RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5001469-57.2020.4.03.6181
RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, HARRY SHIBATA, JOSE BARROS PAES, ALTAIR CASADEI, ARILDO DE TOLEDO VIANA
CURADOR: OLGA MARIA DE OLIVEIRA VIANNA
Advogados do(a) RECORRIDO: ANDREA CRISTINA D ANGELO - SP186397-A, CLAUDIA AREIAS DE CARVALHO DA SILVA - SP182990-A,
Advogados do(a) RECORRIDO: ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO - SP206320-A, AMANDA BESSONI BOUDOUX SALGADO - SP384082-A, FABRICIO REIS COSTA - SP391555-A, GABRIEL COIMBRA RODRIGUES ABBOUD - SP405889-N, GUILHERME RODRIGUES DA SILVA - SP309807-A, JESSICA RAQUEL SPONCHIADO - SP353095-A, JOSE ROBERTO SOARES LOURENCO - SP382133-A, NEITON GERALDO GOUVEA JUNIOR - SP440918-A, RODRIGO ANTONIO SERAFIM - SP245252-A, VINICIUS EHRHARDT JULIO DRAGO - SP396019-A
OUTROS PARTICIPANTES:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5001469-57.2020.4.03.6181 RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, HARRY SHIBATA, JOSE BARROS PAES, ALTAIR CASADEI, ARILDO DE TOLEDO VIANA Advogados do(a) RECORRIDO: ANDREA CRISTINA D ANGELO - SP186397-A, CLAUDIA AREIAS DE CARVALHO DA SILVA - SP182990-A, OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS: Trata-se de Recurso em Sentido Estrito, interposto pelo Ministério Público Federal, originado de ação penal intentada em face de AUDIR SANTOS MACIEL (nascido em 11.09.1932) e JOSÉ BARROS PAES (nascido em 04.09.1925) pela prática do crime previsto no art. 121, §2º, III e IV, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal, em concurso material com o crime previsto no artigo 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal; de HARRY SHIBATA (nascido em 05.06.1927) e ARILDO DE TOLEDO VIANA (nascido em 03.05.1939) pela prática do crime previsto no art. 299, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal (por duas vezes, no caso de ALRIDO DE TOLEDO VIANA); de ALTAIR CASADEI (nascido em 14.04.1941) pela prática do crime previsto no art. 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal; e de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO (nascido em 17.12.1919) pela prática do crime previsto no art. 319 c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal. A peça acusatória narra que (ID 252071036): 1ª Imputação No dia 25 de outubro de 1975, na sede do DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES E INFORMAÇÕES – CENTRO DE OPERAÇÕES E DEFESA INTERNA (DOI-CODI) do II Exército, na Rua Thomás Carvalhal, nº 1030, São Paulo, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, os denunciados AUDIR SANTOS MACIEL, comandante responsável pelo referido destacamento, e JOSÉ BARROS PAES, Chefe de Comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, de maneira consciente e voluntária, em concurso com outras pessoas até agora não totalmente identificadas e/ou já falecidas, mataram a vítima VLADIMIR HERZOG, por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido. O homicídio de VLADIMIR HERZOG foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver. O homicídio praticado pelos denunciados foi cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra a vítima, com o fim de intimidá-lo e dele obter informações. Por fim, a ação foi executada mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido. Tal recurso consistiu no emprego de grande número de agentes do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) para sequestrar a vítima e mantê-la sob forte vigilância, bem como pelo fato de estar em situação de grande debilidade física, em razão das torturas intensas que sofreu. 2ª imputação No dia 25 de outubro de 1975, na sede do DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES E INFORMAÇÕES – CENTRO DE OPERAÇÕES E DEFESA INTERNA (DOI-CODI) do II Exército, na Rua Thomás Carvalhal, nº 1030, São Paulo, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, os denunciados JOSÉ BARROS PAES, AUDIR SANTOS MACIEL e ALTAIR CASADEI, à época, respectivamente, Chefe de Comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, Comandante do DOI-CODI e carcereiro do DOI-CODI, de maneira consciente e voluntária, em concurso com outras pessoas até agora não totalmente identificadas e/ou já falecidas, inovaram artificiosamente estado de lugar, com o objetivo de produzir efeito em processo penal, ainda não iniciado, incorrendo, assim, no artigo 347, parágrafo único, do Código Penal. A inovação artificiosa consistiu na alteração do local do fato, modificando-se a cena do crime ao colocar o cadáver em posição de enforcamento, com o intuito de induzir a erro a Polícia Técnica, o juiz criminal e a sociedade, objetivando ocultar a realidade de que ali ocorrera uma sessão de tortura que levara o investigado à morte. O homicídio de VLADIMIR HERZOG, como já salientado, foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime. Desta feita, a conduta dos denunciados JOSÉ BARROS PAES, AUDIR SANTOS MACIEL e ALTAIR CASADEI contribuiu para manutenção deste estado de coisas, além de ter obstaculizado o conhecimento da verdade real e a impunidade dos perpetradores do crime de homicídio. 3ª imputação No dia 27 de outubro de 1975, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, os médicos legistas HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA, visando a assegurar a ocultação e a impunidade do crime de homicídio acima mencionado, omitiram, em documento público, consistente no Laudo de Exame Necroscópico n. 54.620, declarações que dele deviam constar, com o fim alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. À época dos fatos, os denunciados eram agentes públicos federais e cometeram o crime prevalecendo-se de seus cargos. Novamente, no dia 10 de novembro de 1975, o médico-legista ARILDO VIANA, agindo em concurso com Armando Canger Rodrigues, já falecido, visando a assegurar a ocultação e a impunidade do crime de homicídio acima mencionado, omitiram, em documento público, consistente no laudo Complementar (Parecer n. 241/75), declarações que dele deviam constar, com o fim alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, ao atestarem que o exame "não evidenciou a presença de lesões mortais de qualquer natureza, capazes de qualificar a morte de violenta ou natural patológica", e concluíram que se tratou de "asfixia por enforcamento". 4ª imputação No curso das investigações do Inquérito Policial Militar n. 1.153/75, que foi instaurado em 31 de outubro de 1975 e arquivado em 08 de março de 1976, DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO, em conluio com o já falecido general Fernando Guimarães de Cerqueira Lima, praticou atos de ofício em desacordo com as disposições legais aplicáveis, visando a satisfazer interesse pessoal, consistente na manutenção do regime militar, bem como para obter benefícios e honrarias pessoais. Fernando Guimarães era o Encarregado do Inquérito Policial Militar n. 1.153/75. Por sua vez, DURVAL foi designado, na qualidade de representante do Ministério Público Militar para acompanhar as diligências do IPM, conforme disposto no artigo 14 do Código de Processo Penal Militar, a atuação de DURVAL deveria ter por objetivo de auxiliar nas investigações, acompanhando a produção da prova, dando lisura ao processo. Contudo, em desacordo com as disposições legais aplicáveis, DURVAL optou por omitir declarações das testemunhas, intimidá-las e deixar de fazer-lhes perguntas relevantes, visando a ocultar a verdade real. Assim agindo, DURVAL auxiliou na manutenção da versão falaciosa dos fatos, valendo-se também da função pública para tal fim, de modo que o IPM foi direcionado à “comprovação” da ocorrência de suicídio de VLADIMIR HERZOG desde o seu início, tendo seus atos culminado no arquivamento do Inquérito Policial Militar em 08 de março de 1976. À época dos fatos, os denunciados eram agentes públicos federais e cometeram o crime prevalecendo-se de seus cargos. Todas as condutas acima imputadas foram cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, que consistiu, conforme detalhado na cota introdutória que acompanha esta inicial, na organização e operação centralizada de um sistema semi clandestino de repressão política, baseado em ameaças, invasões de domicílio, sequestro, tortura, morte e desaparecimento dos inimigos do regime. Os denunciados e demais coautores, já falecidos ou cuja identidade não foi possível elucidar, tinham pleno conhecimento da natureza desses ataques, associaram-se para cometê-los e participaram ativamente da execução das ações criminosas e de suas respectivas ocultações. O ataque era particularmente dirigido contra os opositores do regime, entre eles a vítima, e matou oficialmente 219 pessoas. (...) II – DA AUTORIA E DO DOLO DE AUDIR SANTOS MACIEL E JOSÉ PAES BARROS NA PRÁTICA DO CRIME DE HOMICÍDIO A responsabilidade do denunciado AUDIR SANTOS MACIEL pela morte de VLADIMIR HERZOG é inequívoca. (...) O denunciado AUDIR foi comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) no período de 1974 a 1976. Nesta qualidade, AUDIR SANTOS MACIEL era quem dava todas as ordens aos demais militares que lá estavam lotados. Sua tarefa era extrair o maior número de informações dos presos políticos que eram contrários ao regime militar e que lá eram simultaneamente interrogados e torturados, muitas vezes até a morte. (...) Pois bem. Em 25 de outubro de 1975, ou seja, na data da morte de VLADIMIR, o denunciado AUDIR ocupava o cargo de Comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército, conforme relatório oficial da Presidência da República, divulgado no livro Direito à Memória e à Verdade. AUDIR estava indubitavelmente ciente dos fatos ocorridos com relação à vítima, na qualidade de Comandante do DOI/CODI, eis que os Destacamentos de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) eram órgãos do Exército brasileiro, comandados por seus oficiais, na época dos fatos, como visto, pelo denunciado. Por sua vez, o denunciado JOSÉ BARROS PAES ocupava, à época, o cargo de Comandante da 2a Seção do Estado-Maior do II Exército (sediado em São Paulo), tendo ele próprio declarado, nos autos do IPM que investigou a morte de VLADIMIR HERZOG, que "o Destacamento de Operações de Informações (DOI) está diretamente subordinado à 2a Seção e, dentre suas missões, inclui-se a de proceder investigações para colheita de informações sobre crimes que atentam contra a Segurança Nacional". E, de fato, não restam dúvidas de que, na qualidade de Comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI-CODI) e Comandante da 2a Seção do Estado-Maior do II Exército, os denunciados tinham o pleno domínio do fato penalmente típico, pois eram responsáveis pela estrutura de poder na qual HERZOG fora torturado e morto e, ainda, falseada a verdade acerca das reais causas de sua morte. AUDIR comandava o DOI-CODI e, a pretexto de “evitar ações de terrorismo”, empregava tortura, para obtenção de informações dos presos políticos. Em seguida, eram elaborados dossiês, obtidos com terceiros, sob coerção (ameaças). JOSÉ BARROS PAES, por sua vez, comandava a 2a Seção, à qual era subordinado o DOI-CODI, sendo, portanto, superior hierárquico de AUDIR. Sua participação na conduta criminosa é comprovada pelo fato de que estava ciente da prisão desde o princípio, tendo sido quem deu a ordem para que VLADIMIR fosse dispensado de “comparecer” ao DOI na sexta-feira, dia 24 de outubro de 1975, autorizando sua apresentação espontânea no dia 25 de outubro de 1975. (...) Não apenas em razão da posição que ocupavam e pelo seu conhecimento sobre o contexto no qual os órgãos que comandavam encontravam-se inseridos, é certo afirmar que AUDIR e JOSÉ tinham autoridade direta e imediata sobre os agentes responsáveis pela prática direta e indireta das torturas, homicídio e ocultação da causa mortis de HERZOG e possuíam pleno domínio sobre os fatos praticados. Portanto, AUDIR e JOSÉ são autores do crime de homicídio qualificado de VLADIMIR HERZOG, uma vez que tinham conhecimento dos fatos criminosos praticados dentro do DOI-CODI, devido aos altos cargos que ocupavam em outubro de 1975, sendo certo que o delito foi praticado por seus subordinados diretos e indiretos e pela estrutura de poder por ele gerenciada e controlada. Assim agindo, os denunciados AUDIR SANTOS MACIEL e JOSÉ BARROS PAES praticaram o delito previsto no artigo 121, § 2º, III e IV, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, todos do Código Penal. III – DA AUTORIA E DO DOLO DE JOSÉ BARROS PAES, AUDIR SANTOS MACIEL E ALTAIR CASADEI NA PRÁTICA DO CRIME DE FRAUDE PROCESSUAL A responsabilidade dos denunciados JOSÉ BARROS PAES, ALTAIR CASADEI e AUDIR SANTOS MACIEL pela fraude processual e pela consequente ocultação das reais causas da morte de VLADIMIR HERZOG também é indubitável. O denunciado JOSÉ BARROS PAES foi Chefe da 2a Seção do Estado-Maior do II Exército (sediado em São Paulo), sendo certo ainda que o Destacamento de Operações de Informações (DOI) era diretamente subordinado à 2a Seção "e, dentre suas missões, inclui-se a de proceder investigações para colheita de informações sobre crimes que atentam contra a Segurança Nacional". Ou seja, quando do homicídio de VLADIMIR HERZOG, JOSÉ dirigiu-se ao DOI, onde viu o corpo da vítima e deu andamento às providências legais a serem tomadas, como a chamada da perícia e do IML. Ocorre que, como exaustivamente exposto na presente denúncia e comprovado pelos documentos trazidos aos autos, a versão oficial de suicídio não corresponde à realidade, tendo sido forjada para ocultar o crime perpetrado no interior do prédio público – quais sejam, tortura e homicídio. E é certo ainda que JOSÉ, com AUDIR SANTOS MACIEL, no contexto de ataque sistemático a integrantes do PCB, decidiram e ordenaram os atos que levaram ao homicídio de VLADIMIR HERZOG, como explanado no tópico anterior, de modo que tinham interesse direto na ocultação da realidade dos fatos. (...) Por sua vez, ALTAIR CASADEI era carcereiro do DOI, sendo responsável pelos presos que se achavam no local. De acordo com suas declarações no âmbito do Inquérito Policial Militar n. 1.153/75, ele teria sido a primeira pessoa a ver o cadáver de VLADIMIR HERZOG, tendo afirmado que o encontrou, por volta das 16:30, no dia 25 de outubro de 1975, enforcado na cela especial n. 1, no interior das dependências do DOI. Trata-se de versão evidentemente falaciosa, eis que, em verdade, VLADIMIR não fora inicialmente encontrado naquela posição. (...) JOSÉ, AUDIR e ALTAIR estavam indubitavelmente cientes dos fatos ocorridos – os dois primeiros, em razão de sua função de chefia; e o último, por ter admitido que foi a pessoa que encontrou o corpo. Desta feita, é incontroverso que JOSÉ BARROS PAES, ALTAIR CASADEI e AUDIR SANTOS MACIEL, agindo com unidade de desígnios, criaram e propagaram da versão falaciosa dos fatos, tendo inovado artificiosamente o estado do local, com o objetivo de produzir efeito em processo penal, o qual ainda não tinha se iniciado. Assim agindo, os denunciados praticaram os delitos previstos nos artigos 347, Parágrafo Único, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, todos do Código Penal. III – DA AUTORIA E DOLO DE HARRY SHIBATA E DE ARILDO TOLEDO VIANA NA PRÁTICA DO CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA Conforme já descrito anteriormente, HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA foram responsáveis pela confecção do Laudo de Exame Necroscópico n. 54.620, no qual foram omitidas informações essenciais à correta elucidação da causa e circunstâncias da morte de VLADIMIR HERZOG. Além da falsidade supra, ARILDO DE TOLEDO VIANA, em conjunto com Armando Canger Rodrigues, ainda foi o responsável pela elaboração do Laudo Complementar (Parecer n. 241/75) ao Laudo Necroscópico de 27 de outubro de 1975, elaborado em 10 de novembro de 1975, omitindo informações essenciais e declarando, falsamente, que o exame "não evidenciou a presença de lesões mortais de qualquer natureza, capazes de qualificar a morte de violenta ou natural patológica", e concluíram que se tratou de "asfixia por enforcamento". Outrossim, os denunciados HARRY SHIBATA e ARILDO VIANA mantinham relações estreitas com os órgãos repressivos, sendo notória a participação de ambos na elaboração de laudos necroscópicos com informações falsas ou omissos, em diversos outros casos de presos políticos. (...) Por fim, vale frisar não haver dúvidas de que o denunciado HARRY SHIBATA participou, em conjunto com ARILDO VIANA, de ações como a descrita nestes autos, tanto é que foi reconhecido pelo Exército brasileiro como relevante na repressão desencadeada com o Golpe de Estado de 1964, recebendo condecoração tipicamente reservada para militares e civis que tomaram parte na perseguição sistemática e violenta aos opositores do regime autoritário. De fato, HARRY SHIBATA recebeu a condecoração “Medalha do Pacificador” em 1977, por meio da Portaria Ministerial nº 941, de 30/07/1977. Embora, ao ser questionado, HARRY SHIBATA alegue ter assinado o laudo sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, declarando-o suicida sem ter visto o corpo remetido ao IML pelo Exército, em cujas dependências (especificamente no DOI-CODI) ele morrera, não restam dúvidas de que tinha conhecimento das reais causas da morte de HERZOG e, mesmo assim, anuiu com o atestado de óbito por suicídio. O mesmo se pode afirmar em relação a ARILDO DE TOLEDO VIANA. Ainda que assim não fosse, a própria produção e assinatura do laudo sem a efetiva verificação do cadáver se trata de declaração falsa, eis que o profissional não exerceu sua atividade laborativa de maneira adequada, constituindo-se o crime da mesma forma. Esse procedimento era comum naquela época e os denunciados normalmente agiam em concurso com o falecido perito Armando Canger, participando de fraudes semelhantes em outros casos. E, no caso em apreço, sua atitude não seria diversa, de modo que suas eventuais alegações de desconhecimento das reais circunstâncias da morte de HERZOG não se sustentam. Os denunciados HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA, atuando como médicos legistas oficiais no caso, omitiram informações essenciais do Laudo de Exame Necroscópico, não atestando, como era o seu dever legal, as reais circunstâncias da morte da vítima. (...) Assim agindo, os acusados HARRY SHIBATA, por uma vez (no Laudo de Exame Necroscópico n. 54.620), e ARILDO DE TOLEDO VIANA, por duas vezes (no Laudo de Exame Necroscópico n. 54.620 e no Laudo Complementar - Parecer n. 241/75), omitiram e alteraram, em documento público, declarações que dele deveriam constar, com o fim alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. Nesse passo, HARRY SHIBATA praticou o delito descrito no artigo 299, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, ambos do Código Penal, por haver, atuando como médico legista oficial no caso, omitido informações essenciais do Laudo de Exame Necroscópico nº 54.620, não atestando, como era o seu dever legal, todas as características do cadáver e dos ferimentos nele descritos, a partir do qual se inferiria as reais circunstâncias da morte da vítima VLADIMIR HERZOG. A seu turno, ARILDO DE TOLEDO VIANA, por duas vezes, praticou o delito descrito no artigo 299, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, ambos do Código Penal, por haver, atuando como médico legista oficial no caso, omitido informações essenciais do Laudo de Exame Necroscópico nº 54.620 e no Laudo Complementar - Parecer n. 241/75, não atestando, como era o seu dever legal, todas as características do cadáver e dos ferimentos nele descritos, a partir do qual se inferiria as reais circunstâncias da morte da vítima VLADIMIR HERZOG. (...) IV – DA AUTORIA E DOLO DE DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO NA PRÁTICA DO CRIME DE PREVARICAÇÃO A autoria do delito de prevaricação é inconteste em relação ao denunciado DURVAL. Como já destacado, devido à repercussão causada pela morte de VLADIMIR HERZOG, determinou-se a instauração de Inquérito Policial Militar para apuração “das circunstâncias do suicídio”. Ainda, foi designado para conduzir o feito o General de Brigada Fernando Guimarães de Cerqueira Lima, já falecido. Ato contínuo, o referido Encarregado do IPM, em despacho de 31 de outubro de 1975, solicitou assistência do Assessor Jurídico do Comando do II Exército, DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO, para acompanhar as diligências praticadas no âmbito das investigações. No exercício de suas funções de Procurador de Justiça Militar, portanto, DURVAL e Fernando omitiram-se em seus deveres legais de apurar devidamente os fatos, omitindo dados fornecidos pelas testemunhas ouvidas e, por vezes, alterando as afirmações efetuadas perante as autoridades, contribuindo na ocultação da tortura e morte ocasionada pelo regime, visando a satisfazer sentimentos pessoais, consistentes na manutenção do status quo político; e, ainda, no caso de DURVAL, com intuito de receber benefícios pessoais, com promoções e homenagens pessoais. Não há dúvidas de que o denunciado DURVAL fazia parte da sistemática de repressão do aparelho ditatorial, contribuindo para que as torturas e mortes ocorridas não fossem apuradas pelo Ministério Público e pelo Judiciário da época. No caso destes autos, a sua omissão tinha como propósito assegurar que os responsáveis pelos crimes praticados contra VLADIMIR ficassem longe do alcance da Justiça, mantendo a impunidade do regime de exceção, o que realmente ocorreu. (...) No contexto em que se encontrava a situação política no país, DURVAL fazia parte desta faceta jurídica da ditadura militar, apoiando juridicamente a repressão em alcançar seus objetivos espúrios, com o intuito não apenas de colaborar com a manutenção do regime de exceção, mas também para obtenção de benefícios pessoais. (...) No que se refere às “honrarias” a ele concedidas, tem-se que foi premiado pelo General Humberto Souza Mello com o cargo de assessor jurídico do II Exército. Foi, ainda, promovido em janeiro de 1972 para prestar serviços junto à 1ª Circunscrição Judiciária Militar, junto ao Superior Tribunal Militar e à Procuradoria Geral no Superior Tribunal Militar. Ademais, recebeu Medalha do Mérito Jurídico Militar, Comenda Santos Dumont, e, por fim, a Medalha do Pacificador, conforme Port Min nº 927, de 07 Jun 73, BE nº 30, de 27 de Julho de 1973, premiação tradicionalmente concedida àqueles que contribuíram para os crimes contra a humanidade durante o período da ditadura militar. Em 1972, foi promovido a assessor Jurídico dos Comandos Militares (Marinha, Exército e Aeronáutica). (...) Nesse passo, DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO incorreu no delito descrito no artigo 319, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, ambos do Código Penal, atuando como Procurador de Justiça Militar assistente em Inquérito Policial Militar, por ter praticado atos de ofício em desacordo com seu dever legal, tendo interferido na produção da prova, bem como deixado de conduzir o feito de maneira íntegra, tendo, por tal razão, o Inquérito sido arquivado, motivo pelo qual os envolvidos no homicídio de VLADIMIR HERZOG deixaram de ser responsabilizados. (...) VI - CONCLUSÃO Tudo isso atesta que VLADIMIR HERZOG foi morto por agentes dos órgãos de segurança do regime militar depois de ser capturado e torturado, tudo sob o comando de AUDIR SANTOS MACIEL e JOSÉ BARROS PAES. Ademais, após o homicídio, foram empreendidos esforços no sentido de inovaram artificiosamente o estado de lugar, a fim de criar a farsa do suicídio, uma versão falaciosa a ser apresentada para a sociedade e para a Justiça. Para tal fim, AUDIR MACIEL, JOSÉ BARROS PAES e ALTAIR CASADEI agiram em conluio, tendo a ordem partido dos dois primeiros; enquanto a execução da medida foi realizada por todos, possivelmente em conjunto com outras pessoas não identificadas e/ou falecidas. Esses elementos também demonstram que as reais causas da morte foram ocultadas pelos acusados, eis que HARRY SHIBATA e ARILDO VIANA atuaram como médicos legistas oficiais no caso, omitindo informações essenciais do Laudo de Exame Necroscópico, não atestando, como era o seu dever legal, as reais circunstâncias da morte da vítima. A falsidade das informações prestadas pelos peritos pode ser atestada pelo exame pericial indireto já citado, bem como tendo em vista os depoimentos colhidos das testemunhas, presas na mesma época em que HERZOG, e que serão repetidos em juízo, no sentido de que ouviram os gritos de dor da vítima ao ser torturada e que poderiam ser a causa de sua morte. Não bastasse isso, no Inquérito Policial Militar instaurado para apuração dos fatos, foram empreendidos esforços por Fernando Guimarães de Cerqueira Lima (falecido) e DURVAL AYRTON DE MOURA ARAUJO para encobrir o crime, através da ocultação de trechos dos depoimentos das testemunhas e/ou alteração do que fora dito no momento da transcrever as palavras. VI. DAS IMPUTAÇÕES I) AUDIR SANTOS MACIEL e JOSE BARROS PAES, como incursos nas penas do artigo 121, §2º, III e IV, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, todos do Código Penal; II) HARRY SHIBATA como incurso nas penas do artigo 299, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, ambos do Código Penal; III) ARILDO DE TOLEDO VIANA, como incurso, por duas vezes, nas sancoes do artigo 299, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, ambos do Código Penal; IV) JOSE BARROS PAES, AUDIR SANTOS MACIEL e ALTAIR CASADEI, como incursos no artigo 347, § unico, combinado com artigo 61, inciso II, alínea b, todos do Código Penal; V) DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO como incurso nas penas dos artigos 319, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, todos do Código Penal. A decisão recorrida (ID 252071071), proferida em 04.05.2020 pelo Exmo. Juiz Federal Alessandro Diaferia (1ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP), rejeitou a denúncia com fulcro no art. 395, inc. II e III, do Código de Processo Penal, c.c. o art. 1º e § 1º, da Lei nº 6.683/1979, § 1º do art. 4º da Emenda Constitucional nº 26/1985, e o art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999 (tendo em conta o resultado do julgamento da APDF nº 153). Foi declarada a extinção da punibilidade de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO em função do óbito comprovado nos autos (ID 252071272). Em suas razões recursais, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pugna pela reforma da r. decisão, com o consequente recebimento da denúncia ofertada, sob os seguintes argumentos (ID 252071073): Diferentemente do afirmado na sentença recorrida, as condutas imputadas aos denunciados não estão sujeitas às regras de extinção da punibilidade previstas nos incisos II (anistia) e IV (prescrição) do art. 107 do Código Penal, nos termos de decisão unânime contida na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida no caso HERZOG E OUTROS VS. BRASIL, proferida em 15 de março de 2018. Em razão disso, a referida sentença reconheceu que a falta de investigação, bem como do julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de VLADIMIR HERZOG, constituíram graves violações aos direitos humanos deste e de seus familiares, notadamente dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Estabeleceu, ainda, que o sequestro, as torturas e a execução da vítima foram cometidos por agentes estatais em um contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil, de maneira que constituem crimes contra a humanidade. Em consequência, no caso dos autos, a aplicação da Lei de Anistia n. 