APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001270-04.2008.4.03.6000
RELATOR: Gab. 09 - DES. FED. NELTON DOS SANTOS
APELANTE: SOCIEDADE DE PROTECAO ANIMAL ABRIGO DOS BICHOS
Advogados do(a) APELANTE: NEDYSON DE AVILA GORDIN - MS11379-A, WAGNER LEAO DO CARMO - MS3571-A, LUCIVAL BENTO PAULINO FILHO - MS20998-A
APELADO: MUNICIPIO DE CAMPO GRANDE
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001270-04.2008.4.03.6000 RELATOR: Gab. 09 - DES. FED. NELTON DOS SANTOS APELANTE: SOCIEDADE DE PROTECAO ANIMAL ABRIGO DOS BICHOS Advogados do(a) APELANTE: NEDYSON DE AVILA GORDIN - MS11379-A, WAGNER LEAO DO CARMO - MS3571-A, LUCIVAL BENTO PAULINO FILHO - MS20998-A APELADO: MUNICIPIO DE CAMPO GRANDE OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de ação civil pública ajuizada originariamente na Justiça Estadual pela Sociedade de Proteção e Bem-Estar Animal – Abrigo dos Bichos em face do Município de Campo Grande e da Secretaria de Saúde Pública do Município de Campo Grande, objetivando que i) os laudos definitivos de leishmaniose visceral canina, indicando animais positivos, somente sejam emitidos após realização de exames sorológicos combinados; ii) em caso de dúvida, seja garantido ao proprietário do animal o direito à contraprova dos exames, custeados pelo Poder Público; iii) o Município adote procedimento formal acerca das medidas executadas para o controle da leishmaniose canina, mediante termo de consentimento para adentrar residências, coletar sangue de animais domésticos e realizar a eutanásia em animais portadores de doença grave, bem como termo de cientificação de animais sorologicamente positivos, e apresentação de ficha individualizada e identificada por foto digital, acompanhada de laudo expedido por médico veterinário, de todo animal sacrificado no CCZ/CG; iv) seja proibido o sacrifício de animais sadios como medida de controle da população de cães e gatos e seja adotado pelo Município as medidas preconizadas no artigo 29, § 4º, da Lei Estadual nº 2.990/2005. A parte autora interpôs agravo de instrumento da decisão que determinou a apreciação da tutela antecipada após a apresentação das contestações (ID 67386742 - Pág. 213), o qual foi acolhido em parte para suspender a eutanásia de animais diagnosticados com leishmaniose visceral canina quando se utiliza, isoladamente, os métodos de Imunofluorescência (IFI) ou método Imunoenzimático (EIE), sendo somente permitida aquelas eutanásias cujos resultados tenham sido comprovados mediante a execução simultânea de outro exame comprobatório ou pela utilização combinada dos exames I.F.I e E.I.E ou após autorização por escrito do proprietário do animal, bem como para determinar que o CCZ/CG elabore e utilize, obrigatoriamente, instrumentos legais de normalidade e controle de seus atos, tais como: termo de consentimento livre e esclarecido para adentrar nas residências, termo de cientificação de animais sorologicamente positivos, termo de consentimento livre e esclarecido para realização de eutanásia de animais portadores de doenças graves ou termo de recusa desse consentimento e de responsabilidade pelo tratamento do animal, sob supervisão de veterinário responsável, sob pena de multa diária de R$ 300,00 (trezentos reais) (ID’s 67386743 - Pág. 20-37 e 67386747 - Pág. 62). A União manifestou interesse em intervir no feito, tendo os autos sido remetidos à Justiça Federal (ID 67386751 - Pág. 28). A Secretaria de Saúde Pública do Município de Campo Grande, diante da sua ilegitimidade passiva ad causam, foi excluída da lide (ID 67386752 - Pág. 42-47). O MM. Juiz a quo, ao final, não conheceu do pedido concernente à adoção pelo Município de procedimento formal acerca das medidas executadas para o controle da leishmaniose canina, nos termos do artigo 485, VI, do CPC, por falta de interesse de agir, bem como julgou improcedentes os demais pedidos (ID 67386767 - Pág. 26-43). A parte autora apelou, sustentando, em síntese, que: a) a proibição de crueldade, além de se tratar de manifestação específica de um dever geral de proteção dos animais e mesmo da natureza não humana, serve de parâmetro interpretativo material necessário para todos os atores estatais; b) já houve decisão deste Tribunal reconhecendo a ilegalidade da Portaria MAPA nº 1.426/2008 (Embargos Infringentes nº 0012031-94.2008.403.6000), por extrapolar os limites da legislação que regulamenta a garantia do livre exercício da profissão de médico veterinário, como das leis protetivas do meio ambiente, sendo incompatível a eutanásia canina como política pública de controle de leishmaniose com os princípios constitucionais elencados no art. 225, § 1º, VII, da CF, já que a causa maior dessa zoonose é o descaso e a incompetência do Poder Público em erradicar as áreas de sujeira que infestam a cidade, sendo os animais apenas vítimas dessa doença; c) desde agosto de 2017, o medicamento Milteforan é usado no tratamento de cães com leishmaniose, tendo estudos e pesquisas comprovado o efeito de cura que a medicação possui; d) o proprietário do animal tem direito à contraprova dos exames custeados pelo Poder Público, por ser parte hipossuficiente na relação; e) se o perito afirmou que os testes sorológicos utilizados pelo Município na detecção da doença, em alguns casos, não proporcionam um diagnóstico seguro, não pode a sentença consignar que inexiste sacrifício de animais sadios; f) há possibilidade de tratamento para o cão contaminado, de modo que, somente por opção particular de seu proprietário o animal pode ser eutanasiado. Com contrarrazões, vieram os autos a este Tribunal. A parte autora peticionou, requerendo a remessa do feito a 4ª Turma (Desembargador Federal André Nabarrete), preventa para julgamento do apelo (ID 75372586). A Procuradoria Regional da República, em parecer da lavra do Dr. Walter Claudius Rothenburg, opinou pelo desprovimento da apelação (ID 