INQUÉRITO POLICIAL (279) Nº 0000016-43.2020.4.03.6107
RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI
AUTOR: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
INVESTIGADO: LUCIANO FERREIRA BORGES, PATRICIA PAIANO BORGES, CLEBER BRAZ TRINDADE
OUTROS PARTICIPANTES:
INQUÉRITO POLICIAL (279) Nº 0000016-43.2020.4.03.6107 RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI AUTOR: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP INVESTIGADO: LUCIANO FERREIRA BORGES, PATRICIA PAIANO BORGES, CLEBER BRAZ TRINDADE OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI: Trata-se de pedido de desaforamento, efetivado pelo Juízo da 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Araçatuba/SP nestes autos, com vistas à transferência da competência para acompanhamento, processamento e julgamento de eventual ação baseada no inquérito em epígrafe, em que se apuram potenciais práticas amoldadas, em tese, aos artigos 19 e 20 da Lei 7.492/86, cuja autoria seria, supostamente e entre outros, de CLEBER VAZ TRINDADE, empregado do Banco do Brasil ao tempo dos fatos. A Procuradoria Regional da República elaborou pertinente síntese fática, da qual ora me valho (ID 255654381, pp. 1-2): 2. Segundo consta, o presente Inquérito Policial foi instaurado a partir de comunicação enviada pelo Banco do Brasil, narrando, em síntese, a suposta prática do crime de obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira, e/ou o de aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial. 3. Foram constatadas irregularidades na contratação de operações de crédito rural para custeio e investimento, no período de outubro de 2012 a novembro de 2015, em linhas de crédito subsidiadas pelo Governo Federal, verificando-se desvio de finalidade do crédito e indícios de uso de documentos falsos para a obtenção dos créditos. Dentre os suspeitos da fraude está o mutuário LUCIANO FERREIRA BORGES (CPF n° 969.175.801-63), a beneficiária de alguns valores referentes ao empréstimo, PATRÍCIA PAIANO BORGES (CPF n° 065.602.949-86), o empregado público do Banco do Brasil CLEBER BRAZ TRINDADE (matricula 2.098.268-2), a empresa PLANCO PLANEJAMENTO AGROPECUÁRIO LTDA (CNPJ n° 51.098.283/0001-97), responsável pela execução do projeto que embasou o cadastro hipoteticamente fraudulento. 4. Instado a se manifestar, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL requereu o declínio de competência para Vara Federal Especializada, tendo em vista a investigação de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, previstos nos arts. 19 e 20, ambos da Lei n° 7.492/86. 5. O MM. Juízo da 1a Vara Federal de Araçatuba/SP entendeu que não seria correto decidir no sentido de deferimento do pleito ministerial e representou ao Eg. Tribunal Regional Federal da 3a Região pelo DESAFORAMENTO, com fundamento no art. 427 do Código de Processo Penal, considerando que o investigado CLEBER BRAZ TRINDADE é irmão de servidora pública lotada no próprio Juízo e que a declaração de suspeição não seria o suficiente para assegurar um julgamento que não seja colocado em xeque pela sociedade local, verbis: (…) Em que pese o MPF ter requerido o declínio de competência para Vara Federal especializada, não me parece correto decidir no sentido de deferir o requerimento, vez que a investigado CLEBER BRAZ TRINDADE é irmão de servidora pública lotada neste Juízo Federal, mais especificamente componente da Secretaria desta 12a Vara, ocupante de função comissionada (FC-3). Com efeito, a cidade de Araçatuba é de porte médio, possui cerca de 200 mil habitantes, e o Juízo Federal aqui instalado é Vara com competência criminal, sendo a servidora pessoa conhecida de todos, pelo que vários comentários poderiam surgir provenientes da situação dos autos da imparcialidade do juiz ou até mesmo para constranger a servidora, tais como: a demora na prolação de decisão significaria que o juiz quer proteger a servidora e sua família; ou, pelo contrário, se a decisão fosse proferida com rapidez, seria porque quer