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade são proibidas pelo Direito Internacional. Diante disso, a CIDH determinou, entre outros pontos, que o Estado reconheça a inaplicabilidade dessas excludentes de responsabilidade, e reinicie, com a devida diligência, a investigação e o processo penal pelos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra a humanidade desses fatos e às respectivas consequências jurídicas para o Direito Internacional. Em suma, como será visto adiante, não incidem as regras internas de extinção da punibilidade ao presente caso porque: a) foram comprovadamente cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência; b) nos termos do direito penal internacional costumeiro cogente, as mesmas condutas já constituíam, na data de início dos fatos, crimes de lesa-humanidade ou a eles conexos, motivo pelo qual não estão elas protegidos por regras domésticas de anistia e prescrição; c) nos termos da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos do caso Herzog e outros Vs. Brasil, além do caso Gomes Lund vs. Brasil e de reiterada jurisprudência da mesma Corte em casos similares do mesmo período, as torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados cometidos por agentes de Estado no âmbito da repressão política constituem graves violações a direitos humanos, para fins de incidência dos pontos resolutivos da decisão, os quais excluem a validade de interpretações jurídicas que assegurem a impunidade de tais violações. (...) Não há dúvidas, pois, de que o cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos há de ser promovido pelo Brasil, de modo que, se confirmada a decisão ora combatida, o Estado brasileiro permanecerá em mora com o sistema internacional até a implementação da sentença da Corte. Poderá ser, portanto, responsabilizado internacionalmente pelo descumprimento do compromisso assumido com a assinatura do tratado. (...) Por fim, não pode subsistir a sentença recorrida no capítulo em que entende ter havido a prescrição das condutas narradas na inicial. (...) Desde o início da execução do crime em pauta, no ano de 1975, já estávamos diante de um crime imprescritível, pois qualificado como crime contra a humanidade já naquela época, conforme visto acima. No caso concreto, conforme também visto à exaustão acima, o indispensável é destacar que os violentos crimes praticados por agentes do Estado em face de dissidentes e suspeitos de subversão, se subsomem à categoria dos delitos de lesa-humanidade, firmada juridicamente (com caráter jus cogens), desde o fim da 2ª Guerra Mundial. (...) Destarte, necessário ressaltar que, mesmo que não se aceite a tese de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, o prazo prescricional para os crimes aqui referidos teria começado a correr no Brasil somente em 15 de março de 2018, quando proferida a sentença da Corte Interamericana no caso Herzog vs Brasil, como já citado no item supra. Isso porque foi naquela oportunidade que o tribunal competente para julgar a convencionalidade da lei de anistia brasileira o fez, afastando sua incidência, bem como afastando a incidência de 'coisas julgadas' baseadas em anistia ou prescrição, de modo que tanto a anistia quanto a prescrição não resultam aplicáveis ao caso presente. As contrarrazões foram apresentadas por JOSÉ BARROS PAES (ID 252071268), ARILDO DE TOLEDO VIANA (ID 252071265) e pela Defensoria Pública da União em favor de AUDIR SANTOS MACIEL, HARRY SHIBATA e ALTAIR CASADEI (ID 252071280). A decisão foi mantida por seus próprios fundamentos (ID 252071281). A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do Recurso em Sentido Estrito (ID 254771144). É o relatório. Dispensada a revisão.
CURADOR: OLGA MARIA DE OLIVEIRA VIANNA
Advogados do(a) RECORRIDO: ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO - SP206320-A, AMANDA BESSONI BOUDOUX SALGADO - SP384082-A, FABRICIO REIS COSTA - SP391555-A, GABRIEL COIMBRA RODRIGUES ABBOUD - SP405889-N, GUILHERME RODRIGUES DA SILVA - SP309807-A, JESSICA RAQUEL SPONCHIADO - SP353095-A, JOSE ROBERTO SOARES LOURENCO - SP382133-A, NEITON GERALDO GOUVEA JUNIOR - SP440918-A, RODRIGO ANTONIO SERAFIM - SP245252-A, VINICIUS EHRHARDT JULIO DRAGO - SP396019-A
Diante de todo o exposto, o MINISTÉRIO PUBLICO FEDERAL denuncia:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5001469-57.2020.4.03.6181 RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, HARRY SHIBATA, JOSE BARROS PAES, ALTAIR CASADEI, ARILDO DE TOLEDO VIANA Advogados do(a) RECORRIDO: ANDREA CRISTINA D ANGELO - SP186397-A, CLAUDIA AREIAS DE CARVALHO DA SILVA - SP182990-A, OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO: Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) em face da decisão proferida pela 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP que rejeitou a denúncia oferecida em desfavor de AUDIR SANTOS MACIEL e JOSÉ BARROS PAES pela prática do crime previsto no art. 121, §2º, III e IV, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal, em concurso material com o crime previsto no artigo 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal; de HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA pela prática do crime previsto no art. 299, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal (por duas vezes, no caso de ALRIDO DE TOLEDO VIANA); de ALTAIR CASADEI pela prática do crime previsto no art. 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal; e de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO pela prática do crime previsto no art. 319 c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal, com fulcro no art. 395, inc. II e III, do Código de Processo Penal, c.c. o art. 1º e § 1º, da Lei nº 6.683/1979, § 1º do art. 4º da Emenda Constitucional nº 26/1985, e o art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999 (tendo em conta o resultado do julgamento da APDF nº 153). Pois bem. O tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/1979, já foi amplamente discutido no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF nº 153, cuja ementa transcrevo: EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. 1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida. 2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura. (ADPF 153/DF, Pleno, maioria, Rel. Min. Eros Grau, j. 29.04.2010, DJe-145 DIVULG 05.08.2010 PUBLIC 06.08.2010, RTJ 216, p. 11) Não vou estender-me em considerações que seriam repetitivas em relação a tudo o que foi exposto no voto do Ministro Eros Grau e nos dos que o acompanharam. O que posso acrescentar é que, por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/1979. Isso foi destacado, por exemplo, por José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-membro da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição do dia 22.05.2018: A anistia, entre nós, veio em dois momentos. O primeiro, com a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, negociada entre Petrônio Portela (ministro da Justiça de Ernesto Geisel) e Raymundo Faoro (presidente da OAB Nacional). De um lado, preparando a volta de exilados como Miguel Arraes e Leonel Brizola - e protegendo condenados ou processados pela ditadura; de outro, protegendo os militares por tudo o que fizeram. Duro preço a pagar para permitir a transição. Uma lei imposta pelos militares, claramente para se proteger. Vão-se os anéis. Mas houve outra, depois, da qual pouco se diz. A Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, votada por um Congresso livre, o mesmo que elegeu Tancredo Neves. A reprodução do texto, tecnicamente o mesmo, se deveu ao fato de que o episódio grotesco do Riocentro ocorreu em 1981, posteriormente à primeira lei. Os militares exigiam que também aquele episódio fosse coberto por uma anistia. E tudo se deu no contexto de negociações feitas por Tancredo, antes da posse, para garantir uma transição sem maiores traumas. Dos militares para a oposição civil - e não, como na generalidade dos países, primeiro dos militares para o estamento civil do sistema. O STF, ao julgar a ADPF nº 153, determinou os rumos de ações que visassem revolver fatos alcançados pela anistia mencionada. Isto porque essa decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999. Assim é que outras ações propostas pelo MPF com o mesmo objetivo não foram acolhidas pelas Turmas Criminais deste Tribunal, inclusive em feito julgado no âmbito da Quarta Seção: DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. DENÚNCIA. AGENTE POLICIAL. DITADURA MILITAR. LEI DE ANISTIA. LEI Nº 6.683/79. ABRANGÊNCIA. INCIDÊNCIA NO CASO CONCRETO. PREVALÊNCIA DO VOTO VENCIDO. MANTIDA A EXTINÇÃO DA AÇÃO PENAL. 1. Embargos infringentes interpostos contra decisão que, por maioria, reformou decisão de primeiro grau para determinar o prosseguimento de ação penal em que se imputava a agentes estatais a prática do crime de ocultação de cadáver (Código Penal, art. 211), que teria ocorrido a partir de janeiro de 1972. Crime cometido no contexto da repressão imposta pela ditadura militar iniciada em 1964. 2. O procedimento de atribuição de sentido aos textos normativos (ou seja, de extração de normas) envolve atividade interpretativa que pode ir da simples compreensão de um sentido comum de comandos básicos a complexos procedimentos metodológicos de compreensão e decisão. Não há interpretação de texto (inclusive normativo) sem análise de seu contexto (em sentido amplo: fático, histórico, jurídico-normativo, et cetera). A constatação exsurge mais ou menos evidente a depender do teor de uma prescrição normativa, de suas possibilidades de aplicação e relações com outros textos normativos, ou ainda, do âmbito do real sobre o qual incidirá ou que é tomado como relevante para a própria formulação do texto. 3. No caso, tem-se o complexo contexto da chamada "Lei de Anistia" (Lei nº 6.683/79), a qual foi anunciada como medida para o perdão e a exclusão, para efeitos penais, de todos os atos políticos ou "conexos" (entendida essa expressão em sentido amplo e pouco técnico, no sentido de "relacionados"), no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 - ou seja, dos dias que antecederam a posse do Presidente João Goulart até o período imediatamente anterior à promulgação da própria Anistia, compreendendo mais de quinze anos do regime de exceção, além do período anterior já referido. 4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade, traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970. 5. Quando a Lei 6.683/79 dispõe acerca da anistia de todos os crimes "cometidos" no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, não se tem aí mero marco temporal para condutas criminosas. O que há é delimitação de um período histórico de extrema turbulência ou, em sua maior parte, de vigência de regime de exceção, em que atos amoldáveis a crimes graves foram praticados em favor do ou em combate ao governo militar. Não podem os marcos temporais em questão, ou o vocábulo "cometidos", ser tomados com o sentido usual que seria extraído de outros enunciados normativos inseridos em outros contextos ou regimes jurídicos. Aqui, a referência é claramente a um círculo de fatos: os crimes cujo núcleo fático tenha tido como distinção temporal ter ocorrido na precitada quadra histórica, e como marca material o caráter político ou de crime conexo ao político, no sentido de atos em tese criminosos relacionados a ações políticas de defesa do regime militar (frequentemente praticados por agentes de Estado, com a complacência e permissividade, ou mesmo comando, do regime ditatorial), ou de combate ao mesmo regime por atos políticos e até enfrentamentos armados. 6. Assim, são abrangidos pela anistia os fatos originalmente típicos (políticos ou conexos) cujo núcleo de cometimento tenha se dado no período de exceção, não se tratando, neste contexto, de simples vislumbre temporal, com uso da categoria do crime permanente, para inferir que em tese um ato de ocultação teria se protraído para além de 15 de agosto de 1979. A anistia abarca os crimes cometidos no período de setembro de 1961 a agosto de 1979 em seu núcleo fático. 7. Os crimes políticos ou a eles conexos cujo núcleo de ação tenha ocorrido no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 (daí advindo a expressão legal "cometidos", neste contexto) se encontram abarcados por anistia, nos termos do art. 1º da Lei 6.683/79, inclusive os de natureza em tese permanente, ressalvados apenas os casos em que novos atos efetivos e autônomos tenham ultrapassado o lapso temporal previsto na precitada disposição legal. 8. A denúncia que inaugura os autos retrata situação desse jaez, ao imputar ao embargante Alcides Singillo a prática de ocultação de cadáver de militante político contrário ao regime militar, mediante atos cujo cometimento teria se dado em 1972. A não apresentação do cadáver como omissão acessória dessa prática anterior, e a ela intimamente ligada, não alcança existência autônoma que se dissocie do comando descriminalizador da Lei 6.683/79, porquanto não se narram condutas efetivamente praticadas, ou comandadas intelectualmente pelo réu, que se autonomizem desse contexto e se protraiam para além de 15 de agosto de 1979. 9. O julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca de crimes permanentes em tese cometidos por agentes da repressão no Brasil no período da ditadura militar não poderia se sobrepor a uma disposição legal que retira o caráter criminoso dos fatos e que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, em julgado com efeitos vinculantes, como integralmente recepcionada pela atual ordem constitucional pátria. 10. Embargos infringentes providos. Mantida a extinção da ação penal. (EIfNu 0004823-25.2013.4.03.6181, Quarta Seção, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 21.03.2019, e-DJF3 Judicial 1 01.04.2019) PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO QUE NÃO RECEBEU A DENÚNCIA. IMPUTAÇÃO DE CRIMES A AGENTES ESTATAIS. HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO NO CONTEXTO DO REGIME MILITAR. LEI Nº 6.683/79. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 153. RECURSO DESPROVIDO. 1. O tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/79, já foi amplamente discutido no âmbito do STF, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Tal julgamento assentou a validade da mencionada lei e a impossibilidade de revisitar, em termos jurídico-penais, os atos por ela abarcados, valendo ressaltar que tal decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999. 2. Por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/79. 3. Tramita no STF a ADPF nº 320/DF, sob relatoria do Min. Luiz Fux, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes. Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153. Precedentes. 4. Recurso em sentido estrito não provido. (RSE 0015358-42.2015.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Des. Federal Fausto De Sanctis, Rel. p/ acórdão Des. Fed. Nino Toldo, j. 05.02.2019, e-DJF3 Judicial 1 06.03.2019) DIREITO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. IMPUTAÇÃO. HOMICÍDIO. AGENTES ESTATAIS. PERÍODO DA DITADURA MILITAR. LEI DA ANISTIA - LEI Nº 6.683/79. INCIDÊNCIA. REJEIÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. Recurso interposto contra decisão que rejeitou denúncia ajuizada pelo Ministério Público Federal, em que se imputou aos acusados práticas em tese amoldadas ao art. 121 (caput e § 2º, incisos I, III e IV). Homicídio qualificado em tese praticado por agentes da repressão estatal no período da ditadura militar brasileira. 2. Não se pode, hodiernamente, controverter acerca da recepção, com plena normatividade, das disposições da Lei 6.683/79 e da Emenda Constitucional 26/85 (emenda ao texto constitucional de 1967), no que tange à anistia de todos os abarcados pela extensão material e temporal de suas disposições. Isso porque o tema foi objeto de expresso pronunciamento do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153. 3. Tem-se, na Lei nº 6.683/79, texto normativo cujo sentido efetivo é indissociável de um contexto histórico extremamente grave e específico, que a ele se incorpora inclusive para fins de verificação de seu efetivo conteúdo. 4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade, traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970. 5. A narrativa ministerial é de clareza solar: imputa-se aos denunciados prática de crime grave tendo por contexto o próprio exercício da repressão ilegal a pretexto de combater divergências subversivas. Trata-se, pois, da parcela de ex-agentes públicos anistiados em suas práticas originalmente típicas, anistia essa decorrente da Lei nº 6.683/79. O reconhecimento de sua incidência é, pois, obrigatório, devendo ser mantida a decisão recorrida. 6. Rejeição da denúncia mantida. Recurso desprovido. (RSE 0001147-74.2010.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 05.02.2019) PENAL. PROCESSO PENAL. LEI Nº 6.683/79. ANISTIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. 1. A morte do agente constitui causa de extinção da punibilidade. 2. A anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 foi ampla e geral, alcançando os crimes políticos e eleitorais praticados pelos agentes da repressão, no período compreendido entre 02/09/1961 e 15/08/1979. 3. A Lei nº 6.683/79 foi integrada na nova ordem constitucional de 1988. 4. Em razão da concessão de anistia em relação aos delitos políticos e os conexos com estes, praticados no período compreendido entre 02/09/1961 a 15/08/1979, não há falar em existência material de crime. Ausência de justa causa para a ação penal. Rejeição da denúncia é medida de rigor. 5. Recurso em sentido estrito prejudicado em parte, em razão da morte de agente. Na parte não prejudicada, recurso desprovido. (RSE 0016351-22.2014.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal Mauricio Kato, j. 07.08.2017, e-DJF3 Judicial 1 18.08.2017) PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. REGIME MILITAR. ANISTIA. HOMICÍDIO. OCULTAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CADÁVER. INDÍCIOS DE MATERIALIDADE E AUTORIA. RESTOS MORTAIS NÃO LOCALIZADOS. CRIME PERMANENTE. PRESCRIÇÃO. SUJEIÇÃO DO BRASIL ÀS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO GOMES LUND. DESAPARECIMENTO FORÇADO. CONVENÇÃO AMERICANA E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. DISTINÇÃO. ENTENDIMENTO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA. ADPF 153. COMPATIBILIDADE COM A DECISÃO INTERNACIONAL. 1. Imputação ao réu da prática dos crimes de homicídio duplamente qualificado (CP, art. 121, § 2º, I e IV) e de ocultação de cadáver (CP, art. 211), cometidos quando ocupava o cargo de chefia do DOI-CODI, em setembro de 1975. 2. O Supremo Tribunal Federal já proclamou não somente a validade mas também a abrangência bilateral da Lei n. 6.683, de 28.08.79, conhecida como Lei da Anistia, que se aplica aos delitos cometidos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. 3. Não consta que a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha obliterado a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nestes autos, aquela é meramente citada sem que se identifiquem efetivamente seus efeitos para a economia deste processo, isto é, em que medida seus efeitos criam, extinguem ou modificam direitos de caráter processual ou de direito material no que respeita ao regular andamento da ação penal. Em princípio, o juiz goza de independência no âmbito de sua função jurisdicional, cumprindo-lhe aplicar a lei ao caso concreto mediante o exercício de seu entendimento, segundo o Direito. Essa atividade somente é obstruída em decorrência de decisão que tenha a propriedade de substituir ou, de qualquer modo, reformar sua decisão. Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil não afetam esse pressuposto, que de resto é facilmente compreensível. Nem é preciso maiores digressões, pois o fenômeno é, na sua natureza, idêntico ao que ocorre no âmbito das obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito interno. Daí que não há razão, de caráter processual, para não guardar a tradicional reverência ao julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal. 4. Anistia aplicável ao delito de homicídio referido na denúncia. 5. A prática do crime do art. 211 do Código Penal em sua modalidade "destruir" demanda a mesma conclusão atinente ao delito de homicídio, por plenamente incidentes as disposições da Lei n. 6.683, de 28.08.79. 6. A mera natureza permanente do crime de ocultação de cadáver não faz ressurgir a pretensão punitiva. Pois nos crimes permanentes há de subsistir a atividade criminosa ao longo do tempo. A denúncia, contudo, não fundamenta seu pedido condenatório em uma suposta ulterior atividade criminosa que, por si mesma, teria feito surgir (ou, o que dá no mesmo, subsistir) a pretensão punitiva. Daí que aqueles fatos foram efetivamente abrangidos pela anistia. 7. O Código Penal, art. 111, III, diz que, nos crimes permanentes, a prescrição começa a correr "do dia em que cessou a permanência". Assim, subsistindo a tipificação do fato, fenômeno que ocorre por causa da atividade delitiva do agente, resulta evidente que não está a correr o prazo prescricional. Não há referência à atividade criminosa dos agentes posterior à Lei da Anistia que poderia - como se pretende - postergar o início da fluência do prazo prescricional. Contudo, a própria aplicação desse dispositivo fica prejudicada na medida em que, por oura razão, já não há mais pretensão punitiva passível de ser extinta pela prescrição. 8. Recurso não provido. (RSE 0015754-19.2015.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal André Nekatschalow, j. 50.12.2016, e-DJF3 Judicial 1 15.12.2016) O STF também reafirmou a autoridade da decisão proferida na ADPF º 153 ao deferir liminares nas Reclamações nºs 18.686/RJ (Rel. Min. Teori Zavascki) e 19.760/SP (Rel. Min. Rosa Weber), suspendendo as ações penais que tramitavam no primeiro grau de jurisdição. Observo, ainda, que tramita no STF a ADPF nº 320/DF, atualmente sob relatoria do Min. Dias Toffoli, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/1979 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes. Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153/DF. Observo, apenas para registro, que essa impossibilidade de revisão por outros órgãos judiciários que não o próprio STF foi admitida por José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso, ex-integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição de 19.05.2018, no qual defenderam a revisão da lei de anistia após novas revelações sobre a ditadura militar: A medida de julgamento dos agentes públicos envolvidos na repressão já havia sido determinada ao Estado brasileiro por meio de decisão de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Ministério Público Federal, evoluindo de sua posição anterior, passou a promover ações objetivando a condenação dos responsáveis. A recomendação da CNV permanece, portanto, integralmente válida e, no relatório, estão nominadas 377 pessoas comprometidas com os crimes apurados, cerca de metade delas provavelmente ainda vivas. Impõe-se, assim, a promoção do afastamento dos eventuais impedimentos da Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia), aprovada ainda durante a ditadura, para que a atuação do Judiciário possa ter curso. Isso poderá se dar por via de decisão do Supremo Tribunal Federal, havendo ações aguardando julgamento, ou de deliberação do Congresso Nacional, sendo diversos os projetos nesse sentido. O fundamental é que a civilização prevaleça sobre a barbárie e o Brasil deixe a condição vergonhosa de ser a única exceção entre os países da América Latina -que, olhando de frente para o seu passado, julgaram os agentes da repressão, promovendo a justiça e a democracia. (negritei) Não obstante tudo isso, a pretensão punitiva estatal encontra-se prescrita. Com efeito, foram imputadas aos recorridos as práticas de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º, III e IV), fraude processual (CP, art. 347, parágrafo único), falsidade ideológica (CP, art. 299) e prevaricação (CP, art. 319), em concurso material (CP, art. 69), sendo que a pena máxima do crime mais grave (homicídio qualificado) é de 30 (trinta) anos de reclusão e, portanto, prescritível em 20 (vinte) anos, nos termos do art. 109, I, do Código Penal. Todavia, os recorridos são maiores de 70 (setenta) anos, sendo esse prazo prescricional reduzido de metade (CP, art. 115), ou seja, a prescrição ocorre em 10 (dez) anos. As condutas teriam ocorrido nos meses de outubro e novembro de 1975 e a denúncia ainda não foi recebida, tendo decorrido período muito superior a esse prazo, sem qualquer suspensão ou interrupção da prescrição. Portanto, a punibilidade dos recorridos encontra-se extinta; seja pela anistia (CP, art. 107, II), seja pela prescrição da pretensão punitiva estatal, tendo por base as penas em abstrato (CP, art. 107, IV, c.c. art. 109, III, e art. 115). Posto isso, NEGO PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito. É o voto.
