Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5000912-13.2021.4.03.6124

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: MATHEUS HENRIQUE DOS SANTOS PANISSO, CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIACAO E SELECAO E DE PROMOCAO DE EVENTOS - CEBRASPE

Advogados do(a) APELADO: DANIEL BARBOSA SANTOS - DF13147-A, MARIA LUIZA SALLES BORGES GOMES - DF13255-A
Advogado do(a) APELADO: ALINE GALERA GRECO PANISSO - SP448469-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5000912-13.2021.4.03.6124

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: MATHEUS HENRIQUE DOS SANTOS PANISSO, CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIACAO E SELECAO E DE PROMOCAO DE EVENTOS - CEBRASPE

Advogado do(a) APELADO: ALINE GALERA GRECO PANISSO - SP448469-A
Advogados do(a) APELADO: MARIA LUIZA SALLES BORGES GOMES - DF13255-A, DANIEL BARBOSA SANTOS - DF13147-A

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R E L A T Ó R I O

 

Cuida-se de apelação e remessa oficial de sentença que julgou procedente pedido para que “não sejam computados na Lista de Cotas Raciais os candidatos que obtiveram pontuação igual ou superior a Nota de Corte da ampla concorrência" de concurso público para Policial Rodoviário Federal, ampliando-se, assim, a quantidade de candidatos autodeclarados negro à fase de correção das provas discursivas, bem como condenou os réus ao pagamento das verbas decorrentes da sucumbência (Fls. 1275/1285-PJe – ID Num. 256765043 - Pág. 1).

 

Em 17 de junho de 2021, MATHEUS HENRIQUE DOS SANTOS PANISSO ajuizou a presente demanda em face da UNIÃO e do CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIACAO E SELECAO E DE PROMOCAO DE EVENTOS – CEBRASPE sustentando que inscreveu-se no concurso público para o cargo de Policial Rodoviário Federal, concorrendo à vaga de candidato COTISTA, obtendo 68 pontos, não tendo a sua prova discursiva sido corrigida e, consequentemente, teve cerceado seu direito de participação nas etapas subsequentes do certame, o que contrariou os ditames da Lei 12.990/2014, cujo objetivo é a ampliação do acesso dos candidatos autodeclarados negros (cotistas) aos cargos e empregos públicos. Aduziu que, dos 1407 candidatos cotistas considerados aptos a terem as suas provas discursivas corrigidas, 845 eram candidatos que estavam relacionados em ambas as listas, o que contraria a referida lei, pois os candidatos cotistas integrantes da lista de ampla concorrência ocuparam, indevidamente, os lugares dos candidatos autodeclarados negros que não foram tão bem classificados, mas que teriam condições de prosseguir nas demais fases do certame. Assim, tais candidatos cotistas deveriam ser excluídos da lista de candidatos autodeclarados negros (art. 3º, § 1º, da Lei 12.990/2014), reduzindo-se, assim, a nota de corte (73 pontos) e, consequentemente, proporcionando o acesso de mais candidatos cotistas, como o autor, às demais fases do concurso, uma vez que a reserva de vagas aos candidatos autodeclarados negros deve ser assegurada em todas as fases do certame. Requereu a concessão de tutela de urgência para a correção de sua prova discursiva e participação no teste de aptidão física (TAF), que seria realizado nos dias 19 e 20 de junho seguintes. Requereu, por fim, fosse determinado que “não sejam computados na Lista de Cotas Raciais os candidatos que obtiveram pontuação igual ou superior a Nota de Corte da ampla concorrência, a fim de que se cumpra o disposto na Lei 12.990/14, na ADCT41/DF e no item 6.10 do Edital e para que o requerente usufrua do seu direito de correção da prova DISCURSIVA” (Fls. 6/25-PJe – ID Num. 256764764 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. Fls. 25/651-PJe (ID Num. 256764765 - Pág. 1).

 

Decisão declarando suspeição (fls. 657-PJe – ID Num. 256764779 - Pág. 1).

 

Foi proferida decisão deferindo a tutela de urgência para:

 

“PELO EXPOSTO, concedo parcialmente a tutela de urgência e imponho aos réus a obrigação de submeter o autor à prova de aptidão física a se realizar no próximo final de semana, bem como determino que a Banca Examinadora promova a correção da prova escrita do autor no prazo de 5 (cinco) dias úteis contados da intimação desta decisão, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais).”

(fls. 666/668-PJe – Num. 256764985 - Pág. 1)

 

Foi noticiado o cumprimento da decisão judicial, com documentos (fls. 692/723-PJe – ID Num. 256764996 - Pág. 1).

 

O CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIAÇÃO E SELEÇÃO E DE PROMOÇÃO DE EVENTOS (CEBRASPE) ofertou contestação sustentando, preliminarmente, a ausência de interesse processual e a necessidade de chamamento ao feito dos demais candidatos como litisconsortes necessários. No mérito, sustentou que o concurso em questão é realizado em duas etapas assim distribuídas: “1.3.1 A primeira etapa compreenderá as seguintes fases: (a) prova objetiva e prova discursiva, de caráter eliminatório e classificatório, de responsabilidade do Cebraspe; (b) exame de aptidão física, de caráter eliminatório, de responsabilidade do Cebraspe; (c) avaliação psicológica, de caráter eliminatório, de responsabilidade do Cebraspe; (d) apresentação de documentos, de caráter eliminatório, de responsabilidade do Cebraspe e da PRF; (e) avaliação de saúde, de caráter eliminatório, de responsabilidade do Cebraspe; (f) avaliação de títulos, de caráter classificatório, de responsabilidade do Cebraspe; 1.3.2 A segunda etapa do concurso será o Curso de Formação Policial (CFP), de caráter eliminatório e classificatório, de responsabilidade da PRF, com apoio do Cebraspe, a ser realizado na Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal (UniPRF), localizada na cidade de Florianópolis/SC, ou em outros locais indicados pela PRF por meio de edital, e contemplará a realização de provas teóricas e práticas, podendo contemplar, ainda, as seguintes avaliações: (a) testes de aptidão física, em complementação ao exame de aptidão física realizado na primeira etapa; (b) avaliação psicológica continuada, em complementação à avaliação psicológica realizada na primeira etapa; (c) avaliação de saúde continuada, em complementação à avaliação de saúde realizada na primeira etapa.” Aduziu que, para atender à proporcionalidade determinada na ADC 41 (“os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos” e “a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público - não apenas no edital de abertura”), somente os candidatos autodeclarados negros aprovados na prova objetiva dentro do número de vagas oferecidas no edital de abertura e, provisoriamente, aprovados na prova discursiva, figurariam nas duas listas (ampla concorrência e autodeclarados negros), mas, contudo, foram computados somente na lista dos candidatos aprovados na “ampla concorrência”, vale dizer, não foram considerados na lista de candidatos autodeclarados negros aprovados, mas nela continuaram concorrendo (para atender ao disposto no art. 3º da Lei 12.990/2014 – “Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso” – e no seu § 1º - “Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas”). No caso, como o autor não obteve nota e classificação suficiente para ter sua prova discursiva corrigida em nenhuma das duas listas (obteve 68,00 pontos na prova objetiva, classificando-se na 8.356ª posição na lista da ampla concorrência, e na 1.408ª posição na lista de autodeclarados negros), foi eliminado do certame (item 10.6.2 do edital), pois, das 1.500 vagas oferecidas, 1.125 eram destinadas à ampla concorrência; 300 aos candidatos autodeclarados negros e 75 aos candidatos portadores de deficiência (item 4 do Edital), sendo corrigidas, em observância à “cláusula de barreira”, apenas as provas dos candidatos classificados até a 4.500ª posição (ampla concorrência), a 1.200ª posição (autodeclarados negros), a 300ª posição (portadores de deficiência), obedecidos os empates nas últimas colocações. Aduziu que a pretensão do autor de que sejam retirados da lista de candidatos autodeclarados negros aprovados para terem suas provas discursivas corrigidas (1.200) os 845 candidatos constantes da lista de candidatos aprovados para terem suas provas discursivas corrigidas pela lista da ampla concorrência (4.500) caracteriza manifesta violação a duas regras editalícias: (1ª) os candidatos autodeclarados negros aprovados dentro da quantidade de vagas estabelecidas no edital concorrerão nas duas listas do certame; (2ª) cláusula de barreira estabelecida no certame (somente os primeiros 1.200 candidatos autodeclarados negros classificados na prova objetiva terão suas provas discursivas corrigidas). No caso, para cumprir as regras do edital, e considerando a necessidade de correção, em caráter suplementar, das provas discursivas de 183 candidatos autodeclarados negros adicionais que foram incluídos em razão da não consideração dos 183 que foram aprovados dentro do número de vagas destinadas à ampla concorrência (1.125), foram corrigidas, no total, 1.407 provas discursivas de candidatos que concorreram às vagas reservadas aos candidatos autodeclarados negros. Resumindo, 183 candidatos que ascenderam na classificação dos candidatos cotistas em razão da não consideração daqueles (183) que foram aprovados na quantidade de vagas destinadas aos candidatos da ampla concorrência, e 1.224 candidatos, nas vagas reservadas aos candidatos autodeclarados negros, já considerados os empates na última colocação. Requereu, por fim, o acolhimento das preliminares ou, no mérito, fosse reconhecida a improcedência do pedido, condenando-se o autor ao pagamento dos encargos decorrentes da sucumbência (Fls. 826/859-PJe – ID Num. 256765024 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. 860/1066-PJe (ID Num. 256765025 - Pág. 1).

 

A União também apresentou contestação, fazendo referência aos fundamentos articulados pelo CEBRASPE, e sustentando, preliminarmente, a ausência de interesse processual e a necessidade de chamamento ao feito dos demais candidatos como litisconsortes necessários. No mérito, aduziu que somente teriam as provas discursivas corrigidas os candidatos autodeclarados negros classificados nas primeiras 1.200 colocações, considerados os empates nas últimas colocações, acrescidos de 183 candidatos que ascenderam na lista dos candidatos autodeclarados negros em razão da não consideração daqueles 183 que se classificaram na quantidade de vagas disponíveis para o cargo na listagem da ampla concorrência, procedimento que, visivelmente, se destinou a seguir a orientação firmada na ADC 41 (“os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos” e “a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público - não apenas no edital de abertura”), pelo STF. Sustentou que tal limitação (cláusula de barreira) é legítima escolha administrativa decorrente do seu poder discricionário, considerada constitucional pelo STF no julgamento do RE(RG) 635.739. Requereu, por fim, o acolhimento das preliminares ou, no mérito, o reconhecimento da improcedência do pedido (Fls. 1068/1091-PJe – ID Num. 256765031 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. 1093/1129-PJe (ID Num. 256765032 - Pág. 1).

