Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO


Nº 

RELATOR: 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0001325-94.2018.4.03.6002

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: LEONARDO DE SOUZA

Advogados do(a) APELANTE: JOSE JORGE CURY JUNIOR - MS16529-A, ANDRE LUIS SOUZA PEREIRA - MS16291-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

Trata-se de recurso de Apelação interposto por LEONARDO DE SOUZA (nascido em 06.11.1967) contra a r. sentença proferida pelo Exmo. Juiz Federal Rubens Petrucci Junior (1ª Vara Federal de Dourados/MS) (fls. 263/269 – ID n.151591200) que julgou PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido formulado na Ação Penal Pública Incondicionada para:

  1.  CONDENAR o réu pela prática dos delitos descritos no artigo 33 da Lei Federal nº 11.343/2006  à pena corporal de 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, bem como ao pagamento de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa, cada qual fixado em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente à época dos fatos.

  2. CONDENAR o réu pela prática da conduta descrita no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal, à pena de 02 anos de detenção e 40 (quarenta) dias-multa, no valor de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos.

 

Somadas em concurso material, as penas alcançaram o montante de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de pena privativa de liberdade, em regime inicial SEMIABERTO, além de 373 (trezentos e setenta e três).

 

Consta da r. denúncia que (fls. 135/136 – ID n. 151591199):

No dia 13 de dezembro de 2018, por volta de 06h15 da manhã, na aldeia Tey Kuê, município de Carapó/MS, LEONARDO DE SOUZA, dolosamente, ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, guardou embaixo de sua cama drogas oriundas do Paraguai, consistente em 313,90g de maconha, em desacordo com determinação regulamentar, tendo em vista que tais entorpecentes constam como substâncias de uso proscrito no Brasil, consoante Lista F2 do anexo I da portaria SVS nº 344, de 12 de maio de 1998, no termos do art. 33, c.c. 40, I, da Lei de Drogas.

Além disso, nas circunstâncias de tempo e lugar supramencionados, LEONARDO DE SOUZA instigou que outros indígenas deteriorassem 04 (quatro) viaturas da Força Nacional e, portanto, patrimônio da União.

Consta nos autos que no dia e local supramencionados, em cumprimento de mandado de prisão preventiva, policiais da Força Nacional se deslocaram até a aldeia Tey Kuê, acompanhados do Oficial de Justiça Otílio, a fim de capturar o acusado, em face da notícia de que ele iria se evadir da aldeia.

Ao desembarcarem, os policiais encontraram LEONARDO DE SOUZA deitado, e então solicitaram que ele se levantasse os acompanhasse, pois havia um mandado de prisão contra ele.

Ao sair de casa, o acusado começou a resistir e falou que não iria acompanhar a guarnição, acabando por instigar a família a investir contra as equipes, ocasião em que apareceram no local índios com foice, arco e flecha, lança.

Ato contínuo, os indígena, sob a liderança de LEONARDO DE SOUZA, jogaram pedras e paus nas viaturas, além de desferirem golpes e foice nos veículos, resultando nos danos mencionados à fl. 105/106 dos presentes autos.

Em revista na casa de LEONARDO a equipe policial encontrou substância análoga à maconha debaixo de sua cama, correspondente a 313,90g.

Assim agindo, LEONARDO DE SOUZA incorreu na sanção prevista no art. 33 da Lei de Drogas, bem como no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal.

Os indícios suficientes de autoria e materialidade constam dos seguintes documentos: autos de prisão em flagrante; auto de apresentação e apreensão; laudo pericial de constatação de drogas; definitivo de química forense e veicular.

 

Diante disso, LEONARDO DE SOUZA foi denunciado como incurso nas penas do art. 33 da Lei Federal nº 11.343/2006, bem como pela prática, por 04 (quatro) vezes, do crime estabelecido no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal.

 

A r. denúncia foi recebida em 28.02.2019 (fls. 138/140–ID n.151591199).

 

Processado regularmente o feito, a r. sentença foi proferida, sendo sua baixa em Secretaria datada de 23.09.2019 (fl. 270 - ID n. 1515991200).

 

A defesa constituída de LEONARDO DE SOUZA, em suas razões de Apelação, pleiteia a reforma da r. sentença a quo para, com relação ao delito de dano qualificado, reconhecer-se a  atipicidade da conduta e a inexistência de dolo específico da conduta, com consequente absolvição do acusado, nos termos do art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Além disso, requer a DESCLASSIFICAÇÃO do delito do art. 33 da Lei 11.343/2006 para o crime de uso de entorpecentes (art. 28 da referida lei) (ID n. 151591241).

 

Contrarrazões do Ministério Público devidamente apresentadas (fls. ID n.151591250).

 

A Procuradoria Regional da República, em seu parecer, manifestou-se pelo não provimento da Apelação defensiva, mantendo-se integralmente a r. sentença a quo (ID n. 151811584).

 

É o relatório.

À revisão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0001325-94.2018.4.03.6002

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: LEONARDO DE SOUZA

Advogados do(a) APELANTE: JOSE JORGE CURY JUNIOR - MS16529-A, ANDRE LUIS SOUZA PEREIRA - MS16291-A

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V O T O

 

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

 

DA IMPUTAÇÃO

 

Consta da r. denúncia que (fls. 135/136 – ID n. 151591199):

No dia 13 de dezembro de 2018, por volta de 06h15 da manhã, na aldeia Tey Kuê, município de Carapó/MS, LEONARDO DE SOUZA, dolosamente, ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, guardou embaixo de sua cama drogas oriundas do Paraguai, consistente em 313,90g de maconha, em desacordo com determinação regulamentar, tendo em vista que tais entorpecentes constam como substâncias de uso proscrito no Brasil, consoante Lista F2 do anexo I da portaria SVS nº 344, de 12 de maio de 1998, no termos do art. 33, c.c. 40, I, da Lei de Drogas.

Além disso, nas circunstâncias de tempo e lugar supramencionados, LEONARDO DE SOUZA instigou que outros indígenas deteriorassem 04 (quatro) viaturas da Força Nacional e, portanto, patrimônio da União.

Consta nos autos que no dia e local supramencionados, em cumprimento de mandado de prisão preventiva, policiais da Força Nacional se deslocaram até a aldeia Tey Kuê, acompanhados do Oficial de Justiça Otílio, a fim de capturar o acusado, em face da notícia de que ele iria se evadir da aldeia.

Ao desembarcarem, os policiais encontraram LEONARDO DE SOUZA deitado, e então solicitaram que ele se levantasse os acompanhasse, pois havia um mandado de prisão contra ele.

Ao sair de casa, o acusado começou a resistir e falou que não iria acompanhar a guarnição, acabando por instigar a família a investir contra as equipes, ocasião em que apareceram no local índios com foice, arco e flecha, lança.

Ato contínuo, os indígenas, sob a liderança de LEONARDO DE SOUZA, jogaram pedras e paus nas viaturas, além de desferirem golpes e foice nos veículos, resultando nos danos mencionados à fl. 105/106 dos presentes autos.

Em revista na casa de LEONARDO a equipe policial encontrou substância análoga à maconha debaixo de sua cama, correspondente a 313,90g.

Assim agindo, LEONARDO DE SOUZA incorreu na sanção prevista no art. 33 da Lei de Drogas, bem como no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal.

Os indícios suficientes de autoria e materialidade constam dos seguintes documentos: autos de prisão em flagrante; auto de apresentação e apreensão; laudo pericial de constatação de drogas; definitivo de química forense e veicular.

 

Diante disso, LEONARDO DE SOUZA foi denunciado como incurso nas penas do art. 33 da Lei Federal nº 11.343/2006, bem como pela prática, por 04 (quatro) vezes, do crime estabelecido no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal.

 

DO DELITO DE DANO QUALIFICADO (art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal).

