Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção

REVISÃO CRIMINAL (12394) Nº 5021056-47.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES

REQUERENTE: CLAUDIO RAMALHO

Advogado do(a) REQUERENTE: MARCUS VINICIUS VALLE JUNIOR - SP52615

REQUERIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção
 

REVISÃO CRIMINAL (12394) Nº 5021056-47.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES

REQUERENTE: CLAUDIO RAMALHO

Advogado do(a) REQUERENTE: MARCUS VINICIUS VALLE JUNIOR - SP52615

REQUERIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

Trata-se de REVISÃO CRIMINAL com pedido de liminar ajuizada por CLAUDIO RAMALHO, com fundamento no artigo 621, I, do Código de Processo Penal, em face do v. acórdão proferido, nos autos da Apelação Criminal nº 0000702-94.2014.4.03.6123 (ID 186570488 – pág. 11 e 14/33).

Regularmente processado o feito, sobreveio a sentença, que julgou procedente a denúncia, a fim de condená-lo pela prática do crime previsto no artigo 149, caput, do Código Penal, à pena total de 03 (três) anos de reclusão, no regime aberto, e ao pagamento de 120 (cento e vinte) dias-multa, no valor de unitário de 1/2 (meio) salário vigente ao tempo do crime (ID. 186570486 – pag. 38/45).

No julgamento da apelação criminal, a 11ª Turma desta Corte Regional decidiu, por unanimidade, dar parcial provimento ao apelo defensivo, para, mantendo a condenação do réu CLAUDIO RAMALHO pela prática do crime do artigo 149 do Código Penal, nos termos do art. 70 do Código Penal, mantida a sua pena em 03 (três) anos de reclusão e 120 (cento e vinte) dias-multa, reduzido o valor unitário do dia-multa para ¼ (um quarto) do salário-mínimo vigente à época dos fatos, mantido o regime aberto para início de cumprimento da pena e a substituição da pena corporal por duas restritivas de direitos, consubstanciadas em prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, pelo tempo da condenação, e prestação pecuniária de 12 (doze) salários-mínimos em favor de entidade pública a ser designada pelo Juízo da Execução.

O v. acórdão transitou em julgado em 12/12/2019 (ID. 186570488 – fl. 485).

Na presente revisão criminal, a defesa alega que a decisão contraria as evidências contidas nos autos e o próprio art. 149 do Código Penal, pois foi realizada interpretação extensiva exagerada e subjetiva do tipo penal, em proibida violação ao princípio da reserva legal. Sustenta que os trabalhadores mantinham contrato com o peticionário, por produção, e que todos eles moravam nas proximidades do local de trabalho, se locomovendo com veículos próprios. Aduz, ainda, que os trabalhadores não possuíam horários de trabalho, de modo que não há como restar caracterizada a jornada exaustiva ou o excesso de jornada, e que, em nenhum momento, os trabalhadores tiveram a liberdade de ir tolhida, o que restou comprovado nos autos. Afirma que esses fatos podem caracterizar infrações trabalhista e administrativa, mas não o crime do art. 149 do Código Penal. Alega que a ausência de equipamentos de segurança é cotidiana na região, sendo uma prática comum e cultural, e não uma atitude dolosa do réu e/ ou demais empregadores no Município e frisa que nenhum trabalhador sofreu lesões corporais ou ferimentos e que, questionados, afirmaram que voltariam a trabalhar para o réu nas mesmas condições anteriormente contratadas. Sustenta que decisões como a que condenou o réu banalizam o delito previsto no art. 149 do Código Penal e ferem “de forma flagrante e evidente” o princípio da proporcionalidade (ID 186569923).

O pedido liminar para suspender a execução da pena até o julgamento definitivo da Revisão Criminal foi indeferido (ID 190293191).

A Procuradoria Regional da República pugnou pelo não conhecimento da Revisão Criminal e, se conhecida, requereu a improcedência da ação (ID. 201544183).

É o relatório.

À revisão, nos termos regimentais.

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção
 

REVISÃO CRIMINAL (12394) Nº 5021056-47.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES

REQUERENTE: CLAUDIO RAMALHO

Advogado do(a) REQUERENTE: MARCUS VINICIUS VALLE JUNIOR - SP52615

REQUERIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

Do Cabimento da revisão criminal. Consoante reiteradas decisões deste Tribunal (v.g. RVC 00272252420104030000, Márcio Mesquita, E-DJF3 Judicial 1 Data: 16.07.2013; RVC 0012264442011030000, Cotrim Guimarães, E-DJF3 Judicial 1 Data: 20.12.2012; RVC 0006374902012403000, Cecília Mello, E-DJF3 Judicial 1 Data: 20.12.2012), a efetiva ocorrência de cada uma das hipóteses elencadas no art. 621, incisos I, II e III, do Código de Processo Penal, implica, necessariamente, o exame do mérito da ação.