83135562). É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001270-04.2008.4.03.6000 RELATOR: Gab. 09 - DES. FED. NELTON DOS SANTOS APELANTE: SOCIEDADE DE PROTECAO ANIMAL ABRIGO DOS BICHOS Advogados do(a) APELANTE: NEDYSON DE AVILA GORDIN - MS11379-A, WAGNER LEAO DO CARMO - MS3571-A, LUCIVAL BENTO PAULINO FILHO - MS20998-A APELADO: MUNICIPIO DE CAMPO GRANDE OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O Senhor Desembargador Federal Nelton dos Santos (Relator): Trata-se de ação civil pública ajuizada originariamente na Justiça Estadual pela Sociedade de Proteção e Bem-Estar Animal – Abrigo dos Bichos em face do Município de Campo Grande e da Secretaria de Saúde Pública do Município de Campo Grande, objetivando que i) os laudos definitivos de leishmaniose visceral canina, indicando animais positivos, somente sejam emitidos após realização de exames sorológicos combinados; ii) em caso de dúvida, seja garantido ao proprietário do animal o direito à contraprova dos exames, custeados pelo Poder Público; iii) o Município adote procedimento formal acerca das medidas executadas para o controle da leishmaniose canina, mediante termo de consentimento para adentrar residências, coletar sangue de animais domésticos e realizar a eutanásia em animais portadores de doença grave, bem como termo de cientificação de animais sorologicamente positivos, e apresentação de ficha individualizada e identificada por foto digital, acompanhada de laudo expedido por médico veterinário, de todo animal sacrificado no CCZ/CG; iv) seja proibido o sacrifício de animais sadios como medida de controle da população de cães e gatos e seja adotado pelo Município as medidas preconizadas no artigo 29, § 4º, da Lei Estadual nº 2.990/2005. De início, destaque-se que a ação de improbidade administrativa, a ação civil pública e a ação popular compõem o microssistema de tutela dos direitos difusos e coletivos. Desse modo, aplica-se à sentença de improcedência prolatada com fundamento na Lei nº 7.347/1985 o disposto no artigo 19 da Lei 4.717/65 (Lei de Ação Popular), por analogia. Prevê o artigo 19 da Lei 4.717/65 que: À vista disso, tendo havido sentença de improcedência, é de rigor submeter o provimento jurisdicional ao reexame necessário. Cumpre asseverar, ainda, que a pretensão da parte autora no sentido de que os autos sejam remetidos a 4ª Turma, para julgamento do apelo, não merece prosperar, a uma porque sequer trouxe o número do agravo de instrumento que, segundo ela, fixou a competência do Desembargador Federal André Nabarrate para a apreciação do presente recurso de apelação, e a duas porque a questão foi devidamente analisada pela Divisão de Análise e Classificação (UFOR) deste Tribunal, que informou a redistribuição deste feito a este Relator em razão da anterior distribuição do agravo de instrumento nº 0010849-31.2008.403.0000, em 24.09.2008 (ID 71503187). Registre-se, por sua vez, que o artigo 5º, V da Lei nº 7.347/85 assegura a legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar da associação que, concomitantemente, esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil e que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. In casu, a autora foi constituída em 12.02.2003, conforme data de registro no cartório (ID 67386740 - Pág. 53), e a ação ajuizada em 16.05.2007 (ID 67386740 - Pág. 7), bem como consta em seu estatuto social a finalidade de “promover junto aos Poderes Públicos o cumprimento das leis que regulamentam o Direito dos Animais” (ID 67386740 - Pág. 41), de modo que é parte legítima para a propositura da presente demanda. Superadas estas questões, passo ao exame do mérito. A Sociedade autora busca com a presente ação compelir o Poder Executivo Municipal a adotar normais mais éticas e rígidas de poder de polícia administrativa no que tange à vistoria das residências, à recepção de animais doentes pelo Centro de Controle de Zoonoses de Campo Grande/MS – CCZ/CG e à realização de eutanásia em cães e gatos. Segundo a inicial e a apelação, os animais têm sido submetidos à eutanásia sem um diagnóstico seguro da doença, o que permite, muitas vezes, o sacrifício de cães e gatos sadios, em total afronta aos princípios constitucionais elencados no art. 225, § 1º, VII. O Município de Campo Grande e a União, por sua vez, alegam que o tratamento da leishmaniose visceral canina, quando for eficaz e permitido pelo Ministério da Saúde, apenas ameniza os sintomas clínicos mais graves da doença, mas o animal continua contaminado e, por isso, não impede a transmissão da doença ao ser humano e a morte do cão e/ou gato. Aduzem, ainda, que não existe a eutanásia indiscriminada de animais, mas somente daqueles que efetivamente estão contaminados, após a realização dos exames pertinentes. Esta Corte Regional já se debruçou sobre o tema diversas vezes, tendo fixado o entendimento de que a eutanásia de animais é medida drástica e ineficiente no controle da leishmaniose visceral canina. Com efeito, a proteção dos animais em relação às práticas que possam provocar sua extinção ou que os submetam à crueldade é decorrência do direito da pessoa humana ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Verbis: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. A propósito, a Portaria Interministerial MAPA nº 1.426/2008, que proíbe o tratamento de leishmaniose visceral canina com produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, foi declarada ilegal por afrontar a legislação protetiva do meio ambiente, especialmente a Lei n.º 9.605/98, que tipifica, dentre os crimes ambientais, aqueles que são cometidos contra a fauna, e também a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembleia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978, que regulamenta a matéria no âmbito internacional, e que foi recepcionada pelo nosso ordenamento jurídico. Confira-se: “PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 1.426 - MAPA. CÃES INFECTADOS PELA LEISHMANIOSE VISCERAL. PROIBIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE PRODUTOS DE USO HUMANO OU NÃO REGISTRADOS NO MAPA. QUESTÃO DE DIREITO. ILEGALIDADE. LIVRE EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE VETERINÁRIO. LEI N.