Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001242-33.2018.4.03.6118

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL
ASSISTENTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

Advogado do(a) APELANTE: THIAGO ALVES LEONEL - SP232700-N

APELADO: SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
ASSISTENTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

Advogado do(a) APELADO: THIAGO ALVES LEONEL - SP232700-N

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001242-33.2018.4.03.6118

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL
ASSISTENTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

Advogado do(a) APELANTE: THIAGO ALVES LEONEL - SP232700-N
APELADO: SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
ASSISTENTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

Advogado do(a) APELADO: THIAGO ALVES LEONEL - SP232700-N

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

Trata-se de dupla apelação e remessa oficial, tida por submetida, à sentença que, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal contra SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, ex-empregada da Caixa Econômica Federal, julgou parcialmente procedente o pedido para condenar a ré, por violação aos princípios da legalidade, lealdade e honestidade (artigo 11, caput, da Lei 8.429/1992), ao ressarcimento integral do dano, “perda da função pública que eventualmente esteja ocupando na data da prolação da sentença”, pagamento de multa civil de três vezes o valor do dano, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócia pelo prazo de dez anos; indeferindo o pedido quanto à suspensão dos direitos políticos, sob o fundamento de que tal sanção destina-se, “via de regra”, aos detentores de cargo eletivo (ID 86935049, f. 105/15 e 131).

Apelou o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, alegando, em suma, que: (1) a sentença é nula, apresentando fundamentação genérica sem enfrentar os pontos suscitados para condenação da ré por atos ímprobos que importam enriquecimento ilícito e lesão ao erário (artigos 9º, XI, e 10, VI, da Lei 8.429/1992), puníveis com cassação da aposentadoria; (2) “em virtude da superveniente aposentadoria da ré, a penalidade administrativa de rescisão do contrato de trabalho por justa causa tornou-se inaplicável”; (3) “a terminologia função pública há de ser compreendida de forma ampla, devendo contemplar todas as situações em que o agente público, ainda que aposentado ou inativo, venha a ser condenado por ato de improbidade praticado à época em que estava na ativa”, consubstanciando efetiva “ruptura do vínculo jurídico entre ele e a administração pública”; (4) os atos de improbidade administrativa configuram faltas disciplinares puníveis com demissão ou cassação de aposentadoria, nos termos do artigo 134 da Lei 8.112/1990; (5) ser detentor de mandado eletivo não é pressuposto à suspensão dos direitos políticos, penalidade que visa justamente a impedir que o agente ímprobo pretenda exercê-lo no futuro; e (6) as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa devem infligir à ré um alerta de cunho repressivo e pedagógico, pelo que compatível e proporcional a sanção de suspensão dos direitos políticos com o presente caso, dada a gravidade e reprovabilidade das condutas praticadas; pelo que requereu a anulação e reforma da sentença, com aplicação da teoria da causa madura (ID 86935049, f. 133/48).

Apelou também a ré, aduzindo que: (1) conforme prova dos autos, os valores supostamente transferidos pela ré para seu benefício pertenciam a cliente do banco, não havendo que se falar, deste modo, em dinheiro público para fins de configuração de improbidade administrativa, “podendo equiparar o ato da ré a uma apropriação indébita e, sendo assim, eventual ressarcimento deve ser feito através de uma ação civil de reparação de danos”; (2) subsidiariamente, deve ser considerada na dosimetria da pena a confissão da ré, “dispondo-se a ajudar o Judiciário”; e (3) é descabida a condenação em ressarcimento do dano, sob pena de bis in idem, pois já firmou confissão de dívida perante o banco, para ressarcimento integral do prejuízo com juros e correção monetária, mediante desconto direto em sua aposentadoria (ID 86935049, f. 151/4).

Houve contrarrazões (ID 186935049, f. 155/8 e 160/4).

O parecer ministerial foi pelo desprovimento do recurso da ré e provimento do apelo do MPF e da remessa oficial, tida por submetida (ID 107931102).

Em razão do advento da Lei 14.230/2021, foi dada vista às partes para manifestação, sobrevindo peticionamentos: a parte ré sustentou a aplicação imediata e retroativa da nova lei e ausência de hipótese caracterizadora de dano ao erário, requerendo a improcedência da ação; e o MPF defendeu a irretroatividade da nova lei, “devendo-se observar, portanto, a sua aplicação para os fatos ocorridos a partir da sua entrada em vigor (26.10.2021), assim como em relação aos atos processuais que venham a ser praticados desse momento em diante”.

É o relatório.