 

Premissas teóricas da responsabilização penal pelo crime de dano contra a União

Trata-se de imputação pela prática do delito de dano contra o patrimônio da União, que encontra tipificação no art. 163, parágrafo único, inc. III, do Código Penal:

Art. 163- Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:

(...)

Parágrafo único - Se o crime é cometido:

III - contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista (Redação dada pela Lei nº 5.346, de 3.11.1967) (redação vigente à época dos fatos, anterior à Lei nº 13.531, de 2017, que alterou este dispositivo)

 

A espécie delitiva sob exame insere-se no rol de crimes contra o patrimônio previsto no Código Penal, tutelando exatamente o direito de propriedade. Consoante o ensinamento da sólida doutrina, a infração penal ora estudada constitui-se crime material, cuja consumação se perfaz com o resultado naturalístico da destruição, avaria, inutilização da coisa, podendo ser praticado por qualquer pessoa.

 

No caso em concreto, consta que no dia e local supramencionados, policiais da Força Nacional se deslocaram até a aldeia Tey Kuê, acompanhados do Oficial de Justiça Otílio, em cumprimento de mandado de prisão preventiva em desfavor de LEONARDO DE SOUZA, o qual teria resistido à prisão e instigado sua família a investir contra as equipes com pedras, foices, arco e flecha e lanças, resultando em danos ao patrimônio da União.

 

Em tal ação da comunidade indígena foram danificados 04 (quatro) veículos da marca FORD, modelo RANGER, pertencentes à Secretaria Nacional de Segurança Pública, todos com placas de Brasília/DF e equipados para operarem como viaturas policiais ostensivas da Força Nacional (fls. 100/106), comprovando-se, assim, a materialidade do delito de dano. As avarias constatadas foram:

  1. PBG-5561: lanterna traseira esquerda quebrada; caçamba do lado esquerdo com pequeno amassado; almofada do para-choque com pequeno arranhão;

  2. PBF-5576; porta dianteira traseira com arranhão que danificou e amassou a lataria; plástico do repetirdor do pisca pisca integrado ao revisor do lado direito quebrado;

  1. PBG-5591: para-choque dianteiro trincado; quebra mato amassado em dois locais; tampa da caçamba com pequeno amassado do lado direito; e lanterna traseira direita com uma pequena trinca;

  1. PBG-5924: lanterna traseira direita quebrada; caçamba do lado direito com pequeno arranhão que afundou a lataria e riscou a pintura.

 

A autoria delitiva, entretanto, diferentemente do quanto entendido pelo r. juízo sentenciante, não pôde ser devidamente comprovada pelos elementos probatórios colhidos durante a instrução processual, sendo de rigor, assim, o acolhimento do pleito defensivo pela absolvição de LEONARDO DE SOUZA quanto ao delito previsto no art. 163 do Código Penal.

 

As declarações colhidas sob o crivo do contraditório evidenciam que, apesar de os policiais da Força Nacional que participaram da abordagem, terem sido enfáticos quanto à correlação direta entre o réu LEONARDO e o ataque da comunidade indígena às viaturas policiais, tal conclusão, em realidade, não passou de uma inferência a partir da percepção pessoal destes, percepção esta absolutamente subjetiva e que não corroborada por nenhum elemento em concreto que permita afirmar, com a segurança necessária para a manutenção de uma condenação criminal, que, de fato, LEONARDO DE SOUZA tenha instigado ou ordenado que os indígenas cometessem o crime de dano.

 

A esse respeito, válida a transcrição parcial das declarações colhidas sob o crivo do contraditório, complementadas pelo teor inferido a partir da análise direta da prova oral produzida em audiência de instrução, através das mídias digitais em que foram gravadas.

 

Em Juízo, Marcos Vinicius Azevedo Lopes, condutor da prisão de LEONARDO, declarou que: “(...) inicialmente ele estava tranquilo, mas no momento que ele saiu de casa, ele viu as viaturas do lado de fora, acho que ele percebeu que ia ser conduzido, ele começou a cantar no dialeto dele, com um chocalho, e incitar as outras pessoas, e as outras pessoas foram chamando mais pessoas, e foi juntando mais gente ao redor das viaturas, onde começou um tumulto contra as equipes, ainda bem que ninguém saiu ferido, nem policiais, nem as pessoas da aldeia, mas foi juntando pessoas armadas com foice, pedras, e começando a fazer barricadas (...) No momento em que nós estávamos do lado de fora da casa onde eles continuavam fazendo buscas, o réu ficou incitando o povo para ir para cima das viaturas. Como é que eu posso afirmar isso? Ele estava cantando no dialeto dele, mas no momento que ele começou a cantar e dançar de forma agressiva, os outros ficaram agitados e começaram vir para cima das viaturas, então eu posso afirmar categoricamente que o dano nas viaturas foi devido à incitação do réu perante aos demais para evitar sua prisão (...) estávamos em 3 policiais com ele, ele começou a dançar, se agitar, ao que os indígenas passaram a mão em foice e vieram pra cima. Nós saímos da casa, o pessoal estava olhando. Quando ele e a esposa começaram a cantar e dançar foi quando o povo ‘ah, não, não vai tirar não, não vai tirar’ e começaram a passar a mão em facão e reagiu (...)”.

 

A testemunha de acuação SILDINEI DA COSTA TAPURDIA, também policial de Força Nacional, disse, em juízo que (fls. 238): “Foram cumprir o mandado de prisão em desfavor de Leonardo e, em busca na residência deste, encontraram uma porção de maconha. Tiveram um conflito entre a aldeia e a guarnição. A droga estava praticamente visível, debaixo da cama dele.  (...) No primeiro momento, quando a gente fez a abordagem dele, ele falou conosco em português. A partir do momento que ele saiu de sua residência, ele começou a falar em dialeto, aí foi quando começou a confusão realmente. Eu não posso afirmar o que ele indagou, mas, foi visível que ele foi o principal causador disso e influenciou as outras pessoas a atacarem as viaturas (...) Quando ele saiu da casa dele e visualizou outras pessoas, começou a falar o dialeto, mas até aquele momento não havia agressividade nem da parte dele, nem da nossa (...) no momento que ele saiu, ele estava com um chocalho na mão, ao que ele começou a balançar e falar o dialeto. Então foi quando instigou as outras pessoas, as outras pessoas ficaram... não posso afirmar o que ele estava falando no momento. A gente não algemou ele porque não estava causando resistência, mas a partir do momento que ele começou a balançar o chocalho e falar em dialeto, as pessoas começaram o alvoroço ali em torno, foi quando começou as agressões contra a nossa guarnição, mas em nenhum momento eu entendi o que ele falava”.

 

Também na instrução processual, oficial OTILIO MARQUEZOLO, afirmou (fls. 212): “(...) como já existia mandado de prisão, a juíza me encaminhou junto com a força nacional para o cumprimento de um mando de citação (...) os policiais fizeram uma busca na casa buscando uma .40 que faltava das armas que sumiram dos policiais e aí eles acharam lá um volume de maconha. (...) Leonardo não forneceu resistência, no momento em que saímos, os indígenas chegaram, botaram barricada, danificaram viatura, mas no momento, no ato, não houve nenhum tipo de instigação da parte dele (...) quem iniciou provavelmente a depredação foram os familiares do Leonardo. Leonardo especificamente não instigou nem fez nenhum sinal para que atacassem a polícia, foi conduzido pacificamente para a delegacia.

 

Em seu interrogatório judicial, acerca do tema especificamente relacionado ao delito de dano, LEONARDO DE SOUZA alegou que, ao ser conduzido pelos policiais para fora de sua casa para ser preso, de fato, entoou um cântico em seu dialeto, mas que tais palavras eram apenas uma reza de proteção, negando ter instigado qualquer ato violento por parte dos indígenas aos policiais e patrimônio policial que ali estavam.

