ser "proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação", salvo "se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, quando então a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução" (parágrafo único). O atual Código Florestal possui norma de semelhante teor (“Art. 38. É proibido o uso de fogo na vegetação, exceto nas seguintes situações: I - em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sisnama, para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle; [...]”).

O Estado de São Paulo, então, editou as Leis 10.547/2000 e 11.241/2002, proibindo emprego do fogo, salvo para atividades agrícolas, pastoris ou florestais, dentre as quais a queima controlada da palha de cana-de-açúcar, técnica a ser eliminada de forma gradativa. Na sua regulamentação, foi baixado o Decreto Estadual 45.869/2001, definindo hipóteses e procedimentos do método "despalhador" e "facilitador" do corte da cana-de-açúcar, mediante requerimento detalhado do interessado e sujeito à autorização ambiental.

O detalhamento da matéria é assim tratado pela legislação:

 

Lei 10.547, de 2 de maio de 2000:

“Da Permissão do Emprego do Fogo

Artigo 2º - Observadas as normas e condições estabelecidas por esta lei, é permitido o emprego do fogo em práticas agrícolas, pastoris ou florestais, mediante o que passa, a partir de agora, a ser qualificado como Queima Controlada.

Parágrafo único - Considera-se Queima Controlada o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agrícolas, pastoris ou florestais e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente definidos.

Artigo 3º - O emprego do fogo mediante Queima Controlada depende de prévia autorização, a ser obtida pelo interessado junto à Secretaria de Estado do Meio Ambiente, na qualidade de órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA ou, dependendo da região do Estado, autorização prévia fornecida por órgão ou instituição oficialmente designado pela Secretaria do Meio Ambiente para, em seu nome, assumir a responsabilidade de atuar como órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA.

Artigo 4º - Previamente à operação de emprego do fogo, o interessado na obtenção de autorização para Queima Controlada deverá:

I - definir as técnicas, os equipamentos e a mão-de-obra a serem utilizados;

II - fazer o reconhecimento da área e avaliar o material a ser queimado;

III - promover o enleiramento dos resíduos de vegetação, de forma a limitar a ação do fogo;

IV - preparar aceiros de no mínimo três metros de largura, ampliando esta faixa quando as condições ambientais, topográficas, climáticas e o material combustível a determinarem;

V - providenciar pessoal treinado para atuar no local da operação, com equipamentos apropriados ao redor da área, e evitar propagação do fogo fora dos limites estabelecidos;

VI - comunicar formalmente aos confrontantes a intenção de realizar a Queima Controlada, com o esclarecimento de que, oportunamente, e com a antecedência necessária, a operação será confirmada com a indicação da data, hora e início e do local onde será realizada a queima;

VII - prever a realização da queima em dia e horário apropriados, evitando-se os períodos de temperatura mais elevada e respeitando-se as condições dos ventos predominantes no momento da operação;

VIII - providenciar o oportuno acompanhamento de toda a operação de queima, até sua extinção, com vistas à adoção de medidas adequadas de contenção do fogo na área definida para o emprego do fogo.

§ 1º - O aceiro de que trata o inciso IV deste artigo deverá ter sua largura duplicada quando se destinar à proteção de áreas de florestas e de vegetação natural, de preservação permanente, de reserva legal, aquelas especialmente protegidas em ato do poder público federal, estadual ou municipal e de imóveis confrontantes pertencentes a terceiros.

§ 2º - Os procedimentos de que tratam os incisos deste artigo devem ser adequados às peculiaridades de cada queima a se realizar, sendo imprescindíveis aqueles necessários à segurança da operação, sem prejuízo da adoção de outras medidas de caráter preventivo.

Artigo 5º - Cumpridos os requisitos e as exigências previstas no artigo anterior, o interessado no emprego de fogo deverá requerer, por meio da Comunicação de Queima Controlada, junto à Secretaria do Meio Ambiente ou junto ao órgão competente, por ela designado para desempenhar suas responsabilidades como órgão do SISNAMA, a emissão de Autorização de Queima Controlada.