Nessa ordem de ideias, considerando que para o conhecimento da revisão criminal basta a mera afirmação de que está ou estão presentes uma ou mais hipóteses de cabimento previstas em cada um dos incisos do artigo 621 do Código de Processo Penal, conheço do presente pedido revisional, eis que a efetiva ocorrência das referidas hipóteses é matéria reservada ao mérito da ação.

Do caso dos autos. Inicialmente, insta consignar que, na ação penal originária nº 0000702-94.2014.4.03.6123, o requerente foi denunciado pela prática do crime previsto no artigo 149, caput, c/c. art. 71, ambos do Código Penal (ID. 186571607 – pág. 1/3), nos seguintes termos:

“(...)

Segundo consta do Relatório de Fiscalização acostado às fls. 3/34, em ação fiscal iniciada em 22 de janeiro de 2014 pelo Grupo Especial de Combate ao Trabalho Escravo, constituído por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, por membro do Ministério Público do Trabalho e por Policiais Rodoviários Federais, o denunciado, na sua propriedade rural denominada Fazenda Ribeirão dos Índios, localizada no bairro Atibainha, em Piracaia/SP, reduzia Rosalina Maria de Almeida Moraes, Benedito de Moraes, Luiza Aparecida de Moraes, Aurora Maria Machado Pereira, Benedito Aparecido da Silva, José Dair da Silva e outros não individualizados, todos seus empregados, à condição análoga a de escravo, sujeitando-os a condições degradantes de trabalho.

Constatou-se que o denunciado não fornecia equipamentos de proteção aos empregados e estes trabalhavam sem período de descanso.

O denunciado também não fornecia instalações sanitárias, papel higiênico e sabonete. Os empregados faziam suas necessidades fisiológicas no mato e levavam o papel higiênico de suas casas.

E mais, o denunciado não fornecia água potável. Eles levavam de suas casas a água para beber. Quando esta acabava, se viam obrigados a tomar água de um ribeirão sujo existente no local.

O denunciado não disponibilizava local apropriado para refeições. Os empregados comiam onde estivessem trabalhando. Inúmeras vezes comeram sob chuva e sol forte.

O contrato de trabalho era verbal e o denunciado pagava os empregados de três em três meses, por vezes demorou quatro meses para pagar.

O pagamento era descontado no Mercado União de Piracaia, pois ali o dono vendia fiado aos empregados.

Os empregados confirmaram perante este órgão ministerial as condições degradantes nas quais trabalhavam (...)” – grifado no original

Regularmente processado o feito, sobreveio a sentença, que julgou procedente a denúncia, a fim de condená-lo pela prática do crime previsto no artigo 149, caput, do Código Penal, à pena total de 03 (três) anos de reclusão, no regime aberto, e ao pagamento de 120 (cento e vinte) dias-multa, no valor de unitário de 1/2 (metade) do salário vigente ao tempo do crime.

No julgamento da apelação criminal, a 11ª Turma desta Corte Regional decidiu, por unanimidade, dar parcial provimento ao apelo defensivo, para, mantendo a condenação do réu CLAUDIO RAMALHO pela prática do crime do artigo 149 do Código Penal, nos termos do art. 70 do Código Penal, mantida a sua pena em 03 (três) anos de reclusão e 120 (cento e vinte) dias-multa, reduzido o valor unitário do dia-multa para ¼ (um quarto) do salário-mínimo vigente à época dos fatos, mantido o regime aberto para início de cumprimento da pena e a substituição da pena corporal por duas restritivas de direitos, consubstanciadas em prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, pelo tempo da condenação, e prestação pecuniária de 12 (doze) salários-mínimos em favor de entidade pública a ser designada pelo Juízo da Execução.

Irresignada, a defesa alega que a decisão contraria as evidências contidas nos autos e o próprio art. 149 do Código Penal, pois foi realizada interpretação extensiva exagerada e subjetiva do tipo penal, em proibida violação ao princípio da reserva legal. Aduz que nenhuma das situações previstas no tipo penal ocorreram e eventuais infrações trabalhistas e administrativas ocorridas no local não podem caracterizar a responsabilidade penal do acusado.

