
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5010623-51.2020.4.03.6100
RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA
APELANTE: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
APELADO: UNIÃO FEDERAL, MUNICIPIO DE SAO PAULO, ASSOCIACAO NACIONAL DOS REGISTRADORES DE PESSOAS NATURAIS, ESTADO DE SAO PAULO
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5010623-51.2020.4.03.6100 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO APELADO: UNIÃO FEDERAL, MUNICIPIO DE SAO PAULO, ASSOCIACAO NACIONAL DOS REGISTRADORES DE PESSOAS NATURAIS, ESTADO DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação e remessa oficial, tida por submetida, em Ação Civil Pública proposta pela DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO e pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO em face da UNIÃO FEDERAL, do ESTADO DE SÃO PAULO, do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO e da ASSOCIACAO NACIONAL DOS REGISTRADORES DE PESSOAS NATURAIS, objetivando a adoção de diversas medidas administrativas relacionadas à pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19). Apontam as autoras que, em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. E, no dia 11 de março de 2020, a OMS caracterizou a circulação do Novo Corona Vírus (COVID-19) como pandemia mundial. Asseveram que, de acordo com os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde no dia 14 de junho de 2020, o número de casos confirmados acumulados no país alcançou a cifra de 867.624, com 43332 óbitos confirmados. Alegam que, em estudo realizado pelos Estados Unidos da América, embora 18% da população daquele país seja negra, 52% dos casos e 58% das mortes por COVID-19 são de pacientes negros. Destacam que o contexto brasileiro se assemelha ao norte-americano em virtude da presença expressiva de afrodescendentes em sua composição populacional, efeito do tráfico transatlântico de africanos e da sua escravização no continente americano. Narram que os dados do Ministério da Saúde não eram desagregados por raça-cor no início da pandemia. Os boletins só passaram a incluir tais números a partir do dia 11 de abril de 2020 – sem detalhar dados sobre casos confirmados ou de testes -, quase um mês e meio depois da confirmação do primeiro caso de COVID-19 no país, e graças à pressão de entidades da sociedade civil. Anotam que os dados sobre internações e mortes por COVID-19 desagregadas por raça-cor somente foram divulgados pelo Governo Federal nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde até o dia 26 de abril de 2020. Contudo, as informações colhidas neste curto período demonstraram que, durante esse intervalo de duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morreram por COVID-19 no Brasil quintuplicou. Como resultado, houve uma morte para cada três brasileiros negros (pretos e pardos) hospitalizados por COVID-19, enquanto entre brancos a proporção foi de uma morte a cada 4,4 internações. Esclarecem que existe clara percepção da autoridade municipal acerca das disparidades de saúde e as condições de vidas desfavoráveis que atingem a população negra. Entretanto, não tem olvidado esforços para que as políticas públicas construídas em resposta a pandemia da COVID-19 levem em consideração tal realidade. Acentuam que existe ineficiência do Poder Público ou insuficiência das respostas por ele ofertadas para eliminar as disparidades no acesso à saúde existentes entre negros e brancos. O Poder Público claramente tem se omitido de contribuir para impedir o agravamento das vulnerabilidades da população negra causada pelo advento da pandemia de COVID-19. Após descreverem a importância e a necessidade de informações claras e precisas a respeito da incidência da doença sobre a população negra, formularam os seguintes pedidos (ID Num. 160364954 - Págs. 34-35): 1. Seja concedida liminar para determinar: A) aos réus União, Estado de São Paulo e Município de São Paulo, por meio do Ministério da Saúde e das Secretaria Estadual e Municipal de Saúde, a expedição de diretrizes e implementação de ferramentas de preenchimento obrigatório do quesito raça cor, conforme as conhecidas categorias do IBGE, adotadas por suas portarias 344/2017 e 992/2009, constante dos formulários cadastrais (digitais ou impressos) dos Sistemas SUS-VE e SIVEP-Gripe, acompanhadas de manual que aborde a