Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0000035-46.1992.4.03.6005

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: RAMONA DE ALMEIDA MORAES, DELPILAR DE ALMEIDA MORAES, JOSE SOARES DE MORAIS, MARIA CLARA DOS SANTOS, JOSE SOARES DE MORAES, CONSTANCIO DE ALMEIDA MORAES

Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A
Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A
Advogados do(a) APELANTE: MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A, WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A
Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A
Advogado do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A
Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A

APELADO: UNIÃO FEDERAL, COMUNIDADE INDÍGENA JAGUARÍ, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0000035-46.1992.4.03.6005

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: RAMONA DE ALMEIDA MORAES, DELPILAR DE ALMEIDA MORAES, JOSE SOARES DE MORAIS, MARIA CLARA DOS SANTOS, JOSE SOARES DE MORAES, CONSTANCIO DE ALMEIDA MORAES

Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A
Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A
Advogados do(a) APELANTE: MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A, WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A
Advogados do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A, MARCELO RODRIGUES SILVA - MS9415-A
Advogado do(a) APELANTE: WELLINGTON MORAIS SALAZAR - MS9414-A
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APELADO: UNIÃO FEDERAL, COMUNIDADE INDÍGENA JAGUARÍ, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO

OUTROS PARTICIPANTES:

  

 

R E L A T Ó R I O

Trata-se de apelação interposta por RAMONA DE ALMEIDA MORAES e OUTROS contra a sentença proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Ponta Porã/MS (ID 139331755 – p. 152/183), que, em sede de ação de manutenção de posse cumulada com ação declaratória de inexistência de relação jurídica ajuizada em face da União Federal, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Comunidade Indígena Jaguari, extinguiu o processo sem resolução do mérito em relação ao pleito possessório e julgou improcedentes os demais pedidos, na forma, respectivamente, dos artigos 485, inc. VI, e 487, inc. I, ambos do Código de Processo Civil. A parte autora foi condenada ao pagamento de custas, despesas e honorários advocatícios sucumbenciais, fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais) para a FUNAI e a Comunidade Indígena Jaguari, e em R$ 10.000,00 (dez mil reais) para a União Federal, nos termos do art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil.

Os Apelantes sustentam, em síntese, a inexistência de ocupação tradicional indígena nas áreas sob litígio. Alegam que são legítimos proprietários das áreas denominadas Fazenda São Bento – Glebas II, V e X, registradas sob as matrículas nº 11.004, 11.006 e 11.018 do Cartório de Registro de Imóveis de Amambaí/MS, onde as suas famílias estão situadas há quase um século. Referem que, em 1987, foi instituído Grupo de Trabalho Interministerial, pelo Decreto nº 94.945, com a finalidade de proceder à identificação das terras indígenas Guasuti, Jaguari, Sete Cerros, Jaguapiré, Jarará e Piracuá, havendo sido posteriormente concluído que os imóveis dos Apelantes não seriam terras de ocupação indígena. Aduzem que, no entanto, em 06/11/1991, por força dos efeitos da Portaria Ministerial nº 516/1991, que determinou a demarcação da Terra Indígena Jaguari, vieram a ser turbados na posse que exercem sobre os seus imóveis, cujas áreas estariam abrangidas pelo perímetro do processo demarcatório. Argumentam que o processo administrativo que subsidiou o referido ato é nulo, por haver restado caracterizada ofensa ao devido processo legal, ante a inobservância do contraditório e da ampla defesa. Requerem, assim, o provimento do recurso para que seja reformada a sentença recorrida e julgados procedentes os pedidos deduzidos na exordial (ID 139331774).

Com contrarrazões (ID 139331779, 139332034 e 139332037), subiram os autos a esta Corte Regional.

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo sobrestamento do feito, nos termos da decisão proferida pelo Min. Edson Fachin nos autos do RE 1.017.365 (Tema 1031), e, subsidiariamente, pelo desprovimento da apelação (ID 163144303).

É o relatório.

 

 


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APELADO: UNIÃO FEDERAL, COMUNIDADE INDÍGENA JAGUARÍ, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

V O T O

 

Tempestivo, recebo o recurso de apelação em seus regulares efeitos (art. 1.012, caput, do Código de Processo Civil).

A matéria devolvida ao exame desta Corte será examinada com base na fundamentação que passo a analisar topicamente.

Da suspensão do processo (Tema nº 1031 do STF)

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo sobrestamento do feito, em observância aos termos da decisão monocrática proferida pelo Min. Edson Fachin, nos autos do RE nº 1.017.365/SC, que determinou, com base no artigo 1.035, § 5º, do Código de Processo Civil, "a suspensão nacional dos processos judiciais, notadamente ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, modulando o termo final dessa determinação até a ocorrência do término da pandemia da COVID-19 ou do julgamento final da  Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema 1031), o que ocorrer por último, salvo ulterior decisão em sentido diverso" (DJE nº 113, divulgado em 07/05/2020).

Não obstante, tendo em vista o advento da Portaria nº 913 do Ministério da Saúde, de 22 de abril de 2022, que declarou o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus, encontra-se configurado o termo final da referida determinação de sobrestamento dos feitos desta natureza, impondo-se o regular prosseguimento da presente demanda.

Nesses termos, passo à análise da matéria devolvida à apreciação deste Tribunal.

Do direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas

Consoante amplamente sedimentado pela doutrina e jurisprudência, a demarcação de terras indígenas decorre do reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, cuja propriedade é da União (art. 20, inc. XI, da Constituição da República), tratando-se, portanto, de ato declaratório de uma situação jurídica preexistente.

Por tal razão, o constituinte originário estabeleceu que eventuais títulos privados existentes sobre tais terras serão considerados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

(...)

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Trata-se, portanto, de um direito originário, que fundamenta a declaração de uma situação jurídica preexistente e preponderante sobre eventuais pretensões fundadas em títulos legitimadores de posse a favor de não-índios.

Depreende-se que o constituinte estabeleceu um comando expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos por não-índios sobre terras indígenas, cujos efeitos se estendem sobre vínculos jurídicos de origem pré-constitucional. Essa previsão visa ao resguardo da igualdade material dos indígenas, assegurando-lhes os meios para a digna subsistência, preservação e reprodução física e cultural.

Assim, são de propriedade da União as terras tradicionalmente ocupadas por índios, inclusive eventuais plantações e edificações incorporadas ao terreno, sendo assegurada à respectiva comunidade indígena a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos. Conforme aponta a jurisprudência:

Inquérito. (...) 5. Crime de dano ao patrimônio da União. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são propriedade da União – art. 20, XI, da Constituição Federal. As plantações e edificações incorporam-se ao terreno, tornando-se propriedade da União, que deverá indenizar o ocupante de boa-fé – art. 231, § 6º, da Constituição Federal e art. 1.255 do Código Civil. A propriedade das plantações e edificações é adquirida pela União por acessão – art. 1.248, V, do Código Civil –, ou seja, a plantação ou construção incorpora-se ao patrimônio da proprietária pela simples incorporação ao solo, sendo irrelevante a transferência da posse. São irrelevantes a tradição ou o ato administrativo de inventário ou tombamento dos bens no patrimônio público. Os particulares ocupantes não são proprietários das terras ou das acessões, pelo que não podem legitimamente destruí-los. (...). 6. Denúncia recebida em relação aos danos alegadamente praticados contra as acessões da Fazenda Depósito descritas na Tabela 1 do Laudo de Exame de Local 155/10 (fls. 188-189 do Anexo), vencido o relator.

(STF, Inq. 3.670/RR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 23/09/2014) – g.n.

Nesse sentido, sendo a Constituição da República o vértice axiológico do ordenamento jurídico, mostram-se inadmissíveis interpretações que busquem atribuir prevalência a situações jurídicas contrárias aos comandos da vigente ordem constitucional. Sobre a questão, elucida a doutrina:

“(...) há que se considerar que o exercício do poder constituinte, mesmo quando não resulte de um processo revolucionário, tem a pretensão de representar um ‘recomeço’, o que envolve ruptura com o passado, ao menos sob o ângulo jurídico. Nessa perspectiva, não deve ser superdimensionada a força de situações e vínculos jurídicos pré-constitucionais, muitas vezes em absoluta desarmonia com os valores e princípios do novo regime (...). É evidente que, quando o próprio constituinte, por meio de regra expressa, definir a solução para a questão intertemporal, prevendo ou vedando a incidência de norma constitucional sobre os efeitos de situações ocorridas no passado, a sua vontade tem de prevalecer”.

(SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed., 3. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 552-553) – g.n.

Nessa perspectiva, acerca da posse nativa, a Constituição da República estabelece que são consideradas “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1º), as quais “destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” (§ 2º).

Visando à efetividade de tal comando constitucional, foi determinada à União a conclusão da demarcação das terras indígenas, nos termos do art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Em sede infraconstitucional, a matéria encontra-se regulada pelos artigos 17 a 21 da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio).

Observa-se, ainda, que o regramento constitucional conferido à matéria mostra-se consonante com o arcabouço normativo internacional ao qual o Brasil vinculou-se, por meio de tratados, mormente através da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 27 de junho de 1989, que dispõe sobre os Povos Indígenas e Tribais. Esse tratado, internalizado pelo Decreto nº 5.051/2004, estabelece, em seu art. 14:

"1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados."

Tal convenção – conforme entendimento sedimentado pelo STF no julgamento do RE 349.703/RS –, enquanto tratado internacional de direitos humanos, incorporou-se ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma jurídica supralegal e, portanto, encontra-se hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, estando submetida apenas à conformação com as normas constitucionais.

Do marco temporal

A despeito das relevantes balizas normativas expostas acima, os parâmetros para a efetiva delimitação das circunstâncias que se subsomem ao conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” e “por eles habitadas em caráter permanente” (art. 231, § 1º, da Constituição) só vieram a ser precisamente estabelecidas pela jurisprudência quando do julgamento, pelo STF, em 19/03/2009, da Pet. 3.388/RR (Rel. Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049), denominado “Caso Raposa Serra do Sol”.

No julgamento, o Ministro Menezes Direito, prolator do voto condutor, consignou, à luz da interpretação constitucional, a imprescindibilidade do reconhecimento da terra indígena para a preservação das comunidades que titularizam sua ocupação:

Não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição. Sua organização social, seus costumes, língua, crenças e tradições estão, como se sabe, atrelados à terra onde vivem”.

Nota-se que o reconhecimento da relevância que permeia a matéria – demandando-se, por conseguinte, especial cautela na apreciação dos casos que envolvem esta questão – não adveio exclusivamente do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, mas foi resultado de sólido desenvolvimento jurisprudencial do STF. Nesse sentido, em decisão publicada em 14/02/1997, no julgamento do RE 183.188-0, de relatoria do Ministro Celso de Mello, já se afirmou:

“Emerge claramente do texto constitucional que a questão da terra representa o aspecto fundamental dos direitos e das prerrogativas constitucionais assegurados aos índios, pois estes, sem a possibilidade de acesso às terras indígenas, expõem-se ao risco gravíssimo da desintegração cultural, da perda de sua identidade étnica, da dissolução de seus vínculos históricos, sociais e antropológicos e da erosão de sua própria percepção e consciência como povo e como nação que reverenciam os locais místicos de sua adoração espiritual e que celebram, neles, os mistérios insondáveis do universo em que vivem”.

Conforme exposto, é cediço que a terra apresenta relevância central para os indígenas, sendo imprescindível à sua subsistência. Esse aspecto foi reafirmado pelo STF no caso Raposa Serra do Sol, em que o Min. Menezes Direito consignou que, uma vez constatado o denominado fato indígena, resta suplantado qualquer direito de cunho privado, que não poderá prevalecer sobre os direitos dos índios:

O tema das terras indígenas sempre despertou a discussão quanto à prevalência dos direitos dos índios em face de situações anteriormente constituídas (...) Toda essa discussão está se não superada, pelo menos destituída da relevância antes merecida, pelo regime da Constituição de 1988 (...) O constituinte quis suplantar todas as pretensões e os supostos direitos sobre as terras indígenas identificadas a partir de 1988 (...) Conclui-se que uma vez demonstrada a presença dos índios em determinada área na data da promulgação da Constituição (5/10/1998) e estabelecida a extensão geográfica dessa presença, constatado o fato indígena por detrás das demais expressões de ocupação tradicional da terra, nenhum direito de cunho privado poderá prevalecer sobre os direitos dos índios. Com isso, pouco importa a situação fática anterior (posses, ocupações, etc). O fato indígena a suplantará, como decidido pelo constituinte dos oitenta.” – g.n.

Examinadas tais premissas, resta perquirir acerca da denominada teoria do fato indígena, referida na fundamentação acima transcrita, a qual embasou o entendimento estabelecido no julgamento da Pet. 3.388/RR.

De acordo com essa concepção, consideram-se terras indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição da República, eram ocupadas por indígenas, adotando-se, assim, o marco temporal de 5 de outubro de 1988 como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico.

Seguindo-se tal entendimento, deve-se analisar, em cada caso, em vista do conjunto probatório produzido, a situação fática acerca da existência, ou não, de ocupação tradicional, de acordo com o marco temporal fixado pelo STF.

Nesse ponto, deve-se ressaltar que, embora a decisão proferida na Pet. 3.388/RR não tenha produzido efeito erga omnes, o marco temporal para configuração da tradicionalidade da ocupação indígena veio a ser consolidado posteriormente, no julgamento do RMS nº 29.087 – denominado “Caso Guyrároka” (DJe 14/10/2014) –, em que reafirmou-se, no voto proferida pela Min. Cármem Lúcia, o mesmo entendimento estabelecido pelo Min. Roberto Barroso no julgamento da Pet. 3.388-ED, segundo o qual, “embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão do caso Raposa Serra do Sol ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite de superação das suas razões”.

Impõe-se, portanto, a observância dos fundamentos determinantes fixados no referido precedente do STF, assegurando-se, assim, a estabilidade e coerência da jurisprudência, bem como a observância dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia (artigos 926 e 927, § 4º, ambos do Código de Processo Civil).

Do esbulho renitente

Em relação ao aludido marco temporal, deve-se observar que a interpretação atribuída ao art. 20, inc. XI, da Constituição da República, no caso Raposa Serra do Sol – segundo a qual, para se aferir a tradicionalidade da ocupação, deve ser demonstrada a presença dos índios em determinada área em 05/10/1988 –, foi expressamente ressalvada em relação às hipóteses em que restar caracterizado o denominado esbulho renitente.

De acordo com tal entendimento, caso demonstrado que a ausência de ocupação indígena no marco temporal estabelecido pelo STF tenha se dado por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), promovidos por parte de não-índios, restará preservado o reconhecimento da ocupação tradicional indígena. Resguarda-se, assim, a tutela dos direitos dos índios às suas terras, ainda que sua ocupação se encontrasse obstada em 05/10/1988, em razão de esbulho.

Nesses termos, destacou o Min. Carlos Ayres Britto, em seu voto, no julgamento da Pet. 3.388/RR:

“Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. Para isso é que servem as regras constitucionais da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras indígenas, bem assim a imprescritibilidade dos direitos sobre elas”.

No que tange aos aldeamentos extintos, restou pacificado não constituírem bens da União, enquanto terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 20, XI, da Constituição da República), consoante firmado na Súmula 650, do STF.

Em relação, porém, ao tratamento jurídico dispensado às áreas sujeitas a renitente esbulho, em que a expulsão dos indígenas decorreu da ocupação de suas terras por não-índios, a jurisprudência veio a estabelecer contornos específicos, em precedentes que se seguiram ao leading case “Raposa Serra do Sol”.

Nesse sentido, verifica-se que nos casos “Terra Guyrároka” (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e “Terra Indígena Limão Verde” (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015) sedimentou-se a concepção do esbulho renitente em sentido estrito, de acordo com a qual o reconhecimento da expulsão de comunidades indígenas – de modo a excepcionar a necessidade de ocupação da terra no marco temporal de 05/10/1988 – exige a verificação, em cada caso, de ao menos um dos seguintes fatores: circunstâncias de fato que demonstrem a existência de controvérsia possessória judicializada; ou, em caso contrário, a presença de efetivo conflito possessório que perdure até a data da promulgação da Constituição da República de 1988.

