Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
5ª Turma

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5000117-48.2022.4.03.6002

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

RECORRIDO: GIOVANNI JOLANDO MARQUES

Advogados do(a) RECORRIDO: PAMELA CAROLINE MOURA WERNERSBACH - MS23019-A, FELIPE CAZUO AZUMA - MS11327-S

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
5ª Turma
 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5000117-48.2022.4.03.6002

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

RECORRIDO: GIOVANNI JOLANDO MARQUES

Advogados do(a) RECORRIDO: PAMELA CAROLINE MOURA WERNERSBACH - MS23019-A, FELIPE CAZUO AZUMA - MS11327-S

OUTROS PARTICIPANTES:

 R E L A T Ó R I O

 Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra a decisão que substituiu a prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques por prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica, cumulada com as seguintes medidas cautelares: manter endereços físico e eletrônico atualizados nos autos do inquérito e de eventual ação penal; não mudar de residência sem prévia comunicação ao Juízo Federal competente; não se ausentar da cidade em que reside por mais de oito dias sem prévia autorização judicial; não sair do País até o término de eventual ação penal; não praticar mais crimes; apresentar comprovante de endereço válido, em 30 (trinta) dias; responder às comunicações eletrônicas enviadas pelo Juízo; proibição de acesso ou frequência aos locais em que se situam as habitações dos indígenas, fixada uma distância mínima de 500m (quinhentos metros) dos locais em que residem os indígenas da comunidade Avaeté e Ñu Verá; proibição de contato com Allan Christian Kruger e Anderson Baes; e recolhimento domiciliar noturno com monitoramento eletrônico (Id n. 254546784).

O Ministério Público Federal alega o seguinte:

a) a prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques foi decretada em 12.10.21 e posteriormente, em 26.10.21, foi substituída por prisão domiciliar cumulada com outras cautelares;

b) a decisão posterior, no entanto, merece ser revista, pois permanece a necessidade de se manter a prisão preventiva para a garantia da ordem pública (CPP, art. 312);

c) ao proceder à substituição por prisão domiciliar, o Juízo a quo explicitou três argumentos: divergência em relação aos depoimentos prestados pelos indígenas no tocante ao disparo de arma de fogo, bem como a direção em que teriam sido efetuados, o que poderia excluir a tipicidade da tentativa de homicídio; a requisição de instauração de inquérito policial para aprofundamento das investigações; e a suficiência de medidas cautelares de natureza diversa, como teria sido sugerido pelo próprio Ministério Público Federal;

d) malgrado os argumentos da decisão recorrida, tem-se que o Ministério Público Federal havia requerido a fixação de medidas cautelares apenas como pedido subsidiário;

e) embora não estejam bem delineados os indícios de autoria e a materialidade da tentativa de homicídio, ainda assim há o lastro probatório em relação ao crime de incêndio, considerando que os indígenas foram unânimes em relatá-lo, além de haver confissão do próprio investigado Giovanni Jolando Marques, em entrevista concedida a portais de notícias locais – está, assim, presente o “fumus commissi delicti” (CPP, art. 312);

f) a “gravidade que recomenda a prisão preventiva para garantia da ordem pública decorre do contexto de conflitos fundiários na região, o qual se agrava com o passar dos dias” (cf. Id n. 254546787, p. 3) – são citadas, a título de exemplo, diversas ações penais e medidas cautelares pessoais e reais contra indígenas, proprietários rurais e vigilantes implicados no conflito (Autos ns. 5002418-02.2021.4.03.6002, 5001036-08.2020.4.03.6002, 5001482-45.2019.4.03.6002, 001177-61.2019.4.03.6002, 5001429-64.2019.4.03.6002, 5000891-83.2019.4.03.6002 e 5000416-93.2020.4.03.6002);

g) “não é de hoje que o investigado GIOVANNI JOLANDO MARQUES usa da violência contra os indígenas, tendo já sido denunciado pela tentativa de homicídio de EZEQUIEL GONÇALVES CANTEIRO, em virtude de conduta praticada em 12.10.2019” (cf. Id n. 254546787, p. 4);

h) é caso de reforma da decisão para que seja decretada a prisão preventiva de Giovanni, nos termos dos arts. 312  e 313, I, do Código de Processo Penal (Id n. 254546787, pp. 1/7). 