importância do preenchimento do quesito raça-cor e contenha orientações acerca da metodologia adequada à coleta dessa informação, inclusive nas hipóteses em que não é possível realizar entrevista pessoal com o paciente para colher a sua autodeclaração (em razão do quadro de saúde ou óbito posterior), evitando-se o uso do campo “ignorado” e priorizando-se a busca ativa de familiares, ainda em momento posterior, que possam fornecer o dado correto. B) aos réus União, Estado de São Paulo e Município de São Paulo, por meio do Ministério da Saúde e das Secretaria Estadual e Municipal de Saúde, a confecção de boletins epidemiológicos a serem divulgados diariamente em sítio eletrônico da rede mundial de computadores vinculados ao Ministério da Saúde, as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde, contendo informações sobre a pandemia, inclusive, sobre números de contaminados, testados, hospitalizados e mortos por COVID-19 desagregados por raça-cor, gênero e local de residência (Município ou bairro), ordenando-se, ainda, a revisão dos boletins já publicados até o momento para inclusão de tais informações. C) aos réus União, Estado de São Paulo e Município de São Paulo, por meio do Ministério da Saúde e das Secretaria Estadual e Municipal de Saúde, que utilizem, obrigatoriamente, as informações referidas no item “B” na produção de dados oficiais de contaminação e mortalidade pelo novo Coronavírus e nas apresentações públicas dos dados de infecção e mortalidade, inclusive em coletivas de imprensa; D) aos réus União, Estado de São Paulo e Município de São Paulo, por meio do Ministério da Saúde e das Secretaria Estadual e Municipal de Saúde, a criação de uma instância de governança e planejamento específica, quer em âmbito municipal, quer na esfera estadual e federal, para planejamento de ações especialmente dirigidas à população negra em situação de vulnerabilidade do Estado (aí incluídas as comunidades quilombolas); E) à ré ARPEN que atualize a plataforma https://transparencia.registrocivil.org.br/registral-covid para que passe a disponibilizar dados das mortes causadas por COVID-19 e outras causas respiratórias, no campo especifico “ESPECIAL COVID-19” desagregadas por raça-cor, sexo e localização (Estado de residência); (...) 3. ao final do processo seja julgada totalmente procedente a demanda com a confirmação integral dos pedidos liminares do item 1; Na sentença, o r. Juízo a quo indeferiu a petição inicial, extinguindo o processo sem julgamento de mérito, nos termos dos arts. 330, III, e 485, I, do CPC. Inconformada, as autoras interpuseram recurso de apelação, repisando os termos da petição inicial (ID Num. 160364975). Em sede de tutela de urgência recursal, requerem “que as apeladas sejam compelidas a adotem providencias para determinar diretrizes para o registro de raça/cor, etnia, gênero e região nos pacientes de COVID-19, diminuindo-se a margem dos casos onde aparece a informação ‘não preenchido’ ou ‘não sabido’. Além dessas informações constarem em dados oficiais divulgados sobre a doença, inclusive nos boletins diários e coletivas de imprensa. Requer-se também a determinação de criação de uma instância de governança e planejamento específica, quer em âmbito municipal, quer na esfera estadual e federal, para planejamento de ações especialmente dirigidas à população negra em situação de vulnerabilidade do Estado (aí incluídas as comunidades quilombolas). Por fim, pugna-se também que a UNIÃO disponibilize campo especifico raça/cor na plataforma digital da Arpen, vinculado ao CNJ, órgão que compõe um dos Poderes da União” (ID Num. 160364975 - Pág. 16). O MPF, como fiscal da ordem jurídica, também interpôs apelação ID Num. 160365242, pugnando para que seja recebida a inicial dando-se prosseguimento ao processo. Foi determinada a citação dos corréus para apresentarem contrarrazões (ID Num. 160364976). Após a apresentação das respostas, subiram os autos a esta E. Corte Federal. Em parecer, o representante da Procuradoria Regional da República da 3ª Região opinou pelo provimento dos recursos (ID Num. 160637573). Em decisão ID Num. 160982642 foi indeferido o pedido de efeito suspensivo à apelação. Desta decisão, a DPU interpôs o agravo interno ID Num. 160982642. O Município de São Paulo (ID Num. 164925921) e a União (ID Num. 165325283) apresentaram resposta. É o relatório.