§ 1º - O requerimento previsto neste artigo será acompanhado dos seguintes documentos:

I - comprovante de propriedade ou de justa posse do imóvel, onde se realizará a Queima Controlada;

II - cópia da autorização de desmatamento e/ou de ação de manejo florestal quando se tratar de atividade florestal e nos casos em que tal documentação se fizer legalmente exigida;

III - Comunicação de Queima Controlada

§ 2º - Considera-se Comunicação de Queima Controlada o documento subscrito pelo interessado no emprego do fogo, mediante o qual ele dá ciência à Secretaria do Meio Ambiente ou ao órgão por ela determinado para desempenhar suas responsabilidades como órgão do SISNAMA, de que cumpriu os requisitos e as exigências previstas no artigo anterior e requereu a Autorização de Queima Controlada.

 

Lei 11.241, de 19 de setembro de 2002

Artigo 2.º - Os plantadores de cana-de-açúcar que utilizem como método de pré-colheita a queima da palha são obrigados a tomar as providências necessárias para reduzir a prática, observadas as seguintes tabelas:

ANO-ÁREA MECANIZÁVEL ONDE NÃO SE PODE EFETUAR A QUEIMA-PERCENTAGEM DE ELIMINAÇÃO DA QUEIMA

1º ano (2002)-20% da área cortada-20% da queima eliminada

5º ano (2006)-30% da área cortada-30% da queima eliminada

10º ano (2011)-50% da área cortada-50% da queima eliminada

15º ano (2016)-80% da área cortada-80% da queima eliminada

20º ano (2021)-100% da área cortada-Eliminação total da queima

§ 1.º - Para os efeitos desta lei consideram-se:

1 - áreas mecanizáveis: as plantações em terrenos acima de 150 ha (cento e cinqüenta hectares), com declividade igual ou inferior a 12% (doze por cento), em solos com estruturas que permitam a adoção de técnicas usuais de mecanização da atividade de corte de cana;

2 - áreas não mecanizáveis: as plantações em terrenos com declividade superior a 12% (doze por cento), em demais áreas com estrutura de solo que inviabilizem a adoção de técnicas usuais de mecanização da atividade de corte de cana.

§ 2.º - Aplica-se o disposto neste artigo às áreas de cada imóvel rural, independentemente de estar vinculado a unidade agroindustrial.

§ 3.º - As áreas cultivadas em que se deixar de empregar o fogo poderão ser substituídas por outras áreas cultivadas pelo mesmo fornecedor ou pela mesma unidade agroindustrial, desde que respeitado o percentual estabelecido no "caput" deste artigo.

Artigo 3.º - Os canaviais plantados a partir da data da publicação desta lei, ainda que decorrentes da expansão dos então existentes, ficarão sujeitos ao disposto no Artigo 2º.

Parágrafo único - Não se considera expansão a reforma de canaviais existentes anteriormente à publicação desta lei.

Artigo 4.º - Não se fará a queima da palha da cana-de-açúcar a menos de:

I - 1 (um) quilômetro do perímetro da área urbana definida por lei municipal e das reservas e áreas tradicionalmente ocupadas por indígenas;

II - 100 (cem) metros do limite das áreas de domínio de subestações de energia elétrica;

III - 50 (cinquenta) metros contados ao redor do limite de estação ecológica, de reserva biológica, de parques e demais unidades de conservação estabelecidos em atos do poder federal, estadual ou municipal e de refúgio da vida silvestre, conforme as definições da Lei federal n. 9.985, de 18 de julho de 2000;

IV - 25 (vinte e cinco) metros ao redor do limite das áreas de domínio das estações de telecomunicações; 

V - 15 (quinze) metros ao longo dos limites das faixas de segurança das linhas de transmissão e de distribuição de energia elétrica;

VI - 15 (quinze) metros ao longo do limite das áreas de domínio de ferrovias e rodovias federais e estaduais

Parágrafo único - A partir dos limites previstos nos incisos anteriores, deverão ser preparados, ao redor da área a ser submetida ao fogo, aceiros de, no mínimo, 3 (três) metros, mantidos limpos e não cultivados, devendo a largura ser ampliada, quando as condições ambientais, incluídas as climáticas, e as condições topográficas exigirem tal ampliação.

 

Percebe-se, pois, a partir das regras aplicáveis ao caso concreto, que a competência da autarquia federal para concessão de licenças para queima da palha de cana-de-açúcar na região de Campinas somente existiria, de forma precípua, se o método causasse impactos ambientais diretos de âmbito regional ou nacional, ou, de forma supletiva, se houvesse omissão na atuação estadual.