O recorrido Giovanni Jolando Marques apresentou contrarrazões (Id n. 254546788, pp. 1/9).

O Juízo a quo manteve a decisão recorrida, por seus próprios fundamentos (Id n. 254546791).

O Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Ageu Florêncio da Cunha, manifestou-se pelo provimento do recurso em sentido estrito, de modo que seja decretada a prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques (cf. Id n. 254744482, pp. 1/7). 

É o relatório.

Dispensada a revisão, nos termos regimentais.

 

 


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5ª Turma
 

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RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

RECORRIDO: GIOVANNI JOLANDO MARQUES

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OUTROS PARTICIPANTES:

 V O T O

Nos autos originários, em 27.09.21, o Juízo a quo decretou a prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques, pelos seguintes fundamentos:

 

1) O Ministério Público Federal pede: (i) a decretação da prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques e, subsidiariamente, a fixação de medidas cautelares em seu desfavor; (ii) a suspensão cautelar da posse ou do porte das armas registradas em nome de Giovanni Jolando Marques, bem como a sua apreensão, com fundamento nos arts. 4°, 5° da Lei 10.826/03, art. 14 do Decreto 9.847/19 e arts. 18, IV e 22, I, da Lei 11.340/06; (iii) a fixação de medidas cautelares em face de Allan Christian Kruger; (iv) que Giovanni Jolando Marques apresente o contrato de arrendamento supostamente realizado com Allan Christian Kruger.

Postula ainda que a empresa de segurança Miragem exiba em juízo: (i) os contratos de trabalho dos seguranças que atuaram nas fazendas situadas nas proximidades do Anel Viário em Dourados (Fazenda Celeste, Fazenda Boa União, Estância Parque dos Eucaliptos, Fazenda Curral de Arame, cujos proprietários/ arrendatários seriam Claudio Takeshi Iguma, Allan Christian Kruger, Nivaldo Kruger e Giovanni Jolando Marques); (ii) as escalas de serviço dos seguranças que atuaram nessas fazendas de 01/01/2020 até a presente data, na medida em que a empresa Miragem Segurança LTDA não tem atendido às requisições do Parquet.

O MPF fundamenta seu pedido na provocação de incêndio a uma habitação indígena localizada na Fazenda Boa União, em Dourados-MS, e realização de disparos em face da comunidade indígena.

Consta dos autos que, no dia 06/09/2021, por volta das 10 horas, Alan Kruger e Giovanni Jolando Marques se deslocaram, em uma caminhonete branca, até uma casa de sapé localizada no interior da Fazenda Boa União, propriedade rural próxima à Reserva Indígena de Dourados-MS. Alan e Giovanni estavam acompanhados de uma picape preta da empresa de segurança Miragem com dois seguranças no interior do veículo e outros dois na carroceria. Giovanni Jolando Marques desceu da Hilux branca, ateou fogo na habitação onde moravam Iracema Oliveira e Ivan Oliveira com seus três filhos, e efetuou disparos de arma de fogo na direção das vítimas.

 É o relatório do essencial. Decide-se.

Ratifica-se a competência para processamento do feito. É competente para processar os feitos atinentes ao Tribunal do Júri Federal, nos exatos termos artigo 1º do Provimento 188, de 11/11/1999, do Conselho Justiça Federal da 3ª Região, a 1ª Vara de cada Subseção.