O pedido de revisão criminal deve ser julgado improcedente.

Consta da exordial acusatória que CLAUDIO RAMALHO, na condição de proprietário da Fazenda Ribeirão dos Índios, em Piracicaba/SP, reduziu Rosalina Maria de Almeida Moraes, Benedito de Moraes, Luiza Aparecida de Moraes, Aurora Maria Machado Pereira, Benedito Aparecido da Silva, José Dair da Silva e outros não individualizados a condição análoga à de escravo, submetendo-os a condições degradantes de trabalho (art. 149 do Código Penal).

A prática delituosa foi descoberta em 22/01/2014 pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, constituído, dentre outros, por Auditores Fiscais do Ministério do Trabalho.

E, na hipótese dos autos, de fato, CLAUDIO RAMALHO é proprietário da Fazenda Ribeirão dos Índios, em Piracicaba/SP, cuja atividade precípua é a produção de carvão vegetal de floresta plantada.

Nos termos do Relatório de Inspeção realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel/SIT/TEM, a situação encontrada pelo grupo de fiscais que inspecionavam o local “...é procedente no que tange as práticas que caracterizam o trabalho em condições degradantes”, com os trabalhadores tendo que realizar suas necessidades fisiológicas no local, além de não contarem, no local de trabalho, com água potável e local adequado a refeições e descanso.  

O supramencionado relatório foi confirmado, em Juízo, pelas testemunhas de acusação José Weyne Nunes Marcelino e Antônio Dias Pereira, auditores fiscais que participaram da inspeção e ficaram responsáveis por subscreverem o relatório.

Ademais, de acordo com o acórdão recorrido as declarações judiciais e extrajudiciais dos trabalhadores Benedito Aparecido da Silva, Luiza Aparecida de Moraes e Rosalina Maria de Almeida Moraes reforçam a situação degradante à qual foram submetidos pelo condenado CLAUDIO RAMALHO. Consta expressamente da decisão:

“Em Termo de Declaração prestado perante o Ministério Público Federal (fls. 64165), Benedito Aparecido da Silva afirmou que trabalhou na carvoaria de Cláudio Ramalho, na produção de carvão, 'Carvão Cacique' (...) seu trabalho consistia em pegar a tenha do terreiro, enchia o forno retirava o carvão (...) o contrato era feito 'de boca' e os pagamentos eram feitos por Cláudio Ramalho (...) que estava trabalhando na carvoaria no bairro Ribeirão dos índios em janeiro deste ano quando a fiscalização apareceu; que conversou com os ficais e confirma tudo que foi dito a eles; que trabalhava sem registro e anotação na CTPS (...) não fez exames admissionais, não havia equipamento de segurança; nem era fornecido vestuário adequado (...) levava sua marmita; não havia lugar para esquentá-la e a deixava em cima do forno; que quando acabava a água que levava de casa tomava água de um ribeirão meio sujo que havia ali perto; não era fornecido água nem copo; tomava água na tampa da garrafa de café; não havia banheiro e faziam xixi e cocô no meio do maio; levava o sabonete e o papel higiênico de casa; não havia lugar próprio para refeições, comiam onde estivessem trabalhando; que já comeu várias vezes embaixo de

chuva e de sol forte (...) sua esposa, Rosalina Maria de Almeida Moraes também trabalhava lá (...)

Em juízo, Benedito Aparecido da Silva informou que laborava no local, puxando lenha e levando ao fomo. Não recebeu equipamento de proteção individual. Levava a comida de casa. Tomava água do ribeirão. Não tinha banheiro no local. Ficava longe da casa sede (fl. 366).

Em Termo de Declaração prestado perante o Ministério Público Federal (fis. 63 e verso), Rosalina Maria de Almeida Moraes sustentou que não eram fornecidos equipamentos de proteção para o trabalho, tampouco ferramentas adequadas ou vestuários. Levava sua marmita, não havendo local específico para esquentá-la e a deixava em cima do forno; que quando acabava a água que levava de casa tomava água de um ribeirão meio sujo que havia ali perto. Não havia sanitário e faziam as necessidades no mato.

Rosalina Maria de Almeida Moraes; (fl. 366), inquirida em juízo, aduziu que trabalhava no local com seu marido Benedito de Moraes. Não residia no trabalho. Não receberam Equipamento de Proteção Individual. Trabalhava na carvoaria enchendo o forno com lenha e depois retirava o carvão. Não usava ferramenta. Fazia tudo com a mão. Levava marmita e água. Tinha água do caseiro, quando acabava iam buscar. Comia no local mesmo. Não eram registrados. Trabalhava por empreita. Recebia a cada três meses.