CURADOR: OLGA MARIA DE OLIVEIRA VIANNA
Advogados do(a) RECORRIDO: ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO - SP206320-A, AMANDA BESSONI BOUDOUX SALGADO - SP384082-A, FABRICIO REIS COSTA - SP391555-A, GABRIEL COIMBRA RODRIGUES ABBOUD - SP405889-N, GUILHERME RODRIGUES DA SILVA - SP309807-A, JESSICA RAQUEL SPONCHIADO - SP353095-A, JOSE ROBERTO SOARES LOURENCO - SP382133-A, NEITON GERALDO GOUVEA JUNIOR - SP440918-A, RODRIGO ANTONIO SERAFIM - SP245252-A, VINICIUS EHRHARDT JULIO DRAGO - SP396019-A
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5001469-57.2020.4.03.6181
RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, HARRY SHIBATA, JOSE BARROS PAES, ALTAIR CASADEI, ARILDO DE TOLEDO VIANA
CURADOR: OLGA MARIA DE OLIVEIRA VIANNA
Advogados do(a) RECORRIDO: ANDREA CRISTINA D ANGELO - SP186397-A, CLAUDIA AREIAS DE CARVALHO DA SILVA - SP182990-A,
Advogados do(a) RECORRIDO: ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO - SP206320-A, AMANDA BESSONI BOUDOUX SALGADO - SP384082-A, FABRICIO REIS COSTA - SP391555-A, GABRIEL COIMBRA RODRIGUES ABBOUD - SP405889-N, GUILHERME RODRIGUES DA SILVA - SP309807-A, JESSICA RAQUEL SPONCHIADO - SP353095-A, JOSE ROBERTO SOARES LOURENCO - SP382133-A, NEITON GERALDO GOUVEA JUNIOR - SP440918-A, RODRIGO ANTONIO SERAFIM - SP245252-A, VINICIUS EHRHARDT JULIO DRAGO - SP396019-A
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:
Trata-se de Recurso em Sentido Estrito, interposto pelo Ministério Público Federal, originado de ação penal intentada em face de AUDIR SANTOS MACIEL (nascido em 11.09.1932) e JOSÉ BARROS PAES (nascido em 04.09.1925) pela prática do crime previsto no art. 121, §2º, III e IV, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal, em concurso material com o crime previsto no artigo 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal; de HARRY SHIBATA (nascido em 05.06.1927) e ARILDO DE TOLEDO VIANA (nascido em 03.05.1939) pela prática do crime previsto no art. 299, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal (por duas vezes, no caso de ARILDO DE TOLEDO VIANA); de ALTAIR CASADEI (nascido em 14.04.1941) pela prática do crime previsto no art. 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal; e de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO (nascido em 17.12.1919) pela prática do crime previsto no art. 319 c.c. o art. 61, inc. II, “b”, ambos do Código Penal.
A decisão recorrida (ID 252071071), proferida em 04.05.2020 pelo Exmo. Juiz Federal Alessandro Diaferia (1ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP), rejeitou a denúncia com fulcro no art. 395, inc. II e III, do Código de Processo Penal, c.c. o art. 1º e § 1º, da Lei nº 6.683/1979, § 1º do art. 4º da Emenda Constitucional nº 26/1985, e o art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999 (tendo em conta o resultado do julgamento da APDF nº 153).
Em suas razões recursais, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pugna pela reforma da r. decisão, com o consequente recebimento da denúncia ofertada, sob os seguintes argumentos (ID 252071073):
Diferentemente do afirmado na sentença recorrida, as condutas imputadas aos denunciados não estão sujeitas às regras de extinção da punibilidade previstas nos incisos II (anistia) e IV (prescrição) do art. 107 do Código Penal, nos termos de decisão unânime contida na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida no caso HERZOG E OUTROS VS. BRASIL, proferida em 15 de março de 2018.
Em razão disso, a referida sentença reconheceu que a falta de investigação, bem como do julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de VLADIMIR HERZOG, constituíram graves violações aos direitos humanos deste e de seus familiares, notadamente dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.
Estabeleceu, ainda, que o sequestro, as torturas e a execução da vítima foram cometidos por agentes estatais em um contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil, de maneira que constituem crimes contra a humanidade.
Em consequência, no caso dos autos, a aplicação da Lei de Anistia n. 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade são proibidas pelo Direito Internacional.
Diante disso, a CIDH determinou, entre outros pontos, que o Estado reconheça a inaplicabilidade dessas excludentes de responsabilidade, e reinicie, com a devida diligência, a investigação e o processo penal pelos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra a humanidade desses fatos e às respectivas consequências jurídicas para o Direito Internacional.
Em suma, como será visto adiante, não incidem as regras internas de extinção da punibilidade ao presente caso porque: a) foram comprovadamente cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência; b) nos termos do direito penal internacional costumeiro cogente, as mesmas condutas já constituíam, na data de início dos fatos, crimes de lesa-humanidade ou a eles conexos, motivo pelo qual não estão elas protegidos por regras domésticas de anistia e prescrição; c) nos termos da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos do caso Herzog e outros Vs. Brasil, além do caso Gomes Lund vs. Brasil e de reiterada jurisprudência da mesma Corte em casos similares do mesmo período, as torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados cometidos por agentes de Estado no âmbito da repressão política constituem graves violações a direitos humanos, para fins de incidência dos pontos resolutivos da decisão, os quais excluem a validade de interpretações jurídicas que assegurem a impunidade de tais violações.
(...)
Não há dúvidas, pois, de que o cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos há de ser promovido pelo Brasil, de modo que, se confirmada a decisão ora combatida, o Estado brasileiro permanecerá em mora com o sistema internacional até a implementação da sentença da Corte. Poderá ser, portanto, responsabilizado internacionalmente pelo descumprimento do compromisso assumido com a assinatura do tratado.
(...)
Por fim, não pode subsistir a sentença recorrida no capítulo em que entende ter havido a prescrição das condutas narradas na inicial.
(...)
Desde o início da execução do crime em pauta, no ano de 1975, já estávamos diante de um crime imprescritível, pois qualificado como crime contra a humanidade já naquela época, conforme visto acima. No caso concreto, conforme também visto à exaustão acima, o indispensável é destacar que os violentos crimes praticados por agentes do Estado em face de dissidentes e suspeitos de subversão, se subsomem à categoria dos delitos de lesa-humanidade, firmada juridicamente (com caráter jus cogens), desde o fim da 2ª Guerra Mundial.
(...)
Destarte, necessário ressaltar que, mesmo que não se aceite a tese de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, o prazo prescricional para os crimes aqui referidos teria começado a correr no Brasil somente em 15 de março de 2018, quando proferida a sentença da Corte Interamericana no caso Herzog vs Brasil, como já citado no item supra. Isso porque foi naquela oportunidade que o tribunal competente para julgar a convencionalidade da lei de anistia brasileira o fez, afastando sua incidência, bem como afastando a incidência de 'coisas julgadas' baseadas em anistia ou prescrição, de modo que tanto a anistia quanto a prescrição não resultam aplicáveis ao caso presente.
Com efeito, a r. decisão recorrida estabeleceu relevantes pressupostos para a análise do caso concreto, os quais serão oportunamente reafirmados, concluindo, no entanto, pela subsistência de extinção de punibilidade dos crimes cometidos por agentes da repressão estatal no período de exceção compreendido entre 1964 e 1979, destacando-se os fundamentos ora reproduzidos (ID 52071071 - Pág. 8/41):
III – Da extinção da punibilidade dos fatos
Não obstante o louvável empenho do órgão ministerial, nas suas percucientes ponderações introdutórias à denúncia, em que pretende ver afastada a extinção de punibilidade dos fatos narrados; e não obstante a gravidade e a irreversibilidade das consequências dos fatos narrados, considera este Juízo que não há amparo legal ao prosseguimento da presente persecução penal. Como se verifica dos autos, os fatos descritos na vestibular ocorreram em outubro de 1975, durante a Ditadura Militar, sendo forçoso reconhecer a extinção da punibilidade, em decorrência da concessão de anistia (art. 107, II, CP).
(...)
Deve ser colocado em relevo que a Emenda Constitucional n. 26, de 27/11/1985, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte, e resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988, reafirmou, em seu artigo 4º, a anistia para os autores de crimes políticos ou conexos que foram praticados entre 02/09/1961 a 15/08/1979.
(...)
Portanto, a Lei da Anistia possui relevo histórico na superação do Estado de exceção, tendo sido expressamente reafirmada no ato convocatório da Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988.
(...)
É importante destacar, neste ponto, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - ADPF n. 153 reputou que os efeitos da anistia concedida pela Lei n. 6.683/79 não foram afastados pela Constituição Federal de 1988, alcançando, portanto, os crimes políticos ou conexos com estes, considerando-se conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, praticados pelos agentes civis e militares da repressão no período compreendido entre 02/09/1961 e 15/08/1979 (...)
Como é sabido e consabido, a decisão proferida pelo Colendo Supremo Tribunal Federal em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental possui eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3º, Lei n. 9.882/99), no que evidentemente se enquadram o Poder Judiciário, o Ministério Público e os demais atores do sistema de distribuição de Justiça vigente no Brasil.
E o próprio órgão ministerial reconhece tal circunstância, para, então buscar uma forma de contorná-la. Para tanto, lança mão dos argumentos que passamos a examinar.
Primeiramente, sobre o alegado “caráter sistemático e generalizado dos ataques cometidos por agentes da ditadura militar contra a população brasileira”, tal argumento não se sustenta para o fim pretendido, ou seja, para afastar a extinção da punibilidade dos fatos, ao se caracterizar o fato como crime de lesa-humanidade.
(...)
Existe, portanto, uma distância muito expressiva entre essa suposta “vitória” do regime de exceção e a afirmação de que havia “ataques generalizados contra a população brasileira”: não se pode dizer que a repressão a opositores do regime de exceção, por mais dura que tenha sido, tenha se estendido à grande massa da população brasileira. O argumento peca pelo caráter hiperbólico e não é suficiente para os fins pretendidos.
Igualmente não procede o argumento ministerial sobre a influência do direito internacional na ordem jurídica interna, com vistas a caracterizar os fatos narrados na denúncia como crimes de lesa-humanidade e, por isso, imprescritíveis ou insuscetíveis de anistia.
(...)
Neste sentido, não pode a louvável adesão à Convenção Americana retroagir a fim de invalidar uma decisão política soberana recepcionada pela ordem constitucional vigente.
(...)
Acrescente-se, ainda, que, ao contrário do alegado pelo representante ministerial, o estado brasileiro não tem se eximido da responsabilização de seus agentes por atos praticados no período entre 1964 e 1979, tanto assim que foi recentemente constituída a Comissão Nacional da Verdade, que elucidou as circunstâncias de diversas violações cometidas por agentes estatais, e, inclusive, deu embasamento a persecuções criminais, como a ora em tela, e, sobretudo, a pedidos de reparação na esfera cível.
(...)
Especificamente quanto à recente condenação do Estado Brasileiro, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, é certo que, de fato, o estado brasileiro foi omisso nos 20 anos que se seguiram ao terrível crime narrado. No entanto, não significa que o Estado pode agora ressuscitar sua pretensão punitiva penal, fulminada há muito pelo instituto da prescrição, bem como pela mencionada decisão política soberana de conceder anistia aos crimes políticos da época. Tal decisão, repise-se, já está consolidada na ordem jurídica nacional, sobretudo após a declaração de constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
(...)
Acrescente-se que o Estado brasileiro, por meio do Ministério Público Federal, acatou a decisão de investigar e processar os suspeitos pelo crime de tortura e assassinato de Vladimir Herzog. No entanto, ante o enorme lapso prescricional e a concessão de anistia aos crimes praticados durante a Ditadura Militar, eventual punição penal dos envolvidos nos crimes narrados não encontra guarida na ordem jurídica vigente no Brasil. Em síntese, é absolutamente louvável o empenho do órgão ministerial, no cumprimento de sua função institucional, promovendo por seus próprios meios a investigação e o início da persecução penal. Acrescente-se que a presente inicial acusatória veio acompanhada de farta comprovação de materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria delitiva. No entanto, em respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou válida e em vigor a Lei de Anistia, bem como levando-se em conta o lapso prescricional entre a prática dos delitos e o oferecimento da denúncia, é de rigor o reconhecimento da extinção da punibilidade dos acusados para os delitos narrados no presente feito.
Conforme se denota a partir do breve excerto colacionado, a ampla discussão ora revisitada gravita em torno do reconhecimento da anistia e da prescrição das imputações pelos crimes de homicídio duplamente qualificado, fraude processual, falsidade ideológica e prevaricação tendo como vítima Vladimir Herzog, depreendendo-se que foi decretada a extinção da punibilidade dos acusados mediante os argumentos de que: (i) tais infrações penais não constituiriam crimes de lesa-humanidade; (ii) impossibilidade de aplicar retroativamente aos fatos sub judice normas posteriormente positivadas na ordem jurídica internacional; (iii) a condenação internacional na Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconhecendo a mora do Estado brasileiro em promover a persecução penal e a reparação dos danos causados pelos agentes repressivos da Ditadura Militar não implicam em ressuscitação da possibilidade de punir, extinta por Lei de Anistia e Emenda Constitucional recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, conforme resultado de julgamento da ADPF nº 153.
Todavia, o tema ora em comento, de evidente complexidade e de imbricada solução na justa medida em que encontra ressonância tanto no âmbito do ordenamento jurídico interno como na senda dos tratados e das convenções internacionais assinadas e ratificadas pela República Federativa do Brasil, não pode e não deve ficar adstrito exclusivamente à análise de constitucionalidade levada a efeito pelo C. Supremo Tribunal Federal no espectro da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, sendo imperiosa a ampliação do debate para matizes outras que, por certo, permeiam e irradiam luzes à efetiva compreensão da questão dos crimes perpetrados por agentes estatais no último período ditatorial vivido pela sociedade brasileira.
I - PARADIGMAS DO CONTROLE DA VALIDADE DA NORMA – SUBMISSÃO A JUÍZO DE VALIDADE COM BASE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E EM TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS
O Poder Constituinte Originário (também chamado de Inicial ou Inaugural), de titularidade popular (visão democrática) e exercitado por parcela eleita pelo povo (membros que compõem a Assembleia Constituinte), tem por função criar a norma fundamental de uma sociedade, vale dizer, dispor acerca dos elementos que deverão figurar na nova ordem insculpida no texto de uma Constituição Federal, rompendo por completo com a ordem jurídica anterior. Importante ser dito que referido Poder possui como características básicas ser inicial, autônomo, ilimitado juridicamente, incondicionado e soberano na tomada de suas decisões.
Diz-se inicial na justa medida em que funda novo ordenamento jurídico, não mais devendo respeito ao pretérito; por sua vez, é autônomo por ter a liberdade de estruturar o novel texto constitucional da maneira que aqueles que têm o mister de compor a Assembleia Constituinte bem entender; é ilimitado juridicamente, pois não guarda relação em razão de matéria e de disciplinamento de dado instituto jurídico com o que estabelecido outrora pelo então Poder Constituinte Originário que fixou os ditames da norma constitucional que se quer superar; por fim, é incondicionado e soberano na tomada de suas decisões, uma vez que não deve se submeter a manifestações volitivas anteriores.
Tendo como base os aspectos anteriormente indicados (com especial destaque para a autonomia e para a incondicionalidade do Poder Constituinte Originário), espraiando interesse para os meandros do controle de constitucionalidade de uma norma, emerge o Princípio da Supremacia da Constituição, cuja essência se assenta na ideia da pirâmide normativa kelseniana segundo a qual a Carta Magna seria o cume de mencionada pirâmide, irradiando efeitos para todas as demais normas jurídicas (legais e infralegais) constantes dos patamares situados abaixo do texto constitucional. Nesse diapasão, percebe-se o papel fundamental que a Constituição possui dentro do ordenamento jurídico na justa medida em que vincula os atos infraconstitucionais e infralegais a necessariamente satisfazer regras procedimentais e de conteúdo previstas no Texto Supremo, tudo a permitir o desempenho de eventual controle de constitucionalidade.
A propósito, José Afonso da Silva, comentando o Princípio da Supremacia da Constituição, afirma que:
(...) A constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas (...) resulta da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores (...) (in Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edição revista. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1992, págs. 47 e 49).
Destaque-se que a imposição de adequação das normas em face do que prevê a Constituição decorre da premissa de que esta foi fruto do Poder Constituinte Originário (que detém as características indicadas anteriormente, em especial ser inicial e incondicionado) e repercute justamente no controle de constitucionalidade, que tem por missão expurgar do sistema jurídico vigente preceitos normativos que estão em desacordo com o que a Carta Magna dispõe, seja porque editados em inobservância a regras procedimentais (tais como competência e forma, gerando inconstitucionalidade formal), seja porque veiculados sem respeitar postulados básicos do Estado de Direito (como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, levando ao reconhecimento de uma inconstitucionalidade material ou substancial).
Vide, a título ilustrativo, os magistérios de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (primeira citação) e de Marcelo Novelino (segunda citação) ao comentar o Postulado da Supremacia da Constituição:
(...) O conflito de leis com a Constituição encontrará solução na prevalência desta, justamente por ser a Carta Magna produto do poder constituinte originário, ela própria elevando-se à condição de obra suprema, que inicia o ordenamento jurídico, impondo-se, por isso, ao diploma inferior com ela inconciliável. De acordo com a doutrina clássica, por isso mesmo, o ato contrário à Constituição sofre de nulidade absoluta (...) (in Curso de Direito Constitucional. 2ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, págs. 202/203).
(...) A supremacia da constituição decorre da idéia de superioridade do poder constituinte, o que faz com que sua obra esteja situada no ápice da pirâmide normativa, servindo de fundamento de validade de todos os demais atos jurídicos. No plano dogmático e positivo, a superioridade constitucional se traduz no estabelecimento de forma (competência, procedimentos ...) e do conteúdo dos atos normativos infraconstitucionais que, na hipótese de inobservância dos critérios constitucionalmente estabelecidos, serão submetidos ao controle de constitucionalidade (...) (in Direito Constitucional para Concursos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, pág. 85).
Saliente-se que o C. Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, decide os casos sob sua apreciação invocando o postulado ora em comento com o desiderato de fazer prevalecer no caso concreto as normas constitucionais, notadamente os direitos e garantias fundamentais - apenas a título ilustrativo, podem ser citados o MS 25.668 (Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-3-06, DJ de 4-8-06) e a ADI 1.480-MC (Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-9-97, DJ de 18-5-01). Vale, ademais, trazer excertos de dois julgados da C. Corte Suprema:
(...) O princípio da supremacia da Constituição é o objetivo das ações de fiscalização abstrata de constitucionalidade, havendo de nortear a exegese. (...) (ADI 3.682, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-5-07, DJ de 6-9-07)
(...) A constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos (...) (ADI 293, voto do Min. Celso Mello, julgamento em 6-6-90, DJ de16-4-93)
Sem prejuízo do exposto e concorrendo com a importância que deve ser creditada ao postulado que reza a supremacia do texto constitucional (nos termos anteriormente vertidos), o controle de validade de uma norma, atualmente, também deve ser executado tendo como supedâneo os tratados e as convenções internacionais assinadas e ratificadas pela República Federativa do Brasil, constatação esta passível de ser inferida da própria jurisprudência do C. Supremo Tribunal Federal a partir do relevante leading case retratado no RE 466.343, no qual apreciada a possibilidade de prisão civil do depositário infiel à luz do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos).