Acerca de todo o exposto, esclarece a doutrina, em síntese:

“Com isso, o STF entendeu que por ‘terras tradicionalmente ocupadas pelos índios’ (art. 20, XI, da CF/88) devem ser entendidas aquelas que: (i) as comunidades indígenas ocupavam na data da promulgação da CF/88 (marco temporal); conquanto que (ii) as comunidades ostentassem o caráter de perdurabilidade no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica, com o uso da terra para o exercício das tradições, costumes e subsistência indígena (...). Ainda que o STF, nesse mesmo caso (Raposa Serra do Sol), tenha acatado os marcos temporal e da tradicionalidade da ocupação, cabe notar que o Tribunal reconheceu a exceção do chamado ‘renitente esbulho’, pela qual as terras seriam ainda indígenas mesmo sem a ocupação no dia 5 de outubro de 1988, caso fosse comprovada que a ausência de ocupação houvesse se dado por ‘efeito de renitente esbulho por parte de não índios’ (...). Por essa ótica, o renitente esbulho [em sentido estrito] exige situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até a data da promulgação da CF/88 (marco temporal), sendo provado por (i) circunstâncias de fato ou, pelo menos, (ii) por uma controvérsia possessória judicializada (...). A partir deste último caso [Terra Indígena Limão Verde], a tese do renitente esbulho em sentido estrito ganhou seus contornos atuais, tendo o Min. Relator Teori Zavascki condicionado a existência do esbulho ao critério do marco temporal, afirmando que, ‘há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passo, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada (ARE n. 803.462-AgR-MS, Rel. Min. Teori Zavacki, julgado em 9-12-2014)”.

(RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 788-790)

Cumpre anotar, por fim, que, em consonância com a denominada “teoria do duplo controle”, todo ato deve submeter-se tanto ao controle de constitucionalidade quanto ao controle de convencionalidade, somente se considerando legítimo se mostrar-se conforme aos parâmetros de ambos os crivos.

No que tange à matéria em análise, é relevante notar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui precedentes no sentido de que, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos – internalizada pelo Decreto nº 678/92 –, caso venha se demonstrar caracterizada a expulsão de indígenas e o impedimento de acesso às suas terras por força de renitente esbulho, é imperioso que se assegure o direito da comunidade tradicional à recuperação do seu local de ocupação (Corte IDH, Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, sentença de 29/03/2006). Observa-se, ainda, que o Brasil sofreu condenação, em sentença exarada em 05/02/2018, pelo referido Tribunal Internacional de Direitos Humanos, no julgamento do Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil, em que foi reconhecida a violação dos direitos dos índios Xucuru à propriedade coletiva e à garantia e proteção judicial, em vista da não realização da demarcação da terra indígena em prazo razoável.

Exposto o conjunto normativo que rege a matéria e os delineamentos atribuídos à questão pela interpretação jurisprudencial nacional e internacionalista, passo ao exame das circunstâncias do caso concreto.

Dos atos administrativos impugnados

Consoante exposto, em conformidade com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, a demarcação de terra indígena constitui ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário). Trata-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade (presunção juris tantum), cabendo à parte contrária impugná-lo, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-lo. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR. EXECUÇÃO DE SENTENÇA EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. INTERESSE PÚBLICO MANIFESTO. ÁREA ENCRAVADA EM ESPAÇO DA RESERVA INDÍGENA IBIRAMA-LA KLANÓ, RECONHECIDA POR PORTARIA DO MINISTRO DA JUSTIÇA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO DE ÁREA DA UNIÃO. GRAVE LESÃO À ECONOMIA PÚBLICA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I – (...)

III - Desapropriação de área encravada em espaço demarcado como reserva indígena pela Portaria do Ministério da Justiça 1.128/03, cuja validade está sendo discutida na ACO 1.100 (Relator Ministro Ricardo Lewandowski).

IV - A demarcação de terra indígena é ato meramente formal, que apenas reconhece direito preexistente e constitucionalmente assegurado (art. 231 da CF). Os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade, não afastada na hipótese. (...)

(STF, SL 610 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, j. 04/02/2015) – g.n.

Nesses termos, não se mostra cabível a oposição baseada em direito possessório, com fulcro em títulos legitimadores de posse, como fundamento a obstar, por si, a realização do processo de demarcação de terra indígena e os diversos atos administrativos que o compõem, os quais gozam de presunção de legitimidade e se encontram amparados em comando constitucional preeminente, sendo vedado, inclusive, o manejo de ação de interdito possessório contra a demarcação. Nesse sentido:

“19.6 Vedação ao interdito possessório contra a demarcação

A disposição do § 2º permite àquele que se sinta prejudicado com a demarcação apenas o ajuizamento de ações petitórias ou demarcatórias. “No juízo 'petitório’, a pretensão deduzida no processo tem por supedâneo o direito de propriedade, ou seus desmembramentos, do qual decorre o direito à posse do bem litigioso”, de modo que a discussão estará centrada no direito real. Em contrapartida, a ação demarcatória visa tão somente a apontar vícios que possam comprometer a validade ou alterar a delimitação da área, que foi definida pelo procedimento administrativo de demarcação.

Essa vedação das medidas judiciais cabíveis é muito mais um consectário lógico da natureza da posse indígena que uma restrição de direitos processuais. Como a terra indígena é de propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios, é impossível que qualquer direito possessório possa a ela ser oposto. A única possibilidade para que o terceiro mantenha a área de seu interesse é desconstituir a condição indígena da área, por exemplo, se opondo a tradicionalidade da ocupação, apontando vícios nos procedimentos de demarcação ou comprovando que a área controversa está fora dos limites demarcados.

No que se refere ao interdito proibitório, somente “é adequado a utilização do interdita proibitório quando ainda não ocorre moléstia à posse do demandante, existindo apenas uma ameaça de esbulho ou turbação. Trata-se, pois, de demanda repetitiva”. Desse modo, não será cabível o interdito proibitório, uma vez que a União, ao reconhecer a terra como pertencente a povos indígenas, reconhece que sobre ela incide a proteção do art. 231, § 6º, da Constituição. Nesse sentido:

TERRAS INDÍGENAS. INTERDITO PROIBITÓRIO. TURBAÇÃO INDEMONSTRADA. IMPROCEDÊNCIA. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ART. 927. ESTATUTO DO ÍNDIO, ART. 19. 1. O artigo927 do CPC, para outorgar proteção possessória, exige, entre outras condições, a prova da posse e da turbação ou esbulho. 2. Iniciada a demarcação das terras pela FUNAI para o fim de reconhecimento de terras indígenas, a interposição de interdito possessório contra turbação inexistente nada mais é do que oposição disfarçada ao ato administrativo, o que é vedado pelo parágrafo 2º. do artigo 19 da lei n. 6.001/73 (Estatuto do Índio). 4. Ação improcedente. Apelações providas. Sucumbência invertida. (TRF4 – AC – Apelação Cível – 200204010217158. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data da decisão: 17/12/2008. Fonte: D.E. Data: 09/02/2009. Relator Marga Inge Barth Tessler)

ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CAUTELAR. TERRAS INDÍGENAS. DEMARCAÇÃO. PROIBIÇÃO DE INGRESSO, TRÂNSITO OU PERMANÊNCIA DE NÃO-ÍNDIOS NA ÁREA A SER DEMARCADA. A ação cautelar é a via adequada para impedir a extração de madeira por parte dos índios, para permitir o ingresso no imóvel daquele que é tido como seu proprietário, uma vez que a proibição de ingresso, trânsito ou permanência de pessoas não-índios partiu de ato administrativo um órgão do Governo, não se podendo falar, em princípio, em esbulho ou turbação. Há, na hipótese, um ato administrativo. Ademais, por força de dispositivo legal, contra a demarcação de terras indígenas não cabe a concessão de interdito proibitório (Lei n. 6.001, de 1973, art. 19, § 2º). (TRF1 – AC – Apelação Cível – 9601155457. Órgão Julgador: Terceira Turma. Data da decisão: 24/09/1997. Fonte: D.J. Data: 14/10/1996. Relator Juiz Tourinho Neto)

Desse modo, sendo intentada ação de interdito, deve o feito ser extinto sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, no RE nº 97867, DJ de 12.08.1983. É preciso observar que o interdito proibitório é vedado tão somente nos casos de procedimento demarcatório. Em se tratando de turbação, seu manejo continua perfeitamente cabível. É o caso, por exemplo, de ocupação indígena em propriedades efetivamente particulares. Essa situação, entretanto, deve ser tratada pelo juiz com muito cuidado, uma vez que, na maioria dos casos, se trata de uma forma legítima de protesto dos índios contra a ocupação de terras que, apesar de não demarcadas, são de ocupação tradicional e foram indevidamente apropriadas por particulares”.

(VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 3ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, pp. 155/157) – g.n.

Assim, questionamentos acerca do direito real à posse do bem litigioso ou de eventuais vícios que maculem a validade da delimitação da área, somente poderão ser submetidos à apreciação judicial por meio de ação petitória ou demarcatória, respectivamente.

Tal entendimento decorre do fato de que, consoante já reconhecido pelo STJ, a demarcação de terras indígenas não configura esbulho possessório ou qualquer forma de perda ou restrição da propriedade, posto que se trata de ato meramente declaratório de uma situação jurídica pré-existente. Confira-se:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO BUSCANDO A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE PORTARIA DE DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. DECRETO 20.910/32. RECURSO PROVIDO.

1. Hipótese na qual se busca, mediante ação ajuizada em 16 de setembro de 2004, a nulidade da Portaria Ministerial 793/94, publicada no DOU de 20 de outubro de 1994, expedida pelo Ministro de Estado da Justiça, pela qual declarou de posse permanente indígena, para efeito de demarcação, terras situadas no Estado de Santa Catarina (Área Indígena Pinhal), caracterizadas como de ocupação tradicional e permanente indígena, nos termos dos arts. 231, da CF/88, e 17 da Lei 6.001/73. Importante registrar que, em consequência da referida demarcação, a parte autora recebeu a devida indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (art. 231, § 6º, da CF/88).

(...)

3. O procedimento de demarcação de terras indígenas não pode ser comparado ao apossamento administrativo também chamado de desapropriação indireta, caracterizado como verdadeiro esbulho possessório, sem a necessária garantia do contraditório e do devido processo legal.

4. A demarcação de terras indígenas é precedida de processo administrativo, por intermédio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área a ser demarcada constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

5. Ademais, o particular que eventualmente esteja na posse da área a ser demarcada, segundo o disposto no § 8º do art. 2º do Decreto 1.775/96, tem a possibilidade de se manifestar, apresentando à FUNAI razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de identificação e delimitação da área a ser demarcada.

6. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não perdem essa característica por ainda não terem sido demarcadas, na medida em que a demarcação tem efeito meramente declaratório. Assim entendido, não se pode falar em perda ou restrição da propriedade por parte de quem nunca a teve.

(...)

(REsp. 1097980 SC 2008/0223900-0, T1 - Primeira Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 01/04/2009) – g.n.

Assim, em decorrência da própria natureza da terra indígena – enquanto propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios –, o ordenamento veda expressamente a oposição ao ato administrativo demarcatório (art. 19, § 2º, da Lei 6.001/73).

Mostra-se de rigor, portanto, a extinção do processo sem resolução do mérito em relação ao pleito possessório, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil, tal como determinado pela sentença recorrida.

No que concerne à observância do contraditório em âmbito administrativo, consigna-se que, iniciado o procedimento de demarcação, nos termos expostos acima, a legislação de regência assegura o direito ao contraditório e à participação dos interessados durante o trâmite do processo administrativo. Nesse sentido, observa-se que possíveis questionamentos acerca dos reflexos de eventual procedimento demarcatório sobre a esfera jurídica dos entes e indivíduos afetados podem ser suscitados oportunamente no curso do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, consoante preceitua o art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996, in verbis:

Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.

(...)

§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.” – g.n.

Dessa forma, a legislação assegura a efetiva participação e contraditório aos entes envolvidos e demais interessados, em momento adequado, no procedimento administrativo-demarcatório.

Ocorre que, no caso em tela, o procedimento demarcatório foi regido pela norma vigente ao tempo do ato, qual seja, o Decreto nº 22/1991, o qual estabelecia que, após a realização dos trabalhos de identificação, o Grupo Técnico apresentaria relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, que, após aprovação, submeteria o processo de demarcação ao Ministro da Justiça, ao qual competiria aprovar o processo e declarar, mediante portaria, os limites da terra indígena, determinando a sua demarcação (art. 2º do Decreto nº 22/1991).

Consoante se depreende da análise dos autos, a FUNAI constituiu Grupo Técnico para proceder à identificação e delimitação da terra indígena através da Portaria nº 032/1991 (ID 139331742 – p. 64/65), o qual, após a conclusão dos trabalhos, apresentou relatório circunstanciado, identificando a terra indígena a ser demarcada (ID 139331742 – p. 66/72). Em 04/09/1991, o Presidente da FUNAI aprovou o relatório apresentado pelo Grupo Técnico, e encaminhou o processo de demarcação para o Ministério da Justiça, nos termos do Despacho nº 13/1991. O Ministro da Justiça, por sua vez, expediu a Portaria nº 516/1991, declarando os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação (ID 139331740 – p. 157). Por fim, a demarcação veio a ser homologada por Decreto do Presidente da República, em 21/05/1992 (ID 139331742 – p. 63).

Em 17/01/1994, foi realizado o registro da Terra Indígena Jaguari no Departamento do Patrimônio da União (ID 139331753 – p. 136) e no Cartório de Registro de Imóveis de Amambaí/MS, sob a matrícula nº 12.571.

Verifica-se, portanto, que o processo administrativo que resultou na determinação da demarcação da Terra Indígena Jaguari, pela Portaria nº 516/1991 do Ministério da Justiça, desenvolveu-se com estrita observância das normas estabelecidas pela legislação de regência ao tempo da realização do ato ora impugnado, inexistindo elementos que permitam concluir pela existência de vícios que maculem sua validade.

Ademais, é relevante notar que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento de precedente que versava sobre circunstâncias fáticas semelhantes à hipótese tratada nos presentes autos, consignou que a pretensão de declaração de nulidade do Decreto nº 22/1991 resta prejudicada na hipótese de homologação do processo demarcatório com posterior registro imobiliário, como no caso em tela. Confira-se:

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. DECRETO HOMOLOGATÓRIO. DECRETOS N.ºS 22/91. REGISTRO IMOBILIÁRIO. DECRETO 1.775/96. PERDA DE OBJETO.

Processo Administrativo de Demarcação. Atos administrativos homologatórios decorrentes do Decreto 22/91. Efeitos declaratórios que qualificaram as terras demarcadas. Posterior registro imobiliário. Conclusão do processo administrativo de demarcação. Perda de objeto.

(ACO 462/PA, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, DJe-095 DIVULG 19-05-2011 PUBLIC 20-05-2011 EMENT VOL-02526-01 PP-00001)

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal também já firmou entendimento no sentido de que a existência de um procedimento diferenciado para a contestação de processos demarcatórios iniciados antes da vigência do Decreto nº 1.775/1996 não caracteriza violação ao contraditório e à ampla defesa.

“MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. RESPEITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. SEGURANÇA INDEFERIDA.

(...)

Ao estabelecer um procedimento diferenciado para a contestação de processos demarcatórios que se iniciaram antes de sua vigência, o Decreto 1.775/1996 não fere o direito ao contraditório e à ampla defesa. Proporcionalidade das normas impugnadas. Precedentes.

Segurança indeferida.”

(MS 24045/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ 05/08/2005)

Neste ponto, mostra-se pertinente a transcrição do seguinte excerto do voto proferido pelo Min. Joaquim Barbosa (Redator do acórdão):

“(...) Inicialmente ressalto que o tema já foi submetido à apreciação desta Corte. Por ocasião do julgamento do MS 21.649 (rei. min. Moreira Alves, Primeira Turma, DJ 15.12.2000), ficou estabelecido, por unanimidade:
“(...) - Tendo sido editado o Decreto n"1775/96 que garantiu o contraditório e a ampla defesa também aos proprietários que já estavam com seus imóveis demarcados como terras indígenas desde que o decreto homologatório não tenha sido objeto de registro em cartório imobiliário ou na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda, e, portanto, estando ainda em curso a demarcação, ficaram prejudicados os incidente de inconstitucionalidade relativamente ao Decreto nº 22/91 e a alegação de cerceamento de Defesa.
(...)
O tratamento diferenciado dos processos iniciados antes do advento do Decreto 1.775/1996 tem uma razão lógica. O nível de impugnação à demarcação das terras não poderia ser o mesmo que aquele outorgado aos processos surgidos após o advento do Decreto 1.775/1996. No primeiro caso, os trabalhos referentes à demarcação já se iniciaram, no segundo não. '
Como lembrou o representante do Ministério Público o decreto poderia ou estabelecer um procedimento diferenciado para os processos iniciados antes do decreto de 1991. ou anulá-los. A segunda opção geraria um ônus redobrado tanto para os interessados como para a Administração.
(...)
O direito à ampla defesa, como típico direito à organização e procedimento, concede uma margem maior de apreciação ao legislador, cabendo ao Judiciário apenas controlar os casos em que fique patente violação do seu núcleo essencial.
No caso, diante de situações, fáticas não similares, o presidente da República teve a cautela de conceder a todos os interessados o direito de se manifestar dentro de prazos razoáveis. O prazo de 90 dias, após a publicação do decreto, é suficiente para que os interessados se manifestem acerca da demarcação. (...)”.