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001242-33.2018.4.03.6118

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL
ASSISTENTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

Advogado do(a) APELANTE: THIAGO ALVES LEONEL - SP232700-N
APELADO: SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
ASSISTENTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

Advogado do(a) APELADO: THIAGO ALVES LEONEL - SP232700-N

 

  

 

V O T O

 

 

Senhores Desembargadores, de princípio, em preliminar, com parcial razão o Ministério Público Federal ao arguir a nulidade da sentença, pois a decisão meritória, integrada pela decisão que rejeitou os embargos declaratórios opostos (ID 86935049, f. 124/30), é omissa em relação à parte relevante do pedido inicial referente à condenação da ré por atos ímprobos previstos nos artigos 9º, XI, e 10, VI, da Lei 8.429/1992, que importam enriquecimento ilícito e lesão ao erário, a denotar caráter citra petita da sentença.

Portanto, há julgamento em desconformidade com os limites da causa e omissão de fundamentação, na forma do artigo 489, § 1º, IV, do CPC, combinado com o artigo 93, IX, da Constituição Federal, a ensejar nulidade da decisão:

 

"Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

[...]

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

[...]

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;"

 

"Art. 93. [...]

[...]

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação."

 

Em que pese o vício, observa-se que, exaurida a instrução probatória na origem e centrada a nulidade constatada em desconformidade de valoração do conteúdo dos autos, a causa encontra-se madura para julgamento diretamente nesta sede, nos termos do artigo 1.013, § 3º, II a IV, do Código de Processo Civil.

Ainda em preliminar, cumpre ressaltar que a sentença foi proferida na vigência da Lei 8.429/1992 com redação anterior às alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, pelo que cabível a remessa oficial, que se tem por submetida, conforme entendimento jurisprudencial até então prevalecente (AgInt no AREsp n. 1.541.937/MG, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 17/5/2022, DJe de 20/5/2022).

A propósito, destaca-se que toda a matéria devolvida pela via da remessa oficial, na espécie, foi também objeto da apelação interposta pelo Ministério Público Federal, pelo que inaplicável, no caso, a suspensão processual determinada nos RESP’s 1.553.124, 1.605.586, 1.502.635 e 1.601.804, afetos ao Tema 1.042/STJ, nos quais, inclusive, foi estabelecido, em 24/02/2022, “o retorno do recurso especial ao Sr. Ministro Manoel Erhardt, tornando sem efeito o julgamento iniciado e, consequentemente, o pedido de vista formulado, para proporcionar ao relator originário o exame da potencial incidência da alteração apresentada pela Lei nº 14.230/2021 no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa julgada no presente recurso especial repetitivo”.

No mérito, trata-se de ação civil pública ajuizada em 20/05/2009 pelo Ministério Público Federal para condenar SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, ex-empregada da Caixa Econômica Federal, empresa pública federal, por ato de improbidade administrativa, por desviar valores de clientes do banco em benefício próprio, assim auferindo vantagem ilícita, com dano ao erário e violação a princípios da administração pública.

Segundo a inicial (ID 86935048, f. 4/19), SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, à época empregada da CEF (matrícula 009488-6), lotada na agência de Cachoeira Paulista/SP, subtraiu, em proveito próprio, por 38 vezes entre 09/02/2005 e 22/03/2006, o valor total de R$ 59.610,00 depositados em duas contas de titularidade de Clotário Andrade Cintra (2003.013.20222-7 e 2003.013.23527-3).

Narrou o Ministério Público Federal que a ré, valendo-se da facilidade proporcionada pelo cargo que ocupava, identificou expressivo saldo nas contas titularizadas pelo idoso de idade avançada e, utilizando-se de senha funcional própria e de outros funcionários da CEF (Jorge Botelho, matrícula 072625-7; Deodato Cyrpiano Sampaio Pinto, matrícula 029086-0; Rosemile Sizue Fukuoka, matrícula 050562-2; Margarida da Silva Bortolaci, matrícula 632589-0; e Heryane Juliano da Silva, matrícula 070945-4) para acesso aos sistemas do banco, transferiu os valores das contas de Clotário Andrade Cintra para as contas de sua titularidade (2003.001.9488-9), de Antônio Marcos de Aguiar Pereira (2003.013.21479-9), com quem convivia em união estável e que lhe havia confiado o cartão bancário e senha pessoal, bem como de Antonio Carlos Ribeiro (2003.013.13193-1), seu conhecido, de quem tinha autorização informal para movimentar livremente a conta.

Ainda, conforme o autor da ação, os valores transferidos para as contas de sua titularidade (R$ 500,00) e de seu companheiro (R$ 40.840,00) foram livremente movimentados pela ré, enquanto o restante (R$ 18.270,00) foi transferido para a conta de Antonio Carlos Ribeiro a título de pagamento de suposta dívida que a ré havia contraído junto a seu conhecido. Ao perceber os desfalques em suas contas, Clotário Andrade Cintra comunicou os fatos à CEF, que lhe ressarciu os valores desviados, corrigidos até 31/03/2006, no montante total de R$ 63.526,00.