º 5.517/68. ARTIGOS 1º, 5º, ALÍNEAS A, C E D, E 6º, ALÍNEAS B E H. ARTIGO 16 LEI N.º 5.517/68. CÓDIGO DE ÉTICA DO MÉDICO VETERINÁRIO. ARTIGO 10 DA RESOLUÇÃO N.º 722/2002. DECISÃO ACERCA DA PRESCRIÇÃO DO TRATAMENTO AOS ANIMAIS E RECURSOS HUMANOS E MATERIAIS A SEREM EMPREGADOS. PRERROGATIVA DO VETERINÁRIO. AFRONTA À LEGISLAÇÃO PROTETIVA DO MEIO AMBIENTE. LEI N.º 9.605/98. CRIMES CONTRA A FAUNA. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS. INCONSTITUCIONALIDADE. REFLEXA. HONORÁRIOS. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Cinge-se a discussão à possibilidade ou não de a Portaria Interministerial n.º 1.426, de 11 de julho de 2008-MAPA proibir a utilização de produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para o tratamento de cães infectados pela leishmaniose visceral. 2. A questão sob análise é eminentemente de direito, diferentemente do que decidiu o juiz de primeiro grau, porquanto o autor questiona tanto a legalidade quanto a constitucionalidade da Portaria n.º 1.426. Assim, por se tratar de matéria de lei, não é pertinente, data venia do ilustre relator, a discussão acerca da possibilidade ou não de produção de provas em sede de cautelar. 3. A Portaria n.º 1.426 é ilegal, porquanto extrapola os limites tanto da legislação que regulamenta a garantia do livre exercício da profissão de médico veterinário, como das leis protetivas do meio ambiente, em especial da fauna. 4. No tocante ao exercício profissional, a Lei n.º 5.517/68 ressalta, dentre as atribuições do veterinário, a prática da clínica em todas as suas modalidades, a assistência técnica e sanitária aos animais sob qualquer forma, o planejamento e a execução da defesa sanitária animal, o estudo e a aplicação de medidas de saúde pública no tocante às doenças de animais transmissíveis ao homem e as pesquisas e trabalhos ligados à biologia geral, à zoologia, à zootecnia bem como à bromatologia animal em especial, consoante se observa dos artigos 1º, 5º, alíneas a, c e d, e 6º, alíneas b e h. A mesma lei, que igualmente cria os Conselhos Federal e Regionais de Medicina Veterinária, consigna dentre as atribuições do CFMV, a expedição de resoluções para sua fiel execução e a organização do respectivo Código de Ética. Com base no mencionado artigo 16 Lei n.º 5.517/68 é que foi editado o Código de ética do Médico Veterinário, consubstanciado na Resolução n.º 722, de 16 de agosto de 2002, cujo artigo 10 preceitua a liberdade do veterinário na prescrição do tratamento que considerar mais indicado, incluídos os recursos humanos e materiais que entender necessários ao desempenho da profissão. 5. Resta claro, com base no aludido arcabouço normativo, que ao veterinário é que cabe decidir acerca da prescrição do tratamento aos animais, bem como quanto aos recursos humanos e materiais a serem empregados. A portaria, ao vedar a utilização de produtos de uso humano ou não registrados no competente órgão federal, viola os referidos preceitos legais e, por consequência, indiretamente, a liberdade de exercício da profissão, prevista no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, assim como o princípio da legalidade, que conta do inciso II. 6. A Portaria n.º 1.426 revela-se ilegal, ainda, por afrontar a legislação protetiva do meio ambiente, especialmente a Lei n.º 9.605/98, que tipifica, dentre os crimes ambientais, aqueles que são cometidos contra a fauna, e também a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembléia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978, que regulamenta a matéria no âmbito internacional, e que foi recepcionada pelo nosso sistema jurídico. 7. A proteção dos animais em relação às práticas que possam provocar sua extinção ou que os submetam à crueldade é decorrência do direito da pessoa humana ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no inciso VII do §1º do artigo 225 do texto constitucional. 8. A Constituição Federal, a Declaração de Bruxelas e as leis de proteção à fauna conduzem-se no sentido da proteção tanto da vida como contra os maus tratos. A vedação de medicamentos usados para humanos ou dos não registrados para aliviar ou evitar a doença em causa, desde que prescritos por quem de direito, representa séria violação e desrespeito aos estatutos mencionados. Os seres vivos, de maneira geral, e os animais em particular, juntamente com os demais elementos que compõem a eco esfera, constituem o planeta Terra. Nada mais é que um organismo vivo, que depende para sua existência da relação equilibrada da fauna, da flora, das águas dos mares e dos rios e do ar. Somente tal compreensão pode garantir a existência das gerações futuras. Disso decorre a responsabilidade que cada um tem com o meio-ambiente. Pouco apreço pela vida ou por aquilo que a pressupõe significa descomprometimento com o futuro. Sabemos como reproduzir a vida, não como a criar efetivamente. Aquele que desmerece os seres com os quais tudo tem sentido atinge nossa identidade e perdeu ou não adquiriu a essência do que se chama humano. Por isso, é muito grave a edição da portaria de que se cuida nos autos. Produz a concepção de que os seres humanos desconsideram o cuidado necessário ecológico pelo qual somos responsáveis. 9. Por fim, não prospera a alegação de inconstitucionalidade da portaria em questão. Consoante já demonstrado, a matéria é sim objeto de lei e eventual afronta à Constituição Federal seria apenas reflexa. 10. Honorários em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa em razão da estimativa desta na petição inicial (R$ 1.500,00), da peculiaridade da controvérsia e do trabalho desenvolvido pelo advogado. Custas ex vi legis. 