 

Vê-se, assim, que, diferentemente da conclusão extraída pela sentença a quo, os elementos coligidos em instrução probatória não demonstraram, de forma seguramente culpável, qualquer instigação expressa por parte do réu aos demais indígenas para que estes perpetrassem atos de violência contra os gendarmes e suas viaturas na consumação do delito de dano qualificado.

 

Ao contrário, os policiais ouvidos em juízo, apesar de afirmarem que a alteração de ânimos e a confusão iniciou-se a partir do momento em que o acusado LEONARDO começou a entoar um cântico em tupi-guarani, confirmaram não serem capazes de afirmar o que precisamente foi dito pelo acusado e se este, de fato, emitiu palavras ou gestos no sentido de ordenar ou instigar a ação dos demais indígenas.

 

Inclusive, o policial Sildinei da Costa foi expresso ao afirmar que “em nenhum momento entendeu o que foi falado pelo réu” e, apesar de afirmar que o réu teve participação direta na reação da comunidade, esta se tratou, em realidade, apenas da percepção subjetiva do policial acerca do desenrolar dos fatos. De fato, a subjetividade de tal conclusão mostra-se ainda mais evidente uma vez que, diante dos mesmos fatos, a conclusão do Oficial de Justiça Otílio Marquezolo foi em sentido oposto àquela dos policias. O oficial de Justiça afirmou expressamente que, na data de sua prisão, não houve qualquer instigação por parte do acusado para que os indígenas reagissem e cometessem atos de violência, sendo a depredação das viaturas uma ação autônoma dos familiares de LEONARDO que, por sua vez, ao contrário, não ofereceu qualquer tipo de resistência durante a ação policial.

 

Ainda a esse respeito, o próprio policial Marcos Vinicius Azevedo Lopes, em seu depoimento judicial, afirmou que é comum, em cumprimento de prisões preventivas, quando o próprio réu se mostra inconformado com a sua prisão, que haja uma reação de resistência das pessoas à volta. Isto não significa, entretanto, que necessariamente o réu tenha ordenado uma reação, muito menos uma reação criminosa, por parte de seus familiares. A reação dos familiares e comunidade do preso não pode automaticamente tornar-lhe coautor de quaisquer condutas perpetradas por tais terceiros, uma vez que estre não tem domínio ou responsabilidade do que poderia involuntariamente ser feito pela investida pela comunidade contra os agentes de polícia.

 

Além disso, é de se destacar que, no depoimento perante a autoridade policial de Sidinei da Costa Tapudina, lotado na Força Nacional, este menciona que, na verdade, deveriam ter sido conduzido mais dois indígenas parentes de Leonardo, os quais efetivamente perpetraram o delito, o que, entretanto, não foi realizado pela Polícia naquele momento, e tampouco pelo Ministério Público Federal, que não buscou a identificação de tais sujeitos na tentativa de compreender se realmente a ação criminosa deu-se por ordem de LEONARDO DE SOUZA ou por um ímpeto independente da comunidade indígena diante da prisão de um de seus representantes.

 

Dessa forma, tendo restado absolutamente comprovado não ter sido LEONARDO DE SOUZA efetivamente quem praticou a conduta de dano às viaturas policiais, e não tendo sido devidamente demonstrada a comprovação de que este tenha realmente ordenado ou instigado para que os integrantes da comunidade danificassem os veículos em questão, não há que se falar em condenação do réu pelo delito do art. 163 do Código Penal.

 

O próprio r. juízo sentenciante aduz não ser possível saber o que o réu verbalizou ou qual a simbologia da dança que executou. Assim, mostra-se absolutamente temerário interpretar de forma subjetiva ter sido o canto como determinante para o início da agressão perpetrada contra as viaturas policiais, e simplesmente inferir nexo de causalidade entre a dança e o canto do réu com os ataques perpetrados pelos demais indígenas às viaturas policiais que estavam no local.

 

Nesse sentido, embora não seja impossível que, de fato, LEONARDO DE SOUZA tenha, em tupi guarani, proferido palavras para instigar o cometimento do delito de dano perpetrado pelos demais indígenas, o que o tornaria coautor de tal fato, inexistem nos autos prova contundente de que isso tenha, de fato, ocorrido, não se mostrando apta, portanto, a condenação do acusado, imperando-se a aplicação do princípio in dubio pro reo.

 

A prova indiciária quando indicativa de mera probabilidade, como ocorre in casu, não serve como prova substitutiva e suficiente de autoria não apurada de forma concludente no curso da instrução criminal.

 

A doutrina é firme a respeito da certeza na convicção do julgador ao emitir decreto condenatório. Confira-se sobre o assunto, os comentários de Guilherme de Souza Nucci ao artigo 386 do Código de Processo Penal (in Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 857):

Prova insuficiente para a condenação: é outra consagração do princípio da prevalência do interesse do réu- in dubio pro reu. Se o Juiz não possui provas sólidas para a formação de seu convencimento, sem poder indicá-las na fundamentação da sua sentença, o melhor caminho é a absolvição. Logicamente, neste caso, há possibilidade de se propor ação indenizatória na esfera cível.

 

Nesse mesmo sentido, a jurisprudência desta Egrégia Corte:

PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. MOEDA FALSA, ARTIGO 289, §1º, DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE DEMONSTRADA. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS DE AUTORIA. PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO MANTIDA A SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO IMPROVIDO. 1. O réu foi denunciado como incurso nas sanções do artigo 289, §1º, do Código Penal. 3. Materialidade demonstrada. 4. Autoria delitiva não comprovada. Prova testemunhal não trouxe quaisquer elementos. Ainda que inverossímeis e contraditórias as versões apresentadas pelo réu, tanto em sede policial quanto em juízo, e que as circunstâncias do delito e os inúmeros registros criminais em nome do réu, inclusive com condenação já transitada em julgado pela prática do delito de estelionato, a indicar a personalidade inclinada ao cometimento de delitos, fato é que não foram produzidas, em juízo, vale dizer, sob o crivo do contraditório, provas suficientes a comprovar que o denunciado dolosamente praticou a conduta descrita no artigo 289, §1º do Código Penal. Aplicação do princípio do in dubio pro reo, eis que a incerteza favorece o acusado e o édito condenatório não pode ser lastreado em probabilidades ou meros indícios.5. Mantida a absolvição. 6. Apelação a que se nega provimento.(ACR 00091051620044036119, DESEMBARGADORA FEDERAL VESNA KOLMAR, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:03/05/2011 PÁGINA: 195 ..FONTE_REPUBLICACAO - destaque nosso)

 

Assim, a r. sentença que condenou o réu LEONARDO DE SOUZA quanto ao delito do art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, merece ser reformada para que seja ele absolvido, já que ausentes provas suficientes para a comprovação de sua efetiva participação no delito de dano em questão, nos termos do artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.

 

DO DELITO DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES (ART. 33, CAPUT, C.C. ART. 40, INCISO I, DA LEI DE DROGAS)

 

MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS

A materialidade do delito de tráfico ilícito de entorpecentes, além de não ter sido objeto de impugnação, restou devidamente comprovada pelos seguintes documentos: Auto de Prisão em Flagrante (fls. 02/18); Auto de Apresentação e Apreensão (fl. 09);  Laudo Preliminar de Constatação (fls. 12/13) e Laudo Definitivo de Constatação (fls. 96/106), em que se atesta que a substância apreendida 313,9 gramas (massa líquida) da substância entorpecente conhecida como maconha.

 

De igual forma, como bem ressaltou a r. sentença a quo, a autoria restou devidamente demonstrada, uma vez que a prova testemunhal produzida na fase judicial, corroborada pelo flagrante delito, endossa os fatos descritos na r. exordial incoativa.