 

Réplica às fls. 1136/1184-PJe (ID Num. 256765038 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. 1185/1274-PJe (ID Num. 256765039 - Pág. 1)

 

Tratando-se matéria exclusivamente de direito, sobreveio sentença afastando as preliminares e julgando procedente o pedido, com base nos seguintes fundamentos:

 

“Percebe-se, assim, que as regras do Edital não podem conviver harmoniosamente de maneira lícita, dado que a interpretação literal de cada regra estabelece não só uma cota, mas também um teto para negros na segunda fase. Levadas às últimas consequências as indicações da contestação do CEBRASPE, o número de negros que teriam a prova discursiva corrigida variaria entre 0 e 2.325 (1.125 vagas do item 6.10 e 4 acrescidas das 1.200 provas a serem corrigidas do item 10.6), enquanto que o de não cotistas variaria entre 0 e 4.800 (item 10.6 e subitem 10.6.1); num cenário realista, em que há tantos cotistas quanto não cotistas suficientes para preenchimento das classificações indicadas como necessárias para correção da prova, o número de negros com prova discursiva corrigida variaria entre 1.200 (cotas obrigatórias de correção) e 2.325 (cotas obrigatórias de correção acrescidas de “vagas”), enquanto que o número de “não negros” variaria entre 3.375 e 4.500 – todos os cálculos realizados desconsiderando empates na última classificação. Muito embora ao cabo seja possível que ingressem 1.425 negros nas 1.425 vagas não reservadas para deficientes – enquanto que no máximo 1.125 não cotistas poderiam ingressar nas mesmas vagas, desde que houvessem ao menos 300 candidatos negros que fizessem as notas mínimas para não eliminação em na primeira fase - seria necessário que houvessem 825 negros nas primeiras colocações do concurso já na primeira fase para que ao menos 1.125 ingressassem. A realidade com os não cotistas é bem diferente, pois qualquer um dos candidatos situados entre a posição 1.126 e 4.500 na primeira fase poderiam ser aprovados, caso obtivessem melhores notas nas fases posteriores – pode até ocorrer o improvável cenário de que todos os 1.125 aprovados provenham desta faixa de pontuação. Se a carência de lógica da regra não ficou clara o suficiente, basta perceber que é impossível que o inscrito como cotista que esteja colocado na posição 2.326, com 2.325 cotistas à sua frente, possa ter sua prova discursiva corrigida, pois ele não estaria nem entre os que poderiam concorrer na ampla concorrência – que só admite hipoteticamente 1.125 candidatos cotistas (vagas) – e nem como cotista – que admite apenas 1.200 candidatos; ele teria que ceder assim o seu espaço de correção ao primeiro branco posterior a sua colocação.

Visível, assim, que a Administração Pública ao tentar implementar a lei 12.990/14, acabou estabelecendo uma regra frontalmente contraditória ao próprio sentido da lei, pois na realidade os negros estão, em parte, concorrendo apenas com eles mesmos. Tendo em vista que o cotista não vai para a segunda fase caso esteja abaixo da classificação 1.126 na lista geral, respeitados os empates em último lugar, há uma reserva das vagas na segunda fase entre as classificações 1.126 e 4.500 para não cotistas. E essa reserva é MAIOR do que a reserva de vagas para negros (1.200) na segunda fase. Daí advém a conclusão lógica que na realidade só existem 1.125 vagas na segunda fase sendo disputadas na modalidade “ampla concorrência”, as demais estão divididas entre dois grupos de candidatos, sendo a cota para a segunda fase superior para os “não-negros” do que para os negros.

A questão é mais de teoria dos conjuntos do que de Direito propriamente dita. Dados dois conjuntos A e B, a diferença dos conjuntos A e B é a soma de todos os elementos que pertencem ao conjunto A ao mesmo tempo em que que não pertencem ao conjunto B. No caso, existem dois conjuntos: negros com nota suficiente para as vagas da ampla concorrência e número de pessoas que terão a prova corrigida como ampla maioria. Se o número de vagas é considerado como inferior ao número de provas a serem corrigidas, há uma diferença entre os dois conjuntos, que corresponde a postos na segunda fase que são inacessíveis aos negros.

Seria completamente aceitável que a lei 12.990/14 fosse aplicada apenas para os aprovados no provimento dos cargos – dado que é isso que a lei diz - mas a Administração fez a escolha de aplicá-la em “cada fase”. Agora não é aceitável que ocorra a aplicação “parcial” em cada fase, em que a barreira dos negros leva em consideração ou a barreira própria das cotas ou o corte de vagas, enquanto que a dos não cotistas leva em consideração a barreira da ampla concorrência. Isto não é permitir que os negros concorram concomitantemente nas duas modalidades; como a matemática demonstra, o critério utilizado, que se vale de um número que seria relevante apenas no final (vagas), para barrar a continuidade do processo seletivo, acaba por criar ampla vantagem para os não negros. E não se trata de uma constatação ideológica, mas estocástica. Ou se aplica a lei 12.990/14 ao final, ou se aplica a mesma em “cada fase” de acordo com a lógica própria de cada fase – inclusive suas orgânicas cláusulas de barreira. Admitir o contrário é estabelecer uma situação de desigualdade quanto às chances de cada grupo que acaba compensando, na prática, a própria cota a ser provida, frustrando assim seu objetivo.

Apenas a complementar o raciocínio, observo que a interpretação promovida pelo douto colega magistrado no ID 57884113 não é em nada incompatível com o aqui disposto. Primeiro porque interpretar a lei como aqui está sendo feito não geraria qualquer incompatibilidade lógica com a regra de classificação final, pois o candidato, ao final e antes do provimento de vagas, deve estar colocado nas duas listas, podendo escolher sua lotação de acordo com o privilégio da posição na que lhe for mais favorável. É por isto que o artigo 3º, § 1º da lei 12.990/14 esclarece que o candidato aprovado no número de vagas não é computado para efeito de “preenchimento das vagas” – ou seja, cálculo de representação mínima instituída pela cota, que não se confunde com a classificação em si. Aliás, se o candidato negro aprovado dentro do número de vagas gerais for excluído da lista de aprovados negros, haverá um novo problema – basta imaginar que o primeiro candidato negro seja o sétimo classificado na classificação geral; em qual posição ele deverá escolher? Sétima (já que excluído da “lista de candidatos negros”, conforme item 6.5 do edital, seguindo a ordem da classificação geral) ou Quinta (conforme artigo 4º da lei 12.990/14)? Este simples exemplo demonstra como essa “exclusão” da lista do item 6.5 do edital não pode ocorrer senão para garantir o mínimo de vagas para negros, pois é contraditória com o artigo 4º da mesma lei, e que não tem qualquer relação com a questão debatida nestes autos – que é a ilogicidade em si do item 6.10 do edital, que fala especificamente das “fases” do concurso, e não do provimento das vagas.