Trata-se de pedido de decretação de prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques e de fixação de medidas cautelares a Allan Christian Kruger, investigados em Inquérito Civil ainda sem número (105637497), pela prática, em tese, dos crimes de incêndio (art. 250 do CP), tentativa de homicídio (art. 121, c/c art. 14, II, do CP) e racismo (art. 20 da Lei 7.716/89) contra a comunidade indígena residente no Acampamento Avaeté, situado na Fazenda Boa União, em Dourados-MS.

Para a decretação da prisão preventiva é necessário que seja cominada ao crime investigado pena máxima superior a 4 anos, a presença de indícios de autoria e materialidade do delito (fumus commissi delicti), bem assim, a presença de um dos fundamentos constantes no art. 312 do CPP (periculum libertatis).

Há fumus commissi delicti para a decretação do encarceramento preventivo.

 A materialidade delitiva dos delitos narrados é demonstrada por depoimentos e documentos. A prova testemunhal produzida por Rosilena Vargas e Jairo é uníssona em atestar a provocação de incêndio de uma habitação da Ocupação Avaeté 1, bem como a realização de disparos de arma de fogo em face da comunidade indígena.

Rosilena, moradora do Avaeté 1, relatou que na segunda-feira, dia 06/09/21, às 11 horas da manhã, o fazendeiro Allan Kruger veio até o local que estavam instalados numa casa de sapé com uma caminhonete Hillux branca, acompanhado de Giovanni (vulgo Gordo). Também chegou ao local uma picape preta da Miragem Segurança, onde estavam dois seguranças no interior do veículo e outros dois na carroceria. Quando se aproximaram, Rosilena viu Giovanni descer da caminhonete e atear fogo na casa - 105638007 - Pág. 7.

Jairo, que também estava no local quando os fatos ocorreram, aproximadamente às 10 horas da manhã, relatou que viu uma caminhonete prata e uma caminhonete preta. Observou, logo em seguida, um gordo saindo da caminhonete branca e descendo a pé com um vasilhame de diesel, o qual foi usado para atear fogo na casa. Apesar de não ter visto, confirma que algum destes indivíduos desferiu tiros na direção de um menino que estava no local. Disse que deram tiro na direção de um “guri” que estava no local - 105638007 - Pág. 8.

O depoimento do Sr. Ivan Oliveira, vítima do crime de incêndio, é no mesmo sentido: “as viaturas da polícia militar vieram fazer a segurança. Conversaram com os fazendeiros, nem um minuto, e depois foram embora. Daí vieram Alan e o Gordão em duas caminhonetes, uma prata, dirigida por Alan e pelo Gordão que queimou a casa. Eu chamo ele de Gordão, ele disse que esse é o nome dele, é Giovanni. Aí eu comecei a filmar. O Giovanni fala que já foi até em Caarapó atirar em índio. Aí o Gordão desceu da camionete, estava com uma arma na mão. O Alan passou gasolina, diesel para a mão do Gordão. Eu comecei a filmar e o Giovanni começou a dar tiro, atirar, atirar. Tinha uma Hilux prata e uma preta, com três seguranças privados. Um dos seguranças era um moreno que sempre está presente na área. Os seguranças ameaçam os indígenas passam por eles nas estradas. O gordão foi até a Hilux prata, conversou com o Allan, veio andando com a arma e meteu fogo” - 105638007 - Pág. 7.

As fotos da habitação queimada e a publicação de reportagem do jornal sobre o incêndio são evidências concretas da materialidade delitiva. Conjugando estas informações, é possível concluir que os projéteis encontrados no local teriam sido disparados pelos produtores rurais.

Importante ressaltar que não está presente de forma extreme de dúvida a causa excludente de ilicitude, consubstanciada no exercício regular do direito ao desforço imediato (CC, 1.210):

 Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

§ 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.

 A ameaça de ocupação indígena na Fazenda Boa União data de 03/10/2018, conforme exposição apresentada nos autos da Ação de Interdito Proibitório 5002154-87.2018.4.03.6002. A pretensão de Allan Kruger foi acolhida por este Juízo, oportunidade na qual foi determinada a abstenção, por parte da Comunidade Indígena, de atos de turbação ou esbulho da posse do autor.