Inexistem, portanto, razões hábeis a subsidiar o entendimento de que o ato administrativo exarado com fundamento no Decreto nº 22/1991 caracterizaria hipótese de patente violação ao núcleo essencial do contraditório e da ampla defesa.

Por outro lado, a partir da análise da prova documental coligida ao feito, observa-se que a conclusão acerca da existência de ocupação tradicional indígena na área sob litígio, que fundamentou a demarcação da Terra Indígena Jaguari na forma da Portaria Ministerial nº 516/1991, encontra-se devidamente respaldada por estudos de natureza antropológica.

Da tradicional ocupação indígena sobre as áreas em litígio

Exposto o conjunto normativo que rege a matéria e os delineamentos atribuídos pela interpretação jurisprudencial, depreende-se que, no caso em exame, estão presentes elementos probatórios indicativos de que a área sob litígio constitui terra de tradicional ocupação indígena, bem como de que a sua desocupação não se deu espontaneamente, mas por força de atos de remoção compulsória promovidos por não-índios.

Os elementos probatórios colacionados aos autos constituem dados irrefutáveis da tradicionalidade da ocupação sobre a área demarcada como Terra Indígena Jaguari, bem como de que os óbices à ocupação indígena da área, ao longo do tempo, foram promovidos por força de atos de extrusão e remoção compulsória, por parte de não-índios, caracterizadores de renitente esbulho.

Ressalta-se que o estudo antropológico deve aferir não apenas a existência de eventual ocupação indígena em 05/10/1988, mas tem de analisar, igualmente, se a ausência de índios se deu por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), conforme consignado no julgamento da Pet. 3.388/RR e sedimentado pela jurisprudência nos casos “Terra Guyrároka” (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e “Terra Indígena Limão Verde” (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015).

No caso, a prova pericial produzida apresenta elementos convergentes acerca da existência de tradicional ocupação indígena sobre a área demarcada, mormente em vista das conclusões extraídas dos estudos apresentados pelo laudo pericial judicial e pelo laudo antropológico produzido pelo assistente técnico do MPF (ID 139331746 – p. 5/26 e p. 109/123).

A prova pericial constitui elemento fundamental para formação do convencimento seguro, eis que realizada por peritos com conhecimento específico na questão examinada, tratando-se de dados idôneos a elucidar aspectos essenciais à adequada apreciação da situação jurídica subjacente, mormente no que concerne à existência ou não de tradicional ocupação indígena na área do litígio, bem como em relação à eventual ocorrência de renitente esbulho.

A respeito da área abrangida pela Terra Indígena Jaguari, informou o perito judicial que, embora ausentes elementos técnicos suficientes para análise da constituição étnico-antropológica do habitat tradicional indígena, mostra-se visível, no local, a ocupação indígena, ao menos, desde a década de 1980, havendo sido promovidos atos de deslocamentos forçados dos índios pelos proprietários da Fazendo São Bento desde o ano de 1987. Em resposta ao terceiro quesito formulado pela FUNAI, esclareceu o perito (ID 139331746 – p. 14):

“A presença de índios na área em litígio é visível, pelo menos desde a década de oitenta do século passado, antes disso as fontes disponíveis limitam-se aos depoimentos orais dos próprios índios. No ano de 1987, após a presença do GTI/FUNAI na área, a qual tinha como objetivo de identificar o local como sendo Terra Indígena, os índios foram forçados a abandonara a área pelos proprietários da Fazenda São Bento (...). Ainda segundo a mesma fonte, alguns meses depois algumas famílias de índios retornaram para a área em litígio. Em 1991, os índios são novamente pressionados a deixarem involuntariamente a área em litígio (...), isto após os trabalhos de demarcação feitos pela FUNAI. Em 1994, os índios retornaram voluntariamente para a área em litígio onde permaneceram até o presente.”

Por sua vez, o laudo antropológico produzido pelo assistente técnico do MPF concluiu que a área abrangida pela Terra Indígena Jaguari constitui habitat tradicional indígena, “tanto de uma perspectiva histórica fartamente demonstrada, quanto de uma perspectiva antropológica – perder de vista a legislação que define os procedimentos de regularização de terras indígenas. Não fora um ‘lugar’ Kaiowa, não estaria sendo reivindicado pelos grupos familiares que o fazem há, pelo menos, 40/50 anos, isto é, a partir do momento em que se pretendeu implantar uma fazenda naquelas terras” (ID 139331746 – p. 117).

Observa-se que os laudos periciais foram produzidos através de diligências pormenorizadas, encontrando-se embasado em amplos elementos probatórios, mormente fontes históricas e antropológicas, além de informações coligidas a partir de entrevistas com índios pertencentes à comunidade afetada e precisa análise da área examinada.

Com base nos elementos coligidos aos autos, é possível concluir, a partir de um standard de prova suficiente a informar o juízo de convicção necessário em sede de cognição exauriente, acerca da existência de tradicional ocupação indígena (Guarani-Kaiowá) sobre a área submetida ao processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Jaguari, bem como da ocorrência de atos de extrusão e remoção compulsória, promovidos por parte de não-índios, caracterizando-se o renitente esbulho.

Os Autores, por outro lado, não lograram produzir provas hábeis a infirmar os indícios de ocupação tradicional indígena sobre a área em litígio, havendo, por fim, informado que não possuíam outras provas a serem produzidas (ID 139331754 – p. 99/114)

Assim, em face do teor da prova pericial e dos elementos probatórios colacionados, mostra-se irrefutável a ampla convergência de elementos probatórios acerca da tradicionalidade da ocupação Guarani-Kaiowá sobre a área em tela, bem como do renitente esbulho praticado por não-índios.

Nesse aspecto, reafirma-se o entendimento construído pela jurisprudência do STF, já exposto, segundo o qual, o esbulho renitente identifica-se pela constatação de circunstâncias de fato que demonstrem a existência de controvérsia possessória judicializada, ou ainda, pela presença de efetivo conflito possessório que perdure até a data da promulgação da Constituição da República de 1988.

Consoante exposto, tais elementos encontram-se demonstrados, no caso, pela existência de registros acerca da tradicionalidade da ocupação indígena na região, assim como dos permanentes conflitos entre fazendeiros e índios, ainda verificados em 05/10/1988.

Os laudos antropológicos demonstram, assim, com clareza, a ocupação da região pela comunidade indígena Guarani-kaiowá, até sua expulsão por proprietários rurais, estando caracterizados todos os elementos legitimadores do ato demarcatório, à luz das normas constitucionais, convencionais e legais, bem como em face dos parâmetros estabelecidos pela jurisprudência, inclusive das condicionantes fixadas pelo STF no caso Raposa Serra do Sol.

Os atos administrativos impugnados não se apresentam, portanto, eivados de quaisquer vícios que os macule, devendo ser mantidos, porquanto constituem o reconhecimento de direito originário, declaratório de uma situação jurídica preexistente, que deve preponderar sobre quaisquer pretensões fundadas em títulos legitimadores de posse a favor de não-índios.

Trata-se da concretização de um comando constitucional expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos sobre terras indígenas, em prol da preservação dos direitos fundamentais das comunidades indígenas e da própria dignidade da pessoa humana, vértice axiológico da Constituição.

Ressalta-se, ainda, que o fato de encontrarem-se sobrepostas a tal área fazendas originadas de títulos concedidos pelo Estado do Mato Grosso (ID 139331740 – p. 62/64) não constitui, por si, fundamento hábil a obstar a demarcação da terra indígena, cujo ato administrativo, consoante exposto, constitui reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, prevalecendo sobre quaisquer situações e vínculos jurídicos pré-constitucionais.