Aliás, o que me parece correto é que haja a "exclusão" dos candidatos negros da lista geral que tenham pontuação suficiente para o limite de correção (cláusula de barreira) em cada fase, e posteriormente, ao final, a "inclusão" dos candidatos negros aprovados na classificação geral nas duas listas, para fins de escolha de lotação e demais benefícios inerentes a melhor classificação. Só assim seria possível que, ao mesmo tempo, o maior número possível de negros pudesse "continuar" o processo seletivo, e que aqueles bem classificados pudessem usufruir da benesse de ambas as colocações, da maneira que melhor entendesse.

Não há que se falar em burla aos inúmeros princípios constitucionais invocados, pois o edital é contraditório em si mesmo e faz interpretação da lei completamente contrária a sua finalidade, sendo certo que se trata de caso em que a intervenção judicial é necessária exatamente para preservar a vinculação ao instrumento editalício (ainda que na interpretação mais favorável ao concorrente, que não pode ser prejudicado pela obscuridade da Administração Pública, pois o item 10.6 acabou sendo cumprido apenas “acidentalmente”), a publicidade, eficiência, isonomia e moralidade do certame. No mais, é consentâneo com o artigo 3º, III e IV da CRFB que seja dada a maior eficácia possível a política afirmativa, sendo certo que uma regra relacionada a “cota” não pode indiretamente criar um “teto” de aprovação, como demonstrado de maneira euclidiana. A Administração Pública poderia ou não estabelecer uma cota "por fases", já que esta não é imperativa da lei, mas não pode estabelecer uma cota por fases de uma forma flagrantemente discrepante da proposta legislativa, e que ao cabo pode acabar compensando as próprias cotas "finais" previstas em lei e na realidade criando um "teto" para a população negra, que era a beneficiária da política de cotas.

Diante destas considerações, considero que a única salvação do processo seletivo – que não pode ser anulado nesta ação, onde isto não foi pleiteado, pelo princípio da congruência – seria que o item 6.10 do edital fosse interpretado como se as vagas ali explicitadas se referissem ao número mínimo de provas a serem corrigidas indicados no item 10.6.1, ou seja, que os negros que tivessem sido classificados até a posição 4.500 do edital sejam considerados como excluídos dos 1.200 cotistas que devem ter a prova subjetiva corrigida. Isto, é claro, não impede que a Administração Pública, utilizando seu dever de autotutela, anule o processo seletivo, pois já se percebe que o item 6.5 muito provavelmente gerará nova onda de judicialização.

Isto permitiria a correção da prova do autor – que fez 68 pontos – vez que a nota de corte para a modalidade de cotista foi de 69 pontos e da modalidade ampla concorrência foi 73 (conforme ID 57884111). É possível chegar a esta conclusão pois, como se percebe do ID 57884110, item 1.1.2, houve a correção de 1.408 provas de candidatos negros, mas dentre eles pelo menos 845 com notas iguais ou superiores a 73.00, que deveriam, portanto, ter sido excluídos do cálculo da nota de corte dos cotistas.”

...

“Diante de todo o exposto, confirmo a tutela, e julgo o feito PROCEDENTE, na forma do artigo 487, I do CPC, para determinar às rés que realizem a incluam os candidatos negros aprovados na prova objetiva com nota igual ou superior a 73.00 como concorrentes na ampla concorrência para fins de contagem da nota de corte dos candidatos cotistas, e, via de consequência, dê seguimento ao processo seletivo em relação ao autor, corrigindo sua prova discursiva e, ao final, o classificando de acordo com a mencionada lógica na ordem classificatória do concurso, caso não seja eliminado em fase posterior.

Condeno os réus, cada um, em R$1.500,00 de honorários advocatícios, diante do disposto no artigo 83, §8º do CPC, diante da relativa complexidade da causa. Condeno os réus ainda na devolução das custas adiantadas pela parte autora.”

(Fls. 1275/1285-PJe – ID Num. 256765043 - Pág. 1)

 

Apela somente a União, renovando, no mérito, os fundamentos articulados em sua contestação (Fls. 1297/1311-PJe – ID Num. 256765045 - Pág. 1).

 

Com contrarrazões (Fls. 1315/1334-PJe – ID Num. 256765049 - Pág. 1) e os documentos de fls. 1335/1555-PJe (ID Num. 256765050), os autos vieram a esta Corte.

 

É o relatório.

 

 


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V O T O

 

A Lei 12.990, de 9 de junho de 2014, estabeleceu que ficam reservadas aos candidatos autodeclarados negros vinte por cento das vagas oferecidas nos concursos públicos para a área federal, verbis:

 

“Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito d a administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei.

§ 1º A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três).

§ 2º Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos).

§ 3º A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.

Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Art. 3º Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

§ 1º Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas.

§ 2º Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado.

§ 3º Na hipótese de não haver número de candidatos negros aprovados suficiente para ocupar as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.

Art. 4º A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.

Art. 5º O órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica de que trata o § 1º do art. 49 da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, será responsável pelo acompanhamento e avaliação anual do disposto nesta Lei, nos moldes previstos no art. 59 da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e terá vigência pelo prazo de 10 (dez) anos.

