Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 0000404-40.2015.4.03.6003

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 0000404-40.2015.4.03.6003

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

  

 

R E L A T Ó R I O

Trata-se de remessa necessária e recurso de apelação interposto pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) contra sentença proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal de Três Lagoas/MS (ID 150864480), que, em sede de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Púbica Federal (MPF), julgou parcialmente procedente a pretensão autoral para determinar à FUNAI que dê início ao estudo antropológico de identificação da área reivindicada pelos índios Terena em Santa Rita do Pardo/MS e apresente, no processo administrativo próprio, o relatório circunstanciado previsto pelo Decreto nº 1.775/96 (art. 2º, § 6º) no prazo de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado, havendo fixado multa diária no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) para o caso de descumprimento, a ser revertida ao fundo previsto pelo art. 13, da Lei 7.347/85.

A Apelante, em suas razões de recurso (ID 150864484), sustenta, em síntese, que a atividade de demarcação de terras indígenas constitui procedimento de alta complexidade, de competência exclusiva da União, devendo, na forma regulamentada pelo Decreto nº 1.775/96, ser precedida de processo administrativo de iniciativa da FUNAI. Aduz que, em vista da carência de disponibilidade econômico-financeira, aliada à complexidade do procedimento, a FUNAI é compelida a estabelecer prioridades na análise dos pleitos demarcatórios dos povos indígenas, com base num juízo de conveniência e oportunidade, para aferir qual território reclama maior urgência e necessidade em ser identificado e delimitado. Alega, assim, que, tratando-se de atividade tipicamente administrativa, cujo planejamento e concretização competem unicamente à Administração Pública, o provimento jurisdicional que impõe à FUNAI a obrigação de concluir, em prazo determinado, a demarcação de área reivindicada pelos índios, consubstancia indevida ingerência no mérito administrativo e, por conseguinte, manifesta violação ao princípio da separação dos poderes. Argumenta, ainda, que, diante das condições concretamente expostas, deve ser considerada a reserva do possível. Subsidiariamente, pleiteia seja excluída a multa aplicada ou, eventualmente, seja reduzida a valor condizente com as dificuldades enfrentadas pela Autarquia para cumprimento da obrigação imposta.

Com contrarrazões (ID 150864487), vieram os autos a esta Corte Regional.

O Ministério Público Federal, em segundo grau de jurisdição, manifestou-se pelo desprovimento da apelação e pelo provimento da remessa necessária, a fim de que sejam julgados totalmente procedentes os pedidos constantes da exordial (ID 152938646).

É o relatório.

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 0000404-40.2015.4.03.6003

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

V O T O

 

Tempestivo, recebo o presente recurso de apelação no efeito devolutivo (art. 1.012, § 1º, do Código de Processo Civil c.c. art. 14, da Lei 7.347/85).

A matéria devolvida ao exame desta Corte será examinada com base na fundamentação que passo a analisar topicamente.

Da ausência de interesse de agir em relação à União Federal

Consoante se extrai dos termos da decisão saneadora proferida pelo Juízo a quo, em 24/07/2018, foi declarada a extinção do feito, sem resolução do mérito, em relação à União Federal, por falta de interesse de agir (ID 150864424 – p. 87/96).

A decisão não comporte reforma.

Conforme se infere da análise dos autos, a presente ação civil pública visa à obtenção de provimento jurisdicional que imponha à FUNAI a obrigação de dar início ao estudo antropológico de identificação da área reivindicada pelos índios Terena em Santa Rita do Pardo/MS e apresentar, no processo administrativo próprio, o relatório circunstanciado previsto pelo Decreto nº 1.775/96 (art. 2º, § 6º), em prazo razoável.

Efetivamente, inexiste nos autos qualquer pretensão deduzida em face da União Federal, havendo o pleito autoral se restringido a requerer o reconhecimento de obrigações contra a FUNAI, a qual constitui entidade da Administração Indireta, dotada de personalidade jurídica própria, com autonomia administrativa e financeira, não se encontrando demonstrada, portanto, a pertinência subjetiva da integração da União Federal ao polo passivo da lide.

Ademais, havendo a exclusão da União Federal se operado por força de decisão interlocutória, proferida em sede de saneamento do feito, a matéria seria passível de impugnação por meio de agravo de instrumento (art. 1.015, inc. VII, do Código de Processo Civil), encontrando-se, portanto, preclusa.

Passo ao exame do mérito.

Trata-se de remessa necessária e recurso de apelação contra sentença que, em sede de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Púbica Federal (MPF), julgou parcialmente procedente a pretensão autoral para determinar à FUNAI que dê início ao estudo antropológico de identificação da área reivindicada pelos índios Terena em Santa Rita do Pardo/MS e apresente, no processo administrativo próprio, o relatório circunstanciado previsto pelo Decreto nº 1.775/96 (art. 2º, § 6º) no prazo de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado, havendo fixado multa diária no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) para o caso de descumprimento, a ser revertida ao fundo previsto pelo art. 13, da Lei 7.347/85.

Em suas razões recursais, sustenta a FUNAI, em síntese, que, tratando-se de atividade tipicamente administrativa, cujo planejamento e concretização competem unicamente à Administração Pública, o provimento jurisdicional que impõe à Autarquia a obrigação de concluir, em prazo determinado, a demarcação de área reivindicada pelos índios, consubstancia indevida ingerência no mérito administrativo e, por conseguinte, manifesta violação ao princípio da separação dos poderes. Argumenta, ainda, que, diante das condições concretamente expostas, deve ser considerada a reserva do possível.

O recurso não comporta provimento.

De início, não comporta acolhimento a alegação de violação ao princípio da separação dos poderes por força da existência de provimento jurisdicional que impõe à FUNAI a obrigação de concluir, em prazo determinado, processo demarcatório de terra indígena, após o decurso injustificado de longo período de omissão por parte da Administração.