Entretanto, nenhuma de tais hipóteses foi provada nos autos, de modo a respaldar a pretensão formulada na ação civil pública em exame. 

Nem se alegue que a atuação do IBAMA estaria justificada pela necessidade de proteção da saúde, Sistema Único de Saúde, fauna, flora e outros bens jurídicos de interesse federal. Primeiramente, o órgão de fiscalização ambiental não pode responder pela proteção da saúde ou do SUS e, em segundo lugar, a repartição constitucional e legal de competência existe para, justamente, definir os limites de atuação cooperativa entre órgãos federais, estaduais, distritais e municipais, não sendo permitido ao ente federal, apenas por sua condição central, invadir a competência de outros entes federados sem que se esteja diante das hipóteses específicas de atuação supletiva ou intervenção.

Quanto ao EIA/RIMA, a Constituição Federal, no inciso IV, § 1º, do artigo 225, previu que a exigência de realização de estudo prévio de impacto ambiental estaria condicionada à reserva de lei. Por sua vez, a lei federal (artigo 27, parágrafo único do revogado Código Florestal e artigo 38, I, do atual) não previu necessidade da realização de prévio estudo de impacto ambiental no caso da "queima controlada", mas apenas, por decreto, de prévia vistoria no caso de solicitação de autorização para uso do fogo em áreas "que contenham restos de exploração florestal [...] limítrofes às sujeitas a regime especial de proteção, estabelecido em ato do poder público".

A dispensa de estudo prévio, porém, não se revela, em princípio, inconstitucional. Neste sentido, o parâmetro da desproporcionalidade ou da ofensa ao princípio da proibição de excesso não favorece a pretensão ministerial. No caso, são invocados dois grandes valores constitucionalmente tutelados, dentre outros: a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento econômico. Embora não seja perfeita, a equação legal parece equilibrar dentro do possível tais bens jurídicos, a partir do modelo adotado de queima controlada, pois ainda que atividade gere poluição com efeitos sobre o meio ambiente, existe uma estrutura organizada de atividade econômica e social que não pode ser ignorada.

Note-se, por outro lado, que a adequação da atividade econômica encontra-se em curso, pois o Decreto 2.661/1998 prevê a redução gradativa do emprego de fogo, o que denota, portanto, que a preocupação ambiental encontra-se presente, porém, a supressão repentina da queima da cana-de-açúcar poderia representar grave prejuízo ao desenvolvimento econômico. Tal decreto prevê, ainda, medidas necessárias para evitar graves danos ao meio ambiente:

 

"Art 14. A autoridade ambiental competente poderá determinar a suspensão da Queima Controlada da região ou município quando:

I - constatados risco de vida, danos ambientais ou condições meteorológicas desfavoráveis;

II - a qualidade do ar atingir índices prejudiciais à saúde humana, constatados por equipamentos e meios adequados, oficialmente reconhecidos como parâmetros;

III - os níveis de fumaça, originados de queimadas, atingirem limites mínimos de visibilidade, comprometendo e colocando em risco as operações aeronáuticas, rodoviárias e de outros meios de transporte.

Art 15. A Autorização de Queima Controlada será suspensa ou cancelada pela autoridade ambiental nos seguintes casos:

I - em que se registrarem risco de vida, danos ambientais ou condições meteorológicas desfavoráveis;

II - de interesse e segurança pública;

III - de descumprimento das normas vigentes".

 

A propósito, destacou a CETESB a existência de sistemática consolidada específica para emissão de autorização da queima da palha de cana-de-açúcar, nos termos da legislação estadual (ID 138514047, f. 33/36):

 

“[...] para atender à legislação que regulamenta a atividade em discussão no Estado de São Paulo (em especial a lei nº 11.241/2002, regulamentada pelo Decreto nº 47.700/2003), os interessados devem cumprir as exigências relacionadas a duas etapas:

A primeira relativa ao envio dos requerimentos de queima das propriedades com área de cultivo a ser colhida na próxima safra, momento em que o interessado apresenta informações relativas às características de cada fundo agrícola. Os requerimentos de queima devem ser apresentados até o dia 02 de abril, impreterivelmente, conforme art. 8º da Lei 11.241 de 19 de setembro de 2002. Após sua apresentação, o requerimento passa por um processo de análise, com base no atendimento das metas de redução de queima  e restrições estabelecidas na referida Lei e em seu regulamento - Decreto nº 47.700/2003 -, e na conformidade com as diretivas do Protocolo Agroambiental para o Setor Sucroalcooleiro. 