Sustentou o Ministério Público Federal que, assim agindo, a ré auferiu vantagem patrimonial indevida que importa enriquecimento ilícito, em prejuízo da empresa pública federal, com violação aos deveres de zelo e dedicação (itens I, II, III, VIII, XIV, c, f e t, do Decreto 1.171/1994 - Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal), bem como aos princípios da administração pública, notadamente os da legalidade, moralidade, honestidade e lealdade à instituição a que servia, caracterizando os atos ímprobos tipificados nos artigos 9º, XI, 10, VI e 11, caput, da Lei 8.429/1992, pelo que requereu a condenação de SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, cumulativamente, ao ressarcimento integral do dano; “perda da função pública que porventura esteja exercendo à época da sentença”; suspensão dos direitos políticos por oito a dez anos; pagamento de multa civil de três vezes o valor do dano; e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócia majoritária, pelo prazo de dez anos.

Inicialmente tramitando a ação no meio físico sob o número 0000900-25.2009.4.03.6118, a Caixa Econômica foi admitida como assistente simples do polo ativo (ID 86935048, f. 70), e proferida sentença em 25/05/2016 (ID 86935049, f. 115). Após interposição de recursos e juntada de contrarrazões, os autos subiram a esta Corte em 05/08/2019, com conclusão a esta relatoria em 12/12/2019.

Como se observa, a ação foi regularmente processada na vigência da redação da Lei 8.429/1992 antes das alterações promovidas pela Lei 14.230, publicada em 26/10/2021.

Identificadas irregularidades na virtualização do feito, foi determinada a baixa dos autos à origem para regularização de todas as mídias e eventuais outros documentos não digitalizados. A digitalização foi concluída em 19/08/2022, com a juntada de diversos documentos até então faltantes.

Nesse ínterim, sobreveio a Lei 14.230/2021, publicada em 26/10/2021, promovendo numerosas alterações na Lei 8.429/1992, que rege a presente ação de improbidade administrativa, sobre as quais as partes foram ouvidas e houve manifestações. 

A propósito, para definir “eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo – dolo – para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente”, o Plenário do Supremo Tribunal Federal fixou, recentemente, no julgamento do ARE 843.989 (Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, d.j. 18/08/2022), com repercussão geral, as seguintes teses vinculantes:

 

“1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei (grifamos, Tema 1.199)

 

No exame das condutas ímprobas imputadas na espécie, cumpre destacar que, conquanto ainda pendentes de publicação acórdão e inteiro teor do paradigma julgado pela Suprema Corte (ARE 843.989: Tema 1.199), dessume-se das teses fixadas, corroborada pela notícia veiculada em 18/08/2022 no portal eletrônico do Supremo Tribunal Federal (https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=492606), assim como do Informativo STF 1065/2022, de 02/09/2022 (Diante da revogação expressa do texto legal anterior, não se admite a continuidade de uma investigação, uma ação de improbidade, ou uma sentença condenatória por improbidade com base em uma conduta culposa não mais tipificada legalmente. Entretanto, a incidência dos efeitos da nova lei aos fatos pretéritos não implica a extinção automática das demandas, pois deve ser precedida da verificação, pelo juízo competente, do exato elemento subjetivo do tipo: se houver culpa, não se prosseguirá com o feito; se houver dolo, prosseguir-se-á. Essa medida é necessária porque, na vigência da Lei 8.429/1992, como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo” - f. 7/8, grifamos), que as alterações promovidas pela nova Lei 14.230/2021 nos tipos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/1992, com supressão ou inclusão de elementos objetivos ou subjetivos, aplicam-se aos atos ímprobos praticados na vigência da redação anterior da lei, desde que sem condenação transitada em julgado, como no caso, “em virtude da revogação expressa do texto anterior” nestas hipóteses.

Em convergência com tal entendimento, o Superior Tribunal de Justiça já havia, anteriormente, na recente fixação da Tese 1.108 (“A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, mas baseada em legislação local, por si só, não configura a improbidade administrativa prevista no art. 11 da Lei n. 8.429/1992, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo) necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública”), considerado, na fundamentação do julgamento dos paradigmas já em curso (RESP’s 1.926.832, 1.930.054 e 1.913.638, julgados em 11/05/2022), as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 nos tipos legais de improbidade administrativa, como se observa da ementa de um dos respectivos acórdãos:

 