Com efeito, até o julgamento do RE 466.343, o C. Supremo Tribunal Federal ostentava posicionamento no sentido de que qualquer tratado internacional (independentemente do tema nele versado) teria força normativa, ao ser introduzido no ordenamento pátrio, de lei ordinária, o que se estenderia, inclusive, aos diplomas internacionais atinentes a direitos humanos (como, por exemplo, o Pacto de São José da Costa Rica). A propósito, importante ser dito que tal orientação foi originariamente declarada em um julgamento proferido no ano de 1977, no bojo do RE 80004, no qual debatida a força normativa ostentada pela Convenção de Genebra (que previa uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias) em cotejo com o Decreto-Lei nº 427, de 22 de janeiro de 1969, oportunidade em que o então Relator, Min. Xavier de Albuquerque, com ressonância no Tribunal Pleno, sufragou que (...) embora a Convenção de Genebra que previu uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do país (...) - segue a ementa do precedente ora em comento:
CONVENÇÃO DE GENEBRA, LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS - AVAL APOSTO A NOTA PROMISSÓRIA NÃO REGISTRADA NO PRAZO LEGAL - IMPOSSIBILIDADE DE SER O AVALISTA ACIONADO, MESMO PELAS VIAS ORDINÁRIAS. VALIDADE DO DECRETO-LEI Nº 427, DE 22.01.1969. EMBORA A CONVENÇÃO DE GENEBRA QUE PREVIU UMA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS TENHA APLICABILIDADE NO DIREITO INTERNO BRASILEIRO, NÃO SE SOBREPÕE ELA ÀS LEIS DO PAÍS, DISSO DECORRENDO A CONSTITUCIONALIDADE E CONSEQUENTE VALIDADE DO DEC-LEI Nº 427/69, QUE INSTITUI O REGISTRO OBRIGATÓRIO DA NOTA PROMISSÓRIA EM REPARTIÇÃO FAZENDÁRIA, SOB PENA DE NULIDADE DO TÍTULO. SENDO O AVAL UM INSTITUTO DO DIREITO CAMBIÁRIO, INEXISTENTE SERÁ ELE SE RECONHECIDA A NULIDADE DO TÍTULO CAMBIAL A QUE FOI APOSTO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO (RE 80004, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, Tribunal Pleno, julgado em 01/06/1977, DJ 29-12-1977 PP-09433 EMENT VOL-01083-04 PP-00915 RTJ VOL-00083-03 PP-00809) - destaque nosso.
Todavia, o posicionamento anteriormente indicado restou alterado pelo C. Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento do RE 466.343, no qual deduzida questão constitucional afeta à sapiência se ainda teria cabimento no sistema jurídico pátrio a prisão civil do depositário infiel.
A fim de que seja compreensível a controvérsia então debatida, importante ser ressaltado que a Constituição Federal, em seu art. 5º, LXVII, apenas permite a prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel (“Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”), o que motivou a edição de diversas leis materializando o encarceramento do inadimplente no contrato de depósito (ainda que, para tanto, houvesse a transmutação do negócio jurídico originariamente celebrado para contrato de depósito por mera ficção jurídica para fins de ser possível o emprego da prisão como meio coercitivo ao cumprimento da obrigação - cite-se, por exemplo, situação afeta à alienação fiduciária em garantia). Em conflito à norma constitucional, verifica-se que a República Federativa do Brasil é signatária do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), que expressamente aduz ser possível tão somente a prisão civil do devedor de alimentos.
Diante do conflito normativo relatado, a aplicação da então jurisprudência consolidada na C. Corte Suprema apontaria para solução no sentido de que, tendo o tratado internacional (ainda que de direitos humanos) mera força normativa de legislação ordinária, não haveria qualquer fundamento a permitir a conclusão de que seria defeso no país a prisão do depositário infiel (haja vista que sua possibilidade encontra-se plasmada no Texto Constitucional, que deve ser respeitado a teor do Princípio da Supremacia Constitucional).
Entretanto, revisitando o tema, inclusive ante a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que introduziu o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, ao lado das disposições originalmente elencadas nos §§ 1º e 2º de mencionado preceito (§ 1º. “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. § 2º. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. § 3º. “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”), entendeu por bem o C. Supremo Tribunal Federal adotar posicionamento segundo o qual, acaso o tratado internacional de direitos humanos não tenha sido aprovado nos mesmos moldes do que um Projeto de Emenda Constitucional (votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros), hipótese em que teria força normativa equivalente à norma oriunda do Poder Constituinte Derivado Reformador, a norma de direito internacional com tal conteúdo possuiria status supralegal em decorrência da relevante matéria discutida e debatida no cenário internacional e objeto de ratificação e de aprovação no país.
Tal novel tratamento conferido aos tratados internacionais de direitos humanos (não internacionalizados nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal) restou chancelado exatamente na apreciação da possibilidade de prisão do depositário infiel no contexto conflituoso anteriormente descrito (Texto Magno de 1988 X Pacto de São José da Costa Rica) quando da apreciação do RE 466.343, restando reafirmado no julgamento do RE 349.703 - a propósito, seguem as ementas dos precedentes mencionados:
PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito (RE 466343, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165) - destaque nosso.
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão 'depositário infiel' insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (RE 349703, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Rel. p/ Acórdão Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675) - destaque nosso.
Portanto, a partir de 03 de dezembro de 2008 (data de realização da sessão de julgamento dos recursos anteriormente transcritos) e ante o reconhecimento pelo C. Supremo Tribunal Federal da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos (não aprovados com o quórum qualificado do § 3º do art. 5º da Constituição Federal), a visão tradicional do ordenamento jurídico materializada pela pirâmide normativa kelseniana (Constituição no topo; patamar intermediário das leis; e patamar subalterno dos atos infralegais) restou alterada pela introdução da faixa atinente a tratados internacionais de direitos humanos (exatamente entre o topo da pirâmide ocupada pela Constituição e o patamar das leis internas).
Dentro de tal contexto, a aferição de compatibilidade de uma lei editada pelo Parlamento, nos dias atuais, passa por dois estágios de verificação: (a) o primeiro deles em face da Constituição Federal tendo como base a ideia regente contida no Princípio da Supremacia da Constituição (cabendo ressaltar que, acaso a lei não esteja de acordo com o Texto Magno, padecerá de vício que a tornará inconstitucional, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto material) e (b) o segundo deles à luz dos tratados internacionais de direitos humanos cuja natureza jurídica seja supralegal (como ocorre, por exemplo, com o Pacto de São José da Costa Rica), sendo imperioso destacar que eventual incompatibilidade levará ao reconhecimento da existência de vício de inconvencionalidade.
Em outras palavras, atualmente o ato legislativo deve retirar seu fundamento de validade tanto da Constituição Federal (sendo, assim, compatível com ela, sob pena de ser inconstitucional) como dos tratados internacionais de direitos humanos não introduzidos ao ordenamento jurídico sob o pálio do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal (porque hierarquicamente superior no contexto elucidativo da Pirâmide de Kelsen, sob pena de ser inconvencional).
II – DA SUBMISSÃO DA LEI DE ANISTIA (LEI Nº 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979) A JUÍZO DE VALIDADE LEVADO A EFEITO TENDO COMO BASE TANTO A CONSTITUIÇÃO COMO TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
Firmadas as premissas teóricas anteriormente sustentadas, cumpre submeter a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979) a juízo de validade tanto em face da Constituição Federal como dos tratados internacionais de direitos humanos.
(a) Do juízo de validade da Lei de Anistia à luz da Constituição Federal de 1988
Conforme dito no início desse voto, o C. Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a Lei de Anistia quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Todavia, importante ser asseverado que referido precedente não teve o condão de exaurir o exame do alcance e da validade da anistia versada na Lei nº 6.683/1979 na justa medida em que resta pendente de enfretamento embargos de declaração nos quais se questiona a extensão material da anistia aos crimes de homicídio, de estupro e de tortura. Ademais, a C. Corte Suprema ainda deverá apreciar o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320 na qual se propugna a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos crimes de grave violação de direitos humanos cometidos por agentes públicos.
Dentro de tal contexto, depreende-se que o decidido pelo C. Supremo Tribunal Federal, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário (nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999: “ A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público”), não colmatou todas as possibilidades de enfrentamento do tema a permitir novas ponderações a incidir sobre a validade da Lei nº 6.683/1979.
Adentrando ao caso retratado nos autos, nota-se que a denúncia ofertada nesta relação processual penal (fls. 39/71) sustenta justamente, na linha do pugnado e do ainda pendente de deliberação na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, que os fatos tratar-se-iam de crimes contra a humanidade, insuscetíveis de anistia ou de prescrição, bem como protesta contra a validade da Lei nº 6.683/1979 por caracterizar-se como hipótese de autoanistia (privilegiando aqueles que se encontravam no Poder) sem se descurar da mácula aos princípios da dignidade da pessoa humana e republicano (dentre outros), que possuem densidade normativa tal a permitir que se recaia juízo de valor sobre suas previsões.
Desta feita, sob o enfoque ora em comento, qual seja, da validade da Lei de Anistia à luz da Constituição Federal de 1988, nota-se que o tema não restou inteiramente enfrentado pelo C. Supremo Tribunal Federal, de modo que a deliberação acerca do recebimento (ou não) da denúncia ofertada pelo Parquet federal neste expediente não possui o condão de ofender ou de desafiar o que restou sufragado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153.
(b) Do juízo de validade da Lei de Anistia à luz da Constituição de 1967 (então vigente quando da edição do ato normativo em exame)
A Constituição de 1967 (então em vigor quando da edição da Lei nº 6.683/1979) trazia, em seu art. 150, um rol de direitos e de garantias fundamentais que serviam para proteger o cidadão da atuação estatal, objetivando a imposição de limites na atuação dos Poderes como cláusula inquebrantável de intangibilidade do ser humano como corolário da dignidade da pessoa humana - a propósito, de rigor a transcrição de alguns dos parágrafos do indicado art. 150 (vez que pertinentes ao desvendo do caso ora em julgamento):
§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta.
§ 12 - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal.
§ 13 - Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena.
§ 14 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário.
§ 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.
O § 35 do art. 150 da Constituição de 1967 ainda previa a possibilidade de ampliação do rol de direitos fundamentais por meio da inclusão de outras garantias compatíveis com o regime e os princípios da ordem constitucional, o que tem o condão de denotar a importância da matéria (direitos e garantias fundamentais) e o grau de respeito que todos (inclusive o Estado) deveriam ter com o ser humano - a propósito: § 35 – “A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”.
Desta feita, verifica-se, na senda dos crimes praticados por agentes estatais contra a população civil valendo-se, para tanto, do aparato repressor institucionalizado no escopo de combater subversivos ao regime político-militar, nítida violação das garantias fundamentais acima transcritas porquanto os atos estatais levados a efeito mostraram-se como transgressores dos limites insculpidos na Ordem Constitucional vigente, cabendo destacar que era pressuposto que os representantes do Estado se portassem de modo a respeitar o direito posto.
Nessa ótica, já sob o enfoque da Carta de 1967, a única interpretação viável da Lei nº 6.683/1979, dentro do espírito republicano, da legalidade, do devido processo legal, da moralidade e, notadamente, da dignidade da pessoa humana, passa pela preservação do direito de punir as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos, tornando inadmissíveis a anistia, a prescrição ou qualquer outra medida extintiva da punibilidade que impeça a persecução penal, justamente porque a Constituição então em vigor ao tempo de edição da mencionada lei não se compaginava e nem tolerava a prática estatal de violência que se instaurou no decorrer do regime ditatorial.
Ressalte-se, outrossim, tendo como base o ora exposto, que, de fato, a Lei nº 6.683/1979 não garantiu impunidade imoderada, restringindo o alcance da anistia, conforme é possível ser inferido de seu art. 1º: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares” (vetado). § 1º - “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. § 2º - “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”.
Como se nota do texto normativo acima transcrito, os crimes atingidos pela anistia deveriam ser aqueles qualificados como políticos, ou conexos com estes, assim entendidos os delitos de qualquer natureza praticados por motivação política. Desta feita, a disposição legal em tela não teve o condão de abranger graves violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais (hipótese retratada nos autos), de modo que, até mesmo à luz do art. 1º em comento, possível se mostra adentrar aos requisitos necessários ao recebimento da exordial acusatória apresentada neste feito ante a não abrangência da anistia aos fatos relatados.
Vale observar, ademais, que, ao integrar a anistia à nova ordem jurídica que se avizinhava em decorrência do processo de abertura política, o art. 4º da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, ratificou os limites da anistia mediante o emprego de expressão mais contida, referindo-se apenas a crimes políticos ou conexos - sem mencionar crimes de qualquer natureza - e, ao se reportar aos agentes estatais, vinculou o alcance do expediente apenas a atos de exceção, institucionais ou complementares - a propósito: “É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares”. § 1º “É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais”.
Frente a tais considerações, agora tecidas tendo como base os preceitos insculpidos na Constituição de 1967 (então vigente ao tempo da edição da Lei nº 6.683/1979), o cometimento dos crimes levados a efeito pelo aparato institucional contra os opositores do regime prevalente naquele momento histórico vai de encontro com os direitos e as garantias deferidas ao cidadão, razão pela qual a anistia não pode ser compreendida a abarcar graves violações de direitos humanos (como, por exemplo, as ocorrentes no bojo do cometimento de crimes de homicídio, de lesão corporal, de tortura, de sequestro etc. praticados por agentes estatais contra dissidentes do regime militar - caso dos autos).
(c) Do juízo de validade da Lei de Anistia à luz dos tratados internacionais de direitos humanos - aplicação do entendimento que confere status supralegal a tais expedientes
Adentrando agora no juízo de validade que deve ser feito à Lei de Anistia tendo como base os tratados internacionais de direitos humanos e partindo da premissa anteriormente estatuída de que referidos atos normativos possuem atualmente status de normas supralegais (entendimento sufragado pelo C. Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento dos RE's 466.343 e 349.703), nota-se a ausência de compatibilidade da Lei nº 6.683/1979 com diversas convenções afetas ao tema de direitos humanos, o que chancela sua inconvencionalidade no âmbito de aferição que tem por pressuposto a nova conformação da pirâmide normativa kelseniana.
Oportuna, para o fim a que ora se sustenta de inconvencionalidade da Lei de Anistia, a transcrição de parte do parecer ofertado pela Procuradoria-Geral da República na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, em 28 de agosto de 2014 (https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=5102145&ext=.pdf)
(acessado em 07.09.2022), no qual se veicula minucioso apanhado de enunciações do Direito Internacional costumeiro destinadas à proteção dos direitos humanos em matéria de crimes contra a humanidade, primeiramente conceituando e estabelecendo competências para o julgamento desses crimes e posteriormente assentando a reprovabilidade de quaisquer obstáculos à punibilidade, inclusive a anistia ou a prescrição, a fim de demonstrar a cabal incompatibilidade do ato anistiador com os parâmetros internacionais incidentes na matéria:
(...) A reprovação jurídica internacional a tais condutas e a imprescritibilidade da ação penal a elas correspondente está evidenciada pelas seguintes provas do direito costumeiro cogente anterior: a) Carta do Tribunal Militar Internacional (1945); (54. Agreement for the Prosecution and Punishment of the Major War Criminals of the European Axis, and Charter of the International Military Tribunal. Londres, 8 ago. 1945. Disponível em: acesso em 27 ago. 2014. O acordo estabelece a competência do tribunal para julgar crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, no art. 6(c): 'nomeadamente, homicídio, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em razões políticas, raciais ou religiosas na execução de ou em conexão com qualquer crime sujeito à jurisdição do Tribunal, estejam ou não em violação ao direito interno do país onde hajam sido perpetrados') b) Lei do Conselho de Controle no 10 (1945); (55. Nuremberg Trials Final Report Appendix D: Control Council Law No. 10: Punishment of Persons Guilty of War Crimes, Crimes Against Peace and Against Humanity, art. II. Disponível em: < http://avalon.law.yale.edu/imt/imt10.asp="">, acesso em 27 ago. 2014. Segundo o documento: '1. Cada um dos seguintes atos é reconhecido como crime: [...] (c) Crimes contra a Humanidade. Atrocidades e crimes, incluindo mas não se limitando a homicídio, extermínio, escravização, deportação, prisão, tortura, estupro e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, ou persecução baseada em razões políticas, raciais ou religiosas, estejam ou não em violação ao direito interno do país onde hajam sido perpetrados. [...]') c) Princípios de Direito Internacional reconhecidos na Carta do Tribunal de Nuremberg e nos julgamentos do Tribunal, com comentários (International Law Commission, 1950); (56. Texto adotado pela Comissão de Direito Internacional e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas como parte do relatório da Comissão. O relatório foi publicado no Yearbook of the International Law Commission, 1950, v. II e está disponível em: < http://bit.ly/juri000l=""> ou , acesso em 27 ago. 2014. 'Princípio VI - Os crimes doravante estabelecidos são puníveis como crimes segundo o Direito Internacional: (a) Crimes contra a paz: [...]. (b) Crimes de guerra: [...]. (c) Crimes contra a humanidade: Homicídio, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos praticados contra qualquer população civil, ou perseguições baseadas em razões políticas, raciais ou religiosas, quando tais atos sejam praticados ou tais perseguições sejam cometidas na execução de ou em conexão com qualquer crime contra a paz ou qualquer crime de guerra. [...] 124. De acordo com o artigo 6 (c) da Carta, a formulação acima caracteriza como crimes contra a humanidade homicídio, extermínio, escravização etc., cometidos contra 'qualquer' população civil. Isso significa que esses atos podem ser crimes contra a humanidade mesmo se forem cometidos pelo agente contra sua própria população.') d) Relatório da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) (1954); (57. Report of the International Law Commission Covering the Work of its Sixth Session, 28 July 1954, Official Records of the General Assembly, Ninth Session, Supplement No. 9 (A/2693). Article 2, paragraph 11 (previously paragraph 10), disponível em < http://bit.ly/un000a=""> ou < http://untreaty.un.org/ilc/documentation/english/a_cn4_88.pdf="">, acesso em 27 ago. 2014. Diz o comentário: "Comentário - O texto anteriormente aprovado pela Comissão dizia o que se segue: [...]. Este texto correspondia em substância ao artigo 6, parágrafo (c), da Carta do Tribunal Militar Internacional em Nuremberg. Era, contudo, mais amplo em escopo do que dito parágrafo em dois aspectos: proibia também atos desumanos cometidos por motivos culturais e, ademais, caracterizava como crimes sob o Direito Internacional não apenas atos desumanos cometidos em conexão com crimes contra a paz ou crimes de guerra, conforme definidos naquela Carta, mas também tais atos cometidos em conexão com todas as outras infrações definidas no artigo 2 do anteprojeto de Código. A Comissão decidiu alargar o escopo do parágrafo de forma a tornar a punição dos atos enumerados no parágrafo independente de eles serem ou não cometidos em conexão com outras infrações definidas no anteprojeto de Código. Por outro lado, a fim de não caracterizar qualquer ato desumano cometido por um indivíduo privado como crime internacional, achou-se necessário dispor que tal ato constitui crime internacional apenas se cometido pelo indivíduo privado por instigação ou com a tolerância das autoridades de um Estado.) (...) f) Resolução 2202 (Assembleia Geral da ONU, 1966); (59. Disponível em < http://bit.ly/un000b=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/21/ares21.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. O artigo 1 da resolução condena a política de apartheid praticada pelo governo da África do Sul como crime contra a humanidade.) g) Resolução 2338 (Assembleia Geral da ONU, 1967); (60. Disponível em < http://bit.ly/un000d=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/22/ares22.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. A resolução 'reconhece ser necessário e oportuno afirmar no direito internacional, por meio de uma convenção, o princípio segundo o qual não há prescrição penal para crimes de guerra e crimes contra a humanidade' e recomenda que 'nenhuma legislação ou outra medida seja tomada que possa ser prejudicial aos objetivos e propósitos de uma convenção sobre a inaplicabilidade de limitações legais a [persecução de] crimes de guerra e crimes contra a humanidade, na pendência da aprovação de uma convenção [sobre o assunto] pela Assembleia Geral'. h) Resolução 2583 (Assembleia Geral da ONU, 1969); (61. Disponível em < http://bit.ly/un000g=""> ou , acesso em 27 ago. 2014. A resolução convoca todos os Estados da comunidade internacional a adotar as medidas necessárias à completa investigação de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, conforme definidos no art. I da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, bem como à identificação, prisão, extradição e punição de todos os criminosos de guerra e pessoas culpadas por crimes contra a humanidade que ainda não tenham sido processadas ou punidas. i) Resolução 2712 (Assembleia Geral da ONU, 1970); (62. Disponível em < http://bit.ly/un000j=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/25/ares25.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. A resolução lamenta que numerosas decisões aprovadas pelas Nações Unidas sobre a questão da punição de criminosos de guerra e de pessoas que cometeram crimes contra a humanidade ainda não estavam sendo totalmente cumpridas pelos Estados e expressa profunda preocupação com o fato de que, nas condições atuais, como resultado de guerras de agressão e políticas e práticas de racismo, apartheid, colonialismo e outras ideologias e práticas similares, crimes de guerra e crimes contra a humanidade estavam sendo cometidos em várias partes do mundo. A resolução também convoca os Estados que ainda não tenham aderido à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade a observar estritamente as provisões da Resolução 2583 da Assembleia Geral da ONU. (...) k) Princípios de Cooperação Internacional na identificação, prisão, extradição e punição de pessoas condenadas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade (Resolução 3074 da Assembleia Geral da ONU, 1973). (64 ONU. Princípios de Cooperação Internacional na Identificação, Prisão, Extradição e Punição de Pessoas Culpadas por Crimes de Guerra e Crimes Contra a Humanidade. Aprovados pela Resolução 3074 da Assembleia Geral em 3 de dezembro de 1973. Estabelece o Princípio 1: Crimes de guerra e crimes contra a humanidade, onde quer que sejam cometidos, devem estar sujeitos a investigação, e as pessoas contra as quais haja prova de que tenham cometido tais crimes devem estar sujeitas a localização, prisão, julgamento e, se julgadas culpadas, a punição.' Disponível em < http://bit.ly/un000m=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/28/ares28.htm="">, acesso em 27 ago. 2014.) (...) Na Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e de Crimes contra a Humanidade (1968), (65 Aprovada pela Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 2391 (XXIII), de 26 de novembro de 1968. Entrou em vigor no direito internacional em 11 de novembro de 1970. Disponível em < http://www.ohchr.org/documents/professionalinterest/warcrimes.pdf="">, acesso em 27 ago. 2014.) a imprescritibilidade estende-se aos 'crimes contra a humanidade, cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz e definidos como tais no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e confirmados pelas Resoluções no 3 e 95 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 1946'. Nota-se, sobretudo a partir dos trabalhos da Comissão de Direito Internacional da ONU da década de 1950 e das resoluções de sua Assembleia Geral em meados dos anos 1960, crescente tendência de dispensar o elemento contextual 'guerra' na definição dos crimes contra a humanidade. Especificamente o uso da expressão 'desaparecimento forçado de pessoas' difundiu-se no plano internacional a partir de milhares de casos de sequestro, homicídio e ocultação de cadáver de militantes políticos contrários a regimes ditatoriais instalados na América Latina. Um dos primeiros registros internacionais desse nomen juris está na Resolução 33/173, da Assembleia Geral das Nações Unidas (de 20 de dezembro de 1978), sobre pessoas desaparecidas. (66. Disponível em , acesso em 27 ago. 2014.) A resolução, editada um ano antes da lei brasileira de anistia, convoca os Estados a: a) dedicar recursos apropriados à busca de pessoas desaparecidas e à investigação rápida e imparcial dos fatos; b) assegurar que agentes policiais e de segurança e suas organizações sejam passíveis de total responsabilização (fully accountable) pelos atos realizados no exercício de suas funções e especialmente por abusos que possam ter causado o desaparecimento forçado de pessoas e outras violações a direitos humanos; c) assegurar que os direitos humanos de todas as pessoas, inclusive aquelas submetidas a qualquer forma de detenção ou aprisionamento, sejam totalmente respeitados. (...) - destaque nosso.