Consoante sedimento entendimento jurisprudencial, é vedado ao Poder Público a invocação da discricionariedade administrativa como fundamento para eximir-se do cumprimento de políticas públicas destinadas à consecução de direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição da República, sendo possível, em tal hipótese, a intervenção do Poder Judiciário com o fim de promover a implementação das normas e princípios constitucionais.

Inexiste, portanto, violação à separação dos poderes na hipótese em que o Poder Judiciário atua, na qualidade de controlador da atividade administrativa, com o escopo de assegurar a concretização de direitos individuais e sociais, cuja implementação mostra-se insuscetível de ser submetida à mera discricionariedade administrativa.

Ademais, tratando-se de provimento que visa à tutela de direito fundamental, vinculado aos princípios da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, inexiste óbice para que o Poder Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político respectivo.

Nesse sentido:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADES. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. 1. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que com isso configure violação do princípio da Separação de Poderes (...). 2. Agravo regimental não provido.

(STF, AI nº 708.667-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, DJe 10/04/2012)

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CADEIA PÚBLICA. SUPERLOTAÇÃO. CONDIÇÕES PRECÁRIAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA OBRIGAR O ESTADO A ADOTAR PROVIDÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E APRESENTAR PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA PARA REFORMAR OU CONSTRUIR NOVA UNIDADE PRISIONAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DE NECESSIDADE DE PRÉVIA DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA (ARTS. 4º, 6º E 60 DA LEI 4.320/64). CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM CASOS EXCEPCIONAIS. POSSIBILIDADE. CASO CONCRETO CUJA MOLDURA FÁTICA EVIDENCIA OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS E AOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO MÍNIMO EXISTENCIAL, CONTRA O QUAL NÃO SE PODE OPOR A RESERVA DO POSSÍVEL.

(...) 3. Nessas circunstâncias – em que o exercício de pretensa discricionariedade administrativa acarreta, pelo não desenvolvimento e implementação de determinadas políticas públicas, seriíssima vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição – a intervenção do Poder Judiciário se justifica como forma de pôr em prática, concreta e eficazmente, os valores que o constituinte elegeu como "supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos fundada na harmonia social", como apregoa o preâmbulo da nossa Carta Republicana. 4. O entendimento trilhado pela Corte de origem não destoou dos precedentes do STF – RE 795749 AgR, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, Julgado em 29/04/2014, Processo Eletrônico DJe-095 Divulg 19-05-2014 Public 20-05-2014, ARE 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 15.9.2011 – e do STJ, conforme AgRg no REsp 1107511/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 06/12/2013. Aplicação da Súmula 83/STJ. 5. Com efeito, na hipótese sub examine, está em jogo a garantia de respeito à integridade física e moral dos presos, cuja tutela, como direito fundamental, possui assento direto no art. 5º, XLIX, da Constituição Republicana. 6. Contra a efetivação dessa garantia constitucional, o Estado de Mato Grosso alega o princípio da separação dos poderes e a impossibilidade de realizar a obra pública pretendida sem prévia e correspondente dotação orçamentária, sob pena de violação dos arts. 4º, 6º e 40 da Lei 4.320/1964. 7. A concretização dos direitos individuais fundamentais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue, nesses casos, como órgão controlador da atividade administrativa. Trata-se de inadmissível equívoco defender que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantir os direitos fundamentais, possa ser utilizado como óbice à realização desses mesmos direitos fundamentais. 8. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública vital nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, como na hipótese dos autos. (...) 11. Recurso Especial não provido.

(REsp 1.389.952/MT, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 07/11/2016) – g.n.

Inexistem, portanto, razões a infirmar os fundamentos da sentença recorrida, que reconheceu a mora da FUNAI no exercício de sua atividade e impôs à Autarquia a obrigação de iniciar, em prazo razoável, os estudos necessários a analisar a viabilidade de eventual processo demarcatório de área reivindicada pelos índios Terena.

Por sua vez, no que tange ao pleito subsidiário da Apelante, que visa à exclusão ou redução do valor da multa cominatória aplicada para o caso de descumprimento da obrigação imposta, o recurso também não comporta provimento.

Como é cediço, as astreintes (art. 814, do Código de Processo Civil) possuem natureza jurídica processual, dotada de desígnios de ordem dissuasória e intimidatória sobre o devedor, tendo por escopo compelir o compromissário ao cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer. Consoante consigna a jurisprudência, a “multa civil (= astreinte), frequentemente utilizada como reforço de autoridade da e na prestação jurisdicional, (...) projeta-se, em um de seus matizes, para o futuro, de modo a assegurar a coercitividade e o cumprimento de obrigações de fazer e de não fazer (mas também de dar), legal ou judicialmente estabelecidas” (REsp 1.574.350/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 3/10/2017, DJe 6/3/2019).

A possibilidade de aplicação de astreintes como meio coercitivo para o cumprimento de obrigação determinada judicialmente encontra respaldo em entendimento pacífico do STJ, segundo o qual “é possível ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, fixar multa diária cominatória – astreintes –, ainda que contra a Fazenda Pública, em caso de descumprimento de obrigação de fazer” (REsp 1.654.994/SE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 25/4/2017 – g.n.). No mesmto sentido: REsp 1582981/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 10/05/2016, DJe 19/05/2016; AgRg no AREsp 313.185/MS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 03/10/2013, DJe 11/11/2013; REsp 679.048/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 28.11.2005; REsp 666.008/RJ, Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma, DJ de 28.03.2005; e, REsp 869.106/RS, 1ª Turma, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 30/11/2006.

No que tange à quantificação da multa cominatória, esta não deve ser fixada em montante que se mostre insuficiente à consecução de sua finalidade coativa, bem como não pode, por outro lado, fazer-se excessiva, sob pena de desvirtuar-se de sua finalidade e conformar-se em medida desproporcional e desnecessária à promoção do interesse contraposto.