11. Apelação provida”. (TRF 3ª Região, QUARTA TURMA, EI - EMBARGOS INFRINGENTES - 1548394 - 0012031-94.2008.4.03.6000, Rel. JUIZ CONVOCADO DAVID DINIZ, julgado em 13/09/2012, e-DJF3 Judicial 1 DATA:16/01/2013) (grifei) De fato, cabe ao veterinário decidir acerca da prescrição do tratamento aos animais contaminados, bem como quanto aos recursos humanos e materiais a serem empregados. Diante disso, caso o profissional entenda que o tratamento é indicado, poderá o proprietário do animal optar em realizá-lo ou em submeter seu cão/gato à eutanásia, não podendo o CCZ/CG interferir nessa decisão. Registre-se, ademais, que há laços afetivos entre o animal e seu dono a serem preservados, sendo desproporcional e desarrazoada a prática de crueldade contra os animais contaminados, mormente com o avanço da ciência e a existência de medicamentos para tratamento da leishmaniose. Ainda que o tratamento do animal seja apenas paliativo, já que a referida doença não tem cura, a maneira mais eficiente para o controle da zoonose, que é endêmica no Brasil, é a destruição dos criadouros dos vetores da leishmaniose, tais como o “mosquito-palha” e outros insetos denominados flebotomíneos, mediante o saneamento das cidades, no caso, do Município de Campo Grande. A preocupação da parte ré no que tange à transmissão da doença ao ser humano, por meio da picada do mosquito contaminado, não torna a eutanásia desses animais menos brutal ou aceitável do ponto de vista ético e ambiental, pois, não importa a quantidade de cães e gatos abatidos, a leishmaniose continua a se manifestar com frequência em animais e seres humanos, a demonstrar que o seu controle deve se dar pelo Poder Público, repita-se, nos criadouros dos mosquitos transmissores, até mesmo porque cães e gatos não são os únicos que podem se tornar repositórios do protozoário Leishmania chagasi. Deveras, como bem consignado pelo Desembargador Federal Johonsom Di Salvo, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 0013792-50.2010.4.03.0000, em sessão realizada no dia 28 de maio de 2015, “se o extermínio de cachorros como forma de combater a doença é adotado pela Saúde Pública desde 1953 (antes do suicídio de Getúlio Vargas e da inauguração de Brasília) e centenas de milhares de animais inocentes, criaturas de Deus como nós, já foram exterminados, como é que fica a eficácia dessa ‘forma’ de controle da doença se as estatísticas da contaminação aumentam anualmente? Como é possível confiar na eficácia desse holocausto animal se dados disponíveis para consulta através da rede mundial de computadores esclarecem que por volta de 48%, dos resultados dos exames atualmente realizados nos cães tem resultado falso positivo? Dos 88 países do mundo onde a doença é endêmica, o Brasil é o único que utiliza a morte dos cães como instrumento de saúde pública; ou seja, o Brasil ainda viceja numa espécie de ‘Idade Média’ retardatária, a recordar o tenebroso surto de Peste Negra do séc. XIV, onde a preocupação é eliminar ou afastar a vítima e não o causador da doença”. A respeito da questão, colhem-se os seguintes precedentes deste Tribunal: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUSPENSÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO E PENALIDADE IMPOSTA PELO CRMV/MS EM VIRTUDE DE TRATAMENTO DE LEISHMANIOSE CANINA COM MEDICAMENTO DE USO HUMANO. ILEGALIDADE DA PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 1.426/2008. AGRAVO PROVIDO. 1. O autor, ora agravante, ajuizou a ação originária de "obrigação de não-fazer" com o escopo de ver reconhecido seu direito de proceder ao tratamento de cães com sorologia positiva para leishmaniose canina, afastando-se a aplicação da Portaria Interministerial nº 1.426/2008. 2. O sacrifício indiscriminado de cães, animais obviamente inocentes, afetados pela Leishmaniose Visceral Canina, é uma das indecências que o ser humano comete em "nome" de uma suposta preocupação com a saúde pública, quando se sabe que existem tratamentos que podem acabar com os sinais clínicos e epidemiológicos dessa zoonose, da qual o pobre animal é apenas um dos vetores (a raposa, o cavalo e os seres humanos são outros, mas ninguém pensa, ainda e felizmente, em exterminá-los...) da moléstia que é transmitida por meio da picada de um mosquito infectado por um protozoário; na verdade a CAUSA maior dessa zoonose é a incúria, o descaso, a incompetência do próprio Poder Público em erradicar as áreas de sujeira que infestam nossas cidades - em detrimento das populações mais pobres - , sendo que o Poder Público tenta "disfarçar" sua inépcia no setor do saneamento básico autorizando e acoroçoando o holocausto dos pobre animais que são apenas vítimas da doença. 3. Os veterinários que se opõe a esse holocausto inútil são objeto de processos administrativos disciplinares com imposição de sanções, supostamente legitimadas em "portaria interministerial" (PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 1.426) oriunda do Poder Público que se omite em buscar a verdadeira solução para o problema, o qual se radica na deficiência do saneamento básico e do recolhimento do lixo urbano de nossas cidades. Na verdade, a equivocada portaria já foi considerada inválida por esta Corte Regional (MAS 0012031-94.2008.4.03.6000; Relator Juiz Convocado DAVID DINIZ; DJ 13.09.2012; Quarta Turma). 4. Os burocratas do Ministério da Saúde esqueceram que deve ser aplicada a Lei 5.517/68 e o Código de Ética do Conselho Federal de Medicina Veterinária que registra como exclusiva a competência do Médico Veterinário para o diagnóstico de doenças em animais e autonomia para prescrever tratamentos ou outras medidas que visem garantir a vida e o bem-estar animal. 