Parágrafo único. Esta Lei não se aplicará aos concursos cujos editais já tiverem sido publicados antes de sua entrada em vigor.”

 

O edital do certame em exame seguiu os mesmos parâmetros, destinando vinte por cento das vagas em disputa aos candidatos autodeclarados negros, observando-se, nas fases intermediárias, essa proporção e, na fase final, os critérios de nomeação alternada, observada a proporcionalidade, verbis:

 

6 DAS VAGAS DESTINADAS AOS CANDIDATOS NEGROS

6.1 Das vagas destinadas ao cargo e das que vierem a ser criadas/autorizadas durante o prazo de validade do concurso, 20% serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, e da Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018.

6.1.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 6.1 deste edital resulte em número fracionado, este será elevado até o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5, ou diminuído para o número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5, nos termos do § 2º do artigo 1º da Lei nº 12.990/2014.

6.1.2 Para concorrer às vagas reservadas, o candidato deverá, no ato da inscrição, optar por concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros e preencher a autodeclaração de que é negro, conforme quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

6.1.3 A autodeclaração do candidato goza da presunção relativa de veracidade e terá validade somente para este concurso público.

6.1.3.1 A autodeclaração do candidato será confirmada mediante procedimento de heteroidentificação.

6.1.4 Até o final do período de inscrição no concurso público, será facultado ao candidato desistir de concorrer pelo sistema de reserva de vagas para candidatos negros.

6.1.5 As informações prestadas no momento de inscrição são de inteira responsabilidade do candidato, na forma do art. 2º da Portaria Normativa nº 4, de 2018 (Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão).

...

6.3 Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

6.4 Os candidatos negros que se declararem com deficiência concorrerão concomitantemente às vagas reservadas a pessoas com deficiência e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

6.5 Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido à ampla concorrência não preencherão as vagas reservadas a candidatos negros, sendo, dessa forma, automaticamente excluídos da lista de aprovados na lista de candidatos negros.

6.6 Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado.

6.7 Na hipótese de não haver candidatos negros aprovados em número suficiente para que sejam ocupadas as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação geral.

6.8 A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e de proporcionalidade, que consideram a relação entre o número total de vagas e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.

...

6.10 Em cada uma das fases do concurso, não serão computados, para efeito de preenchimento do percentual de vagas reservadas a candidatos negros, nos termos da Lei nº 12.990/2014, os candidatos autodeclarados negros classificados ou aprovados dentro do número de vagas oferecido a ampla concorrência, sendo que esses candidatos constarão tanto da lista dos aprovados dentro do número de vagas da ampla concorrência como também da lista dos aprovados para as vagas reservadas aos candidatos negros, em todas as fases do concurso.

 

Comparando-se as cláusulas do edital, verifica-se que a Administração observou a exigência legal, tanto no que pertine à reserva de vagas inicial (300), tanto no que se refere à evolução nas fases intermediárias do certame, permitindo-se o acesso de quatro vezes a quantidade de candidatos concorrentes nessa modalidade (1.200) às fases seguintes do certame (fls. 25/64-PJe – ID Num. 256764765 - Pág. 1):

 

Cláusulas do edital Cl.4 Cl. 4 Cl. 10.6 Cl. 10.6

Descrição

Vagas

Percentuais

Seleção

Percentuais

Vagas para ampla concorrência

1.125 75% 4.500 75%

Vagas reservadas para candidatos autodeclarados

300 20% 1.200 20%

Vagas reservadas para candidatos com deficiência

75 5% 300 5%

Total

1.500 100% 6.000 100%

 

Cláusulas do edital

Cl. 4

Cl. 4

Cl. 10.6

Cl. 10.6

Descrição

Vagas

Percentuais

Seleção

Percentuais

Vagas para ampla concorrência

1.125

75%

4.500

75%

Vagas reservadas para candidatos autodeclarados

300

20%

1.200

20%

Vagas reservadas para candidatos com deficiência

75

5%

300

5%

Total

1.500

100%

6.000

100%

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não bastasse isso, fez mais, pois não considerou, na relação dos candidatos autodeclarados negros (cotistas) que teriam as suas provas discursivas corrigidas, os candidatos autodeclarados negros que lograram aprovação nas provas objetivas dentro da quantidade de vagas reservadas à ampla concorrência (183 de 1.125), sem, contudo, excluí-los da lista dos candidatos autodeclarados negros, incrementando, assim, essa listagem com mais 183 candidatos. É dizer, os candidatos autodeclarados negros continuariam a concorrer nas duas listas, tal como determina a o art. 3º da Lei 12.990/2014.

 

Com isso, considerados os empates nas últimas colocações, aumentou-se a lista de candidatos autodeclarados aptos a terem suas provas discursivas corrigidas para 1407 concorrentes, possibilitando-lhes o prosseguimento no certame e, quiçá, evolução na classificação, pois, ainda que nem todas as etapas seguintes fossem classificatórias, algumas o eram (prova discursiva, avaliação de títulos e curso de formação – v. itens 8 e 20 do edital).

 

Comprova-o a própria listagem de candidatos habilitados no curso de formação – trazida pelo autor – que mostra a aprovação de cerca de 689 candidatos autodeclarados (fls. 1444-PJe – ID Num. 256765050 - Pág. 110), apesar de serem trezentas (300) as vagas a eles reservadas pelo edital.