Procedendo-se, então, à análise das três máximas do princípio da proporcionalidade, é preciso verificar, no caso concreto, se a multa cominatória estipulada na sentença recorrida se afigura adequada, na medida em que se mostra hábil a conduzir ao efeito desejado, qual seja, compelir a FUNAI ao cumprimento das obrigações impostas; bem como se é necessária, em se constatando inexistir outros meios menos gravosos à consecução do fim perseguido; e, por fim, se há proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, se o dispêndio financeiro imposto em caráter coativo à Autarquia será compensado pela promoção, na maior medida possível, da tutela específica das obrigações de fazer inadimplidas.

No caso, mostra-se evidente a necessidade e adequação da fixação da multa imposta na sentença, tendo em vista a sua aptidão à consecução da finalidade persuasiva e intimidatória que se busca exercer sobre a parte inadimplente, bem como, por outro lado, a inexistência de medidas menos gravosas que se mostrem igualmente hábeis a assegurar, no caso, o cumprimento da obrigação imposta e a concretização dos direitos subjacentes.

A controvérsia, portanto, cinge-se à aplicação do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito – o qual “determina que se verifique se o grau de afetação a um direito ou interesse, decorrente da medida questionada, pode ou não ser justificado pelo nível de realização do bem jurídico cuja tutela é perseguida” (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 478) – ao caso concreto, de modo que os custos e efeitos negativos da medida coativa não se exacerbem a ponto de suplantar os benefícios da tutela específica perseguida.

Na situação em exame, conforme exposto, busca o MPF a imposição de obrigação à Ré, consubstanciada no desenvolvimento, em prazo razoável, de estudos voltados a subsidiar procedimento demarcatório de terra indígena, tendo em vista a existência de expediente datado de 20/03/2000 (Processo Administrativo n° 08620.000657/2000-90), originado de relatório produzido em julho de 1999, em que se verifica a pertinência de realização de estudos de reconhecimento étnico do grupo Terena, em Santa Rita do Pardo/MS, por técnicos do Departamento de Identificação e Delimitação da FUNAI, assim como a necessidade de proceder aos estudos de identificação e delimitação da área, acaso se confirme a tradicionalidade da terra.

Consta dos autos, ainda, que a FUNAI teria sido notificada para acolher recomendação destinada a iniciar o procedimento que visa ao atendimento da demanda indígena, porém, a Autarquia, em resposta, teria apenas reiterado as informações já registradas no expediente datado de 20/03/2000, alegando a insuficiência de recursos humanos e financeiros para dar andamento ao processo administrativo.

Verifica-se, assim, que, após transcorridos mais de quinze anos desde a apresentação da demanda à FUNAI, em sede administrativa, resta evidenciada a situação de mora irrazoável da Administração em relação ao dever de concretização da política pública destinada à tutela dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Mostra-se incabível, portanto, o acolhimento do pleito de supressão, em absoluto, da multa cominatória arbitrada pelo Juízo a quo, para o caso de descumprimento da obrigação imposta à Autarquia, sob de pena de se destituir o título judicial de qualquer eficácia e, por conseguinte, de relegar-se o direito coletivo violado à inadmissível situação de proteção insuficiente.

Consigna-se, ainda, que, em conformidade com a orientação jurisprudencial acerca da matéria, inobstante se reconheça a alta complexidade do procedimento demarcatório de terras indígenas e o elevado grau de recursos exigidos para sua realização, o tempo transcorrido para o seu desfecho não pode se mostrar irrazoável e excessivo, a ponto de acabar por suprimir o direito que se busca assegurar. Nesse sentido:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. FIXAÇÃO DE PRAZO RAZOÁVEL PARA O ENCERRAMENTO DO PROCEDIMENTO DEMARCATÓRIO. POSSIBILIDADE.1. Não viola o art. 535 do CPC, tampouco nega a prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adotou, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia.2. O aresto atacado abordou todas as questões necessárias à integral solução da lide, concluindo, no entanto, que é possível a fixação, pelo Poder Judiciário, de prazo razoável para que o Poder Executivo proceda à demarcação de todas as terras indígenas dos índios Guarani.3. A demarcação de terras indígenas é precedida de processo administrativo, por intermédio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área a ser demarcada constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. O procedimento de demarcação de terras indígenas é constituído de diversas fases, definidas, atualmente, no art. 2º do Decreto 1.775/96.4. Trata-se de procedimento de alta complexidade, que demanda considerável quantidade de tempo e recursos diversos para atingir os seus objetivos. Entretanto, as autoridades envolvidas no processo de demarcação, conquanto não estejam estritamente vinculadas aos prazos definidos na referida norma, não podem permitir que o excesso de tempo para o seu desfecho acabe por restringir o direito que se busca assegurar. 5. Ademais, o inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, incluído pela EC 45/2004, garante a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 6. Hipótese em que a demora excessiva na conclusão do procedimento de demarcação da Terra Indígena Guarani está bem evidenciada, tendo em vista que já se passaram mais de dez anos do início do processo de demarcação, não havendo, no entanto, segundo a documentação existente nos autos, nenhuma perspectiva para o seu encerramento. 7. Em tais circunstâncias, tem-se admitido a intervenção do Poder Judiciário, ainda que se trate de ato administrativo discricionário relacionado à implementação de políticas públicas. 8. "A discricionariedade administrativa é um dever posto ao administrador para que, na multiplicidade das situações fáticas, seja encontrada, dentre as diversas soluções possíveis, a que melhor atenda à finalidade legal. O grau de liberdade inicialmente conferido em abstrato pela norma pode afunilar-se diante do caso concreto, ou até mesmo desaparecer, de modo que o ato administrativo, que inicialmente demandaria um juízo discricionário, pode se reverter em ato cuja atuação do administrador esteja vinculada. Neste caso, a interferência do Poder Judiciário não resultará em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, mas restauração da ordem jurídica." (REsp 879.188/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 2.6.2009). 9. Registra-se, ainda, que é por demais razoável o  prazo concedido pelo magistrado de primeiro grau de jurisdição para o cumprimento da obrigação de fazer — consistente em identificar e demarcar todas as terras indígenas dos índios Guarani situadas nos municípios pertencentes à  jurisdição da Subseção Judiciária de Joinville/SC, nos termos do Decreto 1.775/96, ou, na eventualidade de se concluir pela inexistência de tradicionalidade das terras atualmente ocupadas pelas comunidades de índios Guarani na referida região, em criar reservas indígenas, na forma dos arts. 26 e 27 da Lei 6.001/73 —, sobretudo se se considerar que tal prazo (vinte e quatro meses) somente começará a ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença proferida no presente feito. 10. A questão envolvendo eventual violação de preceitos contidos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi examinada pela Corte de origem, carecendo a matéria, portanto, do indispensável prequestionamento. 11. Recursos especiais parcialmente conhecidos e, nessas partes, desprovidos.