Vê-se que os atos não foram realizados logo após a ocupação indígena, já que esta remonta ao ano de 2018, não podendo a defesa invocar a aplicação do instituto civil para o caso. Ainda que assim não fosse, os meios empregados para intimidação da comunidade indígena e cessação da ocupação ultrapassaram os limites da legalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, configurando-se crimes. Allan e Giovanni não se valeram de meios moderados para efetivar a desocupação da área, tendo em vista que chegaram ao local acompanhados de seguranças privados, em duas caminhonetes, portando arma de fogo e fazendo disparos para intimidação da comunidade indígena pela superioridade de força.

Portanto, em uma análise preliminar, reputa-se não demonstrado que os investigados tenham atuado sob o manto de qualquer causa excludente de ilicitude. Muito pelo contrário, a despeito da existência de decisão judicial em seu favor, passível de execução provisória, recorreram ao uso da força para a satisfação da pretensão.

Superado este ponto, verifica-se que existem fundados indícios de autoria dos crimes ora investigados em relação aos representados Giovanni Jolando Marques e Allan Christian Kruger.

Os representados foram identificados pelas vítimas e testemunhas como os protagonistas do ataque. Rosilena Vargas e Iracema Oliveira viram Giovanni descer da caminhonete e atear fogo na casa - 105628798 - Pág. 13.

Ivan Oliveira, por sua vez, observou Allan entregar combustível a Giovanni, responsável pela queima do barraco. Ivan alega que havia uma arma na mão de Giovanni (vulgo Gordão), utilizada para desferir tiros nos indígenas - 105628798 - Pág. 13.

Jairo confirma o testemunho de Ivan, já que viu Giovanni sair da caminhonete branca carregando um “litrão” de diesel, usado para atear fogo na casa. Disse ainda que deram tiro na direção de um “guri” que estava no local - 105628798 - Pág. 14.

 Não fosse o bastante, extrai-se do depoimento prestado por Giovanni ao Jornal Midiamax que ele admitiu sua participação nos fatos - 105628798 - Pág. 11:

Feitas essas observações, verifico que estão presentes indícios de que os representados Giovanni Jolando Marques e Allan Christian Kruger perpetraram os crimes de incêndio (art. 250 do CP) e tentativa de homicídio (art. 121, c/c art. 14, II, do CP) contra a comunidade indígena da ocupação Avaeté em 06/09/2021.

 Os indícios de autoria relativamente a Allan Christian Kruger, embora presentes, não autorizam a decretação de medidas cautelares em seu desfavor. A acusação não disse nada que pudesse, de forma individualizada, respaldar a inversão da ordem natural do processo-crime - apurar-se para, selada a culpa, sancionar-se ou prender-se.

 O fato de Allan Christian, na condição de fazendeiro, ter realizado uma adaptação no trator da sua Fazenda não representa necessariamente um elemento concreto de prática delituosa pretérita a justificar a imposição de cautelares. A instalação de janela de aço no veículo, ao que parece, e a princípio, teve o único fim de viabilizar a execução das tarefas da Fazenda com uma mínima exposição física dos empregados da Fazenda Boa União conforme se extrai do Boletim de Ocorrência 4957/2018, constante do PIC 1.21.001.000216/2019-06:

“Comparece nesta Delegacia de Polícia, o comunicante, e relata que há vários dias vem sofrendo com invasões indígenas em sua propriedade, e que a violência empregada pelos indígenas, vem aumentando e que desta vez o funcionário estava trabalhando com o trator, e os indígenas atearam fogo no trator e efetuaram diversos disparos de arma de fogo no veículo, e que o funcionário poderia ser vitimado se não fosse a proteção que foi colocada no trator para proteger o operador de máquina, que o proprietário da fazenda instalou proteção semelhante a blindagem utilizando placas de aço devido a violência empregada pelos indígenas”.