REPRESENTANTE: ESTADO DE SAO PAULO
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5010623-51.2020.4.03.6100 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO APELADO: UNIÃO FEDERAL, MUNICIPIO DE SAO PAULO, ASSOCIACAO NACIONAL DOS REGISTRADORES DE PESSOAS NATURAIS, ESTADO DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: V O T O De início, impende frisar que está submetida à remessa oficial a sentença que julgar pela carência ou pela improcedência do pedido formulado em Ação Civil Pública, conforme aplicação analógica do art. 19 da Lei nº 4.717/1965 (Lei da Ação Popular), in verbis: Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo. Com efeito, assim já decidiu o E. Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA QUE EXTINGUIU O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, POR CARÊNCIA DE AÇÃO (FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL). REEXAME NECESSÁRIO. CABIMENTO. APLICAÇÃO DO ART. 19 DA LEI 4.717/1965. ENTENDIMENTO DESTA CORTE SUPERIOR. AGRAVO INTERNO DA FEDERAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Nos termos do que decidido pelo Plenário do STJ, aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (Enunciado Administrativo 2). 2. Conforme o entendimento desta Corte Superior, o art. 19 da Lei 4.717/1965 aplica-se analogicamente, também, às Ações Civis Públicas, para submeter as sentenças de improcedência ao reexame necessário. Julgados: AgInt no REsp. 1.264.666/SC, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, DJe 22.9.2016; AgRg no REsp. 1.219.033/RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 25.4.2011. 3. Ao contrário do que alegado pela parte agravante, o art. 19 da Lei 4.717/1965 incide, também, para as hipóteses de carência de ação, conforme a expressa dicção do dispositivo legal. 4. No presente caso, tendo a sentença julgado extinto o processo sem resolução de mérito, justamente pela carência de ação (fls. 347/351) - falta de interesse processual, prevista no art. 267, VI do CPC/1973 -, e considerando a jurisprudência deste STJ quanto à aplicação analógica do sobredito art. 19 às Ações Civis Públicas, é mesmo imprescindível o reexame necessário. 5. Ainda que existisse eventual vício na decisão singular, este seria convalidado pelo julgamento do presente Agravo Interno perante o Órgão Colegiado, sendo incabível o reconhecimento de nulidade. Julgados: AgInt no REsp. 1.709.018/SP, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 2.8.2018; AgInt no REsp. 1.533.044/AC, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 2.2.2017. 6. Agravo Interno da Federação a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1547569/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 17/06/2019, DJe 27/06/2019) Como bem sintetizado pelo MPE, a presente ACP versa sobre o cabimento da obrigação de fazer para compelir os corréus “a coletarem corretamente os dados de raça/ cor, gênero e localidade, referente à pandemia do novo coronavírus (COVID-19), reduzindo-se margem de subnotificação (não preenchimento dos dados), além de pedido de adoção de medidas para expedição de orientações técnicas para preenchimento adequado dos sistemas que alimentam informações do SUS e a plataforma pública de dados dos Registradores do Brasil” (ID Num. 160364970 - Pág. 1). Ao indeferir a petição inicial, o r. Juízo Singular entendeu que não haveria interesse de agir em discutir as medidas pretendidas pelas autoras, uma vez que tais informações já estariam sendo prestadas. Em suas palavras (ID Num. 160364967 - Pág. 4): O que se tem no presente caso é uma discordância subjetiva das autoras com o meio pelo o qual os dados são obtidos e publicados. A legislação citada já é observada, eis que há a coleta de dados de acordo com as normas estabelecidas. Não se nega os efeitos catastróficos da pandemia, que deixará marcas sobre toda população brasileira, e em especial àqueles mais vulneráveis, mas não há na atuação dos governos Federal, Estadual e Municipal um comportamento irrazoável ou proceder com a clara intenção de neutralizar ou comprometer a eficácia dos direitos sociais, econômicos ou culturais, que justifique a intervenção do Poder Judiciário sobre as políticas adotadas pelos legislativos e executivos das esferas Federal, Estadual e Municipal, conforme pretendem as autoras. É patente, portanto, a ausência de adequação da presente demanda para viabilizar a pretensão deduzida, o que acarreta ausência do interesse de agir. Analisando a