 

Como já mencionado alhures, os policiais e o Oficial de Justiça que participaram da prisão do acusado foram uníssonos e harmônicos em afirmar que, durante a abordagem para cumprimento de mandado de prisão, foi encontrada uma porção de maconha debaixo da cama do acusado.

 

A tese defensiva apresentada em juízo pelo acusado, em seu interrogatório judicial, dá conta de que a maconha encontrada em sua residência seria utilizada para fins medicinais, mediante a elaboração de um composto com álcool e outras ervas usadas pelos indígenas para tratamento/cura de patologias, dentre as quais reumatismo, que acometia a saúde do acusado.

 

Entretanto, como bem apontado pelo r. juízo sentenciante, a quantidade de entorpecente, o local em que estava acondicionado e a forma de aquisição, tudo somado aos depoimentos das testemunhas, revelam, a despeito do quanto alegado, a prática do crime de tráfico de drogas.

 

Primeiramente, vale ressaltar que, durante sua oitiva perante a autoridade policial, LEONARDO DE SOUZA não mencionou nada sobre o uso da maconha para fins medicinais. Ao contrário, no inquérito policial, o acusado tentou eximir-se de sua responsabilidade penal e, apesar de reconhecer que a maconha apreendida estava em sua casa, alegou não saber a quem ela pertencia, em versão absolutamente diversa daquela que apresentou perante o juízo.

 

Perante a autoridade judicial, a seu turno, LEONARDO DE SOUZA alegou ter ganhado a maconha de um “mascatero” (pessoa que vende pequenas coisas na aldeia, como explicou), o qual lhe recomendou que fizesse o composto para melhorar seu estado de saúde.

 

A forma de aquisição alegada, entretanto,  não é plausível. A defesa explana que a atividade do “mascatero” é a venda de produtos/insumos – o que sugere, de plano, a incompatibilidade com a disponibilização graciosa. Se a concessão gratuita de produtos lícitos já não seria natural, imagine-se de produto ilícito, ao qual se agrega o risco de aquisição e comercialização (risco este embutido no preço). Nessa linha, a quantidade 313 gramas de maconha não é inexpressiva e não tem baixo custo de aquisição, sendo verossímil que o réu a tenha ganhado de um “masquetero”.

 

Ainda, é de se ressaltar que o acusado não fez qualquer tipo de prova para evidenciar seu versão dos fatos, não trazendo aos autos sequer a identificação da pessoa que supostamente teria lhe fornecido e indicado a substância entorpecente para a formulação de medicamento. De fato, o acusado sequer comprovou as condições médicas por ele alegadas, em nítido descumprimento de ônus probatório que lhe incumbia, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal.

 

Também é de se ressaltar que a forma de acondicionamento da substância também evidenciou a inverdade da versão apresentada pelo acusado, bem como o próprio dolo de sua conduta, uma vez que evidente a tentativa do acusado de encontrar subterfúgios irrazoáveis para a posse do entorpecente em questão.

 

O réu e os policiais que participaram da apreensão confirmaram que o entorpecente foi encontrado embaixo da cama do acusado, em sua residência. Primeiramente, é importante apontar que a maconha encontrada não estava em formato de extrato alcóolico, como aduz o réu que seria utilizada, mas sim in natura, na forma que é utilizada, como de conhecimento geral, para seu fumo e uso recreativo. Quando questionado sobre o porquê da maconha ser a única erva acondicionada debaixo de sua cama, sem a existência de qualquer outra erva que supostamente seria utilizada no composto medicinal, o réu não apresentou explicação plausível, alegando, de maneira incoerente e contraditória, que “era a primeira vez que ia usar esse remédio. Só  a maconha estava embaixo da cama, e não as outras porque quando acabava o remédio, ele colocava de novo a erva, socava no pilão e a aplicava em seu corpo de maneira recorrente”.

 

Quanto a este ponto, é relevante trazer à baila o depoimento da testemunha de defesa Lídio Cavanha Ramirez, indígena residente na aldeia do acusado, que também se contrapõe à tese defensiva apresentada pelo réu. Segundo a testemunha em questão,  não é da cultura indígena guarani-kaiowa o uso de maconha para fins medicinais: “culturalmente a gente nunca usou; para gente, o indígena guarani-kaiowa, a gente nunca usou assim, como remédio; (...) tem muita influência do pessoal que vem de fora, eles falam que tem erva que serve para usar para reumatismo, então isso vem como algo trazido de fora. Como não tinha na região, não é comum na nossa cultura, não é comum as pessoas usarem como remédio”.

 

Ainda no mesmo tema, como bem apontou a r. sentença a quo, o exercício de traficância local, dentro das aldeias indígenas, trata-se de problema público e notório, que restou, inclusive, reforçado pelos depoimentos judiciais, reconhecido, inclusive, pelos próprios indígenas.

 

A esse propósito, confira-se trecho do depoimento da Juíza de Direito da Comarca de Caarapó, Cristiane Aparecida Biberg de Oliveira (fls. 53-54): (...); QUE um dos maiores problemas da comarca de Caarapó/MS é tráfico interno na aldeia indígena e que acredita que a droga venha do Paraguai e seja depositada no interior da aldeia e depois distribuída na comunidade e na cidade de Caarapó/MS, o que é facilitado pela falta de policiamento ostensivo (...). Ainda sobre o ponto, depreende-se da ata de reunião ocorrida em 29/10/2018, de que participaram a comunidade indígena TeyKuê e autoridades de Caarapó - entre as quais a juíza precitada, promotores de justiça, defensores públicos, delegado de polícia, comandante da força nacional, membros da FUNAI e do Conselho Tutelar - que uma das reivindicações da comunidade foi "combate ao consumo e venda de drogas e bebidas alcoólicas, abuso sexual, abandono de crianças, agressões físicas contra mulheres" (fls. 56-57).

 

Sobre o tráfico de drogas em aldeias indígenas, OTÍLIO MARQUEZOLO, oficial de justiça na cidade de Caarapó, informou em Juízo (fls. 212; mídia às fls. 214): (...) o tráfico está comprovado nos autos que têm aqui em Caarapó, que são vários processos de tráfico de drogas na reserva Tey Kue, assim como nas outras reservas aqui na região. O tráfico existe, tem processos aqui [inteligível] está tendo abordagem, tem ações exatamente nesse sentido.

 

Ouvido no IPL (fls. 2-4), MARCOS VINICIUS AZEVEDO LOPES, condutor da prisão de LEONARDO, disse: (...) QUE Policiais Militares de Caarapó e alguns indígenas bem como o oficial de justiça informaram que Leonardo traficava dentro da aldeia. (...). QUE segundo informações do próprio Oficial de Justiça Otílio, a droga vem do Paraguai para Leonardo fazer a venda (...).

 

Na instrução processual (fls. 238; mídia às fls. 240), a testemunha SILDINEI DA COSTA TAPURDIA, policial lotado na Guarda Nacional e integrante da equipe responsável pela prisão de LEONARDO, narrou: (...) eu encontrei um pacote que aparentava ser maconha num cômodo, abaixo da cama dele. (...). Foi indagado, até a uma senhora que entrou no momento, foi perguntado de quem era aquela droga e ela falou que não sabia. Indagado, na mesma oportunidade, se sabia da existência de drogas no local, SILDINEI respondeu: (...) sim, porque de acordo com denúncia de populares ali pela redondeza, falavam que ele traficava drogas, né, aí a gente não tinha certeza e resolveu verificar essa situação. No momento eu não vi nenhum tráfico, só encontramos a droga abaixo da cama dele.

 

Por fim, tendo como supedâneo a quantidade de entorpecente ora em comento, os 313g de maconha apreendidos em poder do acusado superam o que a jurisprudência deste E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região usa como discriminem para fins de análise do que seria mero porte de drogas para uso pessoal de atos de traficância.