Não se vislumbra, neste momento, um perigo decorrente do estado de liberdade do réu. Como se trata de crime isolado, inexistem motivos para se presumir que o investigado, em liberdade, voltará a se dedicar às atividades criminosas.

Trata-se de réu primário, com residência fixa e trabalho lícito. O próprio Ministério Público Federal afirma que Allan Kruger não responde a nenhum outro processo criminal ou inquérito - 105628798 - Pág. 31.

Em caso de condenação pelo crime de incêndio, sem prejulgar, haverá possibilidade de imposição de pena privativa de liberdade com regime menos gravoso. Em que pese essa ilação não ser um impedimento per se, uma vez que a prisão-sanção em nada se confunde com a prisão cautelar, já que esta não tem como pressuposto negativo o quantum de eventual sanção imposta (criação jurisprudencial), mas somente os pressupostos de cabimento insculpidos no art. 313 e os requisitos autorizadores constantes do art. 312, ambos do CPP.

Quanto às cautelares indicadas pelo Ministério Público Federal, revelam-se ineficazes ao desiderato pretendido, de tutelar o meio social de forma adequada. Os indígenas residem atualmente em uma parcela da propriedade rural de Allan (Fazenda Boa União). A proibição de acesso do produtor rural às habitações dos indígenas representa, então, em última análise, uma grave restrição ao seu direito de propriedade, cerceando o uso, gozo e disposição da coisa. Referida determinação poderia inclusive estimular o avanço da ocupação indígena, intensificando os conflitos fundiários já existentes na área.

Indefere-se, por estes motivos, a decretação de medidas cautelares em desfavor de Allan Kruger.

Superado este aspecto, analisam-se os fundamentos da segregação cautelar requestada pelo órgão ministerial em desfavor de Giovanni Jolando Marques (CPP, 312).

A decretação do encarceramento preventivo de Giovanni é necessária para resguardar a ordem pública.

A gravidade concreta dos atos imputados ao representado decorre do modus operandi adotado. Giovanni se utilizou de armamento letal para atacar os indígenas da Ocupação Avaeté 1, sem que tenha havido qualquer relato de resistência violenta.

 A garantia da ordem pública a ser resguardada compreende inclusive a ordem jurídica, haja vista que Giovanni, ao arrepio do Direito, e sem intervenção judicial, praticou atos visando a afastar os indígenas da propriedade rural. A atitude demonstrou desapreço pelos poderes constituídos. Apesar de ter sido reconhecida a procedência da ação de Interdito Proibitório 5002154-87.2018.4.03.6002 em favor do produtor rural Allan Kruger, houve desconsideração do título executivo provisório e tentativa de resolução do impasse mediante o uso da força. Tal aspecto se mostra preocupante, já que a área em questão é palco de conflito pela posse de terra, gerando a possibilidade de ameaça à integridade física dos demais indígenas além da família residente na habitação queimada.

 Há, ainda, suspeita da atuação de Giovanni muito mais como um “miliciano” do que como sitiante, já que foi denunciado, em conjunto com Anderson Baes e Daniel Camargo de Souza, por ter atentado contra a vida do indígena Ezequiel Gonçalves Canteiro no dia 12/10/2019. Segundo depoimento prestado em sede policial pela vítima Ezequiel Gonçalves Canteiro, o Sr. Giovanni estava a bordo do trator Caveirão com outros seguranças desferindo disparos de arma de fogo contra os indígenas, momento no qual o declarante sentiu uma agulhada na perna esquerda: 

Giovanni revela a personalidade voltada para a prática delitiva, conforme se depreende do curto lapso temporal decorrido entre o presente fato (06/09/2021) e a suposta tentativa de homicídio do indígena Ezequiel (12/10/2019). O envolvimento em ocorrência policial pretérita não lhe serviu de aprendizado para cessação dos atos criminosos. Percebe-se, então, que a segregação cautelar é uma necessidade para assegurar o império efetivo do Direito Penal, mantendo-se a tranquilidade social e o respeito na figura da Justiça (garantia da ordem pública).