petição inicial, verifico que os pedidos buscam, em um primeiro momento, assegurar a prestação de informações mais precisas sobre a população negra, que, na visão de suas requerentes, estariam sendo realizadas de forma insuficiente. É o caso, por exemplo, do pedido 1A, em que as recorrentes buscam “a expedição de diretrizes e implementação de ferramentas de preenchimento obrigatório do quesito raça cor, conforme as conhecidas categorias do IBGE, adotadas por suas portarias 344/2017 e 992/2009”. Já no pedido 2A, pleiteiam “a confecção de boletins epidemiológicos a serem divulgados diariamente em sítio eletrônico da rede mundial de computadores vinculados ao Ministério da Saúde, as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde, contendo informações sobre a pandemia, inclusive, sobre números de contaminados, testados, hospitalizados e mortos por COVID-19 desagregados por raça-cor, gênero e local de residência (Município ou bairro)”. Em um segundo momento, as apelantes buscam a adoção de medidas administrativas para assegurar o planejamento de ações dirigidas às populações negras. No pedido 1D, requerem “a criação de uma instância de governança e planejamento específica, quer em âmbito municipal, quer na esfera estadual e federal, para planejamento de ações especialmente dirigidas à população negra em situação de vulnerabilidade do Estado (aí incluídas as comunidades quilombolas)”. Sobre os pedidos formulados para assegurar a prestação de informações mais precisas sobre a população negra, a Constituição Federal garante o direito de acesso à informação precipuamente em seus arts. 5°, XXXIII, e 37, § 3º: Art. 5º, XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. Regulamentando o acesso a informações, foi editada a Lei nº 12.527/2011, conhecida como “Lei de Acesso à Informação” (LAI), a qual dispôs, entre os seus princípios básicos, a “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção” e a “divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações” (incisos I e II, do art. 3º). E, especificamente com relação à população negra, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) impõe como objetivo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra os seguintes termos (grifei): Art. 8º Constituem objetivos da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: I - a promoção da saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnicas e o combate à discriminação nas instituições e serviços do SUS; II - a melhoria da qualidade dos sistemas de informação do SUS no que tange à coleta, ao processamento e à análise dos dados desagregados por cor, etnia e gênero; III - o fomento à realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde da população negra; IV - a inclusão do conteúdo da saúde da população negra nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde; V - a inclusão da temática saúde da população negra nos processos de formação política das lideranças de movimentos sociais para o exercício da participação e controle social no SUS. Dado o panorama legislativo sobre a temática discutida nestes autos, entendo que assiste razão ao Parquet ao ponderar que existe interesse processual das apelantes em buscar a adequada prestação das informações públicas sobre a população negra, sendo este o “dado que constitui o núcleo da controvérsia apresentada nos autos, pois o autor afirma justamente que a legislação que entende aplicável não está sendo obedecida” (ID Num. 160637573 - Pág. 5, grifei). Além disso, o órgão ministerial justifica a plausibilidade da pretensão com base em informações prestadas pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, que, ao responder ao quesito sobre o preenchimento obrigatório da raça/cor/etnia e gênero dos usuários do SUS, aduziu que “Se a cor ou raça for desconhecida, o preenchimento se dá como ‘Ignorado’” (ID Num. 160364963 - Pág. 3, grifei). Impende destacar que o E. Superior Tribunal de Justiça adota de forma pacífica a teoria da asserção, “segundo a qual o interesse de agir deve ser avaliado in status assertionis, quer dizer, tal como apresentado na petição inicial” (AgInt no REsp 1841683/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/09/2020, DJe 24/09/2020). É certo que o simples fato de existir o campo “ignorado” não implica necessariamente na procedência desta demanda, pois como bem apontado pela mesma E. Corte Superior, a presença das condições da ação “deve ser apreciada à luz da narrativa contida na petição