 

Em rigor, a exclusão do candidato autodeclarado negro aprovado na lista de ampla concorrência da lista de candidatos autodeclarados só poderia se dar no momento da convocação do candidato para assumir o cargo, pois é ali que será verificada a situação do seu ingresso, vale dizer, se o ingresso se dará na condição de aprovado na lista dos candidatos da ampla concorrência ou na lista dos candidatos autodeclarados, pois as nomeações devem ocorrer de forma intercalada, observando-se a proporcionalidade, uma vez que o candidato autodeclarado negro só deixa de integrar a lista de cotistas se vier a ser convocado na lista da ampla concorrência, conforme esclarece a Lei, verbis:

 

Art. 4º. A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros." (Lei nº 12.990/14)

 

Nesse sentido, destaco o seguinte trecho da manifestação do Min. Roberto Barroso na ADC 41:

 

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR)

(...)

Finalmente, há última consideração que eu gostaria de fazer, porque, no mundo real, já se verificaram problemas. Entendo que a Lei é claríssima no artigo 4º. Aqui chamo atenção dos eminentes Colegas, porque esse talvez seja o único ponto com algum grau de controvérsia, embora a textualidade da Lei pareça inequívoca. Diz o artigo 4º - e isso foi destacado da tribuna, ao final da sustentação do Doutor Adami: "A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros."

Qual é a leitura, a meu ver, própria desse dispositivo? Houve casos de que tive conhecimento - veja isso, Presidente -, em que, realizado o concurso público, fazem-se duas listas: a dos que passaram na disputa geral e a dos que passaram por cotas. E, então, faz-se a lista dos que passaram no listão geral, e depois, ao final da lista, entram os que passaram por cotas, ou seja, entram sempre no final da fila. Esse me parece um critério que desrespeita o que diz a Lei. Para exemplificar, o que a Lei diz é: em um concurso com vinte vagas e, logo, com quatro vagas reservadas para negros, não é possível que os quatro negros aprovados entrem atrás dos outros dezesseis, porque isso significaria que os negros sempre seriam prejudicados na lista de antiguidade. A meu ver, o modo correto de se interpretar esta Lei é: são vinte vagas, quatro negros, primeiro colocado geral, segundo colocado geral, terceiro colocado geral, quarto colocado geral, o quinto colocado é o primeiro colocado dos negros.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (PRESIDENTE) - É o terceiro ou o quarto.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Será que eu errei aqui, Presidente? Se há cinco vagas, e entram quatro, quer dizer, ele entra em quinto, depois entra em décimo, entra em décimo quinto e entra em vigésimo. A ideia de alternância e proporcionalidade da Lei significa isso, e não os colocar no final da fila sempre, como eu tenho a informação de que já aconteceu em mais de uma instituição. (...)”

(ADC 41, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180  DIVULG 16-08-2017  PUBLIC 17-08-2017)

(fls. 25-26/186 do inteiro teor do acórdão)

 

No mesmo sentido:

 

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. INSURGÊNCIA CONTRA REGRAS EDITÁLICIAS. VAGAS DESTINADAS ÀS PESSOAS NEGRAS E PARDAS. LEI 12.990/2014. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DO ÓRGÃO PROMOTOR DO CERTAME. EXCLUSÃO DE CANDIDATO DAS VAGAS RESERVADAS. IMPOSSIBILIDADE. ART. 3º DA LEI 12.990/04. SENTENÇA MANTIDA.

1. O órgão promotor do certame é o responsável por determinar as diretrizes constantes no edital regrador do concurso público, sendo, por isso, parte legítima para integrar o polo passivo do mandado de segurança quando a insurgência for contra suposta ilegalidade constante no edital, sendo a banca examinadora mera executora das determinações emanadas da referida autoridade.

2. O art. 3º da Lei 12.990/2014 dispõe que os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

3. A inteligência desse dispositivo deve ser compreendida com o sentido de que a nomeação do candidato negro ou pardo aprovado no certame deve ter realizada com base na melhor classificação por ele obtida para esse fim.

4. Ausência de razoabilidade na possibilidade de candidato aprovado com melhor classificação nas vagas reservadas ser preterido por outro com classificação inferior na mesma lista.

5. Compreensão de que o § 1º do art. 3º da Lei 12.990/14 visa apenas a garantir que o total final das vagas destinadas aos candidatos negros ou pardos será igual à soma do número desses candidatos aprovados pela ampla concorrência com a soma das vagas reservadas, mas sem possibilitar a indevida preterição do candidato que, aprovado em ambas as listas, terminaria sendo nomeado em momento posterior a outro candidato com colocação inferior à sua.

6. Remessa oficial e apelação a que se nega provimento.

(AMS 1008444-97.2015.4.01.3400, JUIZ FEDERAL ROBERTO CARLOS DE OLIVEIRA (CONV.), TRF1 - QUINTA TURMA, e-DJF1 02/04/2019 PAG.)

 

É por essa razão que se diz que o candidato cotista concorre nas duas listas, pois nunca se saberá a piori se a sua convocação se dará na condição de candidato “cotista” ou de candidato pela “ampla concorrência”, pela óbvia razão de que, como já se disse, as nomeações deverem ser intercaladas e observar a proporcionalidade, uma vez que a nomeação do candidato autodeclarado negro se dará na posição que lhe conferir a nomeação mais vantajosa.

 

Só esse fundamento já seria suficiente para afastar o pleito sustentado na inicial.

 

Mas, como disse, a Administração fez mais.

 

Concluo, portanto, que o que o impetrante pretende, na verdade, é a redução da nota de corte de acesso à correção da prova discursiva, pois, como confessa na inicial, a sua nota ficou abaixo da nota de corte dos candidatos autodeclarados negros aprovados para a fase seguinte e, para conseguir acesso à correção da referida prova, teria que retirar dessa listagem todos os 845 candidatos autodeclarados constantes da lista de candidatos aprovados para terem suas provas discursivas corrigidas pela lista da ampla concorrência (4.500), bem como as notas por eles obtidas (que serviu para elevar a nota de corte dos candidatos cotistas), uma vez que, assim, reduziria a nota de corte e conseguiria superar a cláusula de barreira estabelecida no edital (1.200 candidatos).

