Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0013821-60.2015.4.03.6100

RELATOR: Gab. 02 - DES. FED. WILSON ZAUHY

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: UNAFISCO NACIONAL - ASSOCIACAO NACIONAL DOS AUDITORES-FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL

Advogados do(a) APELADO: MARCELO BAYEH - SP270889-A, THIAGO TRAVAGLI DE OLIVEIRA - SP333690-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
1ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0013821-60.2015.4.03.6100

RELATOR: Gab. 02 - DES. FED. WILSON ZAUHY

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: UNAFISCO NACIONAL - ASSOCIACAO NACIONAL DOS AUDITORES-FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL

Advogados do(a) APELADO: MARCELO BAYEH - SP270889-A, THIAGO TRAVAGLI DE OLIVEIRA - SP333690-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

Trata-se de apelação interposta pela UNIÃO FEDERAL contra sentença proferida em ação coletiva movida pela ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL – UNAFISCO NACIONAL objetivando o afastamento dos efeitos financeiros da Portaria n° 427/2010, restabelecer os substituídos às suas classes e padrões remuneratórios anteriores à Portaria, a condenação da União à devolução dos valores e ao pagamento de indenização por dano moral a cada um dos substituídos atingidos pelo decesso funcional.

Narra o sindicato autor em sua inicial que a Lei n° 11.457/2007 criou o cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, abrangendo os antigos cargos de Auditor-Fiscal da Receita Federal e Auditor-Fiscal da Previdência Social.

Afirma que a União passou a gerir as questões administrativas desse cargo e constatou que havia diferença de critérios quanto às progressões e promoções funcionais, uma vez que, diferentemente dos Auditores-Fiscais oriundos da Receita Federal, aqueles provenientes da Previdência Social não tiveram progressões ou promoções durante o estágio probatório.

Alega que, para corrigir essa distorção, a ré baixou o Decreto nº 6.852/2009, que estabelecia norma temporária sobre progressão funcional e promoção dos integrantes das carreiras de Auditor-Fiscal do Trabalho e de Auditor-Fiscal da Previdência Social, de que trata a Lei n° 10.593/2002.

Esclarece que esse decreto previu expressamente, em seu artigo 1º, § 3°, que o procedimento de progressão ou promoção funcional jamais poderia ensejar decesso funcional ou financeiro.

Afirma que, para regulamentar a matéria, a ré editou a Portaria nº 304/2009, que reposicionou os Auditores-Fiscais oriundos da Previdência Social. Nada obstante, no ano seguinte editou a Portaria n° 427/2010, que revogou os efeitos da portaria anterior e implicou em decesso funcional e financeiro para parte dos auditores constantes daquela lista de reposicionamento (ID 136521151 – pág. 05/26).

Deferido o pedido de tutela antecipada para suspender os efeitos da Portaria 427/10 quanto à reposição ao erário de valores já recebidos, mediante desconto no contracheque e alteração de posicionamento funcional, de todos os associados ou que vierem a se associar à entidade autora em todo o território nacional (ID 136521152 – pág. 04/12).

Contra a decisão foi interposto agravo de instrumento pela União, ao qual neguei seguimento (AI n° 0022975-69.2015.4.03.0000 - ID 136521152 – pág. 24/76 e 84/88).

Decretada a revelia da ré, sem aplicação de seus efeitos (ID 136521152 – pág. 105).

Em sentença prolatada em 30/06/2017, o Juízo de Origem julgou procedente o pedido para declarar a nulidade parcial, de forma retroativa, dos efeitos da Portaria n° 427/2010, para o fim de manter a progressão/promoção dos auditores-fiscais que sofreram decesso funcional ou financeiro, condenar a União a recompor os valores eventualmente descontados dos substituídos da autora, com correção monetária desde cada desconto, pelo IPCA, e juros desde a citação, pelos índices da caderneta da poupança, e condenar a União ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para cada substituído da autora, com juros desde a publicação da Portaria 427/10, pelos mesmos índices da poupança, e correção monetária desde a publicação da sentença, pelo IPCA. Fez constar que a decisão abrange os associados da autora ou outros que, porventura, vierem a se associar a ela, e tem eficácia em todo o território nacional. Condenou a ré ao pagamento de honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor atualizado da condenação (ID 136521152 – pág. 216/238).