RESP 1.926.832, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, DJe 24/05/2022: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. IMPROBIDADE. CONTRATAÇÃO DE SERVIDOR TEMPORÁRIO. AUTORIZAÇÃO. LEI LOCAL. DOLO. AFASTAMENTO. 1. Em face dos princípios a que está submetida a administração pública (art. 37 da CF/1988) e tendo em vista a supremacia deles, sendo representantes daquela os agentes públicos passíveis de serem alcançados pela lei de improbidade, o legislador ordinário quis impedir o ajuizamento de ações temerárias, evitando, com isso, além de eventuais perseguições políticas e o descrédito social de atos ou decisões político-administrativos legítimos, a punição de administradores ou de agentes públicos inexperientes, inábeis ou que fizeram uma má opção política na gerência da coisa pública ou na prática de atos administrativos, sem má-fé ou intenção de lesar o erário ou de enriquecimento. 2. A questão central objeto deste recurso, submetido ao regime dos recursos repetitivos, é saber se a contratação de servidores temporários sem concurso público, baseada em legislação municipal, configura ato de improbidade administrativa, em razão de eventual dificuldade de identificar o elemento subjetivo necessário à caracterização do ilícito administrativo. 3. De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, desde há muito, a contratação de servidores públicos temporários sem concurso público baseada em legislação local afasta a caracterização do dolo genérico para a configuração de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública. 4. O afastamento do elemento subjetivo de tal conduta dá-se em razão da dificuldade de identificar o dolo genérico, situação que foi alterada com a edição da Lei n. 14.230/2021, que conferiu tratamento mais rigoroso para o reconhecimento da improbidade, ao estabelecer não mais o dolo genérico, mas o dolo específico como requisito para a caracterização do ato de improbidade administrativa, ex vi do art. 1º, §§ 2º e 3º, da Lei n. 8.429/1992, em que é necessário aferir a especial intenção desonesta do agente de violar o bem jurídico tutelado. 5. Para os fins do art. 1.039 do CPC/2015, firma-se a seguinte tese: "A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, mas baseada em legislação local, por si só, não configura a improbidade administrativa prevista no art. 11 da Lei n. 8.429/1992, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo) necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública."6. In casu, o Tribunal de origem manteve a sentença que condenou os demandados, mesmo levando em conta a existência de leis municipais que possibilitavam a contratação temporária dos servidores apontados nos autos, sem a prévia aprovação em concurso público, motivo pelo qual o acórdão deve ser reformado. 7. Recurso especial provido.”

 

Neste contexto e considerando os limites da devolução, verifica-se dos autos, conforme confirmado pelas testemunhas e confessado pela própria ré - seja durante o processo administrativo de apuração de responsabilidade disciplinar e civil (ID 86935050, f. 103/55), seja no âmbito penal em que apurados os mesmos fatos (f. 161/231 e IDs 262418796, 262418829, 262418983, 262419014, 262419017, 262419020 e 262419027), ou na presente ação (IDs 86935051, 86935052, 86935053, 86935054, 86935055, 262417804 e 262417829) -, que SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL, valendo-se das funções que desempenhava na Agência de Cachoeira Paulista e mediante uso de senha funcional própria e de seus colegas de trabalho, sem o conhecimento deles, transferiu, indevidamente e sem qualquer autorização, ainda que informal, valores de contas bancárias de cliente da Caixa Econômica Federal para contas de sua titularidade e de seu companheiro ou namorado, deles disponibilizando livremente, inclusive e sobretudo através de saques em espécie, e também para a conta de um terceiro conhecido, como forma de pagamento de dívida pessoal que havia contraído com aquele.

Com efeito, segundo apurado, para operar com as senhas dos outros funcionários da CEF, sem o conhecimento destes e sem que estes tivessem compartilhado tal informação, a ré utilizava-se do mesmo terminal de atendimento sem que o usuário anterior fosse deslogado, ou mesmo as obtinha por mera visualização da digitação do código numérico (“em várias ocasiões, a empregada Suzana lhe pedia para desbloquear cartões magnéticos de clientes e ficava atrás da declarante enquanto ela digitava a senha no terminal” – ID 86935050, f. 109). SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL chegou a utilizar, para executar a fraude perpetrada, a senha de seu superior hierárquico direto mesmo em dias em que este não se encontrava na agência, em razão de curso em outro estado.

Não obstante a convergência dos depoimentos testemunhais e a própria confissão expressa da ré, tais fatos foram, ainda, confirmados por imagens de câmeras do circuito interno da agência bancária, que registraram sua presença no mesmo horário, terminal e caixa eletrônico em que realizadas as transações financeiras indevidas (ID 86935050, f. 107, 131, 167/9 e IDs 262417798, 262417829), documentadas no procedimento administrativo interno da CEF (ID 86935050, f. 20/95 e 129/34).

Também restou comprovado que o companheiro da ré havia-lhe confiado o cartão de sua conta e respectiva senha para uso nas despesas necessárias, sem saber e nem perceber, já que não acompanhava os extratos bancários, que SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL os utilizava para os desvios realizados em proveito próprio.