 

Destaco trecho da inicial:

 

“Analisando o item acima, nota-se que deveriam ser corrigidas as provas discursivas dos candidatos cotistas até a posição 1.200, em obediência ao percentual legal de 20% reservado aos candidatos autodeclarados negros.

Após publicação pelo CEBRASPE do resultado final da prova objetiva e provisório da discursiva (DOC 3) constatou-se que 1407 candidatos cotistas (1200 mais os empatados na última posição) obtiveram a nota acima ou igual ao corte (69 pontos) e que tiveram a correção de sua prova discursiva pela banca organizadora. No entanto, frise-se que, desses 1407 candidatos, aproximadamente 845 candidatos se encontram em ambas as listas (ampla concorrência e cotas raciais), haja vista que alcançaram 73 pontos (nota de corte mínima da ampla concorrência) ou mais na prova objetiva, e assim também foram incluídos na lista de candidatos da ampla concorrência, figurando em duplicidade nas duas relações.

Dessa forma, resta evidente o descumprimento por parte dos requeridos no que tange ao respeito do percentual de 20% reservados aos candidatos cotistas, haja vista que esses 845 candidatos, ao concorrerem em ambas as listas, resultou em uma elevação da nota de corte das vagas de cotas raciais e redução significativa de discursivas corrigidas. Assim, houve a consequente ocupação de vagas em igual número de outros candidatos que não gozaram do direito de correção, como é o caso do requerente, que obteve 68 pontos e que deveria estar figurando na lista de aprovados na prova objetiva, caso não tivesse esse direito flagrantemente violado, conforme demonstrado e documento anexo (DOC. 4).

...

Ora Excelência, se 845 candidatos autodeclarados negros obtiveram notas suficientes para competirem na ampla concorrência, logo não deveriam ser computados na lista de cotas reservada aos candidatos negros.”

(fls. 8-PJe – ID Num. 256764764 - Pág. 3)

 

De modo que o que pretende o impetrante, sob o argumento do prejuízo, é se subtrair à aplicação da cláusula de barreira estabelecida para os cotistas e que foi devidamente observada para os candidatos da ampla concorrência.

 

No entanto, a pretensão encontra sólido precedente contrário no STF:

 

Recurso Extraordinário. Repercussão Geral. 2. Concurso Público. Edital. Cláusulas de Barreira. Alegação de violação aos arts. 5º, caput, e 37, inciso I, da Constituição Federal. 3. Regras restritivas em editais de concurso público, quando fundadas em critérios objetivos relacionados ao desempenho meritório do candidato, não ferem o princípio da isonomia. 4. As cláusulas de barreira em concurso público, para seleção dos candidatos mais bem classificados, têm amparo constitucional. 5. Recurso extraordinário provido.

(RE 635739, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 19/02/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-193 DIVULG 02-10-2014  PUBLIC 03-10-2014)

 

Na ocasião, expôs o Ministro Gilmar Mendes:

 

Nesse ponto, observo, ainda, que as “cláusulas de barreira”, desde que fundadas em critérios de discrímen adequados, como analisado, além de não infringirem o princípio da igualdade, são imprescindíveis para a viabilização do custo operacional de cada concurso.

Observamos que, comumente, o exame psicotécnico e o curso de formação constituem etapas dispendiosas e, por isso, a Administração costuma estabelecer “cláusula de barreira” antes dessas fases. Dentro dessa perspectiva financeira e de eficiência administrativa, seria desarrazoado permitir que um número imprevisível de candidatos, ainda que classificados, realizasse o referido exame, considerando a limitação de vagas previstas no edital. Desde que fundadas em critérios de discrimem adequados, as cláusulas de barreira podem justificar-se com base na consecução desses fins por parte da Administração Pública, isto é, com fundamento na realização eficiente e eficaz dos certames públicos.

Outra situação comum de previsão de “cláusula de barreira” em editais são as notas de corte da prova objetiva, que estabelecem que - entre os não eliminados – terá sua prova discursiva avaliada apenas número predeterminado de candidatos, considerando-se o custo operacional do concurso.

Nesse ponto, destacamos que o expediente não constitui apenas uma medida operacional fundada em questões financeiras, mas também na limitação de recursos humanos presente na maioria dos concursos. A restrição de participantes da etapa discursiva é medida muitas vezes necessária à adequada correção das provas pela comissão avaliadora do concurso, dentro dos prazos estabelecidos pelo edital para a publicação dos resultados de cada fase. Trata-se de um imperativo determinado pela limitação de tempo e de recursos humanos e administrativos.

(...)

Assim, como considerado pela própria jurisprudência desta Corte, o estabelecimento do número de candidatos que devem participar de determinada etapa de concurso público também passa pelo critério de conveniência e oportunidade da Administração, considerando o custo operacional do concurso público, e não infringe o princípio constitucional da isonomia quando o critério de convocação cinge-se ao desempenho do candidato em etapas precedentes.

Ademais, decisões judiciais que, no afã de atender ao princípio da isonomia, ampliam o rol de participantes em etapa de concurso, no mais das vezes acabam por desrespeitar referido princípio, porque dão ensejo a possível preterição de candidatos mais bem classificados. Nesses casos, sim, tem-se violação ao princípio da isonomia, mediante tratamento privilegiado desarrazoado a candidatos.