prejudicá-la etc. E as mesmas razões se aplicam a todos os servidores de Araçatuba, seus colegas. Dessa forma, entendo que a declaração de suspeição deste magistrado não é suficiente, cabível no caso, portanto, o instituto do desaforamento, previsto no artigo 427 do Código de Processo Penal. Não descuido que se trata de instituto previsto em sua essência para o tribunal do júri; porém, sendo possível a aplicação de interpretação extensiva/analogia da legislação processual penal, nos termos do art. 3° do Código de Processo Penal, penso que se a Lei autoriza o desaforamento para os casos elencados no art. 427 do CPP, a saber ‘interesse da ordem pública, dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado’, cabe perfeitamente no caso concreto, pelas razões acima expostas, aparentando-se lapso do legislador, a ser corrigido pelo intérprete judicial, a ausência de previsão expressa na Lei acerca do cabimento do instituto aos casos cuja competência seja do juiz singular. Dessa forma, a fim de que não se coloque dúvida sobre a imparcialidade deste magistrado e dos servidores de Araçatuba, bem como, a fim de evitar constranger a senhora servidora (cujo investigado é seu irmão), REPRESENTO AO EGRÉGIO TRIBUNAL FEDERAL DA 3a REGIÃO PELO DESAFORAMENTO, transferindo-se a competência para o processamento do feito a outro Juízo, assegurando-se um julgamento que não seja colocado em xeque pela sociedade local [...] Distribuído o feito à minha relatoria, determinei a abertura de vista à Procuradoria Regional da República, que se manifestou pelo não conhecimento do pedido de desaforamento, ou, se conhecido, por seu indeferimento (ID 255654381). É o relatório. Dispensada a revisão, nos termos regimentais.
INQUÉRITO POLICIAL (279) Nº 0000016-43.2020.4.03.6107 RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI AUTOR: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP INVESTIGADO: LUCIANO FERREIRA BORGES, PATRICIA PAIANO BORGES, CLEBER BRAZ TRINDADE OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI: Preliminarmente, entendo que deva ser conhecido o pedido de desaforamento. Como se sabe, o pedido de desaforamento constitui procedimento específico a ser utilizado no âmbito do Tribunal do Júri, sendo regrado nos arts. 427 e seguintes do Código de Processo Penal. Não obstante o fato de ser um proceder a ser utilizado, a princípio, apenas em ações a serem submetidas a julgamento perante o Tribunal do Júri, não excluo, a priori, ao menos a possibilidade de sua utilização em circunstâncias de alta excepcionalidade que se enquadrem, materialmente, no mesmo contexto de proteção da jurisdição e das partes que levam à previsão do instituto. É dizer: é, em tese, plausível que se aplique por analogia o procedimento do desaforamento, desde que seja patente a presença de elementos fáticos equivalentes àqueles que permitem sua incidência nos casos de competência do Tribunal do Júri. Por certo, tal aplicação apenas poderia se dar se for claríssima tal similitude, a impor o recurso à analogia, sob pena de indevida ampliação de instituto a que o ordenamento deu, claramente, contornos restritos. No entanto, tal matéria atine ao mérito do pedido, e não à sua recepção em tese. Tendo em vista que se trata de pedido em que um Juízo alega estarem presentes circunstâncias que autorizariam o uso excepcional da analogia, admito o pedido, e passo ao exame de mérito. Bem examinado o caso, concluo não se tratar de caso em que seja possível o desaforamento. Como adiantei acima, o desaforamento de um julgamento constitui, a princípio, ato excepcional e restrito a casos submetidos ao Tribunal do Júri em que haja risco à ordem pública ou à imparcialidade e exercício efetivo da jurisdição, risco esse que decorra da própria mantença do julgamento no local em regra competente para que isso se dê. Transcrevo, a propósito, a hipótese autorizadora do procedimento, prevista no art. 427 do Código de Processo Penal: Art. 427. Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas. Como se vê, por seus próprios contornos, o instituto adquire natureza restrita e excepcional, em regra ligada a riscos de comprometimento da imparcialidade do corpo de jurados, comumente decorrentes de ocorrências locais. Para que circunstâncias como essas, já em si extraordinárias, ocorressem com relação a um órgão jurisdicional, deveria haver caso de alto grau de excepcionalidade e escape aos lindes do comum. Em outros termos: para aplicação analógica de instituto que, em si mesmo, já é excepcional e restrito a um contexto procedimental especial (o do Júri), exigir-se-ia, em tese, a ocorrência de um contexto da maior gravidade, que impusesse a aplicação do desaforamento sob pena de comprometimento sério e imediato da jurisdição ou do exercício dos direitos fundamentais dos envolvidos (ou das prerrogativas públicas ministeriais). Isso se reforça pelo fato de que o desaforamento, como regra, se dá sob o temor de haver júri parcial na localidade, circunstância que é diversa da de um Juiz togado, um técnico treinado e habilitado mediante concurso público; para este último, o que se aplicam são as regras de suspeição e impedimento, não as de desaforamento. A exceção, reitero ainda uma vez, adviria de circunstâncias que inviabilizassem a jurisdição naquele local diante do caso concreto. Não há excepcionalidade desse jaez no contexto dos autos. O que se tem é o fato de que um dos investigados é irmão de uma servidora da Justiça Federal lotada na mesma localidade, isto é, em Araçatuba/SP. Os argumentos do Magistrado que requereu o desaforamento foram, no essencial, os seguintes: Em que pese o MPF ter requerido o declínio de competência para Vara Federal especializada, não me parece correto decidir no sentido de deferir o requerimento, vez que a investigado CLEBER BRAZ TRINDADE é irmão de servidora pública lotada neste Juízo Federal, mais especificamente componente da Secretaria desta 12a Vara, ocupante de função comissionada (FC-3). Com efeito, a cidade de Araçatuba é de porte médio, possui cerca de 200 mil habitantes, e o Juízo Federal aqui instalado é Vara com competência criminal, sendo a servidora pessoa conhecida de todos, pelo que vários comentários poderiam surgir provenientes da situação dos autos da imparcialidade do juiz ou até mesmo para constranger a servidora, tais como: a demora na prolação de decisão significaria que o juiz quer proteger a servidora e sua família; ou, pelo contrário, se a decisão fosse proferida com rapidez, seria porque quer prejudicá-la etc. E as mesmas razões se aplicam a todos os servidores de Araçatuba, seus colegas. Dessa forma, entendo que a declaração de suspeição deste magistrado não é suficiente, cabível no caso, portanto, o instituto do desaforamento, previsto no artigo 427 do Código de Processo Penal. Não descuido que se trata de instituto previsto em sua essência para o tribunal do júri; porém, sendo possível a aplicação de interpretação extensiva/analogia da legislação processual penal, nos termos do art. 3° do Código de Processo Penal, penso que se a Lei autoriza o desaforamento para os casos elencados no art. 427 do CPP, a saber ‘interesse da ordem pública, dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado’, cabe perfeitamente no caso concreto, pelas razões acima expostas, aparentando-se lapso do legislador, a ser corrigido pelo intérprete judicial, a ausência de previsão expressa na Lei acerca do cabimento do instituto aos casos cuja competência seja do juiz singular. Dessa forma, a fim de que não se coloque dúvida sobre a imparcialidade deste magistrado e dos servidores de Araçatuba, bem como, a fim de evitar constranger a senhora servidora (cujo investigado é seu irmão), REPRESENTO AO EGRÉGIO TRIBUNAL FEDERAL DA 3a REGIÃO PELO DESAFORAMENTO [...] Como se percebe, não há situação excepcionalíssima de comoção ou ameaça à jurisdição e aos direitos fundamentais (ou prerrogativas institucionais). O que há é potencial constrangimento ou risco de supostos boatos que decorreriam do fato de