(REsp 1.114.012/SC, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 01/12/2009) – g.n.

Neste ponto, é relevante anotar, ainda, que a arguição, por parte da Apelante, de impossibilidade de cumprimento das obrigações impostas, com base na alegação da reserva do possível, não pode constituir, por si, razão a fundamentar o não adimplemento de deveres relacionados a prestações concretizadoras de direitos fundamentais por parte do Estado, notadamente quando se trata de mandamentos constitucionais que visam, em sentido amplo, à tutela da dignidade da pessoa humana, como no caso em tela. A respeito da matéria, esclarece a jurisprudência do STF:

“A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana.”

(ARE 639.337 AgR/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe 14/09/2011, p. 117) – g.n.

Por outro lado, é necessário ponderar que a multa sancionatória estipulada com o propósito de persuadir a Autarquia ao adimplemento de suas obrigações deve ser estabelecida com observância ao postulado normativo da proporcionalidade. Nesse sentido, observa-se que, no caso, a multa cominada, se fixada em patamares excessivos, pode ensejar a deterioração desproporcional dos recursos da executada e o recrudescimento de suas condições estruturais, que, por conseguinte, poderá agravar a situação de insuficiência dos meios de que dispõe a Apelante para cumprimento de suas obrigações.

Dessa forma, mostra-se imprescindível levar em consideração, no caso em exame, que eventual impacto econômico excessivo sobre o orçamento da Autarquia em decorrência dos meios executivos adotados, poderia causar, por via oblíqua, um maior comprometimento das condições materiais imprescindíveis à tutela dos direitos que se busca proteger por meio do presente termo de ajustamento de conduta, tornando, assim, a medida sancionatória injustificável em face do objetivo perseguido.

É necessário que tais condições sejam consideradas e ponderadas ao se proceder ao adequado equacionamento do valor da multa aplicada ao caso concreto, sob pena de incorrer-se em inobservância às normas fundamentais do ordenamento, que dispõem que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” (art. 8º, do Código de Processo Civil – g.n.), assim como à meta-norma do art. 22, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que estabelece que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Em face do exposto, entendo que, no caso, a aplicação de multa cominatória à FUNAI consubstancia-se em meio adequado e necessário à tutela dos direitos coletivos subjacentes à pretensão deduzida pelo MPF no âmbito da presente ação civil pública – notadamente em vista da notória relevância dos direitos que se busca tutelar e, por outro lado, do contumaz e prolongado inadimplemento da Requerida em relação às suas obrigações – devendo, portanto, ser mantida a imposição da penalidade pecuniária.

Com base em tais ponderações e nas circunstâncias no caso concreto, entendo adequado o arbitramento da multa sancionatória no valor R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia de descumprimento, tendo em vista que a sua fixação neste patamar atende ao postulado da proporcionalidade, mostrando-se suficiente à proteção do interesse tutelado, e não ensejando, por outro lado, lesão desproporcional à Recorrente.

Dos danos morais coletivos

A pretensão deduzida pelo MPF visa, para além de compelir a FUNAI a iniciar os estudos de identificação e delimitação da área das terras reivindicadas pelos índios Terena, a condenação da Requerida ao pagamento de compensação pecuniária por danos morais coletivos causados à comunidade indígena interessada, em virtude da omissão da Autarquia em promover, em prazo razoável, o processo administrativo demarcatório.

O pleito não comporta acolhimento.

De início, observo que a doutrina e a jurisprudência reconhecem a possibilidade de compensação por danos morais coletivos, assim entendida a lesão extrapatrimonial causada a uma categoria ou grupo de pessoas, sem individualização dos ofendidos que integram a coletividade lesada.

Nesse sentido, o Enunciado nº 456, da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, esclarece que a expressão “dano”, constante do art. 944, do Código Civil, deve ser interpretada não apenas como alusiva a danos individuais, materiais ou imateriais, mas como abrangente, também, de danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Destaco, a este respeito, o voto da Ministra Eliana Calmon, proferido no julgamento do Recurso Especial nº 1.057.274/ RS:

“Não aceito a conclusão da 1ª Turma, por entender não ser essencial à caracterização do dano extrapatrimonial coletivo prova de que houve dor, sentimento, lesão psíquica, afetando "a parte sensitiva do ser humano, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" (Clayton Reis, Os Novos Rumos da Indenização do Dano Moral, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 236), "tudo aquilo que molesta a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado" (Yussef Said Cahali, Dano Moral, 2ª ed., São Paulo: RT, 1998, p. 20, apud Clayton Reis, op. cit., p. 237), pois como preconiza Leonardo Roscoe Bessa:

(...) a indefinição doutrinária e jurisprudencial concernente à matéria decorre da absoluta impropriedade da denominação dano moral coletivo, a qual traz consigo - indevidamente - discussões relativas à própria concepção do dano moral no seu aspecto individual. (apud Dano Moral Coletivo, p. 124)

(...)