(pg. 11-15/34)

 

De modo que, seja pelo postulado da isonomia, seja pelo da discricionariedade dos atos da Administração, não é possível flexibilizar a cláusula de barreira estabelecida no edital de modo a se excluir da listagem dos candidatos cotistas aqueles que figuraram para além dos candidatos autodeclarados negros aprovados no número de vagas estabelecido no edital dentro das vagas oferecidas para os candidatos da ampla concorrência.

 

Improcede, portanto, o pleito de exclusão dos candidatos autodeclarados negros concorrentes pela listagem da “ampla concorrência” da listagem dos candidatos “cotistas” (para além do que foi previsto no edital), pois, na dicção da Lei “os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso” (art. 3º da Lei 12.990/2014).

 

Por fim, quanto à verba honorária, sucumbente o autor-apelado, inverte-se a responsabilidade pelos encargos decorrentes da sucumbência (art. 85, caput e § 2º, do CPC-15).

 

O caso, portanto, é de provimento do recurso e da remessa oficial para julgar improcedente o pedido.

 

Ante o exposto, dou provimento ao recurso e à remessa oficial, com inversão da verba honorária.

 

É o voto.



E M E N T A

CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. CANDIDATO COTISTA. PRETENSÃO DE ELEVAÇÃO DA QUANTIDADE DE CANDIDATOS AUTODECLARADOS NEGROS PARA ALÉM DA CLÁUSULA DE BARREIRA. IMPOSSIBILIDADE. DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO. RECURSO E REMESSA OFICIAL PROVIDOS. INVERSÃO DA VERBA HONORÁRIA.

1. No RE(RG) 635.739, o Plenário do STF decidiu que as cláusulas de barreira (regras restritivas em editais de concurso público), quando fundadas em critérios objetivos relacionados ao desempenho dos candidatos, não ferem o princípio da isonomia (Relator: Gilmar Mendes, julgado em 19/02/2014).

2. Pelo que se extrai do voto do senhor relator, decisões judiciais que, no afã de atender ao princípio da isonomia, ampliam o rol de participantes (previsto no edital) em determinada etapa do certame, além de violar o postulado da discricionariedade, no mais das vezes acabam por desrespeitar o próprio postulado que buscam proteger, pois que dão ensejo a possível preterição de candidatos mais bem classificados que aqueles que não superaram a cláusula de barreira estabelecida.

3. No caso, em atendimento à Lei 12.990/2014 (art. 1º), o edital do certame estabeleceu que, das 1.500 vagas em disputa, 1.125 (75%) seriam destinadas aos candidatos da ampla concorrência, 300 (20%) aos candidatos autodeclarados negros e 75 (5%) aos candidatos com deficiência, tendo acesso à correção das provas discursivas aqueles candidatos que, na correção das provas objetivas, alcançassem nota de corte equivalente à dos candidatos classificados na quantidade de vagas multiplicada por quatro (4.500, 1.200 e 300, respectivamente - cláusula 10.6), observados os empates na última colocação.

4. Somente esse critério, por si, já seria suficiente para atender as exigências legais. No entanto, a Administração, ampliando, ainda mais, a participação dos candidatos autodeclarados negros, fez mais, pois não considerou, na listagem dos candidatos autodeclarados negros (cotistas) que teriam as suas provas discursivas corrigidas, os candidatos autodeclarados negros que lograram aprovação nas provas objetivas dentro da quantidade de vagas reservadas à ampla concorrência (183 de 1.125) sem, contudo, excluí-los da lista dos candidatos autodeclarados negros, incrementando, assim, essa listagem com mais 183 candidatos autodeclarados. É dizer, os candidatos autodeclarados negros continuariam a concorrer nas duas listas, tal como determina a o art. 3º da Lei 12.990/2014.

5. Com isso, considerados os empates nas últimas colocações, elevou-se a lista de candidatos autodeclarados negros aptos a terem suas provas discursivas corrigidas de 1.200 para 1407 concorrentes, possibilitando-lhes o prosseguimento no certame e, quiçá, evolução na classificação, pois, ainda que nem todas as etapas seguintes fossem classificatórias, algumas o eram (prova discursiva, avaliação de títulos e curso de formação – v. cláusulas 8 e 20 do edital). Comprova-o a própria listagem de candidatos habilitados no curso de formação – trazida pelo autor – que mostra a aprovação de cerca de 689 candidatos autodeclarados, apesar de ser trezentas (300) as vagas a eles reservadas.

6. Em rigor, a exclusão do candidato autodeclarado negro aprovado na lista de ampla concorrência da lista de candidatos autodeclarados só poderia se dar no momento da convocação do candidato, pois é ali que será verificada a situação do seu ingresso, vale dizer, se o ingresso se dará na condição de aprovado na lista dos candidatos da ampla concorrência ou na lista dos candidatos autodeclarados, pois as nomeações devem ocorrer de forma intercalada, observando-se a proporcionalidade (20%), uma vez que o candidato autodeclarado negro só deixa de integrar a lista de cotistas se vier a ser convocado na lista da ampla concorrência. Inteligência do art. 4º da Lei 12.990/2014.

7. A pretensão do candidato de retirar da listagem dos candidatos cotistas aqueles 845 autodeclarados negros constantes da lista de candidatos aprovados (nas provas objetivas) para terem suas provas discursivas corrigidas pela listagem da ampla concorrência (4.500), bem como das notas por eles obtidas (que serviu para elevar a nota de corte dos candidatos cotistas), caracteriza manifesta burla à regra editalícia à qual todos os candidatos se submeteram, uma vez que, assim, reduziria a nota de corte e conseguiria superar a cláusula de barreira estabelecida no edital (1.200 candidatos).

8 – Apelação e remessa oficial providas, com inversão da verba honorária.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Terceira Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso e à remessa oficial, com inversão da verba honorária, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.