5. Os medicamentos usados contra os sintomas da doença são, de regra, Alopurinol, Cetoconazol, Levamizol, Vitamina A, Zinco, Aspartato de L-arginina e Prednisona. Além disso, trabalhos científicos respeitáveis apontam como métodos efetivos de controle da doença o uso regular de coleiras e produtos inseticidas nos cães e o desenvolvimento de vacinas, não sendo, de modo algum, recomendada a eutanásia como método de controle. 6. Não tem cabimento processar disciplinarmente e punir os veterinários que, enfrentando a prepotência e a ignorância estatal, cumprem os termos de seu juramento: "juro no exercício da profissão de Médico Veterinário, doar meus conhecimentos em prol da salvação e do bem estar da vida, respeitando-a tal qual a vida humana e promovendo convívio leal e fraterno entre o homem e as demais espécies, num gesto sublime de respeito a Deus e a natureza". 7. Destarte, deve ser mantida a suspensão dos processos disciplinares, bem como a proibição de instauração de novos processos e de qualquer penalidade imposta ao agravante que tenha fundamento no fato de ele tratar os cães acometidos de Leishmaniose Visceral Canina, seja de que modo for, assim também deve ocorrer com qualquer punição imposta por conta de atendimento "gratuito" a animais doentes, sob pena de multa diária correspondente a cinco mil reais para o caso de descumprimento, sem prejuízo das sanções de natureza criminal cuja persecução será providenciada em caso de notícia de desrespeito a esta decisão. 8. Agravo de instrumento parcialmente provido. Agravo interno prejudicado”. (TRF 3ª Região, SEXTA TURMA, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 576362 - 0002549-02.2016.4.03.0000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO, julgado em 28/09/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:10/10/2017) (grifei) “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EUTANÁSIA CANINA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE CONTROLE DE LEISHMANIOSE VISCERAL CANINA. PROVIDÊNCIA IRREVERSÍVEL E DE EFICÁCIA CIENTÍFICA MUITO DUVIDOSA (POSSIBILIDADE DE TRATAMENTO DOS ANIMAIS). NECESSIDADE DE ELIMINAR O INSETO VETOR DO PROTOZOÁRIO, E NÃO O CÃO, QUE É TÃO VÍTIMA DA MOLÉSTIA COMO O HOMEM (EXISTÊNCIA DE OUTROS ANIMAIS QUE TEM A MESMA POTENCIALIDADE TRANSMISSIVA, MAS QUE NÃO SÃO "INCOMODADOS" PELA SAÚDE PÚBLICA). PROIBIÇÃO DO HOLOCAUSTO CANINO: AGRAVO PROVIDO. 1. Com os avanços da Ciência e a existência de medicações que parecem adequadas, o extermínio de cães doentes de Leishmaniose viral como forma de restaurar a Saúde Pública, não tem propósito e cai muito mal diante da constatação de que esse holocausto nada mais é do que triste consequência da absoluta inépcia das autoridades sanitárias em erradicar uma moléstia que é endêmica no Brasil (vitima mais do que a dengue); é mais fácil atribuir aos cães a condição de repositórios do protozoário Leishmania chagasi transmitido pelo "mosquito-palha" e matá-los, do que atuar de forma competente para destruir os criadouros do tal mosquito. 2. Não tem o menor sentido humanitário e ofende de modo tosco e brutal o art. 225, § 1º, VII, da CF, a má conduta do Município de Campo Grande/MS em submeter a holocausto os cães acometidos de Leishmaniose viral (doença infecciosa não contagiosa), sem qualquer preocupação com a tentativa de tratar dos animais doentes e menos preocupação ainda com os laços afetivos que existem entre humanos e cães, pretendendo violar o domicílio dos cidadãos sem ordem judicial para, despoticamente, apreender os animais para matá-los. 3. Solução tão brutal quanto ineficaz: se o extermínio de cachorros como forma de combater a doença é adotado pela Saúde Pública desde 1953 (antes do suicídio de Getúlio Vargas e da inauguração de Brasília) e centenas de milhares de animais inocentes, criaturas de Deus como nós, já foram exterminados, como é que fica a eficácia dessa "forma" de controle da doença se as estatísticas da contaminação aumentam anualmente? Como é possível confiar na eficácia desse holocausto animal se dados disponíveis para consulta através da rede mundial de computadores esclarecem que por volta de 48%, dos resultados dos exames atualmente realizados nos cães tem resultado falso positivo? 4. Dos 88 países do mundo onde a doença é endêmica, o Brasil é o único que utiliza a morte dos cães como instrumento de saúde pública; ou seja, o Brasil ainda viceja numa espécie de "Idade Média" retardatária, a recordar o tenebroso surto de Peste Negra do séc. XIV, onde a preocupação é eliminar ou afastar a vítima e não o causador da doença ("mosquito-palha", nome científico Lutzomyialongipalpis) que espalha o protozoário Leishmania chagasi. 5. A ação do Poder Público - incapaz de evitar a proliferação do lixo onde viceja o mosquito vetor da doença - não impede que o proprietário ou um terceiro tratem do animal, o que pode ser feito com medicação relativamente barata (Alopurinol, Cetoconazol, Levamizol, Vitamina A, Zinco, Aspartato de L-arginina e Prednisona), sem que se precise recorrer a uma medicação específica para os animais (Glucantime) que no Brasil é proibida enquanto no mundo civilizado (Espanha, França, Itália e Alemanha) está à venda para o tratamento dos animais. A propósito do tema aqui tratado, registra-se o memorável julgamento proferido pela Quarta Turma desta Corte, que em boa hora descartou a absurda Portaria Interministerial n.º 1.426, de 11 de julho de 2008-MAPA, sinistra normatização que proibia a utilização de produtos de uso humano ou ainda não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para o tratamento de cães infectados pela Leishmaniose visceral. Decisão mantida pelo STF apesar das invectivas da União. 