Logo após a ocorrência e descoberta dos fatos, mesma data da última transferência indevida (22/03/2006), a ré saiu de licença médica e se aposentou (ID 86935051, e ID 86935053: “como se deu a demissão da senhora?”, “eu me aposentei, pedi a aposentadoria proporcional, faltavam dois anos para eu me aposentar integral”). Os valores indevidamente desviados das contas bancárias de Clotário Andrade Cintra foram imediatamente restituídos pela CEF. Quando de sua convocação, em 16/05/2006, para esclarecimentos no processo administrativo de apuração interna dos fatos, a ré já estava aposentada (ID 86935050, f. 101 e 114); não obstante, constatada sua responsabilidade, o Conselho Disciplinar Regional/SP da Caixa Econômica Federal decidiu “pela aplicação da penalidade disciplinar de rescisão do contrato de trabalho por justa causa à empregada”, responsabilizando-a pelos prejuízos causados (f. 573/4 de mesmo ID), que redundou no termo de confissão e parcelamento de dívida, por quinze anos, assinado em 26/02/2007 (f. 228/9, idem).

Como se observa, restaram devidamente configurados, no presente caso, os atos de improbidade administrativa praticados pela ré, conforme previsto nos artigos 9º e 10 da Lei 8.4229/1992. 

Ainda que os valores desviados pertencessem a um cliente do banco e, não propriamente à instituição financeira – o que, apesar de configurar o tipo ímprobo previsto no caput do artigo 9º da LIA, afasta a subsunção da conduta ao tipo previsto no inciso XI (“XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei;”, grifamos) -, a Caixa Econômica Federal teve de restituir o montante ao cliente, suportando, assim, os prejuízos provocados pela ré, configurando o dano ao erário a ser ressarcido. Não por outro motivo, inclusive, a própria ré assumiu, ainda na esfera administrativa, o compromisso, de próprio punho, de ressarcir o banco (ID 86935050, f. 142).

Ademais, tendo auferido vantagem patrimonial indevida, ainda que de particular, mas mediante conduta dolosa praticada na qualidade de empregada da CEF e em razão das atividades exercidas na empresa pública, é incontroversa a configuração de improbidade administrativa.

Incorreu, pois, a ré nas condutas ímprobas assim previstas na Lei 8.4229/1992:

 

 “Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:

Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:        (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

[...]

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:         (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

[...]

VI - realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea;" (grifamos)

 

Devida, pois, tal como fixada na sentença, a condenação de SUZANA TEIXEIRA DO AMARAL ao ressarcimento integral do dano, que não fica prejudicada em razão do parcelamento administrativo assumido, pois ainda pendente de integral adimplemento o acordo firmado. Ademais, os valores inicialmente já ressarcidos mediante débito em conta serão, na fase de execução ou liquidação do julgado, devidamente considerados e subtraídos do montante devido, pelo que não se cogita de bis in idem.

Sobre os valores de ressarcimento ao erário devem incidir juros de mora e correção monetária, a partir da data dos fatos (Súmula 54/STJ), observados os índices do Manual de Cálculos da Justiça Federal, conforme jurisprudência da Turma (AC 0007945-69.2002.4.03.6104, Rel. Des. Fed. ANTONIO CEDENHO, e-DJF3 14/09/2017).

Considerados o grau de reprovabilidade das condutas praticadas, a extensão do dano causado, o proveito patrimonial obtido pela ré e a necessidade de mantê-la afastada do trato da coisa pública, afigura-se igualmente cabível a aplicação cumulativa da suspensão dos direitos políticos por oito anos. Tal sanção, que não é restrita a detentores ou candidatos a mandatos eletivos, priva o agente ímprobo do gozo da liberdade política, o que inclui, por exemplo, não apenas candidatar-se a cargos eletivos, mas também a qualquer cargo público, e também de usufruir do direito-dever de voto.

Ainda cumpre destacar que, mesmo já aposentada, o processo interno da CEF para apuração de responsabilidade administrativa da ré resultou na “aplicação da penalidade disciplinar de rescisão do contrato de trabalho por justa causa à empregada aposentada Suzana Teixeira do Amaral, por infringência aos subitens 11.2.1.2, 11.2.1.11 e 11.3.1.4 do regulamento de pessoal da Caixa – RH 053 e alínea ‘a’ do artigo 482 da CLT” (ID 86935050, f. 151/2), ao contrário do alegado pelo Ministério Público Federal. Ademais, quando da propositura da presente ação, a ré já se encontrava aposentada, porém, a inicial da ação nada mencionou a respeito da cassação de sua aposentadoria, restringindo-se, quanto ao ponto, ao requerimento de condenação “à perda da função pública que porventura esteja exercendo à época da sentença” (D 86935048, f. 48/9), assim fixando os limites do pedido, cuja alteração, somente em fase de alegações finais (ID 86935049, f. 30/2), após o saneamento e instrução do processo, é expressamente vedada pelo ordenamento jurídico (artigo 329, CPC).