Carlos Augusto de Assis também corrobora a posição de que é possível a existência de dano moral em relação à tutela de interesses difusos, indicando hipótese em que se poderia cogitar de pessoa jurídica pleiteando indenização por dano moral, como no caso de ser atingida toda uma categoria profissional, coletivamente falando, sem que fosse possível individualizar os lesados, caso em que seria conferida legitimidade ativa para a entidade representativa de classe pleitear indenização por dano moral.

A sustentar e esclarecer seu posicionamento, aponta Carlos Augusto de Assis, a título de exemplo: "Imagine-se o caso de a classe dos advogados sofrer vigorosa campanha difamatória. Independente dos danos patrimoniais que podem se verificar (e que também seriam de difícil individualização) é quase certo que os advogados, de uma maneira geral, experimentariam penosa sensação de desgosto, por ver a profissão a que se dedicam desprestigiada. Seria de admitir que a entidade de classe (no caso, a Ordem dos Advogados do Brasil) pedisse indenização pelo dano moral sofrido pelos advogados considerados como um todo, a fim de evitar que este fique sem qualquer reparação em face da indeterminação das pessoas lesadas.

(...)

Ora, desde o último século que a compreensão da dignidade humana tem sido referida a novas e relevantíssimas projeções, concebendo-se o indivíduo em sua integralidade e plenitude, de modo a ensejar um sensível incremento no que tange às perspectivas de sua proteção jurídica no plano individual, e, também, na órbita coletiva. É inegável, pois, o reconhecimento e a expansão de novas esferas de proteção à pessoa humana, diante das realidades e interesses emergentes na sociedade, que são acompanhadas de novas violações de direitos. (Dano moral coletivo. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 121).

O mesmo autor sintetiza os requisitos para configuração do dano moral coletivo:

Em suma, pode-se elencar como pressupostos necessários à configuração do dano moral coletivo, de maneira a ensejar a sua respectiva reparação, (1) a conduta antijurídica (ação ou omissão) do agente, pessoa física ou jurídica; (2) a ofensa a interesses jurídicos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, titularizados por uma determinada coletividade (comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas); (3) a intolerabilidade da ilicitude, diante da realidade apreendida e da sua repercussão social; (4) o nexo causal observado entre a conduta e o dano correspondente à violação do interesse coletivo (lato sensu). (idem, p. 136)”.

Verifica-se, portanto, que se mostra possível o reconhecimento da existência de dano moral no âmbito da tutela de interesses difusos, sendo, contudo, necessária a presença de determinados pressupostos para sua configuração, tais como a demonstração de ofensa transindividual a interesses jurídicos fundamentais de natureza extrapatrimonial, a gravidade da ilicitude e o nexo de causalidade.

Estabelecidas tais premissas, constata-se que, no caso em apreço, não se encontram presentes todos os elementos configuradores do dano moral coletivo.

Não obstante constatada a omissão da Ré em promover o processo demarcatório em prazo e forma adequados, não restou demonstrada, a partir da análise dos elementos probatórios coligidos aos autos, a comprovação de lesão causada, especificamente, à esfera de direitos coletivos da comunidade indígena afetada, em decorrência direta do ato ilícito atribuído à FUNAI.

A suposta lesão à esfera de direitos metaindividuais da comunidade indígena não se vincula, direta e isoladamente, à própria existência do fato ilícito discutido nos autos, devendo o resultado lesivo ser demonstrado a partir das circunstâncias específicas do caso concreto, o que não ocorreu na espécie.

Não comporta acolhimento, portanto, o pleito de condenação da Apelante ao pagamento de compensação pecuniária por danos morais.

Dispositivo

Ante o exposto, nego provimento à remessa necessária e ao recurso de apelação.

É o voto.


Des. Fed. Wilson Zauhy:

Peço vênia ao eminente Relator para dele divergir quanto ao deslinde da causa.

Cuida-se, na origem, de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal - MPF perante a 1ª Vara Federal de Três Lagoas/MS, por meio da qual pretendia compelir a Fundação Nacional do Índio - FUNAI a dar início ao estudo antropológico de identificação de terras indígenas da Comunidade Terena em Santa Rita do Pardo/MS, apresentando o relatório circunstanciado previsto pelo Decreto 1.775/1996 em prazo razoável, sob pena de multa diária a ser revertida ao fundo previsto pelo art. 13 da Lei 7.347/1985. Ademais, o parquet requereu a condenação da FUNAI ao pagamento de danos morais coletivos pela demora na identificação das terras indígenas, com destinação dos recursos às políticas públicas que são adotadas no contexto indígena.

O juízo de primeiro grau julgou a pretensão parcialmente procedente, para o fim de estabelecer o prazo de dois anos para que a FUNAI apresentasse o relatório circunstanciado, sob pena de multa diária no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais). O pedido de danos morais coletivos não foi acolhido na instância de origem. A FUNAI recorreu da mencionada sentença, sob o fundamento principal de que o processo demarcatório é extremamente complexo e não pode ser solucionado em prazo exíguo concedido pelo Poder Judiciário, ainda mais quando se está diante de carências tão grandes do ponto de vista financeiro. Afirmou que, diante do quadro de falta de recursos financeiros, é obrigada a estabelecer prioridades na demarcação das terras indígenas, não havendo como atender a todas as demandas de uma só vez.

Foram apresentadas contrarrazões e os autos subiram a esta Egrégia Corte Regional. O eminente Relator, então, trouxe o feito a julgamento na sessão que se realiza hoje, votando por negar provimento ao apelo. Compreendeu Sua Excelência que a omissão administrativa não poderia prevalecer na espécie, já que se estaria diante de direitos fundamentais que deveriam ser concretizados pelo Poder Público. Salientou, ainda, que o Poder Judiciário poderia interferir em questões de políticas públicas quando os direitos fundamentais fossem espezinhados, não havendo que se falar em violação ao princípio da separação de poderes. No mais, preservou a multa fixada pelo juízo de primeiro grau e afastou o pleito pela condenação em danos morais coletivos, mantendo totalmente a sentença vergastada.