 

A propósito, infere-se do julgamento da Apelação Criminal nº 0012345-14.2016.4.03.6112 (11ª Turma, Rel. Des. Fed. JOSÉ LUNARDELLI, julgado em 06/03/2018, e-DJF3 Judicial 1 DATA:15/03/2018) que a questão então trazia à lume jungia-se a 6,62 (seis gramas e sessenta e dois centigramas) de cocaína de um total de 65 (sessenta e cinco) gramas de entorpecente trazidos do Paraguai pelo acusado, o que foi compreendido, à unanimidade, pelos Desembargadores Federais integrantes do colegiado como sendo hipótese apta ao reconhecimento do delito previsto no art. 33 da Lei nº 11.343/2006 (a despeito da existência de pleito desclassificatório para a infração contida no art. 28 de mencionada legislação especial).

 

Na mesma linha do ora sustentado, esta C. Corte Regional também teve a oportunidade de refutar pedido desclassificatório cujo panorama de fundo envolvia a quantidade de 80 (oitenta) gramas de "crack" conforme é possível ser inferido do julgamento da Apelação Criminal nº 0000457-17.2012.4.03.6006 (5ª Turma, Rel. Des. Fed. PAULO FONTES, julgado em 18/08/2014, e-DJF3 Judicial 1 DATA:25/08/2014).

 

Ressalte-se, ainda, que, de plano, mesmo que se considerasse que a droga em questão fosse, de fato, ser utilizada para fins medicinais, não se pode olvidar que a Resolução RDC n. 335, de 24 de janeiro de 2020, da ANVISA, estabelece critérios e procedimentos definidos para a importação de produto derivado de cannabis para tratamento de saúde próprio, mediante a prescrição de profissional legalmente habilitado. De fato, o acusado sequer demonstrou qualquer prescrição médica nesse sentido, ou o cumprimento de quaisquer requisitos procedimentais, cadastros e fiscalizações sanitárias exigidas na referida Resolução para a autorização da Anvisa para tratamento médico com produtos com derivado de cannabis. Inclusive, o conceito de produto derivado de cannabis cuja importação é legalmente excepcionada e autorizada pela Anvisa inclui tão somente produtos industrializados trazidos do exterior, não se enquadrando nessa hipótese a importação in natura de substância entorpecente conhecida como maconha, como seria no caso em concreto.

 

A esse respeito, válida a transcrição de alguns artigos da Resolução da Anvisa que discrimina o tema:

Art. 2º Para efeitos desta Resolução são adotadas as seguintes definições:

(...)

V - Produto derivado de Cannabis: produto industrializado, destinado à finalidade medicinal, contendo derivados da planta Cannabis spp..

 

Art. 3º Fica permitida a importação, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, de Produto derivado de Cannabis.

 

Art. 4º O produto a ser importado deve ser produzido e distribuído por estabelecimentos devidamente regularizados pelas autoridades competentes em seus países de origem para as atividades de produção, distribuição ou comercialização.

 

Art. 9º Somente após a aprovação do cadastro, o interessado poderá realizar as importações do Produto derivado de Cannabis, pelo período de validade do cadastro.

Parágrafo único. A importação de que trata o caput deste artigo poderá ser realizada formalmente por meio de registro no sistema informatizado de comércio exterior, por bagagem acompanhada ou por remessa expressa.

 

Art.11. Todas as importações deverão submeter-se à fiscalização pela autoridade sanitária em portos, aeroportos e fronteiras antes de seu Desembaraço Aduaneiro, sendo necessária a apresentação, em cada desembaraço, da prescrição do produto, nos termos do art. 6º desta Resolução, e do quantitativo a ser importado.

Parágrafo único. Enquanto o cadastro estiver vigente, uma mesma prescrição pode ser apresentada em mais de uma fiscalização sanitária para fins de anuência de importação pela Anvisa, desde que os quantitativos importados não ultrapassem a quantidade prescrita.

 

Art. 12. As quantidades efetivamente importadas serão registradas pela Anvisa para fins de monitoramento.

 

Nesse sentido, verifique-se precedente do Superior Tribunal de Justiça. In verbis:

Quanto à suposta utilização do entorpecente como fitoterápico para uso próprio, consta do acórdão vergastado que "a produção, para este fim, era feita sem autorização da ANVISA, a qual, por intermédio da Resolução RDC n.º 335, de 24 de janeiro de 2020, definiu os critérios e os procedimentos para importação de produto derivado de cannabis para tratamento de saúde próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado. [...] o paciente sequer estava fazendo tratamento psicológico (última consulta em abril de 2019), não tendo, neste norte, nem a autorização administrativa ou mesmo judicial" (fl. 112, destaquei). Dessa forma, trata-se de questão controvertida, a evidenciar a impossibilidade de seu exame na estreita via do habeas corpus (HABEAS CORPUS Nº 610936 - PB -2020/0229486-8, Superior Tribunal de Justiça, Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 19.08.2021)

 

Por fim, outro ponto que merece ser aventado e reforça o caráter ilícito da conduta do acusado refere-se à distribuição a terceiros da referida substância entorpecente. O próprio acusado justificou, em seu interrogatório judicial, a grande quantidade de maconha encontrada em seu poder porque sua intenção era distribuir o suposto “medicamento” para outras pessoas na aldeia, dentre os quais seus familiares.

 

A esse respeito, a distribuição a terceiros, de maconha, independentemente de sua forma de acondicionamento, por si só, já enquadra a conduta do acusado no delito de tráfico ilícito de entorpecentes, mesmo nos casos em que tal distribuição se dê de forma gratuita.  

 

A esse respeito, veja-se:

HABEAS CORPUS Nº 710020 - SP (2021/0385298-4)

DECISÃO

ALCINEI ANDRÉ BRANDÃO , paciente neste habeas corpus, alega sofrer constrangimento ilegal em seu direito a locomoção, em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na Apelação Criminal n. 1500187-07.2019.8.26.0603.

Depreende-se dos autos que o ora paciente foi condenado à pena total de 12 anos de reclusão, no regime inicial fechado, mais multa, como incurso no art. 157, caput, do Código Penal e no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, na forma do art. 69 do Código Penal.

Irresignada, a defesa interpôs apelação criminal perante a Corte de origem, que lhe negou provimento, a fim de m anter inalterada a sentença condenatória.

Neste writ, a defesa requer, resumidamente, que a conduta imputada ao réu seja desclassificada para o delito descrito no art. 28 da Lei n. 11.343/2006.

Decido .

A Corte estadual manteve a conclusão de que ficou devidamente caracterizado o delito de tráfico de drogas com base nos seguintes argumentos:

Do delito de tráfico de drogas Conforme narrado pelos Policiais Militares e pelo próprio acusado, este poitava 02 porções de maconha, com peso liquido de 76,26 gramas (fls. 151/154).

Alegou o acusado que referido entorpecente destinava-se ao seu próprio consumo. No entanto, entendo que as circunstâncias dos fatos são suficientes para demonstrar o tráfico de drogas.

Com efeito, a quantidade de entorpecente apreendida é incompativel com o mero uso, ainda que frequente. Há de se ressaltar que a Defesa não apresentou nenhuma prova de que o acusado fosse usuário do entorpecente há tempos, como alega.

E mais importante: o réu não soube explicar o motivo pelo qual estava com o entorpecente no momento dos fatos.

Ora, se o acusado pretendia visitar seu genitor e encontrar uma pessoa com quem realizou negócios, por que levaria a droga consigo ao sair de sua residencia? E, ainda, por que levaria consigo duas porções da droga, já que claramente não poderia consumir sua totalidade naquela ocasião? E ainda que se alegue que referidas porçðes eram destinadas ao seu uso, por que o acusado as teria deixado no banco de trás do veiculo de Adnilson (local onde foram encontrados os entorpecentes, conforme narrado pelos Policiais), enquanto conduzia o carro? No mais, os valores apreendidos na ocasião (R$273,00 em dinheiro), sem comprovação de origem lícita, evidenciam que o acusado praticava o trático de entorpecentes, sendo referido numerário produto da traficância.