 Estão presentes os pressupostos da decretação da prisão cautelar, eis que a pena privativa de liberdade dos crimes imputados aos representados é superior a 4 anos.

 Em face do exposto, presentes as hipóteses autorizadoras, decreta-se a prisão preventiva de GIOVANNI JOLANDO MARQUES, CPF 436.571.681-68, para a garantia da ordem pública, com fundamento no art. 312 do CPP.

 Indefere-se o pedido de fixação de medidas cautelares em face de Allan Christian Kruger. (Id n. 254546783, destaques do original)

 

Em 25.10.21, o Juízo a quo reviu a própria decisão, convertendo a custódia preventiva em prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica, cumulada com outras medidas cautelares, nos seguintes termos:

 

ID 203908599 Em que pesem os presentes autos terem vindo para prestação de informações no HC 5025636-23.2021.4.03.0000, é o caso de prolação de decisão, a qual servirá também como informações.

Nesse particular, pontue-se que a prestação de informações serve como retratação pelo Juiz da Causa para concessão de liberdade ao paciente.

Inicialmente, adotam-se as razões registradas no ID 111019159.

Contudo, veja-se o seguinte.

Conforme nos alerta o próprio MPF, na inicial, alguns depoentes consignaram:

ROSILENA VARGAS, moradora do AVAETÉ 1, relatou que segunda-feira (06.09.21), às 11h da manhã, o fazendeiro “ALAN KRUGER” veio até o local que estavam instalados numa casa de sapé com uma caminhonete branca (HILLUX), acompanhado de GIOVANNI, vulgo GORDO. Também chegou ao local uma picape preta da MIRAGEM, empresa de segurança, onde estavam dois seguranças no interior do veículo e outros dois na carroceria. Quando se aproximaram, viu GIOVANNI descer da caminhonete e atear fogo na casa.

Rosilena não relatou disparos.

Igualmente, IRACEMA OLIVEIRA, que morava na casa queimada há três anos, disse que os fatos ocorreram por volta de 10h da manhã, disse que viu GIOVANNI descer do carro e jogar combustível na casa e atear fogo.

Ora, a moradora do imóvel não informou disparos.

 JAIRO disse que Viu um GORDÃO saindo da caminhonete branca, que desceu a pé e veio trazendo um “litrão” de diesel, o qual despejou na casa e ateou fogo. Relatou que os ocupantes do veículo ficaram olhando e depois foram embora. Disse que deram tiro na direção de um “guri” que estava no local. Apesar de não ter visto, conseguiu ouvir o disparo realizado.

Nesse ponto, Jairo precisa que ouviu um disparo, mas não o viu.

Nesse particular, confronta-se com o depoimento de IVAN, que afirmara: O Alan passou gasolina, diesel para a mão do Gordão. Eu comecei a filmar e o Giovanni começou a dar tiro, atirar, Tinha uma Hilux prata e uma preta, com três seguranças atirar. privados. Um dos seguranças era um moreno que sempre está presente na área. Os seguranças ameaçam os indígenas passam por eles nas estradas. O gordão foi até a Hilux prata, conversou com o Allan, veio andando com a arma e meteu - 105638007 - Pág. 7.fogo.

Há, portanto, divergência entre os próprios indígenas da existência do disparo, sua  direção o que pode afastar a tipificação da tentativa de homicídio.

Nesse particular, mostra-se imprestável laudo realizado em outra oportunidade. Necessária a existência de laudo atual sobre o crime em apreço, não o ocorrido em 2019.

Ainda, o próprio MPF, a despeito da prova produzida, requisita instauração de inquérito policial para aprofundar tal prova.

Resta, assim, o crime de incêndio, grave imputado ao preso.