Assim, em consonância com a jurisprudência pacífica do STF, devem ser considerados nulos e extintos quaisquer títulos que tenham por objeto pretensões possessórias e pactuações negociais sobre tais terras. No julgamento do RMS 29.193 AgR-ED, em 16/12/2014, o Min. Celso de Mello asseverou:

Destaque-se, também, que a eventual existência de registro imobiliário em nome de particular, a despeito do que dispunha o art. 859 do Código

Civil de 1916 ou do que prescreve o art. 1.245 e §§ do vigente Código Civil, não torna oponível à União Federal esse título de domínio privado, pois – como se sabe – a Constituição da República pré-excluiu do comércio jurídico as terras indígenas (“res extra commercium”), proclamando a nulidade e declarando a extinção de atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de tais áreas, considerando ineficazes, ainda, as pactuações negociais que sobre elas incidam, sem possibilidade de quaisquer consequências de ordem jurídica, inclusive aquelas que provocam, por efeito de expressa recusa constitucional, a própria denegação do direito à indenização ou do acesso a ações judiciais contra a União Federal, ressalvadas, unicamente, as benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF, art. 231, § 6º)”.

Todos esses títulos, portanto, são nulos, inclusive os provenientes de alienação realizada pelo Estado. Adotando tal orientação, o STF já declarou a nulidade de títulos de propriedade de imóveis rurais concedidos pelo governo do Estado de Minas Gerais, incidentes sobre área indígena:

AÇÃO CÍVEL ORIGINARIA. TITULOS DE PROPRIEDADE INCIDENTES SOBRE ÁREA INDIGENA. NULIDADE.

Ação declaratória de nulidade de títulos de propriedade de imóveis rurais, concedidos pelo governo do Estado de Minas Gerais e incidentes sobre área indígena imemorialmente ocupada pelos índios Krenak e outros grupos. Procedência do pedido.

(STF, ACO 323/MG, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ 08-04-1994) – g.n.

Em face de todo o exposto, constata-se a existência de provas robustas a embasar a regularidade do ato declaratório de demarcação da Terra Indígena Jaguari, o qual não se mostra eivado de qualquer nulidade, inexistindo fundamentos hábeis a afastar a presunção de legitimidade do ato administrativo analisado.

Resta incontroverso, por conseguinte, o entendimento, embasado em standard de prova suficiente a informar o juízo de convicção necessário em sede de cognição exauriente, acerca da plena regularidade do processo demarcatório realizado através da Portaria nº 516/1991 do Ministério da Justiça e do Decreto Presidencial s/nº de 21/05/1992.

Dos encargos de sucumbência

Na hipótese, cabível a fixação dos honorários advocatícios, nos termos do art. 85 do Código de Processo Civil.

Negado provimento ao recurso de apelação, impõe-se a majoração dos honorários, por incidência do disposto no § 11 do artigo 85 do diploma processual civil.

Assim, majoro os honorários advocatícios de sucumbência impostos à parte autora para R$ 11.000,00 (onze mil reais) em favor da FUNAI e da Comunidade Indígena Jaguari, e para R$ 11.000,00 (onze mil reais) em benefício da União Federal.

Dispositivo

Ante o exposto, nego provimento ao recurso de apelação.

É o voto.


DECLARAÇÃO DE VOTO

 

O Senhor Desembargador Federal Cotrim Guimarães: Ouso enfrentar a complexa discussão jurídica presente neste processo – trazida tanto no voto do Ilustre Relator quanto no divergente – da forma como me cabe doravante expor.

 

No que respeita ao procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, posso até ser voz convergente com aquela que soa no brilhante voto divergente, referente às limitações do contraditório no âmbito da seara administrativa específica, assim posto: “Quanto ao aspecto procedimental, um processo demarcatório obviamente não pode prescindir do contraditório e da ampla defesa”.

 

O que se aponta aqui, entrementes – e deve ser considerado como substancial no debate – é que a Portaria nº 516/91 do Ministério da Justiça foi o instrumento de execução da presente demarcação da Terra Indígena Jaguari.

 

Por sua vez, a Portaria nº 516/91 se faz reportar aos termos do Decreto nº 022/91 da Presidência da República, tratando do contraditório administrativo em seu art. 2º, da seguinte forma:

“ § 5º Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar, perante o Grupo Técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato que constituir o referido grupo”.

 

A fim de ficar registrado, o Decreto nº 1.775/96, da Presidência da República, versando também sobre o processo de demarcação de Terras Indígenas, prevê o contraditório administrativo em seu art. 2º, como se expõe, verbis:

 “ § 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.

        § 9° Nos sessenta dias subsequentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas.

        § 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:

        I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;

        II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias;

        III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes”.

 

Dentro da lógica legislativa apresentada, os Decretos presidenciais ora citados se enquadram nos ditames do art. 231 da Constituição Federal, ao regrar que compete à União a iniciativa para o processo de Demarcação de Terras Indígenas.

 

Ou seja, é de se deduzir que o plano de validade da Portaria executiva 516/91 traz, como norma fundante, o Decreto Presidencial nº 022/91, o qual, por sua vez, tem como norma fundante o art. 231 da Constituição da República.

 

Com isso, não se vislumbra, a meu ver, vícios ligados à origem legislativa da presente Portaria, eis que o suporte legislativo em que se embasa tem, como norma fundante, em última instância, o própria texto constitucional. E esse texto constitucional é específico, ao tratar no art.231 a competência exclusiva da União para o processo demarcatório.

 

Não antevejo, por outro vértice, conflito entre princípios constitucionais, pois neste dispositivo constitucional específico (art. 231CRF) o que se tratou foi de processo voltado aos interesses de preservação das terras indígenas, onde os Decretos dele derivados estabeleceram, como mostrado, a participação da União, Estados, Municípios, demais interessados e a sociedade civil, como forma de deflagração do contraditório administrativo.

 

Portanto, é indubitável que o plano de validade da Portaria em questão possui condão de reconhecimento perante o ordenamento jurídico que a fundamenta.

 

Acerca do plano de validade da norma, trago os ensinamentos de Rizzatto Nunes, ao lembrar que:  “a validade de uma norma tanto pode referir-se ao aspecto técnico-jurídico ou formal quanto ao aspecto da legitimidade. No primeiro caso, fala-se de a norma jurídica ser válida quando criada segundo os critérios já estabelecidos no sistema jurídico (...). No outro, fala-se do fundamento axiológico, cuja incidência ética seria a condição que daria legitimidade à norma jurídica, tornando-a válida" (in Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 175)

 

No que tange ao plano do exame fático destes autos, faço transcrever tópico do voto do ilustre Relator, acerca da existência de ocupação prévia da população indígena na área em questão:

“A respeito da área abrangida pela Terra Indígena Jaguari, informou o perito judicial que, embora ausentes elementos técnicos suficientes para análise da constituição étnico-antropológica do habitat tradicional indígena, mostra-se visível, no local, a ocupação indígena, ao menos, desde a década de 1980, havendo sido promovidos atos de deslocamentos forçados dos índios pelos proprietários da Fazendo São Bento desde o ano de 1987. Em resposta ao terceiro quesito formulado pela FUNAI, esclareceu o perito (ID 139331746 – p. 14):

 

A presença de índios na área em litígio é visível, pelo menos desde a década de oitenta do século passado, antes disso as fontes disponíveis limitam-se aos depoimentos orais dos próprios índios. No ano de 1987, após a presença do GTI/FUNAI na área, a qual tinha como objetivo de identificar o local como sendo Terra Indígena, os índios foram forçados a abandonara a área pelos proprietários da Fazenda São Bento (...). Ainda segundo a mesma fonte, alguns meses depois algumas famílias de índios retornaram para a área em litígio. Em 1991, os índios são novamente pressionados a deixarem involuntariamente a área em litígio (...), isto após os trabalhos de demarcação feitos pela FUNAI. Em 1994, os índios retornaram voluntariamente para a área em litígio onde permaneceram até o presente.”

 

Por sua vez, o laudo antropológico produzido pelo assistente técnico do MPF concluiu que a área abrangida pela Terra Indígena Jaguari constitui habitat tradicional indígena, “tanto de uma perspectiva histórica fartamente demonstrada, quanto de uma perspectiva antropológica – perder de vista a legislação que define os procedimentos de regularização de terras indígenas. Não fora um ‘lugar’ Kaiowa, não estaria sendo reivindicado pelos grupos familiares que o fazem há, pelo menos, 40/50 anos, isto é, a partir do momento em que se pretendeu implantar uma fazenda naquelas terras” (ID 139331746 – p. 117). “

 

Concluo, pois, que são fortes e dignos de confiabilidade as conclusões do perito técnico constantes dos autos, ao confirmar a presença de elementos de ocupação do povo indígena no período correspondente ao marco temporal firmado como parâmetro de decisão pelo Supremo Tribunal Federal.