Embargos de declaração opostos pela ré foram rejeitados (ID 136521152 – pág. 243/247 e 256/257).

A União apela alegando, preliminarmente, a necessidade de autorização expressa dos associados e juntada de lista nominal à ação de conhecimento, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal no RE n° 573.232, e de observância dos limites geográficos da competência do juízo de primeiro grau.

No mérito, pretende o julgamento de improcedência do pedido, sustentando que as progressões realizadas com fundamento na Portaria 304/2009 não se coadunam com os ditames do Decreto 84.669/1980, razão pela qual foi necessária a edição da Portaria n° 427/2010, que é necessária a devolução de valores recebidos indevidamente, que seu poder de autotutela autoriza a reparação dos equívocos verificados na portaria anterior, e que, consequentemente, não há que se falar em dano moral.

Subsidiariamente, pede a aplicação do artigo 1º-F da Lei nº 9.494/1997, com redação dada pela Lei n° 11.960/2009 e se determine a compensação de valores pagos administrativamente antes e no curso desta ação (ID 136521153 – pág. 03/70).

Contrarrazões pela parte autora (ID 136521160).

É o relatório.

 

 


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OUTROS PARTICIPANTES:

 

V O T O

 

Da legitimidade ativa ad causam

Ao tratar da associação sindical, o artigo 8º da Constituição da República assim dispõe:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

(…)

III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

(...)

Como se percebe, houve expressa previsão pelo legislador constitucional de que o sindicato age em defesa dos interesses coletivos ou individuais da categoria que representa, inclusive em questões judiciais ou administrativas.

Nestas condições, se, nos termos do dispositivo constitucional, o sindicato age em prol de uma categoria e, mais, se a decisão proferida toca com os interesses da categoria, deve ser reconhecido aos futuros associados o direito de vindicar o resultado útil de decisão que está a beneficiar aquela categoria com a qual está diretamente ligada.

Assim, forçoso é o reconhecimento de que a decisão em prol do sindicato tem eficácia em relação a todas as relações jurídicas possíveis, tendo como norte os benefícios da categoria que representa.

Por via de consequência, deve ser admitida a possibilidade de associados presentes e futuros se beneficiarem de decisão favorável à categoria a que o instituidor da pensão estava vinculado.

Neste sentido, já decidiu esta Corte em relação a pensionistas de servidor substituído processualmente:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. AÇÃO ORIGINALMENTE AJUIZADA POR SINDICATO. LEGITIMIDADE ATIVA DO PENSIONISTA. POSSIBILIDADE.  EXISTÊNCIA DE VÍNCULO DE INTERESSE. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. AGRAVO DESPROVIDO.

1. A discussão instalada nos autos diz respeito à legitimidade da agravada para ajuizamento de cumprimento de sentença que tem como objeto o acordo celebrado entre a agravante e o Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência no Estado de São Paulo – SINSPREV/SP nos autos do processo nº 0032162-18.2007.4.03.6100.

2. Diversamente do que sustenta a agravante, no caso em análise se afigura possível a substituição daquele que originariamente havia sido substituído pelo sindicato.

3. Houve expressa previsão pelo legislador constitucional de que o sindicato age em defesa dos interesses coletivos ou individuais da categoria que representa, inclusive em questões judiciais – como no caso do feito de origem – ou administrativas. Art. 8º, III, da CF.

4. Nestas condições, se, nos termos do dispositivo constitucional, o sindicato age em prol de uma categoria e, mais, se a decisão proferida toca com os interesses da categoria com a qual a pensionista possui possível vínculo de interesse (e não de direito propriamente dito), deve ser reconhecido o direito de vindicar o resultado útil de decisão que está a beneficiar aquela categoria com a qual está diretamente ligada. Nesta linha de raciocínio, mostra-se descabida a exigência de que a pensionista também possua vinculação estatutária ou de filiação ao respectivo sindicato.