Ainda que assim não fosse, é assente a jurisprudência da Corte Superior no sentido de ser incabível aplicar a pena de cassação de aposentadoria, não prevista no rol taxativo do artigo 12 da Lei 8.429/1992, em processo judicial em que se apura a prática de atos de improbidade administrativa, em virtude do princípio da legalidade estrita, que impede o uso de interpretação extensiva no âmbito do direito sancionador:

 

AgInt no AgInt no REsp 1.941.701, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe de 12/8/2022.: “ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA. DEMANDANTE CONDENADA JUDICIALMENTE À PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA, POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONVERSÃO DA PENALIDADE PARA A SANÇÃO DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA, EM SEDE DE EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSTERIOR ANULAÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA, PELO TRIBUNAL A QUO. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA DAS PENALIDADES PREVISTAS NO ART. 12 DA LEI 8.429/92. NULIDADE DO ATO DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA RECONHECIDA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. CONFORMIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO COM O ENTENDIMENTO DO STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/2015. II. Na origem, Carmen Lúcia Capela ajuizou Ação Ordinária, formulada em face do Estado de Santa Catarina, da Fundação do Meio Ambiente - FATMA e do Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina - IPREV, objetivando a declaração de nulidade do ato administrativo que, em cumprimento à determinação judicial proferida nos autos de ação de improbidade administrativa, determinou a cassação de sua aposentadoria (Ato 1053, de 23 de maio de 2012), tendo em vista a anulação do processo judicial que deu origem à referida penalidade. Requereu, ainda, a condenação dos réus ao pagamento dos valores que deixou de receber no período, bem como indenização a título de danos morais. No acórdão objeto do presente Recurso Especial, o Tribunal de origem manteve a sentença, declarando a nulidade do ato administrativo que, em cumprimento à determinação judicial, proferida em sede de ação de improbidade administrativa ? posteriormente anulada, pelo Tribunal a quo ?, determinou a cassação da aposentadoria da parte autora. III. Em recente julgado, a Primeira Seção do STJ concluiu que, "no âmbito da persecução cível por meio de processo judicial, e por força do princípio da legalidade estrita em matéria de direito sancionador, as sanções aplicáveis limitam-se àquelas previstas pelo legislador ordinário, não cabendo ao Judiciário estendê-las ou criar novas punições, sob pena, inclusive, de violação ao princípio da separação dos poderes", de modo que, por não haver previsão na Lei 8.429/92, "falece competência à autoridade judicial para impor a sanção de cassação de aposentadoria, pela prática de ato de improbidade administrativa" (STJ, EREsp 1.496.347/ES, Rel. p/ acórdão Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 28/04/2021). No mesmo sentido: STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.910.104/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 10/09/2021; AgInt no AREsp 1.391.197/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 14/09/2021; AgInt no REsp 1.682.238/SP, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/08/2021. IV. No caso, o Tribunal de origem, na mesma linha do entendimento desta Corte, consignou que o art. 12 da Lei 8.429/92, quando cuida das sanções aplicáveis aos agentes públicos que cometem atos de improbidade administrativa, não contempla a cassação de aposentadoria, mas tão só a perda da função pública e as normas, que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades, constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva. Ademais, asseverou que "a sentença condenatória proferida na Justiça Federal e que ensejou a fase executória provisória (fundamentando, assim, o ato administrativo do Governador) restou anulada em 11.6.14, em decisão proferida pela 3ª Turma". V. Nesse contexto, como o ato impugnado se deu em cumprimento à decisão judicial, proferida nos autos da Ação Civil Pública 2004.72.00.009707-0/SC e da Execução Provisória de Sentença 5004782-95.2010.404.7200/SC, correta a decisão ora agravada, que manteve o acórdão impugnado, por encontrar-se ele em conformidade com o entendimento desta Corte sobre o tema, notadamente considerando que o ato administrativo em discussão se deu antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, a qual fora, posteriormente, anulada pelo Tribunal a quo. VI. Agravo interno improvido.”

 

Verifica-se, pois, de todo tal contexto que os critérios legais previstos no artigo 12 da LIA foram devidamente considerados na dosimetria das penalidades aplicadas.