 

Há indícios veementes, a meu sentir, do denominado renitente esbulho, nos termos no trabalho pericial, pelos repetidos movimentos de expulsão e reocupação das terras pela etnia indígena. Essa movimentação litigiosa é de fácil constatação pelos relatos apresentados, circunstância que viria a reforçar todo o trabalho anterior realizado no afã de demarcar a área específica.

 

Ainda que se possa argumentar sobre a existência de um cemitério indígena, erguido possivelmente a partir de 1994, tal fato, além de suscitar investigação, é de pouca monta diante do quadro amplo de litígio já existente desde a década de oitenta, apontando pela extrema necessidade de se demarcar a área por parte da União.

 

Diante de tais elementos ora apresentados, e pedindo escusas à divergência, voto no sentido de negar provimento à apelação, nos termos do voto do Relator.

 

É o voto.

Des. Fed. Wilson Zauhy:

Peço vênia ao eminente Relator para dele divergir quanto ao deslinde do feito.

Na origem, Ramona de Almeida Moraes e Outros ingressaram com ação judicial em face da União, da Fundação Nacional do Índio - FUNAI e da Comunidade Indígena Jaguari, por meio da qual pretendiam ser mantidos na posse dos imóveis de sua propriedade privada, bem como obter declaração judicial no sentido de que não haveria relação jurídica alguma a ligar a área à suposta tradicionalidade da posse indígena. O feito teve longo período de tramitação, contando com prova pericial antropológica para se apurar os aspectos pertinentes.

Sobreveio, então, sentença pela qual se julgou o pedido extinto sem resolução de mérito, com base no art. 485, inc. VI, do CPC/2015, no que se referia ao pleito possessório. Quanto ao restante dos pedidos, julgou-se a pretensão improcedente, com esteio no art. 487, inc. I, do CPC/2015, havendo condenação dos particulares em honorários advocatícios fixados no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para a FUNAI e a Comunidade Indígena Jaguari e outros R$ 10.000,00 (dez mil reais) para a União.

Os particulares interpuseram seu recurso de apelação, alegando, em síntese, que inexistiria tradicional ocupação indígena no local, já que seriam os legítimos proprietários da área há quase um século, quando suas famílias passaram a estar presentes naquela localidade. Afirmaram que a propriedade é atestada pelas matrículas dos imóveis e que a área já havia sido objeto de anterior decreto expedido pelo Poder Executivo para averiguar a sobreposição com terras indígenas em 1987, concluindo-se que os imóveis não estariam nessa condição (Decreto n. 94.945). Aduzem que, em 1991, houve a edição da Portaria Ministerial n. 516, que determinou a demarcação da Terra Indígena Jaguari, com o que foram turbados da posse que exerciam sobre seus imóveis. Asseveram que o procedimento administrativo demarcatório é nulo por não observar o contraditório e a ampla defesa.

Foram apresentadas contrarrazões pelos apelados.

O Ministério Público Federal - MPF se manifestou pelo sobrestamento da demanda judicial, por compreender que a situação se amoldaria à decisão proferida pelo Min. Edson Fachin nos autos do RE 1.017.365 (Tema 1.031). De forma subsidiária, se manifestou pelo desprovimento do apelo.

O eminente Relator trouxe o feito a julgamento na sessão que se realiza hoje. De início, Sua Excelência afastou o requerimento de sobrestamento, apontando que a Portaria 913 do Ministério da Saúde, de 22 de abril de 2022, declarou o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Quanto a este ponto, acompanho o Relator.

No mais, o Relator está afastando a pretensão possessória, ao fundamento de que a instauração de procedimento demarcatório não configuraria nenhum esbulho possessório, compreendendo, antes, o exercício de uma natural função do Poder Público, com respaldo constitucional. Por isso, Sua Excelência está mantendo a extinção do processo sem resolução de mérito quanto a esse aspecto.

No que se referia à observância do contraditório e da ampla defesa, Sua Excelência registra que o procedimento demarcatório foi instaurado quando vigia o Decreto 22/1991, que determinava a remessa dos estudos promovidos pelo Grupo Técnico diretamente ao órgão federal de assistência ao índio que, após aprovação, submeteria o relatório circunstanciado ao Ministro da Justiça, para declarar, por portaria, os limites da terra indígena, com determinação de demarcação.

Considerando que o procedimento previsto pelo decreto então vigente foi observado à risca, o eminente Relator está afastando as alegações de violações ao contraditório e à ampla defesa, embora tenha reconhecido que tais princípios são de observância compulsória também na esfera administrativa. Além disso, sublinhou que, se houve o registro imobiliário da demarcação, então eventuais nulidades não poderiam mais ser questionadas.

Prossegue o eminente Relator defendendo que o marco temporal firmado pelo E. STF no julgamento da Pet. 3.388/RR deveria ser afastado no caso concreto, tendo em vista que os estudos periciais antropológicos teriam demonstrado a configuração do chamado “renitente esbulho”, isto é, teriam comprovado que a posse tradicional indígena somente não teria se verificado a 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição da República) porque os indígenas teriam sido compulsoriamente removidos da localidade por meio de atos violentos. Por tudo isso, Sua Excelência está desprovendo o apelo dos autores, mantendo in totum a sentença objurgada.

Como já adiantei, divirjo do eminente Relator quanto ao mérito recursal, por dois fundamentos principais.

Quanto ao aspecto procedimental, um processo demarcatório obviamente não pode prescindir do contraditório e da ampla defesa. Tendo o condão de atingir a esfera jurídica do cidadão, em especial no que se refere a um direito fundamental constitucionalmente tutelado (o direito de propriedade), o procedimento demarcatório deve observar as garantias fundamentais, sob pena de assumir um indevido caráter arbitrário e não dialógico. Note-se, a propósito, que a própria Carta Magna estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, inc. LIV, da CF/1988). De outro passo, a Lei Maior também dispõe que o contraditório e a ampla defesa devem ser observados “em processo judicial ou administrativo” (art. 5º, inc. LV, da CF/1988).

Esse cenário constitucional está a demonstrar que o Poder Público sempre esteve jungido ao dever de observar as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa ao conduzir seus processos demarcatórios. Assim, não é porque o Decreto 22/1991 nada dispôs sobre a necessidade de se intimar os particulares que o procedimento foi bem conduzido pela Administração Pública, como assentou o eminente Relator.

Pelo contrário: a omissão do Decreto 22/1991 neste particular não suplantava a necessidade de se observar as garantias constitucionais de defesa, porque os ditames constitucionais devem ser aplicados na integração das lacunas do instrumento infralegal. Interpretação em sentido contrário seria o mesmo que sustentar a prevalência de um decreto sobre o próprio texto constitucional, com nítida violação de garantias fundamentais, em descompasso com a estrutura hierarquizada de normas a compor nosso sistema jurídico. E nem mesmo o eventual registro dessa situação nas matrículas dos imóveis teriam o condão de convalidar uma situação que, em sua gênese, importava violação a direitos fundamentais.

Ainda que assim não fosse, temos o aspecto material também. A presença indígena no local não foi verificada a 5 de outubro de 1988, o que é facilmente comprovado pelo fato de que o primeiro grupo de trabalho da FUNAI para delimitar a terra indígena foi constituído nos idos de 1987, quando os particulares já estavam presentes por ali. Para afastar a tese do marco temporal que encontra guarida no âmbito do E. STF, o eminente Relator salienta que a tradicionalidade da ocupação indígena estaria evidenciada pelo renitente esbulho, isto é, pela prática de atos de remoção compulsória dos indígenas por não-índios, que tem sido admitida como exceção válida pela própria Suprema Corte.

Ocorre, porém, que, diferentemente do alegado pelo eminente Relator, a comprovação do chamado renitente esbulho não está muito bem evidenciada nos autos. Registro que, em seu laudo pericial, o Dr. Gilson Rodolfo Martins, acompanhado da Profa. Dra. Emília Mariko Kashimoto, não lograram obter dados técnicos seguros a apontar a tradicionalidade da ocupação indígena e a ocorrência do renitente esbulho.