A testemunha de acusação Luiza Aparecida de Moraes (fl. 366) informou que trabalhava no local no plantio de eucaliptos. Nunca recebeu Equipamento de Proteção Individual. Não residia no trabalho. Recebia por empreita a cada noventa dias. Levava água e refeição. Almoçava no mato. Não tinha banheiro.

(...)”

A dignidade da pessoa humana foi consagrada pelo legislador constituinte, no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, como fundamento do nosso Estado democrático e social de direito, tornando o desenvolvimento do ser humano a finalidade precípua da atividade estatal.

Como uma forma de dar concretude a esse fundamento, o legislador tipificou no art. 149 do Código Penal, com nova redação dada pela Lei nº 10.803/2003, situações que atingem valores que vão além da liberdade individual dos trabalhadores reduzidos à condição de escravos, pois também se referem ao primado da dignidade da pessoa humana e da liberdade de trabalho.

Dispõe o artigo 149 do Código Penal:

"Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência." - Grifei

As situações tipificadas na norma são alternativas e não cumulativas, de modo que a restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, por qualquer meio, não é pressuposto indispensável ao cometimento do crime de reduzir alguém à condição análoga de escravo, bastando a verificação de submissão da vítima a serviços forçados ou a jornada exaustiva ou a condições degradantes.

É esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

"PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima 'a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva' ou 'a condições degradantes de trabalho', condutas alternativas previstas no tipo penal. A 'escravidão moderna' é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa 'reduzir alguém a condição análoga à de escravo'. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais" (STF - Inq: 3412/AL, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Red. para acordão Min. Rosa Weber, Data de Publicação: Acordão Eletrônico DJe 12/11/2012) - Grifei

"PENAL. PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. CRIMES DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E DE ALICIAMENTO DE TRABALHADORES. DESNECESSIDADE DE VIOLÊNCIA FÍSICA PARA A OCORRÊNCIA DO DELITO. PARA A CARACTERIZAÇÃO DO DELITO BASTA A REITERADA OFENSA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHADOR, VULNERANDO SUA DIGNIDADE COMO SER HUMANO. PRESCRIÇÃO QUANTO AO DELITO DE FRUSTRAÇÃO DE DIREITO TRABALHISTA. DENUNCAIDOS COM IDADE SUPERIOR A SETENTA ANOS. RECEBIMENTO PARCIAL DA DENÚNCIA. I - A inicial acusatória contemplou a qualificação do acusado, a classificação do crime e o rol de testemunhas, apresentou informações essenciais sobre a prática das condutas, preenchendo os requisitos do art. 41 do CPP. II - Prescrição da pretensão punitiva estatal em relação ao delito de frustração de direito trabalhista, considerando a pena máxima cominada ao tipo penal (dois anos de detenção) e o fato de o prazo do art. 109, V, do Código Penal necessitar ser reduzido à metade (art. 115 do CP); a prescrição é, inclusive, anterior à remessa dos autos a esta Corte. III - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ser desnecessário haver violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano (Inq 3.412, Redatora p/ Acórdão: Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 12/11/2012). IV - Presentes os indícios de materialidade e autoria, a denúncia foi parcialmente recebida para os crimes de redução a condição análoga à de escravo e de aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional, tipificado nos arts. 149 e 207, §1º, ambos do Código Penal. (STF - Inq 3564/MG, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, Data de Julgamento: 19/08/2014, DJe de 17-10-2014) – Grifei

Desse modo, o objeto jurídico protegido pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade de locomoção da vítima, compreendendo também a própria concepção de dignidade humana, protegida pelo art. 1º, III, da Constituição Federal.

Referido princípio caracteriza-se por ser uma fórmula lógica abstrata, isto é, sem conteúdo prévio definido, uma vez que o conteúdo é preenchido a partir das circunstâncias de tempo e de lugar.

O conceito albergado pela Constituição da República Federativa do Brasil compõe um patamar mínimo e indisponível de respeito que deve ser conferido a todo ser humano e que pode ser extraído dos fundamentos, objetivos, direitos e garantias preconizados no texto constitucional, dentre os quais devem ser destacados aqueles dispostos nos artigos 1º, II, III, IV, 3º, I, III, IV, 4º, II, 5º e 6º da Carta.

Nesse ínterim, é incompatível com a nossa Lei Maior sujeitar qualquer trabalhador à condição de objeto, despojando-lhe do estado ou da condição de indivíduo.