5. Assim, forçoso é o reconhecimento de que a decisão em prol do sindicato tem eficácia em relação a todas as relações jurídicas possíveis, tendo como norte os benefícios da categoria que representa. Por via de consequência, deve ser admitida a possibilidade de a pensionista se beneficiar de decisão favorável à categoria a que o instituidor da pensão estava vinculado.

6. Por tais razões, entendo que deve ser mantida a decisão agravada que reconheceu a legitimidade ativa da agravada para ajuizar o cumprimento de sentença de origem.

7. Agravo desprovido" (destaquei).

(TRF da 3ª Região, Agravo de Instrumento n° 5002902-15.2020.4.03.0000/SP, Rel. Desembargador Federal Wilson Zauhy, Primeira Turma, julgamento em 15/12/2020, e-DJF3: 21/12/2020).

Ainda, inaplicável ao caso o Tema de Repercussão Geral n° 82/STF, que se refere a associações e não a sindicatos, in verbis:

“I – A previsão estatutária genérica não é suficiente para legitimar a atuação, em Juízo, de associações na defesa de direitos dos filiados, sendo indispensável autorização expressa, ainda que deliberada em assembleia, nos termos do artigo 5º, inciso XXI, da Constituição Federal; II – As balizas subjetivas do título judicial, formalizado em ação proposta por associação, são definidas pela representação no processo de conhecimento, limitada a execução aos associados apontados na inicial”.

Como fundamentei até aqui, a representatividade dos sindicatos é diversa e mais ampla do que a representatividade de associações.

Fica rejeitada, portanto, a tese de ilegitimidade ativa ad causam.

Dos limites geográficos da tutela jurisdicional

O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a limitação geográfica prevista no artigo 16 da LACP, consoante as seguintes teses (Tema de Repercussão Geral n° 1.075):

"I - É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original.

II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).

III - Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas".

Portanto, rejeito a tese de limitação dos efeitos da decisão aqui proferida aos limites geográficos do Juízo de Origem.

Do mérito da causa

Do descenso funcional

O sindicato autor funda sua pretensão na irredutibilidade dos vencimentos do servidor público, garantia que entende ter sido violada pela edição da Portaria n° 427/2010, que teria importado em decesso funcional a alguns de seus substituídos.

O Juízo de Origem acolheu o pleito para anular referida portaria em relação dos substituídos por ela prejudicados, mantendo o ato em relação aos que foram por ela beneficiados, com fundamento na garantia constitucional à irredutibilidade de vencimentos, na boa-fé objetiva, na segurança jurídica, no devido processo legal e no dever de motivação dos atos administrativos, como revela o seguinte trecho da fundamentação adotada em sentença (ID 136521152 – pág. 220/229):

“(...)

A garantia constitucional da irredutibilidade de vencimentos/subsídios (art. 5°, XV, da CF, com redação da EC 19/98) tem 'reflexos' na interpretação e aplicação das normas do sistema jurídico.

Assim, ainda que servidores públicos não tenham direito ao regime jurídico e, dessa forma, as situações jurídicas podem ser modificadas, ressalvados direitos adquiridos, alguns ‘parâmetros’ precisam ser observados, a fim de evitar que se atinjam outros valores, como a boa-fé, ou princípios, como a segurança jurídica e o devido processo legal.

A Lei 11.457, de 2007, criou o cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, tendo componentes auditores da Receita Federal e auditores da Previdência Social.

No entanto, diferente dos auditores da Receita Federal, os da Previdência Social não tiveram progressão/promoção durante o estágio probatório. Havia, assim, distorção entre as respectivas carreiras.

Para resolver o problema, a requerida passou a aplicar o Decreto 6.852/2009, o qual conferiu aos servidores a aplicação das regras contidas no Decreto 84.669/80, especificamente no período entre Março de 2007 (momento da fusão dos auditores da Receita com os auditores da Previdência) e Dezembro de 2008 (advento da Lei 11.890/08, que transformou os vencimentos dos auditores fiscais da Receita Federal do Brasil em subsídios.

As promoções/progressões funcionais foram posicionadas no Anexo I da Portaria 304/09, M.F. (por meio da qual pretendia-se aplicar o Decreto 84.669).