A alegação de ser o réu mero usuário não teria o condão de afastar a traficância de drogas, sendo comum a figura do usuário que vende tóxicos para sustentaro vicio.

E para a configuração do delito de tráfico de drogas, não é necessária prova da mercancia, pois o simples fato de, com essa finalidade, preparar, transportar, guardar, manter em deposito, trazer consigo ou fornecer, ainda que gratuitamente, a substancia, tambem caracteriza o crime em questão.

[...] Assim, de rigor a manutenção da condenação do réu também pelo delito de trático de drogas. (fls. 49-51, destaquei).

Pelo trecho anteriormente transcrito e, sobretudo, pela leitura atenta da sentença condenatória e do acórdão recorrido, verifico que as instâncias ordinárias, após toda a análise do conjunto fático-probatório amealhado aos autos, concluíram pela existência de elementos concretos e coesos a ensejar a condenação do acusado pelo crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/2006).

Por essas razões, mostra-se inviável a desclassificação da conduta imputada ao réu, sobretudo em se considerando que, no processo penal, vigora o princípio do livre convencimento motivado, em que é dado ao julgador decidir pela condenação do agente, desde que o faça fundamentadamente, exatamente como verificado nos autos.

Registro, no particular, que, nos termos do art. 28, § 2º, da Lei n. 11.343/2006, não é apenas a quantidade de drogas que constitui fator determinante para a conclusão de que a substância se destinava a consumo pessoal/conjunto ou ao tráfico de drogas, mas também o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.

Ademais, esclareço que, para a configuração do delito de tráfico de drogas, não é necessária prova da mercancia, tampouco que o agente seja surpreendido no ato da venda do entorpecente ? até porque o próprio tipo penal aduz "ainda que gratuitamente" ?, bastando, portanto, que as circunstâncias em que se desenvolveu a ação criminosa denotem a traficância, tal como ocorreu no caso.

Por fim, esclareço que, para entender-se pela desclassificação da conduta do réu, seria necessário o revolvimento de todo o conjunto fático-probatório produzido nos autos, providência, conforme cediço, incabível na via estreita do habeas corpus.

À vista do exposto, indefiro  liminarmente o presente habeas corpus .

Publique-se e intimem-se.

Brasília (DF), 02 de dezembro de 2021.

Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ Relator

(Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 07/12/2021)

 

Vê-se, assim, que não é o caso de desclassificar-se a conduta do acusado para aquela prevista no art. 28 da Lei de Drogas, enquadrando sua conduta em porte para uso pessoal.  

 

Dessa forma, de rigor a manutenção da condenação do réu LEONARDO SOUZA nas sanções do delito do art. 33, caput, da Lei 11.343/2006.

 

DA DOSIMETRIA DA PENA

Deve o magistrado, ao calcular a reprimenda a ser imposta ao réu, respeitar os ditames insculpidos no art. 68 do Código Penal, partindo da pena-base a ser aferida com supedâneo no art. 59 do mesmo Diploma, para, em seguida, incidir na espécie as circunstâncias atenuantes e agravantes e, por último, as causas de diminuição e de aumento de pena.

 

Primeira Fase

Na primeira fase relacionada à dosimetria da reprimenda, a pena base foi mantida no mínimo legal de 05 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa, uma vez que adequado às circunstâncias do caso em concreto.

 

Segunda Fase

Na segunda fase do cálculo, ausentes quaisquer agravantes ou atenuantes, a pena intermediária resta mantida no mínimo legal de 05 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa.

 

Terceira fase

Na terceira fase da dosimetria da pena, foi reconhecida devidamente a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei de Drogas), porquanto preenchidos os requisitos legais, uma vez que não se demonstrou a dedicação do acusado às atividades criminosas. Como bem fundamentou o r. juízo sentenciante, embora não se tenha dúvidas de que o entorpecente encontrado em poder do réu se destinasse ao tráfico, não há elementos suficientes para afirmar que LEONARDO se dedicasse de forma contumaz a esta atividade.

 

Com esteio nesses fundamentos, e diante das circunstâncias particulares do caso, bem como a quantidade, apesar de relevante, não suficientemente expressiva de droga apreendida, o r. juízo a quo entendeu por bem aplicar a causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, no patamar de 1/3 (um terço), o que deve ser mantido em seus exatos termos, à míngua de recurso a impugnar esse ponto.

 

Assim, a pena definitiva do acusa resta mantida no patamar fixado pela r. sentença a quo, qual seja, 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, além de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa.

 

PENA DEFINITIVA

Mantida a pena definitiva do réu quanto ao delito do art. 33 da Lei de Drogas em 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, além de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa, cada um no valor de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente à época dos fatos.

 

REGIME INICIAL

Primeiramente, relevante salientar que a obrigatoriedade do regime inicial fechado aos sentenciados por crimes hediondos e equiparados não mais subsiste, diante da declaração de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/1990, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 111840, em 27 de junho de 2012.

 

Desta forma, para determinação do regime inicial, deve-se observar o artigo 33, parágrafos 2º e 3º, do Código Penal, e do artigo 59 do mesmo Codex, de forma que a fixação do regime inicial adeque-se às circunstâncias do caso concreto. Ressalte-se que, especificamente quanto ao delito de tráfico ilícito de drogas, também se considerará a natureza e quantidade de entorpecentes como fundamentação idônea para a fixação do regime inicial para cumprimento de pena, nos termos do artigo 42 da Lei 11.343/2006.

 

Nesse sentido:

PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. REGIME PRISIONAL MAIS GRAVOSO. FUNDAMENTAÇÃO VINCULADA. VEDAÇÃO LEGAL CONTIDA NO ART. 2º, § 1º, DA LEI N. 8.072/90, NA REDAÇÃO DADA PELO LEI N. 11.464/2007. INCONSTITUCIONALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1. Embora possa haver nos autos elementos concretos que justifiquem a imposição de regime mais gravoso, sabe-se que para cada uma das fases de dosimetria das penas, bem como para a fixação do regime prisional, a fundamentação deverá ser vinculada aos motivos declinados pelo julgador.

2. Declarada a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º da Lei n. 8.072/90, que determinava a obrigatoriedade de imposição de regime inicial fechado aos condenados por crimes hediondos ou equiparados, a fixação do regime inicial deve observar os critérios do art. 33, §§ 2º e 3º do Código Penal e do art. 42 da Lei n. 11.343/06, aos condenados por tráfico de drogas.

3. Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp 1512607/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 22/03/2018, DJe 03/04/2018- destaque nosso)

 

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. DESCABIMENTO. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA. PENA-BASE. MAJORAÇÃO. QUANTIDADE E NATUREZA DA SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. QUANTUM DE AUMENTO. DISCRICIONARIEDADE. ART. 42 DA LEI N. 11.343/06. INCIDÊNCIA DO REDUTOR PREVISTO NO § 4º DO ART. 33 DA LEI N. 11.343/06. DEDICAÇÃO A ATIVIDADES CRIMINOSAS. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE BIS IN IDEM. HIPÓTESE DIVERSA DAQUELA TRATADA NO ARE N. 666.334/RG (REPERCUSSÃO GERAL), DO STF. REGIME FECHADO. POSSIBILIDADE. QUANTIDADE, VARIEDADE E NATUREZA DA DROGA APREENDIDA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. AUSÊNCIA DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. WRIT NÃO CONHECIDO.

(...)