Venho, contudo, a divergir do eminente Relator, como já havia adiantado, o que faço pelas razões expostas na sequência.

Nos casos a envolver a demarcação de terras de comunidades tradicionais, tenho manifestado o entendimento de que não se poderia obrigar judicialmente o Poder Público a emitir uma declaração nesse sentido, porque eventual determinação judicial quanto ao ponto invadiria o espaço de discricionariedade administrativa que a Constituição Federal reservou ao Poder Executivo. Por outras palavras, a imposição para que o Poder Público adote atos necessários para efetivar uma demarcação invade o mérito administrativo, com violação ao princípio da separação dos poderes previsto pelo art. 2º da Carta Magna.

Relembro que nem todos os atos da Administração Pública são sindicáveis judicialmente. Existem atos praticados pelo Poder Público que estão inseridos no conceito amplo de mérito administrativo, traduzindo questões de Estado e que, por esta razão, não podem ser revistos pelo Poder Judiciário, sob pena de se permitir que a função jurisdicional do poder atravesse atribuições que são precípuas da função executiva do poder, com menoscabo do princípio da separação dos poderes previsto pelo art. 2º da Constituição da República.

Nesse sentido, cumpre trazer, mutatis mutandis, os seguintes arestos jurisprudenciais:

“DIREITO TRIBUTÁRIO. (...) 5 - Não cabe ao Poder Judiciário, sob pena de se malferir o ditame constitucional da separação dos poderes, criar políticas públicas (...). 9 - Negado provimento à apelação.”

(APELAÇÃO CÍVEL ..SIGLA_CLASSE: ApCiv 5002916-23.2020.4.03.6103 ..PROCESSO_ANTIGO: ..PROCESSO_ANTIGO_FORMATADO:, ..RELATORC:, TRF3 - 3ª Turma, Intimação via sistema DATA: 06/10/2020 ..FONTE_PUBLICACAO1: ..FONTE_PUBLICACAO2: ..FONTE_PUBLICACAO3:.)

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POLÍTICA NACIONAL ANTIDROGAS. PUBLICAÇÃO DE CARTILHA. AMPLA DIFUSÃO. CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. EXAME DO CONTEÚDO DA CARTILHA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE LESÃO A DIREITO OU GARANTIA FUNDAMENTAL. (...) 11. Inexistindo grave omissão que prejudique direito fundamental ou evidente ilegalidade ou abuso de poder por parte da Administração Pública, não há que se falar em pronunciamento judicial sobre o mérito administrativo, i.e., no presente caso, quanto aos critérios de oportunidade e conveniência envolvendo o conteúdo de uma publicação da Secretaria Nacional Antidrogas na execução regular de suas Políticas Públicas. 12. Embargos infringentes desprovidos.” (grifei)

(EMBARGOS INFRINGENTES - 1678937 ..SIGLA_CLASSE: EI 0012085-56.2005.4.03.6100 ..PROCESSO_ANTIGO: 200561000120855 ..PROCESSO_ANTIGO_FORMATADO: 2005.61.00.012085-5, ..RELATORC:, TRF3 - SEGUNDA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:11/10/2018 ..FONTE_PUBLICACAO1: ..FONTE_PUBLICACAO2: ..FONTE_PUBLICACAO3:.)

De mais a mais, é necessário registrar alguns aspectos do caso concreto que influem na solução da causa. A determinação para que as providências sejam realizadas em prazo exíguo é incabível na espécie porque a demora é algo ínsito ao processo demarcatório de terras indígenas. Tal procedimento, como se sabe, é revestido de alta complexidade, o que o torna incompatível com o estabelecimento de prazos apertados.

No desempenho desta função demarcatória, a Administração Pública providencia a identificação e medição da área analisada; financia a viagem de agentes públicos até o local; produz relatórios extensos e minuciosos a respeito de suas conclusões; e reúne estudos de peritos altamente qualificados em diversas áreas do conhecimento, como Geografia, Antropologia, Sociologia e História, dentre outras medidas que poderiam ser mencionadas. Dessa forma, é inviável que todas estas providências sejam realizadas em prazo limitado, ainda mais quando se tem em vista a conhecida escassez de recursos humanos e financeiros com os quais a FUNAI convive.

Saliento que a posição ora adotada foi igualmente encampada por esta Egrégia Primeira Turma quando do enfrentamento da Apelação n. 5000735-95.2019.4.03.6002 pela sistemática do art. 942 do CPC/2015, conforme ementa que trago à colação nesta oportunidade:

“DIREITO CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO MPF COM A FINALIDADE DE COMPELIR O INCRA A PROVIDENCIAR A IMISSÃO DE COMUNIDADE QUILOMBOLA NA POSSE DE ÁREA DE PROPRIEDADE PARTICULAR E DE FORÇAR A AUTARQUIA AGRÁRIA A PROMOVER AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL COM RELAÇÃO AO MENCIONADO IMÓVEL. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES (ART. 2º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). MÉRITO ADMINISTRATIVO QUE NÃO PODE SER REVISTO JUDICIALMENTE. CONDENAÇÃO EM DANOS MORAIS COLETIVOS DESCABIDA. DEMORA JUSTIFICÁVEL, PORQUE ÍNSITA À COMPLEXIDADE DAS TAREFAS RELACIONADAS À DEMARCAÇÃO DE TERRAS QUILOMBOLAS. SUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DO ART. 942 DO CPC/2015. APELAÇÃO DESPROVIDA.