Vê-se que a fixação de cautelares diversas da prisão, inclusive, sugeridas pelo próprio MPF na petição de prisão.

Isso porque embora se trate de pedido de prisão preventiva decretada, com o imperioso reconhecimento dos requisitos da prisão preventiva, eis que é necessária a fixação de medidas cautelares diversas da prisão.

A prisão antes do julgamento é excepcional, permitida apenas quando não for possível a aplicação de outra medida.  Conforme texto do § 6º  do artigo 282 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva só é cabível quando não for possível sua substituição pelas medidas cautelares.

 A lei permite que as medidas cautelares sejam decretadas desde o inicio da investigação até antes do transito em julgado, e podem ser  aplicadas em qualquer infração que tenha pena restritiva de liberdade, desde que atenda aos requisitos do artigo 282: necessidade de garantia da lei e do processo penal e adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

No caso concreto, mormente as diretrizes da decisão id 111019159, estão presentes os requisitos para fixação das medidas cautelares.

Diante do exposto, concede-se prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica cumulada com as seguintes medidas cautelares: 1- manter seus endereços físico e eletrônico atualizados nos autos do inquérito e de eventual ação penal; 2- não mudar de residência sem prévia comunicação ao juízo federal competente; 3- não se ausentar da cidade em que reside por mais de oito dias, sem prévia autorização judicial; 4- não sair do país até o término de eventual ação penal; 5- não praticar mais crimes; 6-apresentar comprovante de endereço válido, em 30 dias; 7- responder às comunicações eletrônicas enviadas pelo Juízo; 8 proibição de acesso ou frequência aos locais em que se situam as habitações dos indígenas, fixada uma distância mínima de 500m dos locais em que residem os indígenas da comunidade AVAETÉ e ÑU VERÁ; 9 - proibição de contato com as seguintes pessoas: ALLAN CHRISTIAN KRUGER e ANDERSON BAES; 10- recolhimento domiciliar noturno com monitoramento eletrônico.

No caso de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar, com a imposição da medida cautelar de tornozeleira eletrônica, consoante artigo 317 e 319, IX do CPP.

Expeça-se ORDEM DE LIBERAÇÃO. (Id n. 254546784, destaques do original)

 

O Ministério Público Federal ora pede o restabelecimento da prisão preventiva, em vez da prisão domiciliar determinada pelo Juízo a quo.

É caso, porém, de manter a decisão recorrida.

Inicialmente, o Juízo a quo decretou a custódia preventiva em razão do lastro probatório mínimo dos crimes de incêndio (CP, art. 250) e tentativa de homicídio (CP, art. 121, c. c. o art. 14, II), em tese perpetrados por Giovanni Jolando Marques contra comunidade indígena da Ocupação Avaeté 1, situada na Fazenda Boa União, em Dourados (MS), no dia 06.09.21.

Extrai-se da decisão impugnada que os fatos estão relacionados a conflito fundiário local, já havendo, na esfera cível, decisão de primeira instância favorável ao agricultor Allan Kruger, no sentido de que os indígenas se abstenham de atos de turbação ou esbulho possessório na área onde situada a Fazenda Boa União (Ação de Interdito Proibitório n. 5002154-87.2018.4.03.6002).

Consta que, malgrado o pronunciamento judicial em seu favor, o agricultor Allan Kruger, acompanhado de Giovanni Jolando Marques, deslocou-se à região da ocupação indígena. Lá chegando, Giovanni incendiou uma casa de sapé ocupada pelos indígenas – há controvérsia se Giovanni teria, além disso, disparado arma de fogo.  

Na decisão inicial, ao fundamentar sobre a necessidade da prisão para a garantia da ordem pública, o Juízo a quo ponderou a gravidade da suposta tentativa de homicídio.