6. A decisão do STJ na AgRg na SLS 1.289/MS (arquivada) não esvazia o objeto do presente recurso no que se refere à suspensão da prática da eutanásia canina (medida irreversível), que fica, pois, proibida nos exatos termos em que foi pedido pela agravante”. (TRF 3ª Região, SEXTA TURMA, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 405724 - 0013792-50.2010.4.03.0000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO, julgado em 28/05/2015, e-DJF3 Judicial 1 DATA:11/06/2015) (grifei) Inclusive, o Ministro Joaquim Barbosa, em decisão proferida na Suspensão de Liminar nº 677, datada de 08 de outubro de 2013, ao desacolher todos os argumentos da União e indeferir o pleito, consignou o seguinte: “Pelo que se pode extrair das manifestações contidas nestes autos, o tratamento de cães com leishmaniose visceral apresenta peculiaridades e deve ser acompanhado por médico veterinário, de maneira a mitigar os riscos à saúde dos animais e da coletividade em geral. Devem ser adotados métodos seguros e transparentes de controle dos resultados, bem como exigências relacionadas à responsabilização dos proprietários, no sentido de impedir que os animais tratados venham a constituir focos de disseminação da doença. Sob esse ângulo, o acórdão que a União pretende suspender limitou-se a permitir que a associação autora da ação cautelar possa adotar providências adequadas no encaminhamento da questão, sem que tenha sido demonstrada grave lesão à saúde pública. Longe de impor restrição desmesurada à atuação do poder público, o acórdão que se pretende suspender não impede, não previne e não desestabiliza a política pública de combate à leishmaniose já desenvolvida pelas autoridades federais, estaduais e municipais. O alcance da decisão impugnada é a mitigação de uma das providências incluídas no programa, a qual foi considerada drástica e até mesmo cruel pelo acórdão que a União pretende suspender, no sentido normalmente empregado para descrever as práticas que esta Corte considera vedadas pelo inc. VII do § 1º do art. 225 da Constituição (vejam-se, por exemplo, o célebre caso da farra do boi, RE 153.531, rel. p. acórdão min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 13.03.1998, e a recente reafirmação do entendimento protetivo no que se refere às brigas de galo, ADI 1.856, rel. min. Celso de Mello, Pleno, DJe 14.10.2011).O poder público continua titular de poder discricionário de ação, devendo exercê-lo para encontrar alternativas de enfrentamento responsável da questão, em parceria com cientistas e médicos veterinários”. A perita do juízo, médica veterinária Vilma dos Santos Fahed, afirmou em audiência que os exames realizados pelo Município são de mera sensibilização (baseiam-se em resultados orgânicos possivelmente deixados pela contaminação), os exames alternativos são exames de especificidade (checam a existência real do parasita) e são bem mais caros do que aqueles disponibilizados pelo ente Municipal. Alegou que os exames de sensibilidade possibilitam uma confiabilidade de 70 a 80%, pois, da sua experiência profissional, e também da literatura científica, constatam-se casos que foram positivados para a leishmaniose em tais exames e depois verificou-se que se tratava de outras doenças. Aduz, ainda, que, “com base nos exames realizados pelo Município, há risco de se praticar a eutanásia em animais sadios”, e que “existem tratamentos para a leishmaniose, no caso de animais infectados, porém, não existe cura”. Em resposta às perguntas da Procuradoria do Município, esclareceu que “o tratamento da leishmaniose é feito a partir de produtos de uso exclusivamente veterinários”, e que “esses produtos apenas diminuem os sintomas da doença e reduzem a infectibilidade”, sendo que “a contaminação humana por leishmaniose também pode se dar por outros animais carnívoros, que não o cão, tais como quati, tamanduá, etc” (ID 67386753 - Pág. 56-58). A perita até mesmo confirmou em seu laudo pericial a possibilidade de resultados dos exames com falso-positivo, pois o “diagnóstico canino é difícil, principalmente pela concorrência de outras patologias e quadros de desnutrição, tornando, assim, em alguns casos, o diagnóstico como apenas presuntivo, mesmo em cães de áreas endêmicas”. De acordo com a expert, “apesar das grandes quantidades de testes disponíveis, o diagnóstico continua representando um desafio, pois não existe nenhum método com sensibilidade e especificidade máxima capaz de oferecer diagnóstico preciso das diferentes formas de apresentação da doença” e “estudos revelam que não existe cura parasitológica, apenas remissão da sintomatologia com o uso de medicamentos veterinários. Neste sentido, o animal deixa de ser fonte infectante, pois reduz o risco de transmissão”. Informou que “a eliminação canina tem sido contestada em diversos estudos quando constatam que o impacto na doença não alcança resultados que a justifiquem operacionalmente. Entre 1990 e 1994, quase cinco milhões de cães foram examinados, oitenta mil eliminados e a doença humana aumentou em quase 100%”. Consignou, ainda, que “na Espanha e outros países da Europa, já está em utilização um medicamento de uso veterinário leishmanicida (Milteforan), cuja importação é proibida, mas que está apresentando bons resultados” e que “nem todo cão soropositivo está infectado ou doente. A soropositividade retrata o contato do cão com o parasita, mas não significa necessariamente que este permaneça no cão”. E concluiu no sentido de que “considerações sobre Políticas Públicas efetivas de combate à doença devem ser mencionadas, tais como controle vetorial, educação e controle ambiental (lixo), adoção de uma política ordenada de expansão urbana, controle de cães errantes e um controle intensivo sobre galinheiros urbanos, que são os grandes criatórios dos vetores da leishmania”, tendo vários autores “demonstrado a eficácia do tratamento na redução da prevalência canina em regiões onde ele é utilizado como forma de controle e, até neutralização da capacidade infectante de cães tratados, através de exames imunohistoquímicos da pele” (ID 67386753 - Pág. 67-73). Por seu turno, o Parecer Técnico nº 22/2009 do Ministério da Saúde, solicitado pela parte ré, confirma que