Diante destes imperativos éticos e humanitários previstos no Direito Internacional - coerentes, aliás, com as garantias fundamentais da ordem constitucional brasileira então vigente (nos termos do art. 150, § 35, da Constituição de 1967), não prosperam ilações no sentido de que a República Federativa do Brasil somente restou obrigada a observar tais preceitos a partir da subscrição dos respectivos pactos internacionais.
Na realidade, o fato de apenas após a redemocratização o Brasil ter aderido a tratados que exigem a punibilidade de crimes de lesa-humanidade (como o Estatuto de Roma, instituidor do Tribunal Penal Internacional, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos) não significa que até então estava o país autorizado a anistiar ou a tolerar a prescrição de crimes atrozes, declinando da dignidade da pessoa humana, que já encontrava previsão como valor constitucional no âmbito da Ordem Econômica e Social da Constituição de 1967 (art. 157, II: “A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana (...)”).
Nesse contexto, cumpre trazer à baila novamente o precedente firmado pelo C. Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 349.703 (Rel. Min. CARLOS BRITTO, Rel. p/ Acórdão Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675), oportunidade em que restou assentado que a compatibilidade exigida do ordenamento interno com tratados internacionais de direitos humanos deve ocorrer ainda que a norma interna tenha sido editada quando não existente ou não aprovada a convenção - em outras palavras, (...) o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão (...) - destaque nosso.
Assim, de acordo com o precedente em comento, que analisou, conforme dito anteriormente, a possibilidade de prisão civil do depositário infiel de acordo com o Decreto-Lei nº 911/1969 à luz do Pacto de São José da Costa Rica, depreende-se ser indiferente que a sobrevinda de normativa internacional tenha ocorrido muitos anos após a edição do diploma interno - mesmo diante da questão temporal em comento, ainda assim a lei interna anterior deverá ser analisada com base no tratado internacional de direitos humanos editado em momento futuro, o que sufraga o juízo de valor que se está a realizar da Lei de Anistia com base no status supralegal de tratado internacional de direitos humanos que somente veio ao cenário internacional em momento ulterior.
E é justamente em razão da incompatibilidade dos preceitos elencados na Lei de Anistia brasileira em face do Pacto de São José da Costa Rica que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso Gomes Lund ("Guerrilha do Araguaia"), fixou a responsabilidade do Estado Brasileiro em promover a persecução penal contra os acusados de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar brasileira. Colhe-se do estabelecido pela Corte em tela quando da exaração de sua r. decisão:
(...) 3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (...) 9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença (...).
Em julgamento realizado em 04 de julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao apreciar caso em que envolvida a morte do jornalista Vladimir Herzog encontrado falecido nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), novamente asseverou que a República Federativa do Brasil tem o dever, de acordo com as normas internacionais de direitos humanos, de identificar e de punir os responsáveis pelo passamento - muito pertinente a transcrição de excerto extraído da r. decisão então proferida:
(...) A Corte julga oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo a qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte, e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais (...).
E, nesse contexto, em cumprimento às determinações da Corte Interamericana (que remontam a 2010 - Caso Gomes Lund - "Guerrilha do Araguaia"), o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL promoveu o ajuizamento de ações penais referentes aos crimes praticados por agentes estatais no contexto do regime militar, sendo uma delas a que está ora sendo objeto deste voto.
Portanto, levando em consideração a submissão da Lei de Anistia ao controle de convencionalidade (a teor do anteriormente exposto), bem como o reconhecimento de responsabilidade do Estado brasileiro em promover a persecução penal contra os acusados de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, mostra-se imperativo assentar que o respeito aos direitos humanos deve ser considerado como norma cogente e inafastável do Direito Internacional, respeito este do qual o Estado brasileiro não poderia dispor, seja por ato de vontade (anistia), seja por inércia (prescrição), sob pena de subverter sua própria ordem constitucional ou os tratados e as convenções internacionais assinados em matéria de direitos humanos.
III – ALGUMAS OUTRAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEI DE ANISTIA
Consulta aos apontamentos relativos ao processo legislativo que ensejou a aprovação da Lei nº 6.683/1979 dá conta de que o ato legislativo em tela foi aprovado por 50,61% dos votos então proferidos, vale dizer, 206 parlamentares vinculados ao então partido da situação - ARENA - manifestaram-se favoravelmente à sua aprovação ao passo que 201 membros do MDB externaram posicionamento no sentido do refutamento de seu texto - portanto, a aprovação da Lei de Anistia decorreu de apertadíssima maioria, que se refletia apenas em 05 votos. Cumpre salientar, ademais, que o Congresso Nacional daquele contexto era formado por membros eleitos e por membros não eleitos (estes indicados por um colégio eleitoral no qual a ARENA - partido da situação, frise-se - era o predominante).
Desta forma, mostra-se falacioso o argumento propalado segundo o qual a Lei de Anistia teria sido um bem costurado "acordo social" manifestado pela sociedade da época no sentido de apaziguar os ânimos e permitir que o país caminhasse para uma abertura política tranquila. Na realidade, referida Lei decorreu de uma diminuta margem de aprovação em um contexto em que os parlamentares envolvidos no processo legislativo não representavam efetivamente a sociedade brasileira na justa medida em que parcela daqueles cargos estava sendo ocupada por pessoas indicadas pelo próprio regime militar, razão pela qual não se pode concluir no sentido de que houve um debate social acerca da necessidade de aprovação de uma Lei de Anistia nem que a Lei em si é fruto da vontade soberanamente manifestada pelo povo brasileiro.
Sem prejuízo do exposto, importante ser rememorado que o poder de legislar, de cunho eminentemente constitucional, nunca pode (o que prevalece até os dias atuais) ser exercido de maneira abusiva ou imoderada sob pena de afronta ao devido processo legal legislativo substancial (ou substantive due process of law) manifestado em mácula a postulados inerentes à razoabilidade e à proporcionalidade. Isso porque o exercício de atividade legiferante deve respeitar preceitos fundamentais (razoabilidade e proporcionalidade) que se baseiam em diretrizes que vedam os excessos normativos ou que imponham irrazoáveis consequências aos particulares ou ao Poder Público.
Importante ser dito que o C. Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar a aplicação do devido processo legal legislativo substancial em face de ato emanado do Poder Legislativo que impunha restrições destinadas a compelir pessoa jurídica inadimplente a pagar tributo e que culminavam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício pela empresa devedora de atividade econômica lícita, tendo assentado entendimento no sentido de ser desautorizada a discricionariedade legislativa empregada pois relevadora de um caráter abusivo - a propósito:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010) - SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO - INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF) - RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA - LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO 'SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW' - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 - RTJ 173/807-808 - RTJ 178/22-24) - O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE - 'NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR' (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132) - A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE - A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO 'ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE' - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (...) Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do 'substantive due process of law' (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.) (...) (ARE-AgR 915424, Segunda Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, data de publicação DJE 30/11/2015) - destaque nosso.
Ressalte-se que o Eminente Ministro Relator do ARE-AgR 915424 (cuja ementa encontra-se transcrita acima) trouxe à colação, em seu voto, importante paradigma estabelecido pelo próprio Tribunal Pleno da C. Corte Suprema acerca do reconhecimento do abuso do poder de legislar:
(...) O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do 'substantive due process of law' - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do 'substantive due process of law' (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador (...) (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).
No contexto ora em comento, vislumbra-se que a Lei da Anistia ofende frontalmente o substantive due process of law pois corporifica abuso do poder de legislar (analisado à luz da proporcionalidade e da razoabilidade) ao tentar "apagar" juridicamente as consequências de crimes de lesa-humanidade que violam garantias fundamentais presentes na Constituição de 1967 (vigente ao tempo da edição da Lei nº 6.683/1979), na Constituição de 1988 (com a qual a Lei nº 6.683/1979 deve ser compatível para que ocorra o fenômeno da recepção) e nos tratados internacionais de direitos humanos aprovados e internalizados pela República Federativa do Brasil (cuja compatibilidade com a Lei nº 6.683/1979 pode ser levada a efeito conforme já decidido pelo C. Supremo Tribunal Federal e mencionado ao longo deste voto).
Em outras palavras, as garantias fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana seriam inócuas acaso fosse permitido ao próprio detentor de parcela do Poder popular (referência ao Poder Legislativo) livrar os agentes estatais das consequências decorrentes do seu desrespeito. Por princípio, exige-se sempre que o Estado Constitucional se submeta ao conjunto de limites estabelecido pelo Poder Constituinte Originário (congregador da vontade soberana popular) dentro dos critérios de legalidade, de razoabilidade e de proporcionalidade, observando, inclusive na edição de leis, o chamado devido processo legal substantivo.
IV – CONCLUSÃO PRELIMINAR - POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA PUNIBILIDADE DE AGENTES ESTATAIS POR CRIMES DE LESA-HUMANIDADE COMETIDOS DURANTE A VIGÊNCIA DO ÚLTIMO PERÍODO DE EXCEÇÃO NO BRASIL
Por todos os argumentos anteriormente tecidos, nota-se que a punibilidade em relação aos crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes estatais durante a vigência do último período de exceção no Brasil não foi atingida pela anistia proclamada pela Lei nº 6.683/1979, e tampouco foi atingida pela prescrição, não havendo fundamento, no Estado de Direito, para a legitimação da anistia ou de outra figura obstativa da pretensão punitiva, quer no passado, quer no presente, quer no futuro. Consequentemente, mostra-se necessária a análise da presença de justa causa para a instauração da persecução penal nos termos em que versada na denúncia ofertada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL nesta senda.
V – ARGUMENTOS ESPECÍFICOS DA DECISÃO
Caracterização dos fatos delituosos como crimes de lesa-humanidade
Na esteira da conclusão preliminarmente exarada, cumpre atentar para a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso HERZOG e Outros vs. BRASIL, proferida em 15.03.2018, que fornece um enfoque específico e cogente a respeito do enquadramento do caso que resultou na morte de VLADIMIR HERZOG e consequente investigação de sua causa potencialmente criminosa, no sentido de caracterizá-lo como crime de lesa-humanidade.
Muito embora a identificação do que seja crime de lesa-humanidade acabe por condicionar-se a determinado viés histórico e interpretativo, a CIDH, na esteira da definição trazida pelo Estatuto de Roma, delineia sua principal característica:
"A característica fundamental de um delito de Direito Internacional é que ameaça à paz e a segurança da humanidade porque choca a consciência da humanidade. Tratam-se de crimes de Estado planejados e que fazem parte de uma estratégia ou política manifesta contra uma população ou grupo de pessoas. Aqueles que os cometem, tipicamente, devem ser agentes estatais encarregados do cumprimento dessa política ou plano, que participam de atos de assassinato, tortura, estupro e outros atos repudiáveis contra civis, de maneira sistemática ou generalizada.
223. A Corte observa que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional cristalizou a definição dessa figura jurídica ao dispor, em seu artigo 7, que se entenderá por “crime contra a humanidade” qualquer dos atos detalhados nesse artigo 174 quando se cometa como parte de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque." (págs. 49/50)
Por seu turno, a decisão recorrida mostra-se diametralmente desconforme com a conclusão declinada pela corte internacional, notadamente ao assentar que:
Primeiramente, sobre o alegado “caráter sistemático e generalizado dos ataques cometidos por agentes da ditadura militar contra a população brasileira”, tal argumento não se sustenta para o fim pretendido, ou seja, para afastar a extinção da punibilidade dos fatos, ao se caracterizar o fato como crime de lesa-humanidade.
(...)
Existe, portanto, uma distância muito expressiva entre essa suposta “vitória” do regime de exceção e a afirmação de que havia “ataques generalizados contra a população brasileira”: não se pode dizer que a repressão a opositores do regime de exceção, por mais dura que tenha sido, tenha se estendido à grande massa da população brasileira. O argumento peca pelo caráter hiperbólico e não é suficiente para os fins pretendidos.
Com efeito, não é razoável tal afastamento peremptório, principalmente na fase inicial da ação penal, quando o enquadramento proposto pelo órgão acusatório se escuda em eloquente sentença contra o Estado brasileiro versando a respeito dos mesmos fatos ora examinados, destacando-se, a propósito (ID 252071073 - Pág. 13):
241. Os fatos descritos não deixam dúvidas quanto a que a detenção, tortura e assassinato de Vladimir Herzog foram, efetivamente, cometidos por agentes estatais pertencentes ao DOI/CODI do II Exército de São Paulo, como parte de um plano de ataque sistemático e generalizado contra a população civil considerada “opositora” à ditadura, em especial, no que diz respeito ao presente caso, jornalistas e supostos membros do Partido Comunista Brasileiro. Sua tortura e morte não foi um acidente, mas a consequência de uma máquina de repressão extremamente organizada e estruturada para agir dessa forma e eliminar fisicamente qualquer oposição democrática ou partidária ao regime ditatorial, utilizando-se de práticas e técnicas documentadas, aprovadas e monitoradas detalhadamente por altos comandos do Exército e do Poder Executivo. Concretamente, sua detenção era parte da Operação Radar, que havia sido criada para “combater” o PCB.
(...)
242. A Corte conclui que os fatos registrados contra Vladimir Herzog devem ser considerados crime contra a humanidade, conforme a definição do Direito Internacional desde, pelo menos, 1945 (par. 211 a 228 supra). Também de acordo com o afirmado na sentença do Caso Almonacid Arellano, no momento dos fatos relevantes para o caso (25 de outubro de 1975), a proibição de crimes de direito internacional e crimes contra a humanidade já havia alcançado o status de norma imperativa de direito internacional (jus cogens), o que impunha ao Estado do Brasil e, com efeito, a toda a comunidade internacional a obrigação de investigar, julgar e punir os responsáveis por essas condutas, uma vez que constituem uma ameaça à paz e à segurança da comunidade internacional (par. 212 supra).”
Desta sorte, ainda que eventualmente a instrução probatória chegue a conclusão diversa, assiste potencial razão ao Parquet federal quando afirma: “O que interessa saber é que na época dos fatos existia uma estrutura de polícia política não vinculada ao sistema de justiça, dotada de recursos humanos e materiais para desenvolver, com liberdade, a repressão às organizações de oposição, mediante o emprego sistemático e generalizado da tortura como forma de obtenção de informações” (ID 252071073 - Pág. 7).
Preexistência da proibição a mecanismos de exclusão de responsabilidade oriunda do direito internacional
Outro argumento que carece de sustentação consiste na categórica alocação temporal da proibição concernente a mecanismos da legislação interna que impliquem exclusão de responsabilidade na apuração de graves violações de direitos humanos para o período posterior à adesão do Estado brasileiro ao Pacto de San José da Costa Rica, assim ventilada na decisão ora recorrida (ID 252071071 - Pag. 37):
Neste sentido, não pode a louvável adesão à Convenção Americana retroagir a fim de invalidar uma decisão política soberana recepcionada pela ordem constitucional vigente.
Com percuciência, o Ministério Público Federal reportou na cota introdutória à denúncia (ID 252071036 - Pág. 33):
No caso concreto, conforme também visto à exaustão acima, o indispensável é destacar que os violentos crimes praticados por agentes do Estado em face de dissidentes e suspeitos de subversão, se subsomem à categoria dos delitos de lesa-humanidade, firmada juridicamente (com caráter jus cogens), desde o fim da 2ª Guerra Mundial. No direito penal internacional, a introdução da expressão é consensualmente atribuída aos julgamentos de Nuremberg, em 1945.
A partir de então a imprescritibilidade foi afirmada pela Assembleia Geral da ONU em diversas Resoluções editadas entre 1967 e 1973, a saber: (i) nº 2.338 (XXII), de 1967; (ii) nº 2.391 (XXIII), de 1968; (iii) nº 2.583 (XXIV), de 1969; (iv) nº 2172 (XXV), de 1970; (v) nº 2.840 (XXVI), de 1971; e (vi) nº 3.074 (XXVIII), de 1973. Elas demonstram o consenso existente entre os Estados, já à época dos fatos narrados nestes autos, no sentido de conferir um estatuto jurídico distinto e específico no que tange à persecução e punição das graves violações a direitos universais do homem.
Consenso esse vigente até os dias atuais, que culminou na criação do Tribunal Penal Internacional, em julho de 1998, com base no Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 2002: um tribunal permanente destinado ao processo e julgamento, de forma suplementar à atuação do Estado, dos crimes contra a humanidade.
Não se trata, pois, de aplicar retroativamente o Pacto de San José da Costa Rica, mas de dar efetidade ao jus cogens internacional preexistente aos fatos denunciados.
Dever de persecução criminal
Um último argumento a se debelar consiste na pretensa suficiência da reparação civil de danos e da busca pela revelação histórica dos fatos da Ditadura, assim exposado na r. decisão recorrida (ID 252071071 - Pag. 39):
Acrescente-se, ainda, que, ao contrario do alegado pelo representante ministerial, o estado brasileiro nao tem se eximido da responsabilizacao de seus agentes por atos praticados no periodo entre 1964 e 1979, tanto assim que foi recentemente constituida a Comissao Nacional da Verdade, que elucidou as circunstancias de diversas violacoes cometidas por agentes estatais, e, inclusive, deu embasamento a persecucoes criminais, como a ora em tela, e, sobretudo, a pedidos de reparacao na esfera civel.
Nesta perspectiva, nao se pode dizer que o Estado brasileiro tem sido omisso na reparacao de danos causados por agentes seus, em servico, por atos praticados durante o periodo de excecao, haja vista a solucao civil dada em incontaveis oportunidades, tanto atraves de indenizacoes, algumas superiores a cifra do milhao de reais, quanto por meio de pensoes vitalicias a vitimas ou seus familiares e descendentes.
Portanto, muito antes de os agentes do Estado e membros das Forças Armadas perpetrarem, durante a ditadura militar, o sequestro, a tortura, o homicídio e a ocultação de cadáveres, no contexto das ações de perseguição e repressão violenta dos dissidentes políticos, tais condutas já eram reputadas pelo direito internacional como crimes contra a humanidade.
Diga-se ainda que o Brasil reconheceu expressamente o caráter normativo dos princípios estabelecidos entre as nações, quando em 1914 ratificou a Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre, que consubstancia norma de caráter geral.
Em que pese a relevância de tais medidas para atenuar as consequências para a vítima e seus familiares, estão aquém da devida resposta judicial que deveria contrapor o desvalor social dos fatos denunciados, que ainda aguardam manifestação da esfera maior de repressão estatal, a saber o Direito Penal como ultima ratio correspondente a condutas extremamente graves.
Nesse sentido, dentre as disposições da sentença proferida pela CIDH no caso HERZOG vs. BRASIL, foi determinado que (ID 252071036 - Pág. 21):
7. O Estado deve reiniciar, com a devida diligência, a investigação e o processo penal cabíveis, pelos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra a humanidade desses fatos e às respectivas consequências jurídicas para o Direito Internacional, nos termos dos parágrafos 371 e 372 da presente Sentença. Em especial, o Estado deverá observar as normas e requisitos estabelecidos no parágrafo 372 da presente Sentença.
VI – INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO À COISA JULGADA OU BIS IN IDEM
Mostra-se necessário expressar, ainda, a inocorrência de violação à coisa julgada ou à proibição do non bis in idem, na medida em que a apuração criminal dos fatos denunciados percorreu tortuosos caminhos até a presente oportunidade em que se descortina finalmente o decreto de deflagração da ação penal.
Com efeito, consta dos autos que houve sucessivas iniciativas de apuração dos fatos. Consoante bem recapitulado pelo próprio Parquet federal em sua cota introdutória à denúncia, vislumbra-se que (ID 252071036 - Pág. 35):
Com efeito, o Inquérito Policial Militar - IPM N. 1173-75 foi instaurado diante da grande reação social à morte de Herzog, em 30 de outubro de 1975 destinado a descobrir “as circunstâncias do suicídio do jornalista Vladimir Herzog”. Referido IPM foi presidido pelo General de Brigada Fernando Guimarães Cerqueira Lima.
Motoho Chiota foi o oficial que redigiu o relatório de criminalística, concluindo que a disposição do cadáver correspondia a um “quadro típico de suicídio por enforcamento”. Do mesmo modo, Arildo Viana e Harry Shibata, peritos forenses, apresentaram um laudo de necropsia.
Assim, o inquérito chegou à conclusão de que a morte de Vladimir Herzog ocorreu por suicídio mediante enforcamento, legitimando a versão oficial da época.
Hoje é de conhecimento notório, porém, que a falsidade das necropsias realizadas pelos então médicos das forças de segurança era uma constante durante a ditadura militar brasileira.
Mesmo assim, em 9 de dezembro de 1975, o atestado de óbito de Vladimir Herzog foi emitido, consignando como causa mortis “asfixia mecânica por enforcamento”.
Muitos anos mais tarde, foi instaurado o Inquérito Policial N. 487/92 (Justiça Estadual de São Paulo), no início do ano de 1992, diante da publicação de uma entrevista na revista semanal “Isto é, Senhor”, na qual Pedro Antonio Mira Grancieri, conhecido como “Capitão Ramiro”, afirmou que havia sido o único responsável pelo interrogatório de Herzog.
(...)
Contudo, em 21 de julho de 1992, Mira Grancieri interpôs um habeas corpus a seu favor, alegando que os fatos já tinham sido analisados pelo inquérito militar arquivado, que a justiça ordinária não tinha competência para analisar os fatos e que a Lei de Anistia impedia a investigação dos fatos. Assim, em 13 de outubro de 1992, a Quarta Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, por votação unânime, concedeu o habeas corpus e encerrou a investigação em cumprimento à Lei de Anistia.