5. O STF, no julgamento do HC n. 111.840/ES, declarou inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.464/07, afastando, dessa forma, a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por crimes hediondos e equiparados. Assim, o regime prisional deverá ser fixado em obediência ao que dispõe o art. 33, §§ 2º e 3º, e art. 59, ambos do Código Penal - CP.

In casu, a quantidade, variedade e natureza da droga apreendida, utilizadas na terceira fase da dosimetria para afastar a aplicação do redutor previsto no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, justificam a fixação do regime prisional mais gravoso. Precedentes.

6. Considerando a pena aplicada, no patamar superior a 4 anos, inviável a aplicação da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, ante o não preenchimento dos requisitos do art. 44, I, do CP.

Habeas corpus não conhecido.

(HC 425.688/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 17/04/2018, DJe 02/05/2018- destaque nosso)

 

In casu, diante da ora absolvição quanto ao delito do art. 163 do Código Penal e a manutenção da condenação tão somente do crime do art. 33 da Lei de Drogas, tem-se que a pena privativa de liberdade foi fixada em 03 anos e 04 meses de reclusão, possível a fixação de regime inicial ABERTO para cumprimento de pena, nos termos do artigo 33, § 2º, alínea c, do Código Penal. 

 

Saliente-se que a detração de que trata o artigo 387, § 2º, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 12.736/2012, não influencia no regime já que fixado o regime inicial menos gravoso.

 

SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS

Tendo em vista o implemento dos requisitos legais previstos no art. 44 do Código Penal, deve a pena corporal ser substituída por duas reprimendas restritivas de direito, quais sejam, prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas (a ser definida pelo MM. Juízo da Execução Penal - art. 46 do Código Penal) e prestação pecuniária no valor de 01 (um) salário mínimo (a ser destinada a entidade com finalidade social). Ressalte-se que o pagamento da prestação pecuniária a entidade com destinação social atende o teor do art. 45, § 1º, do Código Penal, pois a União é sempre vítima estanque de todo e qualquer delito e o encaminhamento sistemático a ela faria com que as demais hipóteses do artigo mencionado jamais tivessem aplicação - a destinação da prestação pecuniária ora determinada alcança fins sociais precípuos que o Direito Penal visa atingir, de maneira eficaz e objetiva.

 

DISPOSITIVO

Ante o exposto, voto por DAR PARCIAL PROVIMENTO ao recurso de Apelação de LEONARDO SOUZA para absolvê-lo da prática do delito previsto no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, mantendo-se a condenação do réu quanto ao delito previsto no art. 33, em sua forma fundamental, c.c. o artigo 40, inciso I, da Lei Federal nº 11.343/2006, restando sua pena definitiva fixada em 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial ABERTO, além do pagamento de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, nos etermos anteriormente dispostos, mantendo-se, no mais, a sentença a quo, por seus próprios e judiciosos fundamentos. 

 

É o voto.

 

Comunique-se o Juízo das Execuções Criminais.

 

Oficie-se à FUNAI para ciência do presente voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

 

 

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. DANO QUALIFICADO. ART. 163, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO III, DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO. NÃO COMPROVAÇÃO DE COAUTORIA POR PARTE DO RÉU. AUSÊNCIA DE PROVAS ACERCA DO TEOR DO CÂNTICO PROCLAMADO PELO INCREPADO EM SEU DIALETO. ATAQUE PERPETRADO UNICAMENTE POR TERCEIROS. TRÁFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS (ARTIGO 33, CAPUT, C.C. O ARTIGO 40, INCISO I, AMBOS DA LEI FEDERAL Nº 11.343/2006). AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS COMPROVADAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DO ART. 28 DA LEI DE DROGAS. MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO PELO TRÁFICO. DOSIMETRIA DA PENA. PRIMEIRA FASE. MANUTENÇÃO DO  MÍNIMO LEGAL. SEGUNDA FASE. AUSÊNCIA DE AGRAVANTES OU ATENUANTES GENÉRICAS. TERCEIRA FASE. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA PREVISTA NO ARTIGO 33, § 4º, DA LEI DE DROGAS MANTIDA NO PATAMAR DE 1/3 (UM TERÇO). REGIME INICIAL ABERTO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS CONFIRMADA. APELAÇÃO DEFENSIVA PARCIALMENTE PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA, EM PARTE.

- Dano qualificado. No caso em concreto, consta que no dia e local supramencionados, policiais da Força Nacional se deslocaram até a aldeia Tey Kuê, acompanhados do Oficial de Justiça, em cumprimento de mandado de prisão preventiva em desfavor de LEONARDO DE SOUZA, o qual teria resistido à prisão e instigado sua família a investir contra as equipes com pedras, foices, arco e flecha e lanças, resultando em danos ao patrimônio da União.  Em tal ação da comunidade indígena foram danificados 04 (quatro) veículos da marca FORD, modelo RANGER, pertencentes à Secretaria Nacional de Segurança Pública, todos com placas de Brasília/DF e equipados para operarem como viaturas policiais ostensivas da Força Nacional, comprovando-se, assim, a materialidade do delito de dano.

- A autoria delitiva, entretanto, diferentemente do quanto entendido pelo r. juízo sentenciante, não pôde ser devidamente comprovada pelos elementos probatórios colhidos durante a instrução processual, sendo de rigor, assim, o acolhimento do pleito defensivo pela absolvição de LEONARDO DE SOUZA quanto ao delito previsto no art. 163 do Código Penal. As declarações colhidas sob o crivo do contraditório evidenciam que, apesar de os policiais da Força Nacional que participaram da abordagem, terem sido enfáticos quanto à correlação direta entre o réu LEONARDO e o ataque da comunidade indígena às viaturas policiais, tal conclusão, em realidade, não passou de uma inferência a partir da percepção pessoal destes, percepção esta absolutamente subjetiva e que não corroborada por nenhum elemento em concreto que permita afirmar, com a segurança necessária para a manutenção de uma condenação criminal, que, de fato, LEONARDO DE SOUZA tenha instigado ou ordenado que os indígenas cometessem o crime de dano.

- Ao contrário, os policiais ouvidos em juízo, apesar de afirmarem que a alteração de ânimos e a confusão iniciou-se a partir do momento em que o acusado LEONARDO começou a entoar um cântico em tupi-guarani, confirmaram não serem capazes de afirmar o que precisamente foi dito pelo acusado e se este, de fato, emitiu palavras ou gestos no sentido de ordenar ou instigar a ação dos demais indígenas.

- Nesse sentido, embora não seja impossível que, de fato, LEONARDO DE SOUZA tenha, em tupi guarani, proferido palavras para instigar o cometimento do delito de dano perpetrado pelos demais indígenas, o que o tornaria coautor de tal fato, inexistem nos autos prova contundente de que isso tenha, de fato, ocorrido, não se mostrando apta, portanto, a condenação do acusado, imperando-se a aplicação do princípio in dubio pro reo.

- Tráfico ilícito de entorpecentes. A materialidade do delito de tráfico ilícito de entorpecentes, além de não ter sido objeto de impugnação, restou devidamente comprovada pelos seguintes documentos: Auto de Prisão em Flagrante; Auto de Apresentação e Apreensão;  Laudo Preliminar de Constatação e Laudo Definitivo de Constatação, em que se atesta que a substância apreendida 313,9 gramas (massa líquida) da substância entorpecente conhecida como maconha.

- De igual forma, como bem ressaltou a r. sentença a quo, a autoria restou devidamente demonstrada, uma vez que a prova testemunhal produzida na fase judicial, corroborada pelo flagrante delito, endossa os fatos descritos na r. exordial incoativa. Como já mencionado alhures, os policiais e o Oficial de Justiça que participaram da prisão do acusado foram uníssonos e harmônicos em afirmar que, durante a abordagem para cumprimento de mandado de prisão, foi encontrada uma porção de maconha debaixo da cama do acusado. Como bem apontado pelo r. juízo sentenciante, a quantidade de entorpecente, o local em que estava acondicionado e a forma de aquisição, tudo somado aos depoimentos das testemunhas, revelam, a despeito do quanto alegado, a prática do crime de tráfico de drogas pelo réu.