1. Cuida-se, na instância de origem, de ação civil pública com pedido liminar ajuizada pelo MPF em face da União, do INCRA e de empresa privada, por meio da qual pleiteia (i) a condenação da autarquia agrária para que realize a imissão provisória na posse da Comunidade Negra Rural Quilombola de Dezidério Felipe de Oliveira, dentro do prazo de 90 (noventa) dias, na área de propriedade da empresa ré, que estaria sobreposta ao território da comunidade quilombola, nos termos de relatório técnico, sob pena de multa diária; (ii) a determinação para que o INCRA adote os atos necessários para a desapropriação do referido imóvel, sob pena de multa diária; e (iii) a condenação da União ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, bem como para que se conceda a titulação em definitivo da propriedade em favor da comunidade quilombola, sob pena de multa diária.

2. Devidamente processado o feito, o juízo de primeiro grau prolatou sua sentença, por meio da qual julgou improcedentes os pedidos formulados, sob o fundamento de que não existiria a demora injustificável na condução do processo administrativo demarcatório. O juízo a quo salientou, ainda, que a imissão provisória na posse do imóvel de propriedade da empresa dependeria de um ato de declaração de interesse social emitido pela Presidência da República, o que não teria ocorrido até o presente momento. Não houve condenação do MPF em custas processuais ou em honorários advocatícios.

3. Inconformado, o Parquet interpôs seu recurso de apelação, pugnando pela reforma da sentença, com a total procedência dos pedidos formulados. De início, registra-se a impossibilidade de imitir a comunidade quilombola provisoriamente na posse do imóvel de propriedade da empresa, porquanto tal imissão de posse precisaria decorrer de um decreto emitido pela Presidência da República reconhecendo o interesse social na desapropriação do bem, algo que não ocorreu até o presente momento.

4. Nos casos a envolver a apuração do interesse social para fins de desapropriação, tem-se entendido que não se poderia obrigar judicialmente a União ou o INCRA a emitir uma declaração nesse sentido, porque eventual determinação judicial quanto ao ponto invadiria o espaço de discricionariedade administrativa que a Constituição Federal reservou ao Poder Executivo. Por outras palavras, a imposição para que o ente federal ou a autarquia agrária adotem atos necessários para efetivar uma desapropriação invade o mérito administrativo, com violação ao princípio da separação dos poderes, previsto pelo art. 2º da Carta Magna.

5. Relembra-se que nem todos os atos da Administração Pública são sindicáveis judicialmente. Existem atos praticados pelo Poder Público que estão inseridos no conceito amplo de mérito administrativo, traduzindo questões de Estado e que, por esta razão, não podem ser revistos pelo Poder Judiciário, sob pena de se permitir que a função jurisdicional do poder atravesse atribuições que são precípuas da função executiva do poder, com menoscabo do princípio da separação dos poderes previsto pelo art. 2º da Constituição da República. Precedentes.

6. Ora, se não há como impor judicialmente à Administração Pública a obrigação de declarar um imóvel como sendo de interesse social para fins de desapropriação, porque tal decisão administrativa se insere no âmbito de competência de outras funções do poder que não a judiciária, não há como também, por consectário lógico, condenar o ente público em danos morais na demarcação da área, já que o Poder Público tem discricionariedade para delimitar se haverá uma declaração nesse sentido e quando haverá uma declaração nesse sentido.

7. De mais a mais, razão assiste ao magistrado de primeiro grau ao assentar alguns aspectos do caso concreto que realmente precisam ser levados em consideração. A indenização por danos morais coletivos é incabível na espécie porque a demora é algo ínsito ao processo demarcatório de terras quilombolas. Tal procedimento, como se sabe, é revestido de alta complexidade. No desempenho desta função demarcatória, a Administração Pública providencia a identificação e medição da área analisada; financia a viagem de agentes públicos até o local; produz relatórios extensos e minuciosos a respeito de suas conclusões; e reúne estudos de peritos altamente qualificados em diversas áreas do conhecimento, como Geografia, Antropologia, Sociologia e História, dentre outras medidas que poderiam ser mencionadas. Naturalmente, todas estas diligências exigem o decurso de anos a fio para a sua conclusão, principalmente quando se considera a escassez e a finitude dos recursos públicos, sejam os de ordem financeira, sejam os de pessoal. Assim, o fato de o procedimento demarcatório não estar concluído até este momento, só por só, não quer significar que a Administração Pública se omite em levar a cabo os seus deveres, gerando direito à indenização por dano moral coletivo à comunidade quilombola. Pelo contrário: o que se tem é uma esperada situação de demora para concluir o procedimento demarcatório, dada a inegável complexidade da tarefa e a consequente necessidade de tempo para concluí-la de modo satisfatório, contexto que recomenda o afastamento da condenação por danos morais coletivos.

8. Recurso de apelação a que se nega provimento.” (grifei)

(TRF 3ª Região, 1ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000735-95.2019.4.03.6002, Rel. Desembargador Federal WILSON ZAUHY FILHO, julgado em 16/12/2021, Intimação via sistema DATA: 18/01/2022)

Ainda que o caso julgado pela sistemática do art. 942 do CPC/2015 tenha se preocupado especificamente com a situação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, tenho que a mesma orientação é válida para a FUNAI, porquanto ambas as entidades compõem o Poder Executivo e dispõem de discricionariedade no exercício da atividade de demarcação de áreas de comunidades tradicionais.

Pelo exposto, divergindo do eminente Relator, voto por dar provimento ao recurso de apelação interposto pela FUNAI, para o fim de, reformando a sentença vergastada, afastar a obrigação de apresentar o relatório circunstanciado no prazo assinalado pelo juízo de primeira instância, na forma da fundamentação supra.

É como voto.

 


E M E N T A

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. REMESSA NECESSÁRIA. APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. OMISSÃO ADMINISTRATIVA. POLÍTICA PÚBLICA DESTINADA À CONSECUÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. INTERVENÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. MULTA PROCESSUAL. POSSIBILIDADE. QUANTIFICAÇÃO. PROPORCIONALIDADE. DANOS MORAIS COLETIVOS NÃO CONFIGURADOS. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDOS.