não há nenhum diagnóstico laboratorial com sensibilidade e especificidade de 100%, mas que atualmente o serviço público utiliza o que há de melhor no mercado, pois, além do controle de qualidade interno realizado pelo laboratório produtor, todos os lotes antes de serem entregues ao Ministério da Saúde são encaminhados ao Laboratório de Referência Nacional para um segundo controle de qualidade, podendo o RIFI (Reação de Imunofluorescência Indireta) chegar a uma sensibilidade média acima de 93% e a especificidade acima de 97%, enquanto a sensibilidade do ELISA (Enzyme Linked Immuno Sorbent Assay) está acima de 95% e a especificidade acima de 99%. Aduz que as ações de controle não têm sido capazes de impedir a expansão da leishmaniose, principalmente por tratar-se de uma doença de transmissão vetorial, e que os animais, uma vez infectados, permanecerão portadores do protozoário para o resto da vida (ID 67386755 - Pág. 16-27). Em que pesem as informações trazidas no referido parecer técnico, o laudo pericial firmado por perito do juízo prevalece por ser imparcial, isto é, por ser equidistante dos interesses das partes, assim como pelo fato de o tratamento dos cães não trazer qualquer risco à população humana, pois o risco reside na inexistência de combate adequado aos insetos vetores da leishmaniose. Logo, não há motivo para questionar a credibilidade do perito oficial. Registre-se, ademais, a informação prestada pela testemunha arrolada pela parte ré, médico veterinário e professor do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no sentido de que o Centro de Zoonoses, no diagnóstico de leishmaniose, utiliza, conjuntamente, os testes sorológicos ELISA e RIFI há pelo menos quatro anos, mas que a incidência de falsos positivos e falsos negativos existe, sendo muito maior no que se refere ao falso negativo do que ao falso positivo (ID 67386756 - Pág. 48-49). Em resumo, portanto, depreende-se que o Centro de Controle de Zoonoses de Campo Grande já vem utilizando os testes sorológicos ELISA e RIFI, em conjunto, para o diagnóstico de leishmaniose, todavia, esses exames não possuem 100% de confiabilidade, pois o fato de a sensibilidade e especificidade dos testes serem superiores a 90%, não significa que não há margem para erros, havendo maior razão para que o proprietário do animal possa optar pelo tratamento do seu cão/gato em vez de entregá-lo para ser sacrificado. A perita do juízo, a testemunha da parte ré e até mesmo o profissional que assinou o parecer técnico confirmam esse ponto. Nesse contexto, o pedido da autora para que os laudos definitivos de leishmaniose visceral canina somente sejam emitidos após realização de exames sorológicos combinados não tem razão para subsistir, por já se tratar de um protocolo do CCZ/CG no diagnóstico da doença. Ocorre que, diante da ineficiência dos exames sorológicos e da possibilidade de erro no resultado do teste - mesmo que ínfimo -, é um direito do dono do animal a realização de contraprova por meio de exames alternativos, os quais, por serem mais caros, não são feitos pelo Município, mas sim às expensas do proprietário. Neste contexto, compelir o Município réu a arcar com o pagamento dessa contraprova comprometeria o cofre público municipal, diante da quantidade de cães (160 mil) e gatos (45 mil) presentes em Campo Grande, de acordo com o Censo de 2015, realizado pelo Centro de Controle de Zoonoses daquela capital. Com relação ao pedido de adoção pelo Município de procedimento formal acerca das medidas executadas para o controle da leishmaniose canina, mediante a apresentação de termos de consentimento, termo de cientificação e de ficha individualizada, acompanhada de laudo expedido por médico veterinário, considerando que a garantia da inviolabilidade do domicílio é assegurada constitucionalmente, e que a motivação das decisões é um dos pilares do Direito Administrativo, deve ser deferido tal pedido. No que tange ao pedido da autora relativo à adoção pelo Município das medidas preconizadas no artigo 29, § 4º, da Lei Estadual nº 2.990/2005, entendo que lhe falta interesse de agir, pois a norma continua em vigor e é de observância obrigatória no Estado de Mato Grosso do Sul. In verbis: “Art. 29º. Será apreendido todo e qualquer cão ou gato encontrado solto em vias e logradouros públicos. (...) § 4º. A destinação dos animais não resgatados deverá obedecer às seguintes prioridades: I – Adoção por particulares; II – Doação para entidades protetoras dos animais ou para Organizações de Sociedade Civil de Interesse Público – OSIP, nos termos da Lei Federal nº 9790/99. III – Doação para entidades de ensino e pesquisa, desde que seja obedecida rigorosamente o preconizado no § 1º, artigo 32 da Lei 9605, de 28 de fevereiro de 1998”. Por fim, o pedido relativo à proibição do sacrifício de animais sadios como medida de controle da população de cães e gatos está contido nos demais, pois ficou demonstrado nos autos que o o CCZ/CG já tem obtido o diagnóstico dos animais doentes mediante a realização de exames sorológicos combinados. Ante o exposto, DOU PROVIMENTO PARCIAL à apelação para determinar que, caso o tratamento seja indicado por médico veterinário, caberá ao proprietário do animal contaminado optar por submetê-lo ao tratamento ou à eutanásia; CONHEÇO EM PARTE do reexame necessário e, na parte conhecida, dou provimento parcial ao recurso para determinar que as medidas executadas para o controle da leishmaniose canina sejam efetuadas mediante termo de consentimento para adentrar residências, coletar sangue de animais domésticos e realizar a eutanásia em animais portadores de doença grave, bem como mediante termo de cientificação de animais sorologicamente positivos, e apresentação de ficha individualizada e identificada por foto digital, acompanhada de laudo expedido por médico veterinário, de todo animal sacrificado no CCZ/CG. É como voto.
"Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição".
Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. REEXAME NECESSÁRIO. CABIMENTO. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ART. 19 DA LEI 4.717/1965. 1. "Por aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário" (REsp 1.108.542/SC, Rel. Ministro Castro Meira, j. 19.5.2009, Dje 29.5.2009). 2. Agravo Regimental não provido". (STJ, AgRg no REsp 1219033/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 25/04/2011) (grifei)
“EMBARGOS INFRINGENTES. EUTANASIA CANINA COMO POLITICA DE CONTROLE DE LEISHMANIOSE. PORTARIA INTERMINISTERIAL N° 1.426/2008-MAPA. ARTIGO 225, §1°, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .VIOLAÇÃO. INFRINGENTES NÃO PROVIDOS. 1. A Portaria n.º 1.426 é ilegal, porquanto extrapola os limites tanto da legislação que regulamenta a garantia do livre exercício da profissão de médico veterinário, como das leis protetivas do meio ambiente, em especial da fauna. 2. Incompatível tal procedimento, a eutanásia canina como política pública de controle de leishmaniose visceral canina, com os princípios constitucionais elencados no artigo 225, §1°, VII, de modo que o entendimento do voto-condutor deve ser mantido. 3.Infringentes não providos”. (TRF 3ª Região, SEGUNDA SEÇÃO, EI - EMBARGOS INFRINGENTES - 1548394 - 0012031-94.2008.4.03.6000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL NERY JUNIOR, julgado em 06/09/2016, e-DJF3 Judicial 1 DATA:16/09/2016) (grifei)
E M E N T A
PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EUTANÁSIA CANINA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE CONTROLE DE LEISHMANIOSE VISCERAL CANINA. EXAME SOROLÓGICO. DESTRUIÇÃO DOS CRIADOUROS DOS VETORES DA DOENÇA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. REEXAME NECESSÁRIO CONHECIDO EM PARTE E, NA PARTE CONHECIDA, PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Trata-se de ação civil pública ajuizada originariamente na Justiça Estadual pela Sociedade de Proteção e Bem-Estar Animal – Abrigo dos Bichos em face do Município de Campo Grande e da Secretaria de Saúde Pública do Município de Campo Grande, objetivando que i) os laudos definitivos de leishmaniose visceral canina, indicando animais positivos, somente sejam emitidos após realização de exames sorológicos combinados; ii) em caso de dúvida, seja garantido ao proprietário do animal o direito à contraprova dos exames, custeados pelo Poder Público; iii) o Município adote procedimento formal acerca das medidas executadas para o controle da leishmaniose canina, mediante termo de consentimento para adentrar residências, coletar sangue de animais domésticos e realizar a eutanásia em animais portadores de doença grave, bem como termo de cientificação de animais sorologicamente positivos, e apresentação de ficha individualizada e identificada por foto digital, acompanhada de laudo expedido por médico veterinário, de todo animal sacrificado no CCZ/CG; iv) seja proibido o sacrifício de animais sadios como medida de controle da população de cães e gatos e seja adotado pelo Município as medidas preconizadas no artigo 29, § 4º, da Lei Estadual nº 2.990/2005.
2. De início, destaque-se que a ação de improbidade administrativa, a ação civil pública e a ação popular compõem o microssistema de tutela dos direitos difusos e coletivos. Desse modo, aplica-se à sentença de improcedência prolatada com fundamento na Lei nº 7.347/1985 o disposto no artigo 19 da Lei 4.717/65 (Lei de Ação Popular), por analogia, submetendo-se o provimento jurisdicional ao reexame necessário.
3. A eutanásia de animais é medida drástica e ineficiente no controle da leishmaniose visceral canina, sendo que a proteção dos animais em relação às práticas que possam provocar sua extinção ou que os submetam à crueldade é decorrência do direito da pessoa humana ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal.
4. Cabe ao veterinário decidir acerca da prescrição do tratamento aos animais contaminados, bem como quanto aos recursos humanos e materiais a serem empregados. Diante disso, caso o profissional entenda que o tratamento é indicado, poderá o proprietário do animal optar em realizá-lo ou em submeter seu cão/gato à eutanásia, não podendo o CCZ/CG interferir nessa decisão.
5. Ainda que o tratamento do animal seja apenas paliativo, já que a referida doença não tem cura, a maneira mais eficiente para o controle da zoonose, que é endêmica no Brasil, é a destruição dos criadouros dos vetores da leishmaniose, tais como o “mosquito-palha” e outros insetos denominados flebotomíneos, mediante o saneamento das cidades, no caso, do Município de Campo Grande. Precedentes.
6. Diante da ineficiência dos exames sorológicos e da possibilidade de erro no resultado do teste - mesmo que ínfimo -, é um direito do dono do animal a realização de contraprova por meio de exames alternativos, os quais, por serem mais caros, não são feitos pelo Município, mas sim às expensas do proprietário.
7. As medidas executadas para o controle da leishmaniose canina devem ser efetuadas mediante termo de consentimento para adentrar residências, coletar sangue de animais domésticos e realizar a eutanásia em animais portadores de doença grave, bem como mediante termo de cientificação de animais sorologicamente positivos, e apresentação de ficha individualizada e identificada por foto digital, acompanhada de laudo expedido por médico veterinário, de todo animal sacrificado no CCZ/CG.
8. Apelação parcialmente provida.
9. Reexame necessário conhecido em parte e, na parte conhecida, provido em parte.