Nova tentativa de apurar os fatos ocorreu no ano de 2007, por meio da atuação deste Ministério Público Federal, nos autos do Processo n. 2008.61.81.013434-2.
Naquele tempo, em razão dos fatos expostos no relatório da CEMDP, o advogado Fábio Konder Comparato solicitou ao Ministério Público Federal que investigasse os abusos e atos criminosos contra opositores políticos do regime militar.
A solicitação foi inicialmente analisada por membros do Ministério Público Federal, sem prerrogativa penal. A Procuradora da República Eugenia Augusta Gonzaga e o Procurador Regional da República Marlon Alberto Weichert solicitaram, em 5 de março de 2008, que o procedimento fosse encaminhado a um dos membros do Ministério Público com atribuições penais. Nessa oportunidade, solicitaram expressamente que se investigassem os crimes contra Vladimir Herzog, sustentando que a decisão da Justiça Estadual era nula.
Atuante na esfera criminal, o Procurador Fábio Elizeu Gaspar recebeu o pedido, que originou os Autos n. 2008.61.81.013434-2, mas, em 12 de setembro de 2008, emitiu um despacho fundamentado, no qual solicitou ao TRF da 3ª Região o arquivamento do inquérito, ao argumento de que o assassinato de Vladimir Herzog tinha as características dos crimes contra a humanidade, mas que não haveria tipificação que assim o caracterizasse. Além disso, considerou que a Lei de Anistia não era aplicável ao caso, mas que seria impossível levar adiante a investigação penal por existir coisa julgada material, bem como diante da consumação da prescrição da pretensão punitiva, sem importar se o juiz era competente ou não para o julgamento do caso.
Diante dos argumentos apresentados, a juíza federal interveniente, Paula Mantovani Avelino, acolheu os fundamentos do Ministério Público Federal, entendendo que existia coisa julgada material que tornava impossível a continuação das investigações por estar extinta a ação penal, entre outros fundamentos que já foram rechaçados nos tópicos supra.
De seu turno, a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos posicionou-se pela prevalência da punibilidade de graves violações de direitos humanos sobre a segurança jurídica inerente à coisa julgada (ID 252071036 - Pág. 38):
232. Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância do dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos. A obrigação de investigar e, oportunamente, processar e punir assume particular importância diante da gravidade dos delitos cometidos e da natureza dos direitos lesados, especialmente em vista da proibição das execuções extrajudiciais e tortura como parte de um ataque sistemático contra uma população civil.
A particular e determinante intensidade e importância dessa obrigação em casos de crimes contra a humanidade significa que os Estados não podem invocar: i) a prescrição; ii) o princípio ne bis in idem; iii) as leis de anistia; assim como iv) qualquer disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade, para se escusar de seu dever de investigar e punir os responsáveis. Além disso, como parte das obrigações de prevenir e punir crimes de direito internacional, a Corte considera que os Estados têm a obrigação de cooperar e podem v) aplicar o princípio de jurisdição universal a respeito dessas condutas.
(...)
A intensidade desse dano não só autoriza, mas exige uma excepcional limitação à garantia de ne bis in idem, a fim de permitir a reabertura dessas investigações quando a decisão que se alega como coisa julgada surge como consequência do descumprimento manifesto e notório dos deveres de investigar e punir seriamente essas graves violações. Nesses casos, a preponderância dos direitos das vítimas sobre a segurança jurídica e o ne bis in idem é ainda mais evidente, dado que as vítimas não só foram lesadas por um comportamento perverso, mas devem, além disso, suportar a indiferença do Estado, que descumpre manifestamente sua obrigação de esclarecer esses atos, punir os responsáveis e reparar os lesados.
(...)
274. Levando em consideração todo o acima exposto, a Corte considera que, no presente caso, a alegada coisa julgada material, em virtude da aplicação da lei de anistia, é, definitivamente, inaplicável.
275. Nesse sentido, o Tribunal observa que, quanto à decisão do Superior Tribunal de Justiça, de 1993, que confirmou o habeas corpus de Mira Grancieri e arquivou a investigação que se iniciava sobre a tortura e o assassinato de Vladimir Herzog, a perita Maria Auxiliadora Minahim salientou que “não há erro judiciário que torne possível, dentro das limitações objetivas e subjetivas da res judicata, a derrogação do pronunciamento jurisdicional em que se declarou a improcedência da acusação”. Não obstante, levando em conta as considerações jurídicas expostas nesta seção, a Corte considera que a figura da coisa julgada não é absoluta. Ademais, é necessário destacar que a decisão que encerrou a investigação não foi uma sentença absolutória emitida de acordo com as garantias do devido processo. Ao contrário, tratou-se de uma decisão de um recurso de habeas corpus, tomada por um tribunal incompetente, com base em uma norma (Lei No. 6683/79) que foi considerada por esta Corte como carente de efeitos jurídicos. A decisão em questão tampouco observou as consequências jurídicas que decorrem da obrigação erga omnes de investigar, julgar e punir responsáveis por crimes contra a humanidade. Trata-se, portanto, de uma sentença que não surte efeitos jurídicos e que não reverte as considerações jurídicas constantes da presente sentença.
276. Além disso, a decisão da juíza federal, de 2008, tampouco é uma decisão de mérito, que tenha resultado de um processo judicial respeitoso das garantias judiciais, voltado para a determinação da verdade dos fatos e dos responsáveis pelas violações denunciadas. Ao contrário, trata-se de uma decisão de trâmite ou processual de arquivamento de uma investigação. Em atenção a isso, a Corte considera que tampouco é aplicável o princípio ne bis in idem. Finalmente, a Corte observa que uma decisão baseada em uma lei que não produzia efeitos jurídicos por ser incompatível com a Convenção não gera a segurança jurídica esperada do sistema de justiça.
Diante do conturbado percurso processual ora delineado, é possível entrever-se, contudo, a inexistência de óbice atinente à formação de coisa julgada ou de dupla promoção de responsabilidade pelos mesmos fatos, na medida em que não houve resolução de mérito propriamente dita, jamais tendo sido avaliada a reponsabilidade penal dos acusados pelos crimes tendo como vítima VLADIMIR HERZOG.
Ainda que a Justiça Estadual do Estado de São Paulo tenha extinguido a punibilidade de Mira Grancieri com base na Lei de Anistia, o polo passivo do presente feito é composto por diferentes acusados, com imputações também diversas, não havendo possibilidade de extensão da cogitação de coisa julgada.
Demais disso, a Justiça Federal constitui o foro competente para apreciar a ação penal concernente a atos em tese praticados por agentes vinculados ao Destacamento de Operações de Informações de Sao Paulo (DOI-CODI), estabelecimento gerido pela Uniao, sob o comando do Exercito Brasileiro, de forma que a decisão do Juízo Paulista se reveste de incompetência absoluta, incapaz a gerar a estabilidade própria da coisa julgada.
Por seu turno, a decisão emanada da Justiça Federal, homologatória do pedido de arquivamento formulado pelo Ministério Público Federal nos autos nº 2008.61.81.013434-2, encontra-se ultrapassada pelo fato novo consistente na multicitada decisão proferida em 15.03.2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que impôs ao País a obrigação de promover a persecução criminal dos crimes relacionados à morte de VLADIMIR HERZOG. Destarte, por mais que a decisão pelo arquivamento de investigação seja em princípio merecedora da estabilidade e segurança jurídica, é possível, diante de novos elementos, viabilizar proposição de denúncia, como sucede com a referida sentença internacional, que afastou os efeitos da Lei da Anistia brasileira e condenou o Brasil a não mais invocá-la como óbice à investigação de casos de graves violações de direitos humanos, estabelecendo a seguinte disposição (ID 252071036 - Pág. 21):
7. O Estado deve reiniciar, com a devida diligência, a investigação e o processo penal cabíveis, pelos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra a humanidade desses fatos e às respectivas consequências jurídicas para o Direito Internacional, nos termos dos parágrafos 371 e 372 da presente Sentença. Em especial, o Estado deverá observar as normas e requisitos estabelecidos no parágrafo 372 da presente Sentença.
Como esteio de tal enunciado, a CIDH reconheceu expressamente a ineficácia da Lei de Anistia:
288. A Corte Interamericana estabeleceu que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
289. Nesse sentido, as leis de anistia, em casos de graves violações de direitos humanos, são manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito do Pacto de San José, pois infringem o disposto por seus artigos 1.1 e 2, porquanto impedem a investigação e a punição dos responsáveis pelas violações graves de direitos humanos e, consequentemente, o acesso das vítimas e seus familiares à verdade sobre o ocorrido e às reparações respectivas, impedindo, assim, o pleno, oportuno e efetivo império da justiça nos casos pertinentes, favorecendo, em contrapartida, a impunidade e a arbitrariedade, prejudicando, ademais, seriamente, o Estado de Direito, razões pelas quais se declarou que, à luz do Direito Internacional, elas carecem de efeitos jurídicos.
(...)
292. Desse modo, é evidente que, desde sua aprovação, a Lei de Anistia brasileira se refere a delitos cometidos fora de um conflito armado não internacional e carece de efeitos jurídicos porque impede a investigação e a punição de graves violações de direitos humanos e representa um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso e a punição dos responsáveis. No presente caso, a Corte considera que essa Lei não pode produzir efeitos jurídicos e ser considerada validamente aplicada pelos tribunais internos. Já em 1992, quando se encontrava em plena vigência a Convenção Americana para o Brasil, os juízes que intervieram na ação de habeas corpus deveriam ter realizado um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas devidas competências e das regulamentações processuais respectivas. Com ainda mais razão, as considerações acima se aplicavam ao caso sub judice, ao se tratar de condutas que chegaram ao limiar de crimes contra a humanidade.
Portanto, não há que se falar em dupla persecução ou em formação de coisa julgada como óbice à cognição penal dos fatos sub judice.
VII – DA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL
Para que a persecução penal possa ser instaurada e também para que possa ter continuidade no decorrer de um processo-crime, faz-se necessária a presença de justa causa para a ação penal consistente em elementos que evidenciem a materialidade delitiva, bem como indícios de quem seria o autor do ilícito penal. Trata-se de aspecto que visa evitar a instauração de relação processual que, por si só, já possui o condão de macular a dignidade da pessoa humana e, desta feita, para evitar tal ofensa, imperiosa a presença de um mínimo lastro probatório a possibilitar a legítima atuação estatal. Dentro desse contexto, dispõe o art. 395, III, do Código de Processo Penal, que a denúncia ou a queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal, o que se corporifica pela ausência de substrato probatório mínimo no sentido de comprovar a materialidade delitiva e a autoria da infração penal.
Destaque-se que a jurisprudência atual do C. Supremo Tribunal Federal tem analisado a justa causa, dividindo-a em 03 (três) aspectos que necessariamente devem concorrer no caso concreto para que seja válida a existência de processo penal em trâmite contra determinado acusado: (a) tipicidade, (b) punibilidade e (c) viabilidade - nesse diapasão, a justa causa exigiria, para o recebimento da inicial acusatória, para a instauração de relação processual e para o processamento propriamente dito da ação penal, a adequação da conduta a um dado tipo penal, conduta esta que deve ser punível (vale dizer, não deve haver qualquer causa extintiva da punibilidade do agente) e deve haver um mínimo probatório a indicar quem seria o autor do fato típico. Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE (ART. 215 DO CÓDIGO PENAL). EXTINÇÃO ANÔMOLA DA AÇÃO PENAL. QUESTÕES DE MÉRITO QUE DEVEM SER DECIDIDAS PELO JUIZ NATURAL DA CAUSA. PRECEDENTES. 1. A justa causa é exigência legal para o recebimento da denúncia, instauração e processamento da ação penal, nos termos do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, e consubstancia-se pela somatória de três componentes essenciais: (a) TIPICIDADE (adequação de uma conduta fática a um tipo penal); (b) PUNIBILIDADE (além de típica, a conduta precisa ser punível, ou seja, não existir quaisquer das causas extintivas da punibilidade); e (c) VIABILIDADE (existência de fundados indícios de autoria). 2. Esses três componentes estão presentes na denúncia ofertada pelo Ministério Público, que, nos termos do artigo 41 do CPP, apontou a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e a classificação do crime. 3. A análise das questões fáticas suscitadas pela defesa, de forma a infirmar o entendimento da instância ordinária, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, providência incompatível com esta via processual. 4. Agravo regimental a que se nega provimento (HC 144343 AgR, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 25/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017) - destaque nosso.
Importante consignar que a rejeição da peça acusatória (ou mesmo a absolvição sumária do acusado) com base na inexistência de justa causa para a ação penal impõe que o julgador tenha formado sua convicção de maneira absoluta nesse sentido na justa medida em que defenestra a persecução penal antes do momento adequado à formação da culpa (qual seja, a instrução do processo-crime). Apesar de se exigir a não instauração de relação processual sem um lastro mínimo probatório (nos termos anteriormente tecidos), há que ser ressaltado que prevalece na fase do recebimento da denúncia (e também quando da aplicação das hipóteses de absolvição sumária, uma vez que o art. 397 do Código de Processo Penal aduz que somente haverá a absolvição sumária do acusado quando for manifesta a existência de causa excludente da ilicitude do fato ou de causa excludente da culpabilidade do agente ou quando o fato narrado evidentemente não constitui crime) o princípio do in dubio pro societate de modo que o magistrado deve sopesar essa exigência de lastro mínimo probatório imposto pelo ordenamento jurídico pátrio a ponto de não inviabilizar o jus accusationis estatal a perquirir prova plena da ocorrência de infração penal (tanto sob o aspecto da materialidade como sob o aspecto da autoria) - a respeito do exposto, vide a ementa que segue:
PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO MAJORADO, QUADRILHA OU BANDO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E PREVARICAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE NA VIA DO WRIT. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. CARÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOLO. REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. ABSORÇÃO DOS CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA PELO ESTELIONATO. TEMA NÃO DEBATIDO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INDEVIDA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. (...) 2. A rejeição da denúncia e a absolvição sumária do agente, por colocarem termo à persecução penal antes mesmo da formação da culpa, exigem que o julgador tenha convicção absoluta acerca da inexistência de justa causa para a ação penal. 3. Embora não se admita a instauração de processos temerários e levianos ou despidos de qualquer sustentáculo probatório, nessa fase processual deve ser privilegiado o princípio do in dubio pro societate. De igual modo, não se pode admitir que o julgador, em juízo de admissibilidade da acusação, termine por cercear o jus accusationis do Estado, salvo se manifestamente demonstrada a carência de justa causa para o exercício da ação penal. 4. A denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do Código de Processo Penal e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o exercício da ampla defesa e do contraditório pelo réu. (...) (STJ, RHC 40.260/AM, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 22/09/2017) - destaque nosso.
Não é por outro motivo que se pacificou o entendimento em nossos C. Tribunais Superiores, bem como nesta E. Corte Regional, no sentido de que o ato judicial que recebe a denúncia ou a queixa, por configurar decisão interlocutória (e não sentença), não demanda exaustiva fundamentação (até mesmo para que não haja a antecipação da fase de julgamento para antes sequer da instrução processual judicial), cabendo salientar que o ditame insculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal, de exigir profunda exposição dos motivos pelos quais o juiz está tomando esta ou aquela decisão, somente teria incidência em sede da prolação de sentença penal (condenatória ou absolutória) - nesse sentido:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DESNECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO PROFUNDA OU EXAURIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. WRIT NÃO CONHECIDO. (...) 2. A decisão que recebe a denúncia (art. 396 do Código de Processo Penal) e aquela que rejeita o pedido de absolvição sumária (art. 397 do CPP) não demandam motivação exauriente, considerando a natureza interlocutória de tais manifestações judiciais, sob pena de indevida antecipação do juízo de mérito, que somente poderá ser proferido após o desfecho da instrução criminal, com a observância das regras processuais e das garantias da ampla defesa e do contraditório. 3. No caso dos autos, em que pese a sucinta fundamentação, o Juízo singular afastou as teses defensivas suscitadas na resposta à acusação, pois entendeu, naquele momento processual, ausentes as hipóteses de absolvição sumária do acusado, pela atipicidade do fato ou pela existência de causa excludente da ilicitude do fato ou da culpabilidade, bem como de extinção da punibilidade, nos termos do art. 397 do CPP. 4. Conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou-se o entendimento da inexigibilidade de fundamentação complexa no recebimento da denúncia, em virtude de sua natureza interlocutória, não se equiparando à decisão judicial a que se refere o art. 93, IX, da Constituição Federal. (...) (STJ, HC 320.452/MS, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 28/08/2017) - destaque nosso.
PROCESSUAL PENAL E PENAL: HABEAS CORPUS. ARTIGO 334-A, §1º, IV DO CP. DENÚNCIA. APTIDÃO. REQUISITOS PREVISTOS NO ARTIGO 41 DO CPP SATISFEITOS. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. QUESTÕES QUE SE CONFUNDEM COM O MÉRITO. ORDEM DENEGADA. (...) IX - No momento do recebimento da denúncia ou da análise da resposta à acusação, o Juízo não está obrigado a manifestar-se de forma exauriente e conclusiva acerca das teses apresentadas pela defesa, evitando-se, assim, o julgamento da demanda anteriormente à devida instrução processual (...) (TRF3, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, HC - HABEAS CORPUS - 71222 - 0002937-65.2017.4.03.0000, Rel. DES. FED. CECILIA MELLO, julgado em 27/06/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:06/07/2017) - destaque nosso.
VIII – DO CASO CONCRETO - ANÁLISE DA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL
Firmadas as premissas anteriormente expostas acerca da necessidade da presença de justa causa para a deflagração da persecução penal, cumpre perquirir sua existência nos elementos coligidos aos autos ainda na fase investigativa (que se procedeu por meio da instauração de Procedimento Investigatório Criminal a cargo do órgão acusador). Ressalte-se, por oportuno, que tal análise não incidirá sobre fatos imputáveis à pessoa de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAÚJO, na justa medida em que restou extinta sua punibilidade em razão de seu óbito (ID 25207127).
Conforme descreve a peça acusatória, o conjunto de imputações compreende quatro fatos típicos, abaixo examinados.
A denúncia narra que aproximadamente às 8h do dia 25.10.1975, VLADIMIR HERZOG atendeu à determinação para prestar esclarecimentos no DOI/CODI e lá foi mantido preso sem qualquer formalidade ou ordem judicial. Descreve, ainda, que agentes da segurança nacional teriam interrogado a vítima mediante tortura e sob o comando e supervisão de AUDIR SANTOS MACIEL, comandante responsável pelo referido destacamento, e JOSÉ DE BARROS PAES, Chefe de Comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, resultando na sua morte.
Conforme se depreende do despacho do próprio Quartel General do Comando do II Exército, assinado por AUDIR SANTOS MACIEL, objetivando instaurar Inquérito Policial Militar, foi relatado que (ID 252069018 – Pág. 5):
1. Participo-vos que, cerca as 1630 horas de hoje (25 Out 74) foi encontrado o corpo de VLADIMIR HERZOG, enforcado na grade do xadrês especial nº 1, usando para tanto, a cinta do macacão que usava.
2. VLADIMIR HERZOG apresentou-se ao DOI às 8000 horas de hoje (25 Out 75), para prestar depoimento sobre sua militância no PCB. Aqui, foi acareado com RODOLFO KONDER e GEORGE BENIGNO JATAHY DUQUE ESTEADA, que em sua presença, confirmaram os fatos que o levaram a comparecer neste Destacamento.
Diante das evidências, e do depoimento dos dois companheiros, VLADIMIR HERZOG passou a citar todo seu envolvimento.
Já na parte da tarde, pediu para fazer, de próprio punho, uma declaração. Iniciou a escrevê-la, mas face a necessidade de uso da sala, para ser interrogado outro elemento, foi conduzido ao xadrês especial nº 1, onde ficou sozinho.
Pouco depois, ao ir o carcereiro buscá-lo para ser liberado, conforme a determinação do Chefe da 2ª Sec EM II Ex, encontrou-o enforcado nas grades.
O papel que escreveu estava rasgado, podendo-se reconstituir o texto (anexo).
Tudo leva a crer que foi levado ao tresloucado gesto, por ter se conscientizado da sua situação, e estar arrependido da sua militância.
3. Esclareço-vos ainda que, foram tomadas providências junto à Polícia Técnica e Instituto Médico Legal, para liberação do corpo e entrega a família.
E, em nota oficial, o Comando do II Exército declarou que (ID 252069018 - Pág. 6):
1. Em prosseguimento de diligências que se desenvolveram na área do II Exército que revelam a estrutura e as atividades do “Comitê Estadual do Partido Comunista”, apareceu, citado por seus companheiros, o nome do Sr. WLADIMIR HERZOG, diretor-responsável de Telejornalismo da TV CULTURA – CANAL 2, como militante e integrante de uma célula de base de jornalísticas do citado “Partido”.
2. Convidado a prestar esclarecimentos, apresentou-se acompanhado por um colega de profissão, às 08:00 hs do dia 25 do mês fluente, sendo tomado por termos suas declarações.
3. Relutando, inicialmente sobre suas ligações e atividades criminosas, foi acareado com os seus delatores RODOLFO OSWALDO KONDER e JORGE BENIGNO JATAHY DUQUE ESTRADA, que o aconselharam a dizer toda a verdade, pois, assim já haviam procedido.
4. Nessas circunstâncias, admitiu o Sr WLADIMIR HERZOG a sua atividade dentro do “PCB”, sendo-lhe permitido redigir suas declarações de próprio punho.
5. Deixado, após o almoço e por volta das 15:00hs, em sala, desacompanhado, escreveu a seguinte declaração:
Eu, WLADIMIR HERZOG, admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido aliciado por RODOLFO KONDER; comecei contribuindo com Cr$ 50,00 mensais, quantia que chegou a Cr$ 100,00 em fins de 1974 ou começo de 1975; meus contatos com o PCB eram feitos através de meus colegas RODOLFO KONDER, MARCO ANTONIO ROCHA, LUIZ WEIS, ANTONIO DE BRITO, MIGUEL URBANO RODRIGUES, ANTONIO PRADO, e PAULO MAKUN, enquanto trabalhava na revista Visão.
Admito ter cedido minha residência para reuniões desde 1972; recebi o jornal “Voz Operária” uma vez pelo correio e duas ou três vezes das mãos de RODOLFO KONDER. Relutei em admitir neste órgão minha militância político-partidária. Ass: ilegível.
6. Cerca das 16:00 hs, ao ser procurado na sala onde fora deixado, desacompanhado, foi encontrado morto, enforcado, tendo para tanto utilizado uma tira de pano. O papel, contendo suas declarações, foi achado rasgado, em pedaços, os quais, entretanto, puderam ser recompostos para os devidos fins legais.