inicial, não se confundindo com o exame do direito material objeto da ação, a ser enfrentado mediante confronto dos elementos de fato e de prova apresentados pelas partes em litígio” (AgInt no REsp 1710937/DF, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 14/10/2019, DJe 18/10/2019). Contudo, verifico na narrativa ora apresentada, o interesse de agir das recorrentes vocacionado ao acesso a informações claras e precisas sobre a localização e a quantidade de pessoas atingidas pela COVID-19 quanto às populações negras. De outra sorte, como já apontado quando da decisão que indeferiu o pedido de tutela antecipada recursal, dada a prematura extinção da lide, não existem elementos probatórios aptos a justificar a imediata implementação das medidas requeridas pelas apelantes, ao menos na extensão por elas almejada. Cumpre ressaltar que a presente ACP foi proposta em 16/06/2020, em uma realidade em que os efeitos da pandemia decorrente da COVID-19 estavam começando a se fazer presente. Daquele período até o atual, certamente os Poderes Públicos adotaram inúmeras medidas administrativas para implementar as políticas públicas, planejando cuidadosamente as ações a serem tomadas com o propósito de proteger a população em geral. Daí porque não se mostra razoável determinar a imediata adoção das medidas pretendidas sem ao menos confrontar com aquelas que já foram concretizadas pelos entes públicos, o qual somente será possível com o prosseguimento do feito em 1ª Instância. Outro argumento que corrobora tal conclusão é a análise da 11ª edição do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, de 07/10/2021, em que o Ministério da Saúde (MS), por meio da Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações (CGPNI) e do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis (DEIDT) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), destaca os avanços das políticas públicas no combate à pandemia: Com a conclusão da primeira dose aos grupos prioritários, em 30 de julho de 2021, a partir da trigésima quarta a pauta de distribuição deu-se início à distribuição de vacinas para ampliação da vacinação da população geral (18 a 59 anos), de forma escalonada e por faixas etárias decrescentes, até o atendimento total da população brasileira com 18 anos e mais, data prevista de ocorrer no dia 15 de setembro pretérito. E, tendo em vista a dinâmica que uma campanha dessa magnitude exige e considerando a introdução de novas e diferentes vacinas, na 9ª edição, o PNI retoma as orientações da vacinação em gestantes e puérperas independentemente de condições de riscos adicionais. Considerando o risco aumentado para desenvolver formas graves de covid-19 de gestantes e puérperas até 45 dias após o parto, bem como das complicações obstétricas decorrentes da doença e ainda, a elevada mortalidade materna pela covid-19 no país, conforme NOTA TÉCNICA Nº 2/2021-SECOVI/GAB/SECOVID/MS. Há, inclusive, estudos sobre a possível vacinação para a população com faixa etária até 18 anos: O Ministério da Saúde, a partir das reuniões técnicas tripartite, que tem periodicidade semanal, no qual discute e define a estratégia a ser adotada a cada nova pauta, prima por garantir a segurança do cumprimento do esquema vacinal e da oferta de vacina ao País. O processo de imunização de todos os grupos prioritários foi finalizado sem que houvesse benefícios ou prejuízos às populações das unidades federativas, mas, gerou algumas discrepâncias (estados que receberam doses do fundo estratégico; estados com vacinação em municípios de fronteiras; atendimento a ações judiciais; grande contingente de população prioritária e outros), que estão sendo corrigidos a cada nova pauta de distribuição A Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, esclarece que na reunião da Comissão Intergestores Tripartite de 27/05/2021 ficou acordada a reorganização da Campanha Nacional de Vacinação contra a Covid-19, na qual definiu que a distribuição das doses adotaria o critério por faixa-etária. Em 29/07/2021, ficou acordado que o objetivo seria equiparar a cobertura vacinal dos estados de acordo com a população. De tal modo, a completar os esquemas vacinais ao mesmo tempo, em todas as unidades da federação. Como análise do cenário atual, foi realizado levantamento de doses (D1) distribuídas, independente da perda operacional, até a última pauta, por Unidade Federada, a fim de estimar a cobertura vacinal atualizada. Neste sentido, considerou-se os seguintes