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APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0004654-33.2016.4.03.6181 RELATOR: 5º Juiz Federal da 2ª TR SP APELANTE: THIAGO AUGUSTO MARTINS RASCIO APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de recurso de Apelação interposto pela Defensoria Pública da União em favor de THIAGO AUGUSTO MARTINS RASCIO contra a sentença proferida pela 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo que, condenou o réu pela prática do delito descrito no artigo 29, §1º, III, da Lei n. 9.605/98, à pena de 10 (dez) meses e 15 (quinze) dias de detenção, em regime inicial aberto, e pagamento de 23 (vinte e três) dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos consistente em prestação de serviços à comunidade. Consta da denúncia, em síntese, que: “No período anterior ao dia 13 de junho de 2016, na Rua Manoel Rodrigues da Rocha, nº 337, apto 53, Vila Curuça, São Paulo/SP, os denunciados THIAGO e KEILA, consciente e voluntariamente, mantiveram em cativeiro espécimes da fauna silvestre encontradas e capturadas na Floresta Amazônica e as comercializaram por meio da internet, sem a devida permissão, licença ou autoridade competente. Conforme consta, foi instaurado o IFL nº 36/2014-14/DELEMAPH/SR/DPF/SP em decorrência da apreensão de 7 quelônios (Jabutis) em uma agência dos Correios na cidade de Salto no dia 10/09/2014. Em decorrência dessa apreensão, diversas diligências foram realizadas e foi possível identificar o casal THIAGO AUGUSTO MARTINS RASCIO e KEILA OLIVEIRA RASCIO como os autores da comercialização dos animais silvestres apreendidos. O inquérito policial retrocitado prosseguiu em relação a outros investigados e foi instaurado o presente inquérito policial (nº 24/2015-13) para continuar investigando THIAGO e KEILA. Assim, no dia 13 de junho de 2016, durante o cumprimento do mandado de busca e apreensão expedido para a residência dos denunciados, situada na Rua Manoel Rodrigues da Rocha, nº 337, apto 53, Vila Curuça, São Paulo/SP, a equipe responsável logrou êxito em apreender 10 (dez) animais pertencentes à fauna silvestre brasileira: 3 (três) jiboias (Boa Constritor), 1 (uma) cobra (Corallus Hortulanus) e 6 (seis) tarântulas (Theraphosa Blondi), sendo 4 (quatro) deles pertencentes à lista oficial dos animais em extinção, sem autorização legal da autoridade competente (f. 231- 233). Conforme detalha o laudo pericial de f. 22-27 do Apenso I, todos os dez animais apreendidos na posse dos denunciados pertencem a fauna silvestre brasileira e quatro destes ‘pertencem a espécies que são citadas em alguma das listas oficiais de extinção’. Não foram vistos sintomas de que os animais tivessem sofrido maus tratos. Além disso, consoante laudo de perícia criminal federal (informática), no qual foram periciados dois aparelhos celulares pertencentes aos denunciados THIAGO e KEILA, foram encontradas capturas de tela dos aplicativos Facebook e WhatsApp, nas quais apareciam imagens e descrição de animais silvestres a serem vendidos pela internet, conversas sobre o tema, além de registros de transações bancárias, boletos, comprovantes de depósito e uma CNH aparentemente falsa (v. f. 265-270 e f. 277-297). Dessa forma, ficou caracterizada a materialidade delitiva dos delitos do art. 29, § 1 º, III, da Lei nº 9.605/98, eis que os animais, espécimes da fauna silvestre, eram mantidos em cativeiro sem qualquer autorização para tanto, conforme Auto de Apresentação e Apreensão (f. 5-7 do Apenso 1) e Laudo de Perícia Criminal nº 3619/2016 (f. 22-27 do Apenso I). Além disso, também incide a causa de aumento do § 4°, I, do artigo 29 da Lei nº 9.605/98, por constar o cardeal do Apêndice II da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção - CITIES (f. 233). [...] Assim, agindo de forma voluntária e consciente, fazendo disso inclusive um meio de vida, os denunciados comercializaram e mantiveram em cativeiro, sem autorização do órgão ambiental competente, espécimes da fauna brasileira, das quais quatro estão inseridas na Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção - CITIES, conforme bem detalha o laudo pericial (f. 81).” A denúncia foi recebida em 28/02/2018. O juízo de origem procedeu à emendatio libelli dos fatos descritos na denúncia, amoldando-os exclusivamente ao delito do art. 29, § 1º, III, da Lei n. 9.605/98, deixando de considerar o enquadramento das condutas narradas ao tipo penal do artigo 180, §1°, do Código Penal, sob pena de bis in idem, bem como desconsiderando a causa de aumento prevista no § 4º, I, do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais. O Ministério Público Federal ofereceu proposta de suspensão condicional do processo em favor da denunciada KEILA OLIVEIRA RASCIO, que foi aceita pela acusada e homologada pelo juízo. Não foi apresentada proposta de suspensão condicional do processo em favor de THIAGO AUGUSTO MARTINS RASCIO em razão do acusado ostentar condenação pregressa definitiva em seu desfavor. Processado regularmente o feito, foi proferida a sentença em 16/04/2019. A Defensoria Pública da União, em suas razões de Apelação, pleiteia redução da pena-base ao mínimo legal, bem como a compensação da atenuante da confissão espontânea com a agravante da reincidência. Contrarrazões de Apelação do Ministério Público devidamente apresentadas. O feito foi originalmente distribuído no E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que declinou da competência para esta Turma Recursal. A Procuradoria da República oficiante nesta Turma Recursal não apresentou parecer escrito. É o relatório.
APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0004654-33.2016.4.03.6181 RELATOR: 5º Juiz Federal da 2ª TR SP APELANTE: THIAGO AUGUSTO MARTINS RASCIO APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O delito imputado ao Apelante é assim tipificado: Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas: I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II - quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. É imperioso analisar uma preliminar de mérito, reconhecível de ofício, consistente na incompetência absoluta da Justiça Federal para processar e julgar o feito. De acordo com a prova dos autos, especialmente a “LAUDO Nº 3619/I6 - NUCRIM/SETEC/SR/PF/SP” (fl. 284, ID 158712295), os animais não estão incluídos na lista nacional de espécies ameaçadas de extinção, mas apenas no Anexo II da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção - CITES. Tal Convenção foi introduzida no ordenamento pátrio pelo Decreto n. 3.607, de 21 de setembro de 2000, que em seu art. 8º estabelece que “as espécies incluídas no Anexo II da CITES são aquelas que, embora atualmente não se encontrem necessariamente em perigo de extinção, poderão chegar a esta situação, a menos que o comércio de espécimes de tais espécies esteja sujeito a regulamentação rigorosa, podendo ser autorizada a sua comercialização, pela Autoridade Administrativa, mediante a concessão de Licença ou emissão de Certificado”. Ora, em que pese ser competência concorrente dos diversos entes federativos a proteção ao meio ambiente, o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência no sentido de que "a competência do foro criminal federal não advém apenas do interesse genérico que tenha a União na preservação do meio ambiente. É necessário que a ofensa atinja interesse direto e específico da União, de suas entidades autárquicas ou de empresas públicas federais”. No presente caso, a simples presença da espécie em tratado internacional não é suficiente para atrair a competência da Justiça Federal, haja vista inexistir prova da transnacionalidade do delito, conforme previsto no artigo 109, V, da Constituição da República. Em sentido semelhante, assim entendeu o Superior Tribunal de Justiça: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE PRÁTICA, INDUÇÃO OU INCITAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO OU AO PRECONCEITO DE RAÇA, COR, ETNIA, RELIGIÃO OU PROCEDÊNCIA NACIONAL. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL. ASSINATURA E RATIFICAÇÃO PELO BRASIL. INTERNALIZAÇÃO PELO DECRETO N. 65.810/1969. TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA PELA LEI N. 7.716/1989. DISSEMINAÇÃO DE CONTEÚDOS ILÍCITOS POR MENSAGEIROS ELETRÔNICOS. GRUPO DE WHATSAPP. AUSÊNCIA DE TRANSNACIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. A competência da Justiça Federal, quando ancorada no inciso V do art. 109 da Constituição Federal, exige não apenas que o crime praticado tenha sido previsto em tratado ou convenção internacional mas também que tenha havido o início de execução no Brasil e que haja previsão ou efetiva ocorrência do resultado no exterior, ou vice-versa. 2. O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, internalizada pelo Decreto n. 65.810/1969, tendo cumprido seu compromisso de tipificar a conduta de difusão de ideias baseadas na superioridade ou ódio raciais, bem como qualquer incitamento à discriminação social, no art. 20, caput, da Lei n. 7.716/1989. 3. A presunção da transnacionalidade de delito de publicação de material ilícito em sites nacionais e/ou estrangeiros ou em redes sociais abertas deriva de sua potencial visualização imediata por pessoas localizadas em qualquer parte do mundo. Desnecessidade, nessa específica hipótese, de demonstração de efetiva postagem e/ou visualização em território alienígena para fins de configuração da competência da Justiça Federal comum (orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal). 4. A troca de conteúdos ilícitos por meio de mensageiros eletrônicos por integrantes de grupo específico não carrega a potencialidade automática de visualização desse material no exterior, ainda que demonstrada a presença de um componente que criou sua conta com vinculação a linha telefônica de prefixo estrangeiro. 5. Competência da Justiça comum estadual para o processamento do feito. (CC n. 175.525/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Seção, DJe de 11/12/2020.) Essa é a inteligência do Tema 698/STF, no qual se firmou a seguinte tese: “Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime ambiental de caráter transnacional que envolva animais silvestres, ameaçados de extinção e espécimes exóticas ou protegidas por compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”. Logo, não há razão jurídica para que o delito seja julgado pela Justiça Federal, haja vista a ausência de lesão a bem ou interesse direto da União ou transnacionalidade do delito. Muito embora seja possível a ratificação dos atos processuais pelo juízo competente, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (STF, HC 179164 AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 10/10/2020; STJ HC 539002/SP, Rel. Min. LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), j. 21/11/2019), no caso concreto tal declaração não gerará efeitos práticos. Isso porque as decisões proferidas por juízo incompetente são absolutamente nulas e, por isso, não interrompem curso da prescrição (Superior Tribunal de Justiça, AgRg no REsp 1492580 / RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, DJe 10/03/2016). Os fatos ocorreram em 13/06/2016. Ausentes quaisquer marcos interruptivos (já que tanto a sentença quanto o recebimento da denúncia são nulos), é de rigor a declaração da prescrição da pretensão punitiva, na forma do artigo 61 do Código de Processo Penal e do artigo 109, V, do Código Penal. Ante o exposto, declaro a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar o feito e extinta a punibilidade do réu em relação aos fatos narrados na denúncia pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. Fica prejudicado o recurso da defesa.
E M E N T A
PENAL. PROCESSUAL PENAL. ARTIGO 29, §1º, III, DA LEI 9.605/1998. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. MANUTENÇÃO DE ANIMAIS EM CATIVEIRO E DISPONIBILIZAÇÃO PARA VENDA, SEM AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO COMPETENTE. AUSÊNCIA DE OFENSA A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO OU TRANSNACIONALIDADE DO DELITO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS, ANTE A OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. DECLARADA A INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO E EXTINTA A PUNIBILIDADE DO RÉU EM RELAÇÃO AOS FATOS NARRADOS NA DENÚNCIA PELA OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. PREJUDICADO O RECURSO DA DEFESA.