No entanto, conforme referido a fls. 268, verso, referida listagem de servidores, constate no Anexo I, da Portaria 304, não observou a ordem dos critérios de classificação estabelecida no mencionado Decreto 84.669; contrariando o artigo 13, § 2º, desse ato administrativo, ‘progrediu/promoveu Auditores-Fiscais com maior tempo de Serviço Público Federal em prejuízo dos que possuíam maior tempo na referência/classe/categoria funcional’.

Para corrigir essas distorções, sobreveio a Portaria 427, de 2010, M.F., a qual, por sua vez, efetuou ‘novo’ posicionamento, constante no Anexo I, procedeu ao enquadramento de servidores-auditores fiscais e tornou sem efeitos, dentre outras, a Portaria 304/09.

Assim, na prática, essa novel portaria causou decesso funcional ou financeiro de auditores fiscais, indo de encontro, portanto, ao disposto no artigo 1º. § 3º do Decreto 6.852/09, segundo o qual ‘o disposto neste artigo não poderá ensejar decesso funcional ou financeiro aos servidores aos quais se destinam’.

Independentemente de se saber se a intenção da Portaria 427 foi convalidar o ato administrativo anterior (Portaria 304, 2009), ou invalidá-lo, ou revogá-lo, o fato é que, sem dúvidas, a forma pela qual a Administração atuou ofendeu a boa-fé do particular, bem assim os princípios do devido processo legal e da segurança jurídica.

Não se está a negar o direito (ou dever) de a Administração revogar ou anular (ou convalidar) atos administrativos (Súmula 473 do STF) – autotutela administrativa. Todavia, essa competência do Poder Público comporta limites de ordem jurídica.

As citadas portarias, ambas, têm natureza de atos administrativos concretos, vale dizer, contêm efeitos práticos em face dos destinatários específicos, determinados nos próprios atos. Portanto, trata-se de atos individuais e concretos.

Evidentemente, quando a Administração Pública ‘tornou sem efeito’ ato administrativo anterior (concreto e individual), sem, ao menos, conceder o contraditório aos destinatários, violou, de chofre, o princípio do devido processo legal, insculpido no artigo 5º, LIV e LV da Constituição Federal.

(...)

Uma das ‘vertentes’ do princípio do devido processo legal é a motivação do ato. Pois, ‘a motivação torna-se necessária também para possibilitar a ampla defesa no sentido material, no sentido de aplicação do devido processo legal’. Sem motivação, não há como se inferir se o ato é justo, correto, atende ao interesse público, aos direitos dos particulares, etc.

(...)

Em suma: faltou o pressuposto formalístico, referente à formalização do ato – a motivação.

O artigo 50 da Lei 9.784/99 (regula o processo administrativo no âmbito federal) arrola as situações em que os atos devam ser motivados, dentre as quais: I – as de negar, limitar ou afetar direitos e interesses; VIII – anular, revogar, suspender ou convalidar atos.

De acordo com a Teoria dos Motivos Determinantes, os motivos (que levaram à edição do ato) vinculam o ato; se acaso forem inexistentes, insuficientes, infundados, etc., invalidam-no. É que, nas lições de Pietro Virga, a ‘motivação pode constituir um requisito de legitimidade do provimento, quando seja requerida expressamente por uma norma de lei ou seja imposta pela natureza mesma do ato’.

A segurança jurídica é baluarte do regime democrático de Direito; explica Geraldo Ataliba:

(...)

Com efeito, no Estado Democrático de Direito, certas situações jurídicas, conquanto não constituam direitos adquiridos, devem ser reconhecidas e protegidas pela ordem jurídica. Nesse sentido, expõe o autor germânico Ernst Forsthoff: a noção de direito (adquirido) tem sido modificada por noções mais largas, tais como posição jurídica, situação jurídica, esfera jurídica.

Ora, por meio de ato administrativo, o qual detém presunção de legitimidade (Portaria 304/2009), a Administração Pública procedeu ao enquadramento de servidores federais; porém, com outro ato administrativo (Portaria 427/2010), além de tornar sem efeitos aquele ato jurídico, realizou ‘novo enquadramento’, a fim de atender ao disposto no Decreto 84.669/80.

É bem verdade, na hierarquia administrativa, o Decreto sobrepõe-se às portarias; este ato