um investigado específico ter uma parente que atua como servidora na subseção em que se encontra o inquérito. Tais dados ficam, a toda evidência, aquém do necessário para a aplicação, por analogia, do procedimental especial do desaforamento. O mero risco de boatos ou entendimentos populares acerca de uma questão jurídico-penal, por si, não retira as condições de exercício da jurisdição, e dos direitos e prerrogativas ligados a um processo judicial. Não se vislumbra, aqui, qualquer situação da qual se possa extrair pressuposto fático para o acolhimento da representação. De resto, trata-se de cidade de porte relevante, com mais de cem mil habitantes, de maneira que não ocorre um contexto de pequena comunidade em que a maior parte das pessoas seja “amiga” ou “conhecida”, e que pudesse atrair real suspeita pública sobre a correção no exercício das funções jurisdicionais e administrativas correlatas. Se houvesse algum risco à imparcialidade neste caso, tal risco poderia ser conduzido pelas vias comuns da declaração de suspeição, a ser feita individualmente por cada Magistrado competente, e não para todos os Juízes lotados na mesma subseção. Cito e adoto, quanto ao mais, parcela do parecer ministerial: 16. Desde logo se observa que, nos termos da resolução de outrora e da atual, não poderia ter o magistrado representante suposto, como parece ter feito, a suspeição do outro Juiz Federal lotado na mesma vara, seu imediato substituto em seus afastamentos ou impedimentos (em sentido amplo). 17. Embora fosse previsível que este último, submetido às mesmas circunstâncias que levaram o primeiro a declarar-se suspeito, viesse a fazer o mesmo, a saída do feito da 1ª Vara Federal de Araçatuba dependia de explícito reconhecimento da suspeição por ambos os Magistrados ali lotados, em decisão formal. 18. No mais, vindo a dar-se a dupla declaração de suspeição, as regras administrativas dessa Corte Regional indicam o Magistrado que, em tal caso, embora lotado em outra vara, atuará em substituição no feito específico: segundo a atual Resolução PRES/TRF3 nº 459/2021, em seu art. 2º, inc. V, o “juiz substituto e ao titular da subseção mais próxima, sucessivamente, seguindo a sequência numérica das varas”. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido de desaforamento, devendo os autos ser encaminhados ao Juízo representante, para regular transcurso (sem prejuízo de eventual declaração de suspeição, se for o caso). É como voto.
E M E N T A
DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. INQUÉRITO. LEI 7.492/86. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. ARTIGOS 19 E 20. PEDIDO DE DESAFORAMENTO. ANALOGIA. ALTA EXCEPCIONALIDADE. INOCORRÊNCIA. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE.
1. Representação de Juízo requerendo o desaforamento de feito comum, ainda em fase de inquérito. Circunstância fundamentadora: fato de irmã do investigado ser servidora da Justiça Federal na mesma localidade.
2. É, em tese, plausível que se aplique por analogia o procedimento do desaforamento, desde que seja patente a presença de elementos fáticos equivalentes àqueles que permitem sua incidência nos casos de competência do Tribunal do Júri. Isso se daria em contextos gravíssimos que trouxessem risco sério ao exercício da jurisdição, de direitos fundamentais ou de prerrogativas públicas em decorrência da manutenção de feito em determinado local.
3. Inexiste circunstância próxima dessa gravidade no caso concreto. O mero risco de boatos ou entendimentos populares acerca de uma questão jurídico-penal, por si, não retira as condições de exercício da jurisdição, e dos direitos e prerrogativas ligados a um processo judicial.
4. Se houvesse algum risco à imparcialidade neste caso, tal risco poderia ser conduzido pelas vias comuns da declaração de suspeição, a ser feita individualmente por cada Magistrado competente, e não para todos os Juízes lotados na mesma subseção.
5. Representação julgada improcedente. Devolvidos os autos ao órgão de origem.