Os fatos restaram comprovados por outros meios probatórios robustos e independentes (testemunhas, filmagens e confronto de dados quanto ao momento das transações indevidas e operação no terminal e caixa eletrônico utilizados), reduzindo o impacto da preponderância da confissão da ré na apuração do ilícito e, por outro lado, os demais elementos da conduta vinculada à forma de prática da improbidade no caso concreto revelam a correta avaliação dos fatores e dos efeitos respectivos na definição do conteúdo e extensão das sanções impostas, não havendo que se cogitar de erro ou excesso na dosimetria das penalidades aplicadas, pois exercida com razoabilidade a competência legal para a definição das sanções em proporção e adequação à lesão perpetrada aos bens jurídicos tutelados.

Ante o exposto, nego provimento à apelação da ré, dou provimento à remessa oficial, tida por submetida, e parcial provimento à apelação do Ministério Público Federal, para reformar a sentença, nos termos supracitados.

É como voto.



E M E N T A

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF. DESVIO DE VALORES DEPOSITADOS EM CONTAS BANCÁRIAS EM PROVEITO PRÓPRIO. UTILIZAÇÃO DE SENHAS FUNCIONAIS. NULIDADE DA SENTENÇA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. APRECIAÇÃO PARCIAL DA LIDE (CITRA PETITA). CAUSA MADURA. ARTIGOS 9º, CAPUT, E 10, CAPUT E VI, DA LEI 8.429/1992. CONDUTA DOLOSA. TESE 1.199/STF. SANÇÕES CABÍVEIS.

1. É nula a sentença que deixa de esclarecer o motivo pelo qual desconsidera parte relevante do pedido inicial referente à condenação da ré por atos ímprobos previstos nos artigos 9º, XI, e 10, VI, da Lei 8.429/1992, que importam enriquecimento ilícito e lesão ao erário. No caso, a sentença enfrentou apenas parcialmente a lide (citra petita), discorrendo exclusivamente sobre a violação a princípios administrativos (artigo 11, LIA).

2. O exaurimento da instrução probatória na origem e a verificação de nulidades no sentenciamento centradas exclusivamente na desconformidade de valoração do conteúdo dos autos enseja a aplicação da teoria da causa madura, nos termos do artigo 1.013, § 3º, II a IV, do Código de Processo Civil.

3. A sentença foi proferida na vigência da Lei 8.429/1992 com redação antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, pelo que cabível a remessa oficial, que se tem por submetida, conforme entendimento jurisprudencial até então prevalecente (AgInt no AREsp n. 1.541.937/MG, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 17/5/2022, DJe de 20/5/2022). A propósito, destaca-se que toda a matéria devolvida pela via da remessa oficial, na espécie, foi também objeto da apelação interposta pelo Ministério Público Federal, pelo que inaplicável, no caso, a suspensão processual determinada nos RESP’s 1.553.124, 1.605.586, 1.502.635 e 1.601.804, afetos ao Tema 1.042/STJ.

4. Acerca da retroatividade ou não das alterações promovidas na Lei 8.429/1992 pela Lei 14.230/2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal fixou, no julgamento do ARE 843.989 (Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, d.j. 18/08/2022), com repercussão geral, as seguintes teses vinculantes: “1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei” (Tema 1.199).

5. No exame das condutas ímprobas imputadas na espécie, cumpre destacar que, conquanto ainda pendentes de publicação acórdão e inteiro teor do paradigma julgado pela Suprema Corte (ARE 843.989: Tema 1.199), dessume-se das teses fixadas, corroborada pela notícia veiculada em 18/08/2022 no portal eletrônico do Supremo Tribunal Federal, assim como do Informativo STF 1065/2022, de 02/09/2022, que as alterações promovidas pela nova Lei 14.230/2021 nos tipos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/1992, com supressão ou inclusão de elementos objetivos ou subjetivos, aplicam-se aos atos ímprobos praticados na vigência da redação anterior da lei, desde que sem condenação transitada em julgado, como no caso, “em virtude da revogação expressa do texto anterior” nestas hipóteses. Em convergência com tal entendimento, o Superior Tribunal de Justiça já havia, anteriormente, na recente fixação da Tese 1.108 (“A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, mas baseada em legislação local, por si só, não configura a improbidade administrativa prevista no art. 11 da Lei n. 8.429/1992, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo) necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública”), considerado, na fundamentação do julgamento dos paradigmas já em curso (RESP’s 1.926.832, 1.930.054 e 1.913.638, julgados em 11/05/2022), as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 nos tipos legais de improbidade administrativa.

6. Neste contexto e considerando os limites da devolução, verifica-se dos autos, conforme confirmado pelas testemunhas e confessado pela própria ré - seja durante o processo administrativo de apuração de responsabilidade disciplinar e civil, seja no âmbito penal em que apurados os mesmos fatos, ou na presente ação -, que, valendo-se das funções que desempenhava na Agência de Cachoeira Paulista e mediante uso de senha funcional própria e de seus colegas de trabalho, sem o conhecimento deles, transferiu, indevidamente e sem qualquer autorização, ainda que informal, valores de contas bancárias de cliente da Caixa Econômica Federal para contas de sua titularidade e de seu companheiro ou namorado, deles disponibilizando livremente, inclusive e sobretudo através de saques em espécie, e também para a conta de um terceiro conhecido, como forma de pagamento de dívida pessoal que havia contraído com aquele.