Ainda, após essa avaliação devem ser atendidas as exigências para que o mesmo seja validado: recolhimento do custo de análise (para propriedades com área total maior ou igual a 100 hectares), cadastro de parcelas e apresentação do mapa digital com os limites dos talhões de colheita da cana-de-açúcar na safra em curso (ambos para todas as propriedades das unidades agroindustriais e para as propriedades de fornecedores com área total maior ou igual a 150 hectares). 

Verificado o atendimento a todas as exigências acima referidas, o sistema emite o NIC (número de identificação e controle), que permite ao interessado realizar a segunda etapa, relacionada às comunicações de queima para cada um dos talhões (parcelas) de cultivo das propriedades com requerimento de queima validado. 

As comunicações de queima, por seu turno, devem ser realizadas com 96 horas de antecedência e têm validade de 72 horas a partir da data/hora prevista para o evento da queima. O protocolo de queima gerado após a efetivação da comunicação da queima é o documento que, de fato, autoriza a sua realização.

É certo, ainda, que os interessados devem atentar para a questão do monitoramento da umidade relativa do ar (estabelecido pela Resolução SMA 22, de 30 de maio de 2011), realizado diariamente. Referido monitoramento se constitui em verdadeira condição para a efetiva validade de um protocolo de queima emitido no portal “Eliminação Gradativa da Queima da Palha de Cana-de-Açúcar’. Deste modo, o protocolo de queima só terá validade se as condições atmosféricas forem declaradas favoráveis na localidade em que realizará o procedimento de queima, que antecede a colheita da matéria-prima.

[...]

Para ingressar na etapa de licenciamento prévio (CP), o empreendedor apresenta Plano de Trabalho ao órgão ambiental, no qual é apresentada a caracterização do empreendimento, um breve diagnóstico das áreas de influência propostas, a descrição das atividades e produtos previstos incluindo metodologias, objetivos, escalas de mapas, entre outras informações. Referido Plano de Trabalho tem por objetivo subsidiar a elaboração de Termo de Referência que irá orientar a elaboração do estudo a ser apresentado como condição para a análise do pedido de licenciamento. 

É nessa fase do licenciamento do empreendimento sucroalcooleiro que são exigidos os estudos pertinentes, como os EAS - Estudo Ambiental Simplificado, RAP - Relatório Ambiental Preliminar, EIV/RVI - Estudo de Impacto de vizinhança e seu respectivo relatório, e todos mais que se mostrarem cabíveis, dependendo do porte do empreendimento/volume da cana a ser processada, bem como da sua localização, conforme as diretrizes do Zoneamento Agroambiental do Estado de São Paulo”

 

Verifica-se, pois, que a licença ambiental não respalda o exercício da atividade em termos irrestritos, pois a respectiva execução sujeita-se a situações que não coloquem em risco concreto bens jurídicos tutelados. Pode a licença ser suspensa ou cancelada, nos casos especificados, cabendo o respectivo controle ao órgão ambiental, sem prejuízo do acompanhamento pelo Ministério Público e outros órgãos. Não se trata, portanto, de permitir ou de proibir de forma genérica e absoluta, mas de compatibilizar, não apenas na concessão da licença, como na execução da respectiva atividade, os valores constitucionais.

Neste sentido, a jurisprudência:

 