7. Foi solicitada à Secretaria de Segurança a necessária perícia técnica, positivando os Srs Peritos a ocorrência de suicídio.
8. As atitudes do Sr WLADIMIR HERZOG, desde a sua chegada, ao órgão do II Exército, não faziam supor, o gesto extremo por ele tomado.
9. As prisões até hoje efetuadas se enquadram, rigorosamente, dentro dos preceitos legais, não visando a atingir classes, mas tão somente salvaguardar a ordem constituída e a Segurança Nacional.
A acusação cita, ainda, que, em seu depoimento testemunhal no IPM (ID 252069020 - Pág. 12/13), JOSÉ BARROS PAES declarou que:
O declarante é chefe da 2ª Seção e, dentre suas missões, inclui-se a de proceder investigações para colheita de informações sobre crimes que atentam contra a Segurança Nacional; que os inquéritos policiais são feitos pelo Departamento da Ordem Política e Social (DOPS), que os encaminha à Justiça Militar; (...) que as investigações policiais no DOPS estão a cargo do Dr. Alcindes SINGILO, no que tange às atividades do Partido Comunista em São Paulo; que, nessas investigações, vários jornalistas foram e estão sendo investigados, (...) o declarante comunicou-se com o Comandante do DOI, Tenente Coronel AUDIR SANTOS MACIEL, recomendando que o jornalista VLADIMIR deveria prestar suas declarações e ser liberado no mesmo dia da sua apresentação; que assim procedeu o declarante não só atendendo as recomendações do Comandante do Segundo Exército, isto é, de que os jornalistas investigados deveriam ser, se possível, liberados no mesmo dia de sua detenção, e, se necessário, retornarem no dia imediato para complementar suas declarações, como também porque, ao que tudo parecia, era de pouca importância a participação de VLADIMIR HERZOG na militância do PCB, a se julgar pelas referencias até então colhidas dos demais jornalistas já investigados; que ainda a recomendação superior era no sentido de se deixar preso o investigado quando havia necessidade para se evitar a quebra da investigação ou a colheita de outras informações; que o declarante confirma o recebimento da Parte nº 342/75-DOI, de 25 de outubro de 1975, do Comandante do DOI, referente a participação da morte por suicídio, do jornalista VLADIMIR HERZOG; que entretanto, tomou conhecimento da morte do jornalista, no mesmo dia, cerca das 1645 horas, quando então o declarante se deslocou para o local; que ali chegando, o declarante deparou com o corpo do jornalista pendurado na grade interna da cela especial número 1(um), e foi o declarante quem determinou as providencias legais, isto é, a chamada da Policia Técnica, bem como o Instituto Médico legal; que foi a Polícia Técnica, bem como o Instituto Médico Legal; que foi a Polícia Técnica que após os exames e fotografias necessárias, cortou o cinto que prendia o pescoço de VLADIMIR à grade da cela; que, depois de liberado o corpo pela Polícia Técnica, foi o cadáver de VLADIMIR removido para o IML para necrópsia; (...) que pelo que o declarante pode se informar e investigar, tem conhecimento que não houve qualquer induzimento, instigação ou auxílio material para que VLADIMIR viesse pôr termo à vida, suicidando-se; que, também sabe, que não foram infligidos a ele quaisquer maus tratos ou qualquer tipo de pressão psicológica que pudesse vir a ocasionar aquele trágico evento; que além do mais, pelo que também o declarante procurou saber, VLADIMIR tinha conhecimento de que seria liberado naquele mesmo dia, e também veio a saber o declarante que confessara espontaneamente sua participação na militância do PCB, e também sabe que a isso foi aconselhado pelos seus próprios companheiros jornalistas que com ele, logo que ali chegou, foram confrontados; que tendo em vista todos esses fatos, não alimenta o declarante, qualquer dúvida, por mínima que seja, que a morte de VLADIMIR tenha sido voluntária, através de suicídio por enforcamento, sem qualquer fato estranho que a ela tivesse dado motivo, a não ser aquele que só ele mesmo, na insondável alma humana, poderá explicar (...).
Ao endossarem a tese do suicídio, AUDIR SANTOS MACIEL e JOSÉ BARROS PAES atuaram pessoalmente para fazer prevalecer a pretensa veracidade desta, de forma tal que, na hipótese de procedência da imputação delitiva, acabam por protagonizar a trama delitiva.
Por sua vez, o encarregado do IPM, General de Brigada Fernando Guimarães de Cerqueira Lima (já falecido) despachou à Procuradoria Geral da Justiça Militar sugerindo o nome de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAÚJO (também falecido), Assessor Jurídico do Comando do II Exército, para acompanhar o IPM. Determinou a realização de Exame Grafotécnico do manuscrito encontrado junto ao corpo de VLADIMIR HERZOG, e o Exame Necroscópico (ID 252069018 - Pág. 9).
Prestaram declarações os civis RODOLFO OSWALDO KONDER e GEORGE BENIGNO JATAHY DUQUE ESTRADA (ID 252069018 - Pág. 10), não destoando da versão militar dos fatos.
Foram juntados aos autos do IPL, fotografias do estado do cadáver que instruíram o Laudo do Instituto Médico Legal (ID 252069018 - Pág. 19/30) e Relatório de encontro de cadáver subscrito por MOTOHO CHIOTA e SILVIO K. SHIBATA (ID 252069019 - Pág. 2/12), já falecidos, estabelecendo a posição pericial que redundou no crime de falsidade ideológica:
Junto à janela dessa cela, em suspensão incompleta e sustido pelo pescoço, através de uma cinta de tecido verde, foi encontrado o cadáver de um homem, de cútis branca, - apontado como sendo o de VLADIMIR HERZOG, de 38 anos de idade, - que se achava com a sua língua ligeiramente procidente.
Seu traje, normalmente disposto, compunha-se de um macacão verde de tecido igual ao da referida cinta de cuecas brancas. Seus pés calçavam meias e sapatos de couro, ambos pretos.
A referida cinta, conforme mostra a foto nº 2, anexa, estava atada na grade metálica, com um nó simples, a uma altura de 1,63 metros. A outra extremidade dessa peça formava a laçada de nó corrediço que constringia fortemente o pescoço, nó este situado na parte posterior do lado esquerdo do mesmo (vide pormenores na foto nº 3, anexa).
Removida a laçada, denotou-se, no pescoço um sulco enegrecido, descontínuo, obliquo e relativamente profundo, cuja largura possuía correspondência com a mencionada laçada (vide pormenores na foto nº 4, anexa).
Do que ficou exposto depreende-se que o fato possuía um quadro típico de suicídio por enforcamento.
Em seguida, no dia 27 de outubro de 1975, foi elaborado novo exame necroscopico (Laudo de Exame de Corpo de Delito nº 54.620) de forma fraudulenta pelos medicos peritos HARRY SHIBATA e ARILDO VIANA, confirmando que a morte teria se dado por suicidio, sem que o primeiro sequer tivesse examinado o cadaver (ID 252070197 - Pág. 4/6).
A autoridade do IPM, em continuidade, formulou quesitos ao IML (ID 252069019 - Pág. 14), respondidos pelo Parecer Médico-Legal nº 241/75, da lavra dos médicos legistas Armando Canger Rodrigues e ARILDO DE TOLEDO VIANA, que veio a afastar a dissimulação da causa mortis com o enforcamento pós-mortal, destacando como indícios a ausência de lesões de violências ou indicativas de defesa, negatividade dos exames toxicológicos, sulco interrompido à direita (no caso de ser destra a vítima) e presença de reação vital na região cervical. Referiu, ainda, que o enforcamento por suspensão parcial não seria acontecimento inusitado, sendo a forma mais frequente conforme a literatura médica apontada (ID 252069020 - Pág. 8/11).
Como contraponto à versão oficial do Exército Brasileiro, esposada nos atos praticados no IPM acima mencionados, narra o Ministério Público Federal que, no presente caso, “como em muitos outros casos ocorridos na mesma época, em situações semelhantes, era montada uma falsa versão de suicídio, farsa que foi executada através da inovação artificiosa do local da cena do crime”. E prossegue, afirmando que (ID 252071037 - Pág. 9):
No final do inquérito, em dezembro de 1975, pautado em diversas evidências selecionadas minuciosamente, a versão de suicídio voluntário foi corroborada no relatório final e o Procurador da Justiça Militar Oscar do Prado Queiroz, já falecido, requereu o arquivamento do feito. A Justiça Militar, então, por intermédio do Juiz da 1ª Auditoria Militar, José Paulo Paiva (já falecido), em 8 de março de 1976, homologou o arquivamento do IPM (cópias às fls. 247 e seguintes do Anexo I, Volume I).
Ocorre que já no ano de 1976, a esposa da vítima, Clarice Herzog, ajuizou ação destinada a apurar a responsabilidade da União pela prisão, tortura e morte de VLADIMIR HERZOG (ação declaratória nº 136/76º, na qual foram coligidos elementos conflitantes com a versão oficial do Exército Brasileiro.
Foi ajuizada demanda cível perante a Justiça Federal Comum pelos familiares de VLADIMIR HERZOG, e como resultado, foi dado provimento à ação declaratória nº 136/76 (ID 252071037 - Pág. 11):
VLADIMIR HERZOG se encontrava preso pelo Exército brasileiro, nas dependências do DOI/CODI de São Paulo (vinculado à 2ª Seção do então II Exército); essa prisão era ilegal; o laudo de exame do corpo de delito realizado pelo Instituto Médico Legal de São Paulo, bem como o laudo de exame complementar, que atestaram suicídio como causa da morte de VLADIMIR HERZOG, são imprestáveis, mesmo porque um dos signatários do laudo (o denunciado HARRY SHIBATA) sequer examinara o cadáver; e há "revelações veementes de que teriam sido praticadas torturas não só em VLADIMIR HERZOG, como em outros presos políticos nas dependências do DOI/CODI do II Exército".
Na esfera cível, foi bem observado pelo Juízo que VLADIMIR HERZOG foi encontrado com vestimenta que dispensava a cinta utilizada no seu enforcamento (ID 252070019 - Pág. 12):
De acrescentar que não havia qualquer motivo viável para que o detento portasse cinta, posto que macacão que vestia quando foi encontrado morto, era inteiriço como está patente nas fotografias de fls. 29/30 e, assim, a cinta não tinha finalidade alguma.
Em tal oportunidade, Rodolfo Oswaldo Konder, que esteve preso em período concomitante com o de VLADIMIR HERZOG, testemunhou o seguinte (ID 252071037 - Pág. 10):
“Podíamos ouvir nitidamente os gritos; primeiro do interrogador e depois de Vladimir e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio. (...) A partir de um determinado momento, a voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido alguma coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça. Mais tarde os ruídos cessaram.”
Rodolfo Oswaldo Konder depôs, ainda, à Polícia Civil de São Paulo, nos autos do IPL nº 487/1992 (ID 252069983 - Pág. 23/25):
“QUE, solicitado a fornecer maiores esclarecimentos sobre a sua permanência no DOI CODI naquela época, bem como da de WLADIMIR, o depoente ratifica suas informações anteriores, dizendo que quando WLADIMIR foi preso o depoente já ali se encontrava recolhido desde o dia anterior; QUE, efetivamente conversou com o mesmo para que dissesse sobre sua participação real junto ao Partido Comunista; QUE, lembra-se o depoente que quando ali entraram, eram lhes dados macacões de pano, sem cinto, que era uma cautela usada pelos interrogadores, inclusive observou o depoente que eles tinham também o cuidado de retirar até os cordões dos sapatos daqueles que eram submetidos a interrogatórios; QUE, sobre o fato de WLADIMIR ter sido morto ou melhor, ter sido encontrado morto com um pano no pescoço, dando a entender um enforcamento, a esse respeito o depoente pondera que, pelo que supôs, na época e agora, acredita que na verdade WLADIMIR deve ter sido morto e com aquela atitude, tentaram mascarar a sua morte, pois como disse, nenhum preso possuía cinto no macacão; QUE, à pergunta desta Autoridade, o depoente esclarece que mesmo estando preso, no mesmo local, somente veio a saber da morte de WLADIMIR no dia seguinte, ou seja no domingo; QUE, quanto ao fato de WLADIMIR ter rasgado o bilhete contendo sua confissão como militante do PCB, o depoente imagina que uma das hipóteses que mais aceita para sua morte é que WLADIMIR, pessoa contrária a qualquer tipo de injustiça, tenha se rebelado naquele momento contra a imposição dos torturadores, obrigando-o a fazer o que não queria, razão pela qual pode ter se revoltado contra os interrogadores, rasgando o bilhete num gesto momentâneo de raiva, sendo então agredido ou morto naquele momento; QUE, a esse respeito o depoente lembra-se de um detalhe, não mencionado anteriormente, que foi um comentário surgido durante o enterro, no sentido de que WLADIMIR teria sido ou melhor, WLADIMIR apresentava ferimento na parte posterior da cabeça, na base do crânio, podendo ser resultado de uma queda ou uma agressão, ferimento esse que teria sido percebido pelas pessoas encarregadas da lavagem do corpo, em cumprimento ao ritual que os Judeus cumprem antes do enterro; QUE, perguntado quem ou de quem ouviu tal informação, o depoente informa que pelo que se lembra foi o Rabino, digo, pelo que se lembra, conversou com uma ou duas pessoas sobre isso e pelo que se recorda, a fonte dessa informação teria sido o Rabino Sobel, contudo não pode afirmar; QUE, acredita que a morte de WLADIMIR tenha ocorrido em razão de seu gesto, principalmente pelo que o conhecia, já que ele tratava-se de uma pessoa ponderada mas plenamente assumida contra as injustiças sociais, razão pela qual não acredita em suicídio; QUE, perguntado se durante sua convivência com WLADIMIR, este demonstrou alguma vez qualquer tendência suicida, a esse respeito o depoente responde que não, ao contrário, WLADIMIR era muito ligado à vida: QUE, sobre a reportagem publicada recentemente na revista 'Isto é Senhor', na qual o ex-policial PEDRO ANTONIO MIRA GRANCIERI assumiu participação no interrogatório de WLADIMIR, se o depoente dela tomou conhecimento e reconheceu tal pessoa como sendo o torturador que na época apresentava uma tatuagem no antebraço esquerdo, representando uma âncora, a esse respeito o depoente responde que tomou conhecimento do teor da reportagem e guardadas as proporções referentes ao tempo passado, parece-lhe ser a mesma pessoa, visto que foram muitos anos atrás que os fatos ocorreram, mas guarda na memória a sua fisionomia (...) QUE, cientificado do teor da reportagem da 'Isto é Senhor', no sentido de que permaneceram numa sala contígua àquela onde WLADIMIR se encontrava, o depoente confirma tal informação; QUE, confirma também que estando na sala lhe destinada, ouviu gritos de HERZOG e já em seguida ouviu o CAPITÃO RAMIRO pedir aos outros componentes da Equipe que trouxessem a 'pimentinha', que era como era conhecida a máquina de choques; QUE, pelo que se recorda e também em razão de estar encapuzado, não pode precisar a hora que isso ocorreu, mas com certeza foi durante o dia e no térreo, esclarecendo que posteriormente à tortura de HERZOG, o depoente e o DUQUE ESTRADA foram levados encapuzados até o andar superior, um segurando no ombro do outro, com o objetivo de que fossem lhes mostradas algumas fotos, fotos essas que não veio a reconhecer e posteriormente veio a supor que esse ato de levá-los para o andar superior, pode ter sido para tirá-los do térreo e possibilitar a retirada do corpo de HERZOG, o qual, naquela altura já devia estar morto.”
Outros depoimentos de perseguidos políticos foram colacionados pelo Parquet federal no sentido de evidenciar a inflição de tortura anteriormente ao óbito de VLADIMIR HERZOG (ID 252071037 - Pág. 16):
SÉRGIO GOMES DA SILVA afirmou que foi preso no dia 05 de outubro de 1975 e foi mantido no DOI-CODI até o dia 26 ou 27 de outubro daquele ano. Durante este período, suportou diversas sessões de tortura, sendo certo que chegou a ficar dias mantido acordado, de pé, sem comer e sem beber, com a boca cheia de sal. Afirma que Pedro Mira Granciere (falecido), tinha um método específico de bater nas articulações dos presos, especialmente enquanto estavam na “cadeira do dragão” ou no “pau de arara”, além de colocar amoníaco no capuz e apertá-lo sobre a cabeça e rosto dos presos.
PAULO SERGIO MARKUN e DILEA FRATE foram presos na mesma ocasião, eis que eram casados à época. PAULO relatou que as sessões de tortura que lhe foram aplicadas consistiam em choques elétricos, sendo certo que ele conseguia ouvir DILEA gritando na cela ao lado, enquanto eles eram mantidos sem comunicação entre si.
ANTHONY JORGE ANDRADE DE CHRISTO disse que, ao chegar ao DOI, foi deixado por um período de 4 horas em um corredor, onde conseguia ouvir os gritos dos demais presos. Chegou a ter forte queda de pressão em uma das sessões de tortura que sofreu, que envolviam choques e espancamento.
Outro elemento a contradizer a versão oficial do Exército sobre a causa mortis consiste no alegado posicionamento da Congregação Israelita Paulista, responsável pelo comitê funerário judaico, cujos membros relataram evidências de tortura no corpo de VLADIMIR HERZOG, a propósito do relato do rabino Henry Sobel a Audálio Dantas, retratado em DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vladimir Herzog: da perseguição nazista à morte sob tortura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, cujo excerto abaixo colacionado foi oportunamente citado pela peça acusatória (ID 252071037 - Pág. 11):
Eu estava no Rio de Janeiro e de lá fiz alguns telefonemas. Procurei o senhor Erich Lechziner, que era o presidente da Chevra Kadisha. Ele me contou que vira o corpo do Vlado durante a lavagem e que havia marcas que poderiam ser de tortura. Isso para mim foi o suficiente. Não hesitei em recomendar que o sepultamento fosse feito no centro do cemitério. Houve pressões para que isso não acontecesse. Não quero dizer de quem partiram essas pressões, mas elas foram muito fortes. O que importa é que Vlado não foi sepultado como suicida.
Por fim, o MPF destaca que peritos da Comissão Nacional da Verdade, em exame pericial indireto, concluíram que (ID 252071037 - Pág. 15):
Vladimir Herzog foi inicialmente estrangulado, provavelmente com a cinta citada pelo perito criminal, e, em ato contínuo, foi montado um sistema de forca, onde uma das extremidades foi fixada a grade metálica de proteção da janela e, a outra, envolvida ao redor do pescoço de Vladimir Herzog, por meio de uma laçada móvel. Após, o corpo foi colocado em suspensão incompleta de forma a simular um enforcamento.
Indo adiante na análise superficial dos elementos coligidos nos autos de processo administrativo disciplinar no Conselho Regional de Medicina de São Paulo movido contra HARRY SHIBATA, em recurso perante o Conselho Federal da entidade classista, foi decidido que (ID 252071037 - Pág. 27):
“Com efeito, devidamente documentada, o Expediente Denúncia contém fortes indícios de que laudos cadavéricos de presos políticos mortos, muitos deles após sofrerem bárbaras torturas, foram assinados por médicos legistas de forma fraudulenta, seja falseando as verdadeiras causas mortis, seja omitindo lesões reveladoras das hediondas torturas praticadas. A tortura é o mais bárbaro, cruel e desumano dos crimes. A medicina é uma profissão a serviço da vida, da saúde e do bem estar do ser humano. Jamais um médico poderá participar, acobertar ou ser conivente com a prática da tortura. Assim, consideramos que o Expediente Denúncia nº 26.809/90 do CREMESP, ora apreciado em “Grau de Recurso” no CFM, além de não estar prescrito, contém indícios de infrações éticas que devem ser apuradas caso a caso pois, se comprovadas, configuram ilícitos éticos. Praticar atos que permitam acobertar fatos contra a dignidade da pessoa humana, ser conivente com a prática de tortura ou outras formas de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, não denunciar tais práticas quando delas tiver conhecimento, fornecer meios, instrumentos ou conhecimentos que facilitem a prática de tortura, usar da profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime, acobertar conduta antiética de médico, falsear laudos periciais ou assiná-los quando não tenha pessoalmente realizado a perícia, não guardar absoluto respeito pela vida humana usando seus conhecimentos técnico-científicos para o sofrimento ou extermínio do homem, constituem grave falta ética.”
No tocante ao crime de prevaricação, embora já insubsistente a punibilidade de DURVAL pelo advento do óbito, a denúncia reporta-se especialmente ao testemunho de Anthony Jorge Andrade de Christo, Luiz Wejs e Paulo Sergio Markun durante a instrução do PIC (IDs 252070290 e 252070037), tendo enfatizado, o órgão ministerial: “foram unânimes em afirmar que sofreram sessões de torturas enquanto estiveram no DOI, além de terem afirmado categoricamente que o macacão fornecido aos presos não continha cinto. Por fim, todos eles disseram que DURVAL tentou conduzir o Inquérito Policial Militar de maneira a confirmar a versão oficial, deixando de reduzir a termo trechos de suas declarações, bem como alterando suas declarações da forma que achava conveniente.” Especificou, ainda, que (ID 252071037 - Pág. 32):
ANTHONY JORGE ANDRADE DE CHRISTO relatou:
O que houve foi uma tentativa de ele [DURVAL] colocar uma série de coisas na minha boca. E eu protestei; uma delas foi de que eu não soube de nada, não ouvi nada, com relação ao VLADO, enquanto eu “tava” lá. Eu disse que não; eu disse que eu tinha ouvido o grito do VLADO. […] E ele botou lá; mandou o escrivão dizer que eu não soube de nada e tal. Esse é um detalhe, porque outros detalhes eu tentei debater com ele que não era por ali, mas o General chegou uma hora e cortou. Mas esse aí, o General surpreendentemente mandou corrigir” (a partir dos 43 minutos do Arquivo “Oitiva – Anthony – pt. 3”, juntado às fls. 348 do Volume II do PIC).
LUIZ WEJS afirmou ter sido ouvido por DURVAL, o qual, segundo suas próprias palavras, era “brutalmente intimidatório”. Ele discorre parafraseando o que se lembra do depoimento. Neste sentido, teria ocorrido o seguinte diálogo:
Procurador: “O que o senhor pode me dizer sobre o suicídio do VLADIMIR HERZOG?” Luiz: “Da morte, o senhor quer dizer.” Procurador: “Não; eu quero dizer suicídio.” Luiz: “Eu não sei se foi suicídio.” Procurador: “O senhor tem algum elemento para afirmar que não foi suicídio?” Luiz: “Não, elementos eu não tenho, mas tenho convicção de que não foi suicídio.”