7. Restaram devidamente configurados, no presente caso, os atos de improbidade administrativa praticados pela ré, conforme previsto nos artigos 9º, caput, e 10, caput e VI, da Lei 8.4229/1992. Ainda que os valores desviados pertencessem a um cliente do banco e, não propriamente à instituição financeira – o que, apesar de configurar o tipo ímprobo previsto no caput do artigo 9º da LIA, afasta a subsunção da conduta ao tipo previsto no inciso XI (“XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei;”) -, a Caixa Econômica Federal teve de restituir o montante ao cliente, suportando, assim, os prejuízos provocados pela ré, configurando o dano ao erário a ser ressarcido. Não por outro motivo, inclusive, a própria ré assumiu, ainda na esfera administrativa, o compromisso, de próprio punho, de ressarcir o banco. Ademais, tendo auferido vantagem patrimonial indevida, ainda que de particular, mas mediante conduta dolosa praticada na qualidade de empregada da CEF e em razão das atividades exercidas na empresa pública, é incontroversa a configuração de improbidade administrativa.

8. Devida, pois, tal como fixada na sentença, a condenação da ré ao ressarcimento integral do dano, que não fica prejudicada em razão do parcelamento administrativo assumido, pois ainda pendente de integral adimplemento o acordo firmado. Ademais, os valores inicialmente já ressarcidos mediante débito em conta serão, na fase de execução ou liquidação do julgado, devidamente considerados e subtraídos do montante devido, pelo que não se cogita de bis in idem. Sobre os valores de ressarcimento ao erário devem incidir juros de mora e correção monetária, a partir da data dos fatos (Súmula 54/STJ), observados os índices do Manual de Cálculos da Justiça Federal, conforme jurisprudência da Turma (AC 0007945-69.2002.4.03.6104, Rel. Des. Fed. ANTONIO CEDENHO, e-DJF3 14/09/2017).

9. Considerados o grau de reprovabilidade das condutas praticadas, a extensão do dano causado, o proveito patrimonial obtido pela ré e a necessidade de mantê-la afastada do trato da coisa pública, afigura-se igualmente cabível a aplicação cumulativa da suspensão dos direitos políticos por oito anos. Tal sanção, que não é restrita a detentores ou candidatos a mandatos eletivos, priva o agente ímprobo do gozo da liberdade política, o que inclui, por exemplo, não apenas, não apenas candidatar-se a cargos eletivos, mas também a qualquer cargo público, e também de usufruir do direito-dever de voto.

10. Cumpre destacar que, mesmo já aposentada, o processo interno da CEF para apuração de responsabilidade administrativa da ré resultou na “aplicação da penalidade disciplinar de rescisão do contrato de trabalho por justa causa à empregada aposentada Suzana Teixeira do Amaral, por infringência aos subitens 11.2.1.2, 11.2.1.11 e 11.3.1.4 do regulamento de pessoal da Caixa – RH 053 e alínea ‘a’ do artigo 482 da CLT”, ao contrário do alegado pelo MPF. Ademais, quando da propositura da presente ação, a ré já se encontrava aposentada, porém, a inicial da ação nada mencionou a respeito da cassação de sua aposentadoria, restringindo-se, quanto ao ponto, ao requerimento de condenação “à perda da função pública que porventura esteja exercendo à época da sentença”, assim fixando os limites do pedido, cuja alteração, somente em fase de alegações finais, após o saneamento e instrução do processo, é expressamente vedada pelo ordenamento jurídico (artigo 329, CPC). Ainda que assim não fosse, é assente a jurisprudência da Corte Superior no sentido de ser incabível aplicar a pena de cassação de aposentadoria, não prevista no rol taxativo do art. 12 da Lei 8.429/1992, em processo judicial em que se apura a prática de atos de improbidade administrativa, em virtude do princípio da legalidade estrita, que impede o uso de interpretação extensiva no âmbito do direito sancionador.

11. Os critérios legais previstos no artigo 12 da LIA foram devidamente considerados na dosimetria das sanções aplicadas, sem qualquer ofensa à proporcionalidade ou razoabilidade.

12. Remessa oficial, tida por submetida, provida, apelação do Ministério Público Federal parcialmente provida, e apelação da ré desprovida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Terceira Turma, por unanimidade, negou provimento à apelação da ré, deu provimento à remessa oficial, tida por submetida, e deu parcial provimento à apelação do Ministério Público Federal para reformar a sentença, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.