Além disso, reconheceu que os atos cometidos por Giovanni Jolando Marques objetivavam afastar os indígenas da propriedade rural. No entanto, neles não se reconhecia nenhuma excludente de ilicitude por legítima defesa da posse, uma vez que se trata de ameaça de ocupação antiga, existente desde 2018, além de que não houve emprego de meios legais e moderados para fazer cessar turbação ou esbulho. Considerou, ademais, que os atos revelavam o “desapreço pelos poderes constituídos”, dado que houve o exercício de esforço próprio em vez do acionamento das autoridades públicas.

O Juízo a quo ressaltou também os indicativos de reiteração delitiva, pois o investigado Giovanni é parte denunciada por tentativa de homicídio contra indígena no ano de 2019.

Posteriormente, contudo, ao verificar a fragilidade do lastro probatório relativo ao disparo de arma de fogo e a perspectiva de prolongamento das investigações, o Juízo a quo reviu em parte sua própria decisão. Sem prejuízo de reconhecer a gravidade concreta dos fatos, entendeu suficiente, por ora, a fixação de prisão domiciliar para Giovanni, com uso de tornozeleira eletrônica, cumulada com diversas medidas cautelares tendentes a evitar que o investigado torne a delinquir ou intimidar a comunidade indígena.

Os fatos objeto de apuração são bastante graves e, diante dos indícios de reiteração delitiva, recomendam a fixação de medidas cautelares a fim de evitar novas investidas criminosas, em conformidade com o disposto no art. 282, I e II, do Código de Processo Penal.

Contudo, as medidas estabelecidas pelo Juízo a quo restringem significativamente o direito de locomoção do recorrido, sujeito a controle mediante uso de tornozeleira eletrônica e proibido de se aproximar do local dos fatos, bem como do lugar onde residem os indígenas das comunidades Avaeté e Ñu Verá. Além disso, não deve se comunicar com outros indivíduos com quem teria perpetrado os delitos pelos quais é investigado.

As medidas cautelares fixadas pelo Juízo a quo mostram-se adequadas e suficientes à proteção da ordem pública contra a reiteração criminosa, não se impondo, por ora, o restabelecimento do decreto de prisão preventiva.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito.

É o voto.



E M E N T A

PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PEDIDO DE PRISÃO PREVENTIVA. MEDIDAS CAUTELARES FIXADAS PELO JUÍZO “A QUO” QUE SE MOSTRAM SUFICIENTES À PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO (CPP, ART. 282, I E II). RECURSO DESPROVIDO.

1. O Juízo a quo inicialmente decretou a custódia preventiva em razão do lastro probatório mínimo dos crimes de incêndio (CP, art. 250) e tentativa de homicídio (CP, art. 121, c. c. o art. 14, II), em tese perpetrados pelo recorrido contra ocupação indígena.

2. Posteriormente, contudo, ao verificar a fragilidade do lastro probatório relativo à tentativa de homicídio, bem como e a perspectiva de prolongamento das investigações, o Juízo a quo reviu em parte sua própria decisão. Sem prejuízo de reconhecer a gravidade concreta dos fatos, entendeu suficiente, por ora, a fixação de prisão domiciliar para o recorrido, com uso de tornozeleira eletrônica, cumulada com diversas medidas cautelares tendentes a evitar que o investigado torne a delinquir ou intimidar a comunidade indígena.

3. As medidas estabelecidas pelo Juízo a quo restringem significativamente o direito de locomoção do recorrido, sujeito a controle mediante uso de tornozeleira eletrônica e proibido de se aproximar do local dos fatos, bem como do lugar onde residem os indígenas. Além disso, não deve se comunicar com outros indivíduos com quem teria perpetrado os delitos pelos quais é investigado.

4. As medidas cautelares fixadas pelo Juízo a quo mostram-se, por ora, adequadas e suficientes à proteção da ordem pública contra novas investidas criminosas (CPP, art. 282, I e II), não se impondo a decretação da prisão preventiva do recorrido.

5.  Recurso em sentido estrito desprovido.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quinta Turma, por unanimidade, decidiu, NEGAR PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.