Ao final do relato de suas lembranças sobre tal procedimento, ele afirma que “não foi um diálogo; foi uma coisa extremamente opressiva. Ele era o equivalente civil ao torturador”. Sobre o Inquérito Policial Militar em si, pondera que “aquilo era uma farsa. O IPM era pra provar o suicídio do VLADO”.
PAULO MARKUN, em suas declarações no PIC, descreveu que as atitudes do Procurador DURVAL eram lamentáveis, eis que ele não admitia nenhuma declaração que contestasse a versão oficial, nem levava em conta todos os indícios de que os presos foram torturados; usavam uniforme sem cinto; alguns ouviram gritos de VLADIMIR, de modo que a tortura poderia tê-lo matado. Ele ainda informou que disse claramente que foi torturado, mas isto não constou dos autos. Ele finalizou, alegando que:
“por ação do Promotor lá, não havia nenhum espaço para que o contraditório se registrasse. […] Ele conduziu, no pior sentido da palavra, quer dizer, ele impossibilitou e eu não tive a coragem de tomar uma outra atitude, né? Tinha acabado de sair do DOI-CODI. […] Ele não permitiu, nem mesmo à Dona Zora, mãe do VLADO, que colocasse em dúvida a versão oficial. […] Ele ditava para o datilógrafo, taquígrafo, sei lá o que era, a versão que ele queria, e que não correspondia ao que eu tinha dito”.
Tais elementos factuais são suficientes para, em uma apreciação perfunctória, desacreditar a tese do suicídio e implicar os agentes estatais denunciados no enredo delituoso, dentro do qual o Parquet estabelece razoáveis correlações indiciárias da autoria delitiva:
AUDIR foi comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) no período de 1974 a 1976. Nesta qualidade, AUDIR SANTOS MACIEL era quem dava todas as ordens aos demais militares que lá estavam lotados. Sua tarefa era extrair o maior número de informações dos presos políticos que eram contrários ao regime militar e que lá eram simultaneamente interrogados e torturados, muitas vezes até a morte.
(...)
Por sua vez, o denunciado JOSÉ BARROS PAES ocupava, à época, o cargo de Comandante da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército (sediado em São Paulo), tendo ele próprio declarado, nos autos do IPM que investigou a morte de VLADIMIR HERZOG, que "o Destacamento de Operações de Informações (DOI) está diretamente subordinado à 2ª Seção e, dentre suas missões, inclui-se a de proceder investigações para colheita de informações sobre crimes que atentam contra a Segurança Nacional". E, de fato, não restam dúvidas de que, na qualidade de Comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI-CODI) e Comandante da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, os denunciados tinham o pleno domínio do fato penalmente típico, pois eram responsáveis pela estrutura de poder na qual HERZOG fora torturado e morto e, ainda, falseada a verdade acerca das reais causas de sua morte.
(...)
Não apenas em razão da posição que ocupavam e pelo seu conhecimento sobre o contexto no qual os órgãos que comandavam encontravam-se inseridos, é certo afirmar que AUDIR e JOSÉ tinham autoridade direta e imediata sobre os agentes responsáveis pela prática direta e indireta das torturas, homicídio e ocultação da causa mortis de HERZOG e possuíam pleno domínio sobre os fatos praticados.
(...)
Com efeito, a estrutura hierárquica e disciplinada prevalecente à época da Ditadura Militar demonstra que as ordens eram emanadas das autoridades superiores e cumpridas pelos subordinados. E, tendo em vista as posições de comando ocupadas por JOSÉ e AUDIR, foi após a ordem de ambos que se iniciaram os esforços para modificação da cena do crime. Desse modo, ainda que os denunciados não tivessem executado diretamente as ações tendentes a ocultar as reais causas da morte de Herzog, o que não há como constatar na presente data, em razão do lapso temporal transcorrido desde os fatos, é certo que detinham a autoridade para ordenar a prática delituosa, tendo poder para decidir se o local dos fatos seria alterado e de que forma.
(...)
Por fim, há que se notar que o corpo de VLADIMIR HERZOG foi encontrado usando o uniforme que o DOI fornecia aos investigados, o que foi documentado pelas testemunhas – em especial RODOLFO KONDER, que o viu de macacão verde-oliva –, bem como pelas fotos tiradas na ocasião. Não obstante, o laudo assinado pelos corréus HARRY SHIBATA e ARILDO VIANA, datado de 27 de outubro de 1975, descreve que suas vestes eram uma calça marrom de malha, camisa e um blusão azul. Desta forma, o cadáver foi examinado em estado diverso daquele no qual teria sido “encontrado”.
(...)
ALTAIR CASADEI era carcereiro do DOI, sendo responsável pelos presos que se achavam no local. De acordo com suas declarações no âmbito do Inquérito Policial Militar n. 1.153/75, ele teria sido a primeira pessoa a ver o cadáver de VLADIMIR HERZOG, tendo afirmado que o encontrou, por volta das 16:30, no dia 25 de outubro de 1975, enforcado na cela especial n. 1, no interior das dependências do DOI.
Trata-se de versão evidentemente falaciosa, eis que, em verdade, VLADIMIR não fora inicialmente encontrado naquela posição.
(...)
Desta feita, é certo que havia torturadores no local na hora da morte, especialmente considerando o fato de que não ocorreu suicídio, mas sim homicídio. Sendo assim, ALTAIR não poderia ter sido a primeira pessoa a encontrar o corpo, tampouco teria se deparado com uma cena de suicídio. Ademais, não teria visto a vítima sozinha na cela, escrevendo, meia hora antes de ter sido encontrado seu corpo sem vida. Não obstante, ALTAIR provavelmente foi uma das pessoas que viu a verdadeira cena do crime, antes de sua modificação para o que seria a versão fotografada e inserida nos documentos oficiais. Mas, ainda que se constatasse que ele não presenciou a cena, tal circunstância tornaria mais evidente a falsidade de suas alegações e sua contribuição na propagação da versão falaciosa. Assim, de qualquer ângulo que se analise os fatos, percebe-se a sua coautoria no crime de fraude processual.
(...)
Desta feita, é incontroverso que JOSÉ BARROS PAES, ALTAIR CASADEI e AUDIR SANTOS MACIEL, agindo com unidade de desígnios, criaram e propagaram da versão falaciosa dos fatos, tendo inovado artificiosamente o estado do local, com o objetivo de produzir efeito em processo penal, o qual ainda não tinha se iniciado. Assim agindo, os denunciados praticaram os delitos previstos nos artigos 347, Parágrafo Único, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea b, todos do Código Penal.
Conforme já descrito anteriormente, HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA foram responsáveis pela confecção do Laudo de Exame Necroscópico n. 54.620, no qual foram omitidas informações essenciais à correta elucidação da causa e circunstâncias da morte de VLADIMIR HERZOG.
Além da falsidade supra, ARILDO DE TOLEDO VIANA, em conjunto com Armando Canger Rodrigues, ainda foi o responsável pela elaboração do Laudo Complementar (Parecer n. 241/75) ao Laudo Necroscópico de 27 de outubro de 1975, elaborado em 10 de novembro de 1975, omitindo informações essenciais e declarando, falsamente, que o exame "não evidenciou a presença de lesões mortais de qualquer natureza, capazes de qualificar a morte de violenta ou natural patológica", e concluíram que se tratou de "asfixia por enforcamento".
Outrossim, os denunciados HARRY SHIBATA e ARILDO VIANA mantinham relações estreitas com os órgãos repressivos, sendo notória a participação de ambos na elaboração de laudos necroscópicos com informações falsas ou omissos, em diversos outros casos de presos políticos. Por tais fatos, HARRY SHIBATA chegou a enfrentar procedimento administrativo de cassação de seu registro profissional no Conselho Regional de Medicina de São Paulo.
(...)
No exercício de suas funções de Procurador de Justiça Militar, portanto, DURVAL e Fernando omitiram-se em seus deveres legais de apurar devidamente os fatos, omitindo dados fornecidos pelas testemunhas ouvidas e, por vezes, alterando as afirmações efetuadas perante as autoridades, contribuindo na ocultação da tortura e morte ocasionada pelo regime, visando a satisfazer sentimentos pessoais, consistentes na manutenção do status quo político; e, ainda, no caso de DURVAL, com intuito de receber benefícios pessoais, com promoções e homenagens pessoais.
Não há dúvidas de que o denunciado DURVAL fazia parte da sistemática de repressão do aparelho ditatorial, contribuindo para que as torturas e mortes ocorridas não fossem apuradas pelo Ministério Público e pelo Judiciário da época. No caso destes autos, a sua omissão tinha como propósito assegurar que os responsáveis pelos crimes praticados contra VLADIMIR ficassem longe do alcance da Justiça, mantendo a impunidade do regime de exceção, o que realmente ocorreu.
Em face da exposição fática ora esboçada, pode-se concluir pela presença da justa causa necessária à deflagração da ação penal em face de AUDIR SANTOS MACIEL e JOSÉ BARROS PAES, como incursos no art. 121, §2º, incs., III e IV, c.c. o art. 61, inc. II, ‘b’, bem como no art. 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, ‘b’, todos do Código Penal, em virtude de comandarem, em tese com dolo direto ou eventual, o homicídio de Vladimir Herzog por agentes dos órgãos de segurança, em favor da manutenção do regime militar, mediante tortura e com recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Outrossim, teriam envidado iniciativas para a inovação artificiosa do estado da cela onde morreu Vladimir Herzog, intentando fazer prevalecer a versão falaciosa do suicídio.
Por sua vez, ALTAIR CASADEI na qualidade de carcereiro do DOI-CODI, teria concorrido para o crime de inovar artificiosamente a cena do suposto homicídio afirmando oficialmente que Vladimir Herzog fora encontrado sozinho e enforcado em posição suicida, de sorte a caracterizar a justa causa para a persecução penal pelo crime constante do art. 347, parágrafo único, c.c. o art. 61, inc. II, ‘b’, todos do Código Penal.
Os elementos examinados também demonstram que as reais causas da morte foram, em tese, ocultadas por HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA, na condição de médicos legistas, ao omitirem informações essenciais que deveriam constar no Laudo de Exame Necroscópico n. 54.620 e no Laudo Complementar - Parecer n. 241/75 (neste caso, apenas ARILDO DE TOLEDO VIANA), com o fim alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.
Por oportuno, vale rememorar precedente desta 11ª Turma em que o Eg. Tribunal Regional Federal da 3ª Região deu provimento ao recurso ministerial favorável ao recebimento de denúncia em face do ora acusado Harry Shibata:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO NO QUAL SE BUSCA A REFORMA DE R. DECISÃO QUE RECONHECEU A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA EM CONTEXTO EM QUE A IMPUTAÇÃO REFERE-SE A DELITO – FALSIDADE IDEOLÓGICA – PERPETRADO EM CONTEXTO DE UM ATAQUE SISTEMÁTICO E GENERALIZADO À POPULAÇÃO CIVIL PELO APARATO ESTATAL EXISTENTE NO PERÍODO DITATORIAL BRASILEIRO. POSSIBILIDADE DE SE RECONHECER COMO SENDO “CRIME CONTRA A HUMANIDADE” A PERPETRAÇÃO DO DELITO DE “FALSIDADE IDEOLÓGICA” NO CONTEXTO DE ATAQUE DESUMANO. REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À HIPÓTESE DE RECONHECIMENTO DE QUE OS DELITOS PERPETRADOS NO CONTEXTO DE UM ATAQUE SISTEMÁTICO E GENERALIZADO À POPULAÇÃO CIVIL PELO APARATO ESTATAL EXISTENTE NO PERÍODO DITATORIAL BRASILEIRO CONFIGURAM “CRIME CONTRA A HUMANIDADE”: AFASTAMENTO DAS CAUSAS EXTINTIVAS DE PUNIBILIDADE DA ANISTIA E DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA.
- Os fatos imputados ao denunciado guardam relação com o potencial falseamento da verdade que teria sido levado a efeito nos idos de 04 de setembro de 1973 quando, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, referida pessoa (ao lado de outro médico legista já falecido), visando assegurar a ocultação e a impunidade de 02 (dois) pretéritos delitos de homicídio (que teriam sido executados pelo Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, pelo Agente Policial Luiz Martins de Miranda Filho, pelo Coronel Antônio Cúrcio Neto e por Gabriel Antônio Duarte Ribeiro, além de terceiros não identificados, em detrimento de Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos), teria omitido em documentos públicos (02 – dois – Laudos de Exames Necroscópicos) declaração que neles deveria constar com o desiderato de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (qual seja, a submissão, por parte daqueles que foram mortos, a sevícias e a torturas que teriam sido perpetradas em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil pelo aparato estatal existente no período ditatorial brasileiro).
- O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL recorre da r. decisão que declarou extinta a punibilidade de denunciado em relação aos crimes do art. 299, caput, do Código Penal, em razão do assentamento da prescrição da pretensão punitiva (nos termos do art. 107, IV, c.c. art. 109, III, ambos do Código Penal). Para tanto, entendeu a autoridade judicante que o crime de “falsidade ideológica” não encontraria respaldo no princípio da legalidade quando incidente na seara internacional na justa medida em que o Direito Internacional não elencaria, dentre o rol dos “crimes contra a humanidade”, a infração penal que o Parquet federal extraiu das condutas descritas neste feito – nessa toada, à luz da ausência da pecha de “crime contra a humanidade” ao delito de “falsidade ideológica”, haveria que incidir, na espécie, as regras de direito interno a permitir o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva ante o transcurso de lapso superior ao previsto na legislação se se levar em conta a data dos fatos e o momento em que potencialmente a denúncia poderia ser recebida.
- Os “falsos ideológicos” em tese imputados ao denunciado, segundo visão acusatória, decorreriam exatamente da suposta omissão, em documentos públicos (quais sejam, Laudos de Exame de Corpo de Delito), de declarações que neles deviam constar (vale dizer, as diversas marcas decorrentes das sessões de tortura que Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos teriam suportado) com o especial fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (veiculação de uma “versão oficial” mais palatável acerca daquelas mortes), tudo isso em um cenário subjacente relacionado ao ataque sistemático e generalizado que civis estavam sendo vítimas pela repressão estatal. Em última instância, as supostas declarações falsas, ao que consta dos autos, tinham potencialmente a finalidade de fechar e de encobrir (frise-se novamente: dar a “versão oficial”) os desmandos ditatoriais pretéritos que teriam defenestrado a vida das vítimas Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos (consistentes em supostas violentas e desumanas sessões de tortura), sendo, assim, inconteste o vínculo de conexidade com a plêiade de infrações que teriam acabado ceifando a vida dos indicados dissidentes políticos ao regime então vigente.
- Ainda que fosse possível suplantar o raciocínio tecido acima, o posicionamento encampado pelo magistrado federal monocrático também não subsistiria tendo como supedâneo a inferência de que os Tratados e as Convenções Internacionais aplicáveis à matéria também permitiriam enquadrar os delitos de “falso ideológico” (em tese perpetrados pelo denunciado) como “crimes contra a humanidade” de molde a se vislumbrar o implemento do Princípio da Legalidade (tanto internacional – a fim de qualificar a conduta como “crime contra a humanidade” – com internamente – como mecanismo a implementar a tipicidade estrita em matéria penal).
- Isso porque o primeiro marco internacional que merece menção sobre o assunto ora em apreciação refere-se à “Carta de Londres” (de 1945), que instituiu o “Tribunal Internacional de Nuremberg” (com o objetivo de processar e de punir os crimes de guerra executados pelos países integrantes do “Eixo Europeu” na 2º Guerra Mundial). Assim, desde o ano de 1945 (portanto, desde antes do período ditatorial brasileiro), a Comunidade Internacional já tinha tipificado condutas que se subsumiriam ao conceito de “crimes contra a humanidade” (destacando-se a execução de assassinatos e de perseguições baseadas em critérios políticos), havendo, ademais, a aposição de uma cláusula de conteúdo aberto (“ou outro ato desumano contra a população”) com o escopo de se buscar ao máximo afastar condutas que, apesar de não expressamente elencadas no diploma internacional, possuiriam nitidamente o condão de transparecer ofensas de lesa-humanidade. Desta feita, mostra-se plenamente crível vislumbrar-se, ainda que não textualmente escrito na “Carta de Londres” (de 1945), que tais “falsos”, por serem o último ato de uma cadeia de condutas, em tese, criminosas e deveras ofensiva aos Direitos Humanos, subsumiriam a rubrica “crimes contra a humanidade” na vertente de “homicídio” (no cenário derradeiro necessário para a sua ocultação) ou, ao menos, sob a expressão “outro ato desumano levado a efeito contra a população civil” (na justa medida em que o falseamento da verdade em questões ligadas ao direito de personalidade das pessoas, especialmente o contexto em que morreram ou, na realidade, foram mortas, já teria o condão de indicar o quão desumano foi o tratamento conferido no período em que o Brasil esteve sob ditadura militar).
- A aferição de compatibilidade de uma lei editada pelo Parlamento, nos dias atuais, passa por dois estágios de verificação: (a) o primeiro deles em face da Constituição Federal tendo como base a ideia regente contida no Princípio da Supremacia da Constituição (cabendo ressaltar que, acaso a lei não esteja de acordo com o Texto Magno, padecerá de vício que a tornará inconstitucional, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto material) e (b) o segundo deles à luz dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos cuja natureza jurídica seja supralegal (como ocorre, por exemplo, com o Pacto de São José da Costa Rica), sendo imperioso destacar que eventual incompatibilidade levará ao reconhecimento da existência de vício de inconvencionalidade.
- O C. Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a Lei de Anistia quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Todavia, referido precedente não teve o condão de exaurir o exame do alcance e da validade da anistia versada na Lei nº 6.683/1979 na justa medida em que resta pendente de enfretamento embargos de declaração nos quais se questiona a extensão material da anistia aos crimes de homicídio, de estupro e de tortura. Ademais, a C. Corte Suprema ainda deverá apreciar o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320 na qual se propugna a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos crimes de grave violação de direitos humanos cometidos por agentes públicos.
- A Constituição de 1967 (então em vigor quando da edição da Lei nº 6.683/1979) trazia, em seu art. 150, um rol de direitos e de garantias fundamentais que serviam para proteger o cidadão da atuação estatal, objetivando a imposição de limites na atuação dos Poderes como cláusula inquebrantável de intangibilidade do ser humano como corolário da dignidade da pessoa humana. Verifica-se, portanto, na senda dos crimes praticados por agentes estatais contra a população civil valendo-se, para tanto, do aparato repressor institucionalizado no escopo de combater subversivos ao regime político-militar, nítida violação a tais garantias fundamentais porquanto os atos estatais levados a efeito mostraram-se como transgressores dos limites insculpidos na Ordem Constitucional vigente, cabendo destacar que era pressuposto que os representantes do Estado se portassem de modo a respeitar o direito posto.
- Fazendo um juízo de validade da Lei de Anistia tendo como base os Tratados Internacionais de Direitos Humanos e partindo da premissa de que referidos atos normativos possuem atualmente status de normas supralegais (entendimento sufragado pelo C. Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento dos RE's 466.343 e 349.703), nota-se a ausência de compatibilidade da Lei nº 6.683/1979 com diversas Convenções afetas ao tema de Direitos Humanos, o que chancela sua inconvencionalidade no âmbito de aferição que tem por pressuposto a nova conformação da pirâmide normativa kelseniana.
- Portanto, levando em consideração a submissão da Lei de Anistia ao controle de convencionalidade, bem como o reconhecimento de responsabilidade do Estado brasileiro em promover a persecução penal contra os acusados de graves violações de Direitos Humanos durante a ditadura militar brasileira, mostra-se imperativo assentar que o respeito aos Direitos Humanos deve ser considerado como norma cogente e inafastável do Direito Internacional, respeito este do qual o Estado brasileiro não poderia dispor, seja por ato de vontade (anistia), seja por inércia (prescrição), sob pena de subverter sua própria Ordem Constitucional ou os Tratados e as Convenções Internacionais assinados em matéria de Direitos Humanos.
- Dado provimento ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (para o desiderato de afastar o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva sufragada pelo magistrado monocrático e, como consequência, determinar o retorno do feito ao 1º grau de jurisdição para que tenha continuidade o juízo de admissibilidade da exordial acusatória então ofertada).
(TRF 3ª Região, 11ª Turma, ReSe - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - 5001756-20.2020.4.03.6181, Rel. Desembargador Federal FAUSTO MARTIN DE SANCTIS, julgado em 26/07/2021, Intimação via sistema DATA: 28/07/2021)
De rigor, portanto, dar parcial provimento ao Recurso em Sentido Estrito manejado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL para receber a denúncia ofertada, com exceção da imputação declinada em face de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO, uma vez que foi reconhecida a extinção da sua punibilidade em razão do óbito, determinando o consequente retorno dos autos à origem para regular prosseguimento. Como corolário, deve incidir na espécie o entendimento sufragado na Súm. 709/STF (Salvo quando nula a decisão de primeiro grau, o acórdão que provê o recurso contra a rejeição da denúncia vale, desde logo, pelo recebimento dela), de modo que este r. provimento judicial colegiado tem o condão de valer como recebimento da denúncia.
XIX – DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto dar parcial provimento ao Recurso em Sentido Estrito manejado pelo Ministério Público Federal, para receber a peça acusatória com relação aos codenunciados AUDIR SANTOS MACIEL, JOSÉ BARROS PAES, ALTAIR CASADEI, HARRY SHIBATA e ARILDO DE TOLEDO VIANA (extinta a punibilidade de DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO em razão do óbito), determinando o retorno dos autos à origem para regular prosseguimento, nos termos anteriormente expendidos.
E M E N T A
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DE DENÚNCIA. IMPUTAÇÃO RELATIVA À PRÁTICA DES CRIMES DURANTE O REGIME MILITAR. HOMICÍDIO QUALIFICADO. FRAUDE PROCESSUAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. PREVARICAÇÃO. ANISTIA. LEI Nº 6.683/1979. ADPF Nº 153/DF. EFEITO VINCULANTE DA DECISÃO PROFERIDA PELO STF. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. O tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/1979, já foi amplamente discutido no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamento nº 153/DF. Tal julgamento assentou a validade da mencionada Lei e a impossibilidade de revisitar, em termos jurídico-penais, os atos por ela abarcados, valendo ressaltar que tal decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999.
2. Por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil, para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/1979.
3. O STF também reafirmou a autoridade da decisão proferida na ADPF º 153 ao deferir liminares nas Reclamações nºs 18.686/RJ (Rel. Min. Teori Zavascki) e 19.760/SP (Rel. Min. Rosa Weber), suspendendo as ações penais que tramitavam no primeiro grau de jurisdição.
4. Tramita no STF a ADPF nº 320/DF, sob relatoria do Min. Luiz Fux, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/1979 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes. Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153. Precedentes.
5. Recurso em sentido estrito não provido.