1. Inexiste nos autos qualquer pretensão deduzida em face da União Federal, havendo o pleito autoral se restringido a requerer o reconhecimento de obrigações contra a FUNAI, a qual constitui entidade da Administração Indireta, dotada de personalidade jurídica própria, com autonomia administrativa e financeira, não se encontrando demonstrada, portanto, a pertinência subjetiva da integração da União Federal ao polo passivo da lide.

2. É vedado ao Poder Público a invocação da discricionariedade administrativa como fundamento para eximir-se do cumprimento de políticas públicas destinadas à consecução de direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição da República, sendo possível, em tal hipótese, a intervenção do Poder Judiciário com o fim de promover a implementação das normas e princípios constitucionais.

3. Tratando-se de provimento que visa à tutela de direito fundamental, vinculado aos princípios da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, inexiste óbice para que o Poder Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político respectivo. Precedentes do STF e do STJ.

4. As astreintes (art. 814, do Código de Processo Civil) possuem natureza jurídica processual, dotada de desígnios de ordem dissuasória e intimidatória sobre o devedor, tendo por escopo compelir o compromissário ao cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer. A possibilidade de aplicação de astreintes como meio coercitivo para o cumprimento de obrigação determinada judicialmente encontra respaldo em entendimento pacífico do STJ, segundo o qual “é possível ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, fixar multa diária cominatória – astreintes –, ainda que contra a Fazenda Pública, em caso de descumprimento de obrigação de fazer” (REsp 1.654.994/SE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 25/4/2017).

5. No que tange à quantificação da multa cominatória, esta não deve ser fixada em montante que se mostre insuficiente à consecução de sua finalidade coativa, bem como não pode, por outro lado, fazer-se excessiva, sob pena de desvirtuar-se de sua finalidade e conformar-se em medida desproporcional e desnecessária à promoção do interesse contraposto.

6. Mostra-se evidente a necessidade e adequação da fixação da multa imposta na sentença, tendo em vista a sua aptidão à consecução da finalidade persuasiva e intimidatória que se busca exercer sobre a parte inadimplente, bem como, por outro lado, a inexistência de medidas menos gravosas que se mostrem igualmente hábeis a assegurar, no caso, o cumprimento da obrigação imposta e a concretização dos direitos subjacentes.

7. Após transcorridos mais de quinze anos desde a apresentação da demanda à FUNAI, em sede administrativa, resta evidenciada a situação de mora irrazoável da Administração em relação ao dever de concretização da política pública destinada à tutela dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

8. Inobstante se reconheça a alta complexidade do procedimento demarcatório de terras indígenas e o elevado grau de recursos exigidos para sua realização, o tempo transcorrido para o seu desfecho não pode se mostrar irrazoável e excessivo, a ponto de acabar por suprimir o direito que se busca assegurar. Precedente do STJ.

9. Mostra-se incabível o acolhimento do pleito de supressão, em absoluto, da multa cominatória arbitrada pelo Juízo a quo, para o caso de descumprimento da obrigação imposta à Autarquia, sob de pena de se destituir o título judicial de qualquer eficácia e, por conseguinte, de relegar-se o direito coletivo violado à inadmissível situação de proteção insuficiente.

10. A arguição, por parte da FUNAI, de impossibilidade de cumprimento das obrigações impostas, com base na alegação da reserva do possível, não pode constituir, por si, razão a fundamentar o não adimplemento de deveres relacionados a prestações concretizadoras de direitos fundamentais por parte do Estado, notadamente quando se trata de mandamentos constitucionais que visam, em sentido amplo, à tutela da dignidade da pessoa humana. Precedente do STF.

11. A aplicação de multa cominatória à FUNAI consubstancia-se em meio adequado e necessário à tutela dos direitos coletivos subjacentes à pretensão deduzida pelo MPF no âmbito da presente ação civil pública – notadamente em vista da notória relevância dos direitos que se busca tutelar e, por outro lado, do contumaz e prolongado inadimplemento da Requerida em relação às suas obrigações – devendo, portanto, ser mantida a imposição da penalidade pecuniária.

12. Adequado o arbitramento da multa sancionatória no valor R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia de descumprimento, tendo em vista que a sua fixação neste patamar atende ao postulado da proporcionalidade, mostrando-se suficiente à proteção do interesse tutelado, e não ensejando, por outro lado, lesão desproporcional à Recorrente.

13. A doutrina e a jurisprudência reconhecem a possibilidade de compensação pecuniária por danos morais coletivos – assim entendida a lesão extrapatrimonial causada a uma categoria ou grupo de pessoas, sem individualização dos ofendidos que integram a coletividade lesada –, sendo, contudo, necessária a presença de determinados pressupostos para sua configuração, tais como a demonstração de ofensa transindividual a interesses jurídicos fundamentais de natureza extrapatrimonial, a gravidade da ilicitude e o nexo de causalidade.

14. Não obstante constatada a omissão da Ré em promover o processo administrativo demarcatório em prazo e forma adequados, não restou demonstrada, a partir da análise dos elementos probatórios coligidos aos autos, a comprovação de lesão causada, especificamente, à esfera de direitos coletivos extrapatrimoniais da comunidade indígena afetada, em decorrência direta do ato ilícito atribuído à FUNAI.

15. Negado provimento à remessa necessária e ao recurso de apelação.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, 238 - prosseguindo no julgamento nos termos do artigo 942 do Código de Processo Civil, a Primeira Turma, por maioria, negou provimento à remessa necessária e ao recurso de apelação, nos termos do voto do Desembargador Federal Hélio Nogueira (relator), acompanhado pelos votos dos Desembargadores Federais Valdeci dos Santos e Carlos Francisco ; vencidos os Desembargadores Federais Wilson Zauhy e Peixoto Júnior, que davam provimento ao recurso de apelação interposto pela FUNAI, para o fim de, reformando a sentença vergastada, afastar a obrigação de apresentar o relatório circunstanciado no prazo assinalado pelo juízo de primeira instância, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.