No presente caso a alegação da defesa é que não houve a prática de condutas previstas no tipo penal incriminador previsto no art. 149 do Código Penal, mas meras infrações trabalhista e administrativa, tendo as autoridades competentes realizado interpretação extensiva do conceito de situação degradante.

O argumento, contudo, não próspera.

O conjunto probatório juntado aos autos é claro sobre a ausência de condições mínimas de higiene e segurança as quais os trabalhadores foram submetidos, como bem assinado na sentença de primeira instância, na qual CLAUDIO RAMALHO foi condenado pela prática do delito de redução à condição análoga a de escravo:

“...

A produção de carvão vegetal por processos manuais, em áreas da própria floresta, é atividade que sujeita os que nela tomam parte a severos agentes nocivos. O calor que emana dos fornos pode provocar queimaduras e outros danos corporais naqueles que deles se aproximam e, principalmente, nos que neles adentram.

O processo de queima libera fuligem e gazes tóxicos que podem ser inalados pelos trabalhadores, notadamente os que mantêm contato direto com os fornos. Daí a necessidade de que sejam fornecidos a eles equipamentos de proteção contra tais agentes, como traje de segurança, máscara de proteção respiratória, botas, óculos de proteção e luvas.

[...]

Vê-se, de fato, nas fotografias insertas no citado relatório, que Rosalina Moraes está a ensacar carvão com calça e camisa comuns, lenço de pano na cabeça e chinelo.

Nesse caso, a trabalhadora estava a inalar fuligem e gás tóxico e a correr risco de queimaduras, notadamente, nos pés praticamente descalços.

[...]

Como se não bastasse estarem os trabalhadores sujeitos a perigos em sua saúde e integridade física pela ausência de proteção eficaz, não contavam nem mesmo com instalações alimentares e sanitárias decentes no local de trabalho.

Neste ponto, não foi comprovada a existência de refeitório e sanitário capazes de atender as necessidades de mais de dez trabalhadores, tendo sido referido apenas que a água potável era obtida na residência do caseiro, onde também havia sanitário e mesa para refeições.

Ainda assim, não se pode descartar que, como referiu Rosalina Moraes em seu depoimento judicial, as refeições fossem feitas no campo, sob o sol, e no mato as necessidades fisiológicas, como amiúde acontece em sítios tão rudimentares que, infelizmente, não se consegue erradicar do país...” (ID 186570486 – pág. 38/46).

Não obstante as alegações da defesa, o depoimento das vítimas foi no sentido de que no local, onde os trabalhos eram prestados, não havia água potável, muito menos instalações sanitárias, ainda que, por óbvio, em algum lugar da propriedade elas existiam.

Assinalo ainda, que pouco importa se os trabalhadores acreditavam que as condições de trabalho eram normais, por serem corriqueiras na região, e que os trabalhadores voltariam a prestar seus trabalhos ao acusado nas mesmas circunstâncias, pois o status libertatis constitui bem jurídico indisponível, conforme frisado pela Exma. Ministra Rosa Weber quando da concessão da liminar na ADPF 489 MC, julgada em 23/10/2017 (DJe: 26/10/2017).

De fato, a ofensa à dignidade, tratada na norma do art. 149 do Código Penal, se materializa pelas graves violações aos direitos trabalhistas e pela restrição, por qualquer meio, da liberdade de locomoção dos trabalhadores.

Por questões histórico-culturais, que não nos cabe, aqui, discorrer, existe uma naturalidade, sobretudo no meio rural, sobre as jornadas exaustivas de trabalho e as condições degradantes de trabalho e alojamento as quais muitos trabalhadores – nacionais e estrangeiros – são submetidos, o que não pode, de modo algum, ser corroborado pelo Direito e seus operadores.

Não há, desse modo, fundamento para a revisão criminal dado que a condenação está sustentada em robusto conjunto probatório, observados o contraditório e ampla defesa, nos exatos termos da legislação em vigor.

Outrossim, como bem mencionado pela Procuradoria Regional da República (ID 201544183): “a ação penal tramitou regularmente sem nulidades declaradas pelo Juízo que proferiu a sentença condenatória, que transitou em julgado. Além disso, a alegação ora trazida na presente revisão criminal além de tardia é vazia, na medida em que não se trouxe nenhuma prova de supostas nulidades absolutas que poderiam eventualmente macular o processo original.”.

Inexiste, portanto, no v. acórdão combatido, nenhuma das hipóteses autorizadoras da revisão criminal, nos termos dos incisos I, II e III, do art. 621 do Código de Processo penal. 