AgInt no AREsp 233.196, Rel. Min. NAPOLEÃO MAIA, DJe 31/10/2018: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO AMBIENTAL. QUEIMA DA PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. VEDAÇÃO IMPOSTA PELO ART. 27 DO CÓDIGO FLORESTAL. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA QUEIMA DA PALHA DA CANA-DE-AÇÚCAR DESDE QUE NÃO SEJA DANOSA AO MEIO AMBIENTE E HAJA A RESPECTIVA AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO COMPETENTE. PRÁTICAS OBSERVADAS PELA CORTE DE ORIGEM. REVISÃO DOS PRECEITOS CONTIDOS NO ARESTO. IMPOSSIBILIDADE. ACÓRDÃO COM FUNDAMENTO EM NORMAS DE DIREITO LOCAL. SÚMULA 280/STF. AGRAVO INTERNO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça tem entendimento segundo o qual a queima de cana-de-açúcar, embora possa causar danos ambientais, pode ser excepcionalmente liberada, desde que não seja danosa ao meio ambiente e haja a respectiva de autorização do órgão competente. 2. O Tribunal local, com base na prova produzida nos autos, entendeu não haver nos autos elementos capazes de confirmar a ilegalidade da referida prática na espécie, além de estar amparada em autorização administrativa. 3. O acolhimento das razões recursais implicará necessariamente no revolvimento fático-probatório dos autos, providência vedada, em princípio, nesta seara recursal especial. 4. A análise do mérito recursal perpassa pela apreciação de dispositivos de das Leis Paulistas 997/1976; 841/1993; 6.171/1988 e 11.241/2002; Decretos Estaduais Paulistas 8.468/1976, 28.848/1988; 28.895/1988 e 45.869/2001; Constituição Bandeirante (art. 191 e 216), o que atrai a incidência da Súmula 280/STF, obstaculizando o exame do Recurso Especial. 5. Agravo Interno do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL a que se nega provimento.”

 

AgRg no REsp 1.413.767, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 27/10/2015: “ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. QUEIMA DA PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. EXISTÊNCIA DE REGRA EXPRESSA PROIBITIVA. EXCEÇÃO EXISTENTE SOMENTE PARA PRESERVAR PECULIARIDADES LOCAIS OU REGIONAIS RELACIONADAS À IDENTIDADE CULTURAL. REANÁLISE DE AUTORIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. NECESSIDADE DE EXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. O procedimento de queima de palha de cana-de-açúcar possui caráter prejudicial ao meio ambiente. Esta Corte já possui entendimento firmado no sentido de se considerar que tal atividade é possível excepcionalmente, desde que não seja danosa ao meio ambiente e haja a respectiva de autorização do órgão competente. 2. A partir da leitura do acórdão de origem, depreende-se que não há nos autos elementos capazes de confirmar a ilegalidade da prática de queima exercida no caso concreto. Desse modo, modificar o acórdão recorrido ensejará uma revisão do acervo fático probatório, inadmitido em sede de Recurso Especial, conforme orientação firmada pela Súmula 7/STJ. Agravo regimental improvido.”

 

Ante o exposto, nego provimento à remessa oficial e dou provimento às apelações, para reformar a sentença nos termos supracitados.

É como voto.

 



E M E N T A

 

DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUEIMA CONTROLADA DE PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. LICENÇA AMBIENTAL CONCEDIDA PELO ÓRGÃO ESTADUAL. IBAMA. COMPETÊNCIA SUPLETIVA.

1. Rejeitadas as preliminares de inadequação da via e de incompetência absoluta do Juízo: a inconstitucionalidade não é objeto do pedido, mas integra a causa de pedir; e não existe, a rigor, conflito federativo entre Estado de São Paulo, CETESB e IBAMA, pois tais entes, ao contrário, convergem no sentido de questionar, direta ou indiretamente, a pretensão formulada na ação civil pública. As demais preliminares, de ilegitimidade passiva do Estado de São Paulo e do Ibama, assim como de impossibilidade jurídica do pedido frente à autarquia federal, confundem-se com o mérito.

2. A competência para licenciamento para atividades de risco cabe, constitucional e legalmente, ao órgão estadual de proteção ao meio ambiente, sendo do IBAMA a competência meramente supletiva, na ausência de atuação daquele órgão, nos termos do artigo 10, § 3º, da Lei 6.938/81, na redação anterior à LC 140/2011. O CONAMA editou a Resolução 237/97, definindo que empreendimentos e atividades sujeitas a licenciamento ambiental seriam as relacionadas no Anexo I (artigo 2º), dentre as quais não se encontra a queima da palha de cana-de-açúcar. Ratificou, ainda, a competência do IBAMA e, mesmo assim, delegável aos Estados, para licenciamento de tais atividades, exclusivamente na hipótese em que os impactos ambientais diretos delas decorrentes ultrapassarem os limites territoriais do país ou de um ou mais Estados (artigo 4º, III, e § 2º).

3. A competência de licenciar empreendimentos e atividades é do órgão estadual de proteção do meio-ambiente, mesmo quando impactos ambientais diretos decorrentes ultrapassarem os limites territoriais de um ou mais Municípios (artigo 5º, III, e parágrafo único). O Estado de São Paulo editou as Leis 10.547/2000 e 11.241/2-02, proibindo emprego do fogo, salvo para atividades agrícolas, pastoris ou florestais, dentre as quais a queima controlada da palha de cana-de-açúcar, técnica a ser eliminada de forma gradativa. Na respectiva regulamentação, foi baixado o Decreto Estadual 45.869/01, definindo hipóteses e procedimentos do método "despalhador" e "facilitador" do corte da cana-de-açúcar, mediante requerimento detalhado do interessado e sujeito à autorização ambiental.

4. Percebe-se, pois, a partir das regras aplicáveis, que a competência da autarquia federal para concessão das licenças para queima da palha de cana-de-açúcar na região de Campinas somente existiria, de forma precípua, se o método causasse impactos ambientais diretos de âmbito regional ou nacional, ou, de forma supletiva, se houvesse omissão na atuação estadual.

5. Nem se alegue que a legitimidade passiva do IBAMA seria justificada pela necessidade de proteção da saúde, Sistema Único de Saúde, fauna, flora e outros bens jurídicos de interesse federal. Primeiramente, o órgão de fiscalização ambiental não pode responder pela proteção da saúde ou do SUS e, em segundo lugar, a repartição constitucional e legal de competência existe para, justamente, definir limites de atuação cooperativa entre órgãos federais, estaduais, distritais e municipais, não sendo permitido ao ente federal, apenas por sua condição central, invadir a competência de outros entes federados sem que se esteja diante das hipóteses específicas de atuação supletiva ou intervenção.

6. A Constituição Federal, no inciso IV, § 1º, do artigo 225, previu que a exigência de realização de estudo prévio de impacto ambiental estaria condicionada à reserva de lei. Por sua vez, a lei federal (artigo 27, parágrafo único do revogado Código Florestal e artigo 38, I, do atual) não previu a necessidade da realização de prévio estudo de impacto ambiental no caso da "queima controlada", mas apenas, por decreto, de prévia vistoria no caso de solicitação de autorização para uso do fogo em áreas "que contenham restos de exploração florestal [...] limítrofes às sujeitas a regime especial de proteção, estabelecido em ato do poder público".

7. A dispensa de estudo prévio, contudo, não se revela, em princípio, inconstitucional. Neste sentido, o parâmetro da desproporcionalidade ou da ofensa ao princípio da proibição de excesso não favorece a pretensão ministerial. No caso, são invocados dois grandes valores constitucionalmente tutelados, dentre outros: a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento econômico. Embora não seja perfeita, a equação legal parece equilibrar dentro do possível tais bens jurídicos, a partir do modelo adotado de queima controlada, pois ainda que atividade gere poluição com efeitos sobre o meio ambiente, existe uma estrutura organizada de atividade econômica e social que não pode ser ignorada.

8. A adequação da atividade econômica encontra-se em curso, pois o Decreto 2.661/1998 prevê redução gradativa do emprego de fogo, o que denota, portanto, que a preocupação ambiental encontra-se presente, porém, a supressão repentina da queima da cana-de-açúcar poderia representar grave prejuízo ao desenvolvimento econômico. Tal decreto prevê, ainda, medidas necessárias para evitar graves danos ao meio ambiente (artigos 14 e 15).

9. A licença ambiental não respalda o exercício da atividade em termos irrestritos, pois a respectiva execução sujeita-se a situações que não coloquem em risco concreto bens jurídicos tutelados. Pode a licença ser suspensa ou cancelada, nos casos especificados, cabendo o respectivo controle ao órgão ambiental, sem prejuízo do acompanhamento pelo Ministério Público e outros órgãos. Não se trata, portanto, de permitir ou de proibir de forma genérica e absoluta, mas de compatibilizar, não apenas na concessão da licença, como na execução da respectiva atividade, os valores constitucionais.

10. Apelações providas e remessa oficial desprovida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Terceira Turma, por unanimidade, negou provimento à remessa oficial e deu provimento às apelações, para reformar a sentença, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.