Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Turma

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5022126-02.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA

AGRAVANTE: GOODLUCK OGUGUA IHEONU

AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Turma
 

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5022126-02.2021.4.03.0000

RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA

AGRAVANTE: GOODLUCK OGUGUA IHEONU

 

AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL

 

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R E L A T Ó R I O

Trata-se de agravo de instrumento, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal, interposto por Goodluck Ogugua Iheonu em face da r. decisão proferida pelo MM. Juízo “a quo”, que em ação de procedimento comum indeferiu a tutela de urgência que objetivava determinação para que a agravada se abstenha de promover quaisquer medidas tendentes à retirada compulsória do recorrente do território nacional ou que acarretem limitação à sua liberdade de locomoção por razões migratórias pelo Departamento de Polícia Federal, bem como que receba e processe o requerimento para a solicitação do reconhecimento da condição de pessoa refugiada ou para autorização de residência pelas formas cabíveis, sem aplicação da “deportação imediata” prevista na Portaria nº 655 de 2021 ou outra congênere, viabilizar pedido de refúgio por meio de procuração, ao fundamento de que o impetrante não acostou documento de identificação, tampouco comprovou sua condição de preso nas dependências da Polícia Federal.

Narra o agravante que é nacional da Nigéria e que diante das dificuldades econômicas e sociais ultrapassadas em seu país de origem, se dirigiu ao Brasil, onde ingressou em 20/04/2021 pela fronteira terrestre com a Guiana, mas se encontra sem documento brasileiro que lhe permita trabalhar e sobreviver dignamente.

Aduz que a recusa da agravada em proceder qualquer regularização migratória para imigrante na mesma situação do agravante é pública e notória, daí que não é razoável exigir que se dirigisse previamente à autoridade migratória, assim aplicável por analogia o entendimento firmado pelo STF no Tema nº 350 da Repercussão Geral: “A exigência de prévio requerimento administrativo não deve prevalecer quando o entendimento da Administração for notória e reiteradamente contrário à postulação do segurado”.

Afirma que desde março de 2020 houve uma sucessão de Portarias Interministeriais estabelecendo a restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída no país, em razão da pandemia de COVID-19. A mais recente, a Portaria nº 655, de 23/06/2021, manteve a restrição de entrada nas fronteiras brasileiras, o que seria excepcionado nos casos de estrangeiros cujo ingresso seja autorizado especificamente pelo Governo Brasileiro em vista do interesse público ou por questões humanitárias, de acordo com o próprio texto do ato infralegal.

Sustenta que tal medida tomada pelo Poder Executivo é manifestamente incompatível com a legislação e atenta contra normas fundantes da Constituição da República, do Direito Internacional dos Refugiados, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, do Estatuto dos Refugiados e da Lei de Migração, podendo acarretar a responsabilização internacional do Estado brasileiro por graves violações de direitos humanos.

Requer, dessa forma, que a ré receba e processe o requerimento do agravante para a solicitação de refúgio ou para autorização de residência pelas formas cabíveis, sem aplicação da “deportação imediata” prevista na Portaria nº 655 de 2021 ou outra congênere.

Sem contraminuta.

Indeferida a tutela recursal antecipada pelo Desembargador Federal André Nabarrete (ID 196262139).

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Turma
 

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5022126-02.2021.4.03.0000

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AGRAVANTE: GOODLUCK OGUGUA IHEONU

 

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V O T O

Na origem, trata-se de ação de rito ordinário, ajuizada em face da União Federal objetivando provimento jurisdicional a fim de determinar à ré que receba e processe o pedido de autorização de residência e/ou solicitação de refúgio, independentemente da Portaria Interministerial nº655, de 23/06/2021, que restringe a entrada pelas fronteiras brasileiras em razão da Pandemia de COVID-19, bem como impeça notificação de saída voluntária, ordem de deportação, imposição de multa por estada irregular ou quaisquer outras medidas coercitivas.

Pois bem. A Portaria Interministerial nº 655, de 23 de junho de 2021 (atual Portaria Interministerial nº 658, de 05 de outubro de 2021), dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

A referida Portaria estabelece que o seu descumprimento implica para o agente infrator à:

I - responsabilização civil, administrativa e penal;

II - repatriação ou deportação imediata; e

III - inabilitaçãode pedido de refúgio.

Já as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública atual decorrente da pandemia de Covid-19 estão dispostas na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe em seu art. 3º sobre as medidas que poderão ser adotadas:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

(...)

VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de:

a) entrada e saída do País; e

b) locomoção interestadual e intermunicipal;

(...)                                         

§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

§ 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo: (...)

III - o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020.

Com efeito, observa-se que a Portaria determina a deportação imediata e a inabilitação do pedido de refúgio durante o período de emergência de saúde pública, encontrando-se em desacordo com a política migratória brasileira, prevista na Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) em seus artigos 3º e 4º, verbis:

Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

III - não criminalização da migração;

IV - não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional;

V - promoção de entrada regular e de regularização documental;

VI - acolhida humanitária; (...)

XVII – proteção integral e atenção ao superior interesse da criança e do adolescente migrante;

XXII – repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas.

Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:

I - direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos;

II - direito à liberdade de circulação em território nacional;

III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes;

IV - medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos;

V - direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais a outro país, observada a legislação aplicável;

VI - direito de reunião para fins pacíficos;

VII - direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos;

VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;

IX - amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

X - direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;

XI - garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;

XII - isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma de regulamento;

XIII - direito de acesso à informação e garantia de confidencialidade quanto aos dados pessoais do migrante, nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 ;

XIV - direito a abertura de conta bancária;

XV - direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência; e

XVI - direito do imigrante de ser informado sobre as garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização migratória.

§ 1º Os direitos e as garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação migratória, observado o disposto no § 4º deste artigo, e não excluem outros decorrentes de tratado de que o Brasil seja parte.

Ora, da leitura dos referidos artigos extrai-se que a Portaria Interministerial nº 658, de 05 de outubro de 2021 extrapola o poder regulamentar, estando em total desacordo com a legislação aplicável ao prever sanções em seu artigo 8º como a responsabilização, a repatriação ou deportação imediatas e a inabilitação do pedido de refúgio.

Denota-se, ainda, que as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia do COVID-19, tratadas na Lei nº 13.979/2020, nada dispôs acerca da solicitação de refúgio, inexistindo hipótese de sanção a não nacionais que ingressem no país sem regularização migratória.

Por fim, impende consignar que a Lei nº 9.474/1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, dispõe que a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio. Confira-se:

Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.

Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.

§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento.

§ 2º Para efeito do disposto no parágrafo anterior, a solicitação de refúgio e a decisão sobre a mesma deverão ser comunicadas à Polícia Federal, que as transmitirá ao órgão onde tramitar o procedimento administrativo ou criminal.

Sobre o tema, esta e. Corte assim já decidiu, verbis:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA. PANDEMIA DE COVID-19. PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 652/21. OBSTÁCULOS À SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO. LIMITE REGULAMENTAR NÃO OBSERVADO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.

1. A questão posta nos autos diz respeito à permanência de estrangeiro em território nacional, em contrariedade com as normas previstas na Portaria Interministerial nº 652/2021.

2. A tutela provisória de urgência, em sua modalidade antecipada, objetiva adiantar a satisfação da medida pleiteada, garantindo a efetividade do direito material discutido. Para tanto, nos termos do art. 300 do atual Código de Processo Civil, exige-se, cumulativamente, a demonstração da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora).

3. A Portaria Interministerial nº 652/2021, publicada no contexto de agravamento da crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19, buscou impedir a entrada de estrangeiros possivelmente infectos com o vírus no Brasil, como forma de evitar a disseminação da doença em território nacional. O art. 8º, por sua vez, prevê a possibilidade de imposição de responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata ou inabilitação de pedido de refúgio àqueles que descumprirem suas disposições.

4. A inabilitação ao pedido de refúgio prevista no ato normativo em tela viola o princípio da proibição de rechaço a refugiado, contemplado na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 50.215/61.

5. Nos termos da Lei 9.474/97, a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio. Verifica-se, portanto, que a Portaria Interministerial nº 652/2021 extrapolou os limites que lhe cabiam, enquanto ato regulamentar, notadamente porque no âmbito da Lei 13.979/20, editada especialmente para disciplinar sobre medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19, nada foi disposto quanto à solicitação de refúgio.

6. Agravo de instrumento desprovido.

(TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5010836-87.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal ANTONIO CARLOS CEDENHO, julgado em 11/11/2021, Intimação via sistema DATA: 16/11/2021)

Ante o exposto, dou provimento ao agravo de instrumento para que a agravada receba e processe o requerimento do agravante para a solicitação do reconhecimento da condição de pessoa refugiada ou para autorização de residência pelas formas cabíveis, nos termos da fundamentação.

É como voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

AGRAVO DE INTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. REGULARIZAÇÃO MIGRATÓRIA. SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO. PANDEMIA DE COVID-19. PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 652/21. LIMITE REGULAMENTAR NÃO OBSERVADO.

1. A Portaria Interministerial nº 655, de 23 de junho de 2021 (atual Portaria Interministerial nº 658, de 05 de outubro de 2021), dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

2. Observa-se que a Portaria determina a deportação imediata e a inabilitação do pedido de refúgio durante o período de emergência de saúde pública, encontrando-se em desacordo com a política migratória brasileira, prevista na Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) em seus artigos 3º e 4º.

3. A Portaria Interministerial nº 658, de 05 de outubro de 2021 extrapola o poder regulamentar, estando em total desacordo com a legislação aplicável ao prever sanções em seu artigo 8º como a responsabilização, a repatriação ou deportação imediatas e a inabilitação do pedido de refúgio.

4. Denota-se, ainda, que as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia do COVID-19, tratadas na Lei nº 13.979/2020, nada dispôs acerca da solicitação de refúgio, inexistindo hipótese de sanção a não nacionais que ingressem no país sem regularização migratória.

5. Impende consignar que a Lei nº 9.474/1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, dispõe que a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio.

6. Agravo de instrumento provido.

 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quarta Turma, à unanimidade, decidiu dar provimento ao agravo de instrumento para que a agravada receba e processe o requerimento do agravante para a solicitação do reconhecimento da condição de pessoa refugiada ou para autorização de residência pelas formas cabíveis, nos termos do voto do Des. Fed. MARCELO SARAIVA (Relator), com quem votaram o Des. Fed. ANDRÉ NABARRETE e a Des. Fed. MARLI FERREIRA, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.