parâmetros: - A população igual ou maior de 18 anos; - Esquema vacinal por doses administradas completo; - O quantitativo de doses ainda faltantes para serem distribuída por UF, (independente de grupo prioritário). O cálculo sinalizou toda a população, ainda por vacinar, com idade decrescente até 18 anos, em todos os estados da federação. Os estados com atraso, receberam gradualmente mais doses de vacinas para acelerar a vacinação da população não contemplada. Foi orientado que que cada secretaria estadual fizesse uma equiparação de doses distribuídas de forma semelhante, ou seja, por faixa etária decrescente. A adoção da lista de atendimento prioritário está nitidamente fundamentada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, art. 3º, III e IV). Como o Estado possui o dever constitucional de garantir a saúde de todos (CF, art. 196), cumpre adotar todas as medidas administrativas necessárias para atender prioritariamente os grupos mais sensíveis da população, precipuamente pelo fato da nítida diferença entre a demanda pela vacina e a oferta dos laboratórios. Assim, dada a opção política do Ministério da Saúde em atender prioritariamente as pessoas com maiores vulnerabilidades, todos os que estiverem dentro do espectro escolhido serão vacinados neste momento, independentemente de critérios raciais. Logo, mesmo que exista a deficiência na prestação das informações buscadas pelas apelantes, tal óbice não coloca em risco a imunização da população negra. Por fim, esgotada a análise do vertente recurso, fica prejudicado o agravo interno. Ante o exposto, dou parcial provimento à apelação e à remessa oficial, tida por submetida, para reconhecer o interesse de agir das recorrentes, com o consequente retorno dos autos ao r. Juízo de origem para o prosseguimento do feito, e julgo prejudicado o agravo interno. É como voto.
REPRESENTANTE: ESTADO DE SAO PAULO
E M E N T A
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REMESSA OFICIAL TIDA POR SUBMETIDA. DIREITO À SAÚDE. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INFORMAÇÕES SOBRE A POPULAÇÃO NEGRA. VACINAÇÃO. COVID-19. IMEDIATA IMPLEMENTAÇÃO DAS MEDIDAS POSTULADAS. NÃO CABIMENTO. RETORNO DOS AUTOS AO JUÍZO DE ORIGEM. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. Analisando a petição inicial, verifica-se que os pedidos buscam, em um primeiro momento, assegurar a prestação de informações mais precisas sobre a população negra, que, na visão de suas requerentes, estariam sendo realizadas de forma insuficiente.
2. Em um segundo momento, as apelantes buscam a adoção de medidas administrativas para assegurar o planejamento de ações dirigidas às populações negras.
3. Sobre os pedidos formulados para assegurar a prestação de informações mais precisas sobre a população negra, a Constituição Federal garante o direito de acesso à informação precipuamente em seus arts. 5°, XXXIII, e 37, § 3º.
4. Dado o panorama legislativo sobre a temática discutida nestes autos, assiste razão ao Parquet ao ponderar que existe interesse processual das apelantes em buscar a adequada prestação das informações públicas sobre a população negra, sendo este o “dado que constitui o núcleo da controvérsia apresentada nos autos, pois o autor afirma justamente que a legislação que entende aplicável não está sendo obedecida”.
5. O interesse de agir das recorrentes vocacionado ao acesso a informações claras e precisas sobre a localização e a quantidade de pessoas atingidas pela COVID-19 quanto às populações negras.
6. Dada a prematura extinção da lide, não existem elementos probatórios aptos a justificar a imediata implementação das medidas requeridas pelas apelantes, ao menos na extensão por elas almejada.
7. Cumpre ressaltar que a presente ACP foi proposta em 16/06/2020, em uma realidade em que os efeitos da pandemia decorrente da COVID-19 estavam começando a se fazer presente. Daquele período até o atual, certamente os Poderes Públicos adotaram inúmeras medidas administrativas para implementar as políticas públicas, planejando cuidadosamente as ações a serem tomadas com o propósito de proteger a população em geral.
8. Daí porque não se mostra razoável determinar a imediata adoção das medidas pretendidas sem ao menos confrontar com aquelas que já foram concretizadas pelos entes públicos, o qual somente será possível com o prosseguimento do feito em 1ª Instância.
9. Apelações e remessa oficial, tida por submetida, parcialmente providas. Agravo interno prejudicado.