Ante o exposto, conheço da revisão criminal e julgo improcedente a revisão criminal, mantendo-se o v. acórdão revidendo em seus exatos termos. 

É COMO VOTO.

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. REVISÃO CRIMINAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. TRABALHO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. VIOLAÇÃO AO POSTULADO DA DIGNIDADE HUMANA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTO IDÔNEO À REVISÃO CRIMINAL. RECURSO IMPROCEDENTE.

1. Trata-se de REVISÃO CRIMINAL com pedido de liminar ajuizada por CLAUDIO RAMALHO, com fundamento no artigo 621, I, do Código de Processo Penal, em face do v. acórdão proferido, nos autos da Apelação Criminal nº 0000702-94.2014.4.03.6123.

2. No julgamento da apelação criminal, a 11ª Turma desta Corte Regional decidiu, por unanimidade, dar parcial provimento ao apelo defensivo, para, mantendo a condenação do réu CLAUDIO RAMALHO pela prática do crime do artigo 149 do Código Penal, nos termos do art. 70 do Código Penal, mantida a sua pena em 03 (três) anos de reclusão e 120 (cento e vinte) dias-multa, reduzido o valor unitário do dia-multa para ¼ (um quarto) do salário-mínimo vigente à época dos fatos, mantido o regime aberto para início de cumprimento da pena e a substituição da pena corporal por duas restritivas de direitos, consubstanciadas em prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, pelo tempo da condenação, e prestação pecuniária de 12 (doze) salários-mínimos em favor de entidade pública a ser designada pelo Juízo da Execução.

3. A prática delituosa foi descoberta em 22/01/2014 pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, constituído, dentre outros, por Auditores Fiscais do Ministério do Trabalho. Nos termos do Relatório de Inspeção realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel/SIT/TEM, a situação encontrada pelo grupo de fiscais que inspecionavam o local “...é procedente no que tange as práticas que caracterizam o trabalho em condições degradantes”, com os trabalhadores tendo que realizar suas necessidades fisiológicas no local, além de não contarem, no local de trabalho, com água potável e local adequado a refeições e descanso.  

4. O objeto jurídico protegido pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade de locomoção da vítima, compreendendo também a própria concepção de dignidade humana, protegida pelo art. 1º, III, da Constituição Federal. Referido princípio caracteriza-se por ser uma fórmula lógica abstrata, isto é, sem conteúdo prévio definido, uma vez que o conteúdo é preenchido a partir das circunstâncias de tempo e de lugar.

5. O conceito albergado pela Constituição da República Federativa do Brasil compõe um patamar mínimo e indisponível de respeito que deve ser conferido a todo ser humano e que pode ser extraído dos fundamentos, objetivos, direitos e garantias preconizados no texto constitucional, dentre os quais devem ser destacados aqueles dispostos nos artigos 1º, II, III, IV, 3º, I, III, IV, 4º, II, 5º e 6º da Carta. Nesse ínterim, é incompatível com a nossa Lei Maior sujeitar qualquer trabalhador à condição de objeto, despojando-lhe do estado ou da condição de indivíduo.

6. O conjunto probatório juntado aos autos é claro sobre a ausência de condições mínimas de higiene e segurança as quais os trabalhadores foram submetidos, como bem assinado na sentença de primeira instância, na qual o recorrente foi condenado pela prática do delito de redução à condição análoga a de escravo.

7. O depoimento das vítimas foi no sentido de que no local, onde os trabalhos eram prestados, não havia água potável, muito menos instalações sanitárias, ainda que, por óbvio, em algum lugar da propriedade elas existiam.

8. Pouco importa se os trabalhadores acreditavam que as condições de trabalho eram normais, por serem corriqueiras na região, e que os trabalhadores voltariam a prestar seus trabalhos ao acusado nas mesmas circunstâncias, pois o status libertatis constitui bem jurídico indisponível, conforme frisado pela Exma. Ministra Rosa Weber quando da concessão da liminar na ADPF 489 MC, julgada em 23/10/2017 (DJe: 26/10/2017).

9. Não há fundamento para a revisão criminal dado que a condenação está sustentada em robusto conjunto probatório, observados o contraditório e ampla defesa, nos exatos termos da legislação em vigor.

10. Revisão criminal improcedente.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quarta Seção, por unanimidade, decidiu conhecer da revisão criminal e julgá-la improcedente, mantendo-se o v. acórdão revidendo em seus exatos termos, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.