O perito confessa que não encontrou “informações escritas, nem vestígios materiais que comprovem, sem margem para dúvidas, que, anteriormente ao ano de 1966 (data das fotos aéreas analisadas nesta perícia), a área em litígio estava ocupada por índios” (ID 139331746, página 13). Mais adiante, reconhece que a presença dos indígenas em momento anterior a década de 1980 somente foi confirmada por “depoimentos orais dos próprios índios” (ID 139331746, página 14). Quanto ao renitente esbulho, confirma que os índios foram forçados a deixar o local somente em 1987, quando os particulares se encontravam na região há muitas décadas, faltando somente um ano para que ocorresse o marco temporal, o que afasta a tradicionalidade da ocupação indígena pelo curto espaço de tempo entre um evento e outro.

No afã de buscar elementos que denotassem uma presença indígena mais longínqua, o perito constatou a existência de cemitérios indígenas na área, mas logo percebeu que as sepulturas seriam posteriores ao ano de 1994, ou seja, posteriores ao marco temporal (ID 139331746, página 14). De outro giro, o domínio particular é reconhecido sem qualquer margem de dúvidas pelo perito, ao indicar o seguinte (ID 139331746, página 15):

“A família dos autores e seus antepassados ocupam a Fazenda São Bento, inclusive a área em litígio, há muitas décadas, ou seja, desde a primeira metade do século passado (XX). Os vestígios citados no quesito correspondem a antiga sede da Fazenda São Bento, originária do início desse século”.

Pelo exposto, divergindo do eminente Relator, voto por dar provimento ao apelo interposto para, reformando a sentença recorrida, julgar procedente o pedido e reconhecer a ilegalidade do procedimento demarcatório, seja pela ofensa ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, seja pela ausência de tradicionalidade da ocupação indígena, nos termos da fundamentação supra.

Partindo da premissa de que o procedimento demarcatório é ilegal, determino a reintegração de posse em favor dos autores. Sendo a União e a FUNAI partes sucumbentes, condeno ambas em honorários advocatícios fixados nos percentuais máximos a que se refere o art. 85, §3º, do CPC/2015, tomando por base o valor atualizado da causa, dada a inegável complexidade da demanda judicial e os longos anos de sua tramitação.

É como voto.

 


E M E N T A

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. OPOSIÇÃO DE PRETENSÃO POSSESSÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. EXTINÇÃO PARCIAL DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA. TERRA INDÍGENA DEMARCADA. DECRETO HOMOLOGATÓRIO. REGISTRO IMOBILIÁRIO. PROCEDIMENTO VÁLIDO. NULIDADE NÃO CARACTERIZADA. OBSERVÂNCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DE REGÊNCIA. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO.

1. A demarcação de terra indígena é ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário). Trata-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade (presunção juris tantum), cabendo à parte contrária impugná-lo, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-lo. Precedentes.

2. Não se mostra cabível a oposição ao ato administrativo, baseada em direito possessório e com fulcro em títulos legitimadores de posse, como meio a obstar, por si, a realização do processo de demarcação de terra indígena e os diversos atos que o compõem, os quais gozam de presunção de legitimidade e se encontram amparados em comando constitucional preeminente, sendo vedado, inclusive, o manejo de ação de interdito possessório contra a demarcação.

3. A demarcação de terras indígenas não configura esbulho possessório ou qualquer forma de perda ou restrição da propriedade, posto que se trata de ato meramente declaratório de uma situação jurídica pré-existente. Precedentes.

4. Em decorrência da própria natureza da terra indígena – enquanto propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios –, o ordenamento veda expressamente a oposição ao ato administrativo demarcatório (art. 19, § 2º, da Lei 6.001/73). Mostra-se de rigor, portanto, a extinção do processo sem resolução do mérito em relação ao pleito possessório, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil.

5. No que concerne à observância do contraditório em âmbito administrativo, verifica-se que, uma vez iniciado o procedimento de demarcação, a legislação de regência assegura o direito ao contraditório e à participação dos interessados durante o trâmite do processo administrativo. No caso, o procedimento demarcatório foi regido pela norma vigente ao tempo do ato, qual seja, o Decreto nº 22/1991, havendo o processo administrativo que resultou na determinação da demarcação da Terra Indígena Jaguari se desenvolvido com estrita observância das normas estabelecidas pela legislação então vigente, inexistindo elementos que permitam concluir pela existência de vícios que maculem sua validade.

6. O Supremo Tribunal Federal consignou que a pretensão de declaração de nulidade do Decreto nº 22/1991 resta prejudicada na hipótese de homologação do processo demarcatório com posterior registro imobiliário. Por outro lado, a jurisprudência da Suprema Corte também firmou entendimento no sentido de que a existência de um procedimento diferenciado para a contestação de processos demarcatórios iniciados antes da vigência do Decreto nº 1.775/1996 não caracteriza violação ao contraditório e à ampla defesa. Precedentes.

7. Os elementos probatórios colacionados aos autos constituem dados irrefutáveis da tradicionalidade da ocupação sobre a área demarcada como Terra Indígena Jaguari, bem como de que os óbices à ocupação indígena da área, ao longo do tempo, foram promovidos por força de atos de extrusão e remoção compulsória, por parte de não-índios, caracterizadores de renitente esbulho.

8. O estudo antropológico deve aferir não apenas a existência de eventual ocupação indígena em 05/10/1988, mas tem de analisar, igualmente, se a ausência de índios se deu por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), conforme consignado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Pet. 3.388/RR e sedimentado pela jurisprudência nos casos “Terra Guyrároka” (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e “Terra Indígena Limão Verde” (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015).

9. Com base nos elementos coligidos aos autos – notadamente em vista das conclusões extraídas dos estudos apresentados pelo laudo pericial judicial e pelo laudo antropológico produzido pelo assistente técnico do Ministério Público Federal –, é possível concluir, a partir de um standard de prova suficiente a informar o juízo de convicção necessário em sede de cognição exauriente, acerca da existência de tradicional ocupação indígena (Guarani-Kaiowá) sobre a área submetida ao processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Jaguari, bem como da ocorrência de atos de extrusão e remoção compulsória, promovidos por parte de não-índios, caracterizando-se o renitente esbulho.

10. O fato de encontrarem-se sobrepostas à área demarcada fazendas originadas de títulos concedidos pelo Estado do Mato Grosso não constitui fundamento hábil a obstar a demarcação da terra indígena, cujo ato administrativo constitui reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, prevalecendo sobre quaisquer situações e vínculos jurídicos pré-constitucionais. Em consonância com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, devem ser considerados nulos e extintos quaisquer títulos que tenham por objeto pretensões possessórias e pactuações negociais sobre tais terras.

11. Os atos administrativos impugnados pelos Autores não se apresentam eivados de quaisquer vícios que os macule, devendo ser mantidos, porquanto constituem o reconhecimento de direito originário, declaratório de uma situação jurídica preexistente, que deve preponderar sobre quaisquer pretensões fundadas em títulos legitimadores de posse a favor de não-índios. Trata-se da concretização de um comando constitucional expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos sobre terras indígenas, em prol da preservação dos direitos fundamentais das comunidades indígenas e da própria dignidade da pessoa humana, vértice axiológico da Constituição da República.

12. Negado provimento ao recurso de apelação.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento nos termos do artigo 942 do Código de Processo Civil, a Primeira Turma, por maioria, negou provimento ao recurso de apelação, nos termos do voto do senhor Desembargador Federal relator, acompanhado pelos votos dos senhor Desembargadores Federais Valdeci dos Santos, Cotrim Guimarães e Juiz Federal Convocado Nilson Lopes; vencido o senhor Desembargador Federal Wilson Zauhy, que lhe dava provimento para, reformando a sentença recorrida, julgar procedente o pedido e reconhecer a ilegalidade do procedimento demarcatório, seja pela ofensa ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, seja pela ausência de tradicionalidade da ocupação indígena, e, partindo da premissa de que o procedimento demarcatório é ilegal, determinava a reintegração de posse em favor dos autores, e, sendo a União e a FUNAI partes sucumbentes, condenava ambas em honorários advocatícios fixados nos percentuais máximos a que se refere o art. 85, §3º, do CPC/2015, tomando por base o valor atualizado da causa, dada a inegável complexidade da demanda judicial e os longos anos de sua tramitação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.