- A forma de aquisição alegada, entretanto, não é plausível. A defesa explana que a atividade do “mascatero” é a venda de produtos/insumos – o que sugere, de plano, a incompatibilidade com a disponibilização graciosa. Se a concessão gratuita de produtos lícitos já não seria natural, imagine-se de produto ilícito, ao qual se agrega o risco de aquisição e comercialização (risco este embutido no preço). Nessa linha, a quantidade 313 gramas de maconha não é inexpressiva e não tem baixo custo de aquisição, sendo verossímil que o réu a tenha ganhado de um “masquetero”.

- Ainda, é de se ressaltar que o acusado não fez qualquer tipo de prova para evidenciar seu versão dos fatos, não trazendo aos autos sequer a identificação da pessoa que supostamente teria lhe fornecido e indicado a substância entorpecente para a formulação de medicamento. De fato, o acusado sequer comprovou as condições médicas por ele alegadas, em nítido descumprimento de ônus probatório que lhe incumbia, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal.

- Também é de se ressaltar que a forma de acondicionamento da substância também evidenciou a inverdade da versão apresentada pelo acusado, bem como o próprio dolo de sua conduta, uma vez que evidente a tentativa do acusado de encontrar subterfúgios irrazoáveis para a posse do entorpecente em questão.

- O réu e os policiais que participaram da apreensão confirmaram que o entorpecente foi encontrado embaixo da cama do acusado, em sua residência. Primeiramente, é importante apontar que a maconha encontrada não estava em formato de extrato alcóolico, como aduz o réu que seria utilizada, mas sim in natura, na forma que é utilizada, como de conhecimento geral, para seu fumo e uso recreativo. Quando questionado sobre o porquê da maconha ser a única erva acondicionada debaixo de sua cama, sem a existência de qualquer outra erva que supostamente seria utilizada no composto medicinal, o réu não apresentou explicação plausível, alegando, de maneira incoerente e contraditória, que “era a primeira vez que ia usar esse remédio. Só  a maconha estava embaixo da cama, e não as outras porque quando acabava o remédio, ele colocava de novo a erva, socava no pilão e a aplicava em seu corpo de maneira recorrente”.

- Por fim, tendo como supedâneo a quantidade de entorpecente ora em comento, os 313 g de maconha apreendidos em poder do acusado superam o que a jurisprudência deste E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região usa como discriminem para fins de análise do que seria mero porte de drogas para uso pessoal de atos de traficância.

- Ressalte-se, por fim, que, de plano, mesmo que se considerasse que a droga em questão fosse, de fato, ser utilizada para fins medicinais, não se pode olvidar que a Resolução RDC n. 335, de 24 de janeiro de 2020, da ANVISA, estabelece critérios e procedimentos definidos para a importação de produto derivado de cannabis para tratamento de saúde próprio, mediante a prescrição de profissional legalmente habilitado. De fato, o acusado sequer demonstrou qualquer prescrição médica nesse sentido, ou o cumprimento de quaisquer requisitos procedimentais, cadastros e fiscalizações sanitárias exigidas na referida Resolução para a autorização da Anvisa para tratamento médico com produtos com derivado de cannabis. Inclusive, o conceito de produto derivado de cannabis cuja importação é legalmente excepcionada e autorizada pela Anvisa inclui tão somente produtos industrializados trazidos do exterior, não se enquadrando nessa hipótese a importação in natura de substância entorpecente conhecida como maconha, como seria no caso em concreto.

- A distribuição a terceiros, de maconha, independentemente de sua forma de acondicionamento, por si só, já enquadra a conduta do acusado no delito de tráfico ilícito de entorpecentes, mesmo nos casos em que tal distribuição se dê de forma gratuita.  Precedente.

- Dosimetria da pena. Primeira fase. Na primeira fase relacionada à dosimetria da reprimenda, a pena base foi mantida no mínimo legal de 05 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa, uma vez que adequado às circunstâncias do caso em concreto.

- Segunda fase.  Na segunda fase do cálculo, ausentes quaisquer agravantes ou atenuantes, a pena intermediária resta mantida no mínimo legal de 05 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa.

- Terceira fase. Na terceira fase da dosimetria da pena, foi reconhecida devidamente a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei de Drogas), porquanto preenchidos os requisitos legais, uma vez que não se demonstrou a dedicação do acusado às atividades criminosas. Como bem fundamentou o r. juízo sentenciante, embora não se tenha dúvidas de que o entorpecente encontrado em poder do réu se destinasse ao tráfico, não há elementos suficientes para afirmar que LEONARDO se dedicasse de forma contumaz a esta atividade.  Diante disso e diante das circunstâncias particulares do caso, bem como a quantidade, apesar de relevante, não suficientemente expressiva de droga apreendida, o r. juízo a quo entendeu por bem aplicar a causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, no patamar de 1/3 (um terço), o que deve ser mantido em seus exatos termos, à míngua de recurso a impugnar esse ponto. Assim, a pena definitiva do acusa resta mantida no patamar fixado pela sentença a quo, qual seja, 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, além de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa.

- Regime inicial. In casu, diante da ora absolvição quanto ao delito do art. 163 do Código Penal e a manutenção da condenação tão somente do crime do art. 33 da Lei de Drogas, tem-se que a pena privativa de liberdade foi fixada em 03 anos e 04 meses de reclusão, possível a fixação de regime inicial ABERTO para cumprimento de pena, nos termos do artigo 33, § 2º, alínea c, do Código Penal. 

- Saliente-se que a detração de que trata o artigo 387, § 2º, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 12.736/2012, não influencia no regime já que fixado o regime inicial menos gravoso.

- Tendo em vista o implemento dos requisitos legais previstos no art. 44 do Código Penal, deve a pena corporal ser substituída por duas reprimendas restritivas de direito, quais sejam, prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas (a ser definida pelo MM. Juízo da Execução Penal - art. 46 do Código Penal) e prestação pecuniária no valor de 01 salário mínimo (a ser destinada a entidade com finalidade social). Ressalte-se que o pagamento da prestação pecuniária a entidade com destinação social atende o teor do art. 45, § 1º, do Código Penal, pois a União é sempre vítima estanque de todo e qualquer delito e o encaminhamento sistemático a ela faria com que as demais hipóteses do artigo mencionado jamais tivessem aplicação - a destinação da prestação pecuniária ora determinada alcança fins sociais precípuos que o Direito Penal visa atingir, de maneira eficaz e objetiva.

- Apelação defensiva  parcialmente provida para absolver o réu da prática do delito previsto no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, mantendo-se a condenação do réu quanto ao delito previsto no art. 33, em sua forma fundamental, c.c. o artigo 40, inciso I, da Lei Federal nº 11.343/2006, restando sua pena definitiva fixada em 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial ABERTO, além do pagamento de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, mantendo-se, no mais, a sentença a quo.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Décima Primeira Turma, por unanimidade, decidiu DAR PARCIAL PROVIMENTO ao recurso de Apelação de LEONARDO SOUZA para absolvê-lo da prática do delito previsto no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, mantendo-se a condenação do réu quanto ao delito previsto no art. 33, em sua forma fundamental, c.c. o artigo 40, inciso I, da Lei Federal nº 11.343/2006, restando sua pena definitiva fixada em 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial ABERTO, além do pagamento de 333 (trezentos e trinta e três) dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, nos etermos anteriormente dispostos, mantendo-se, no mais, a sentença a quo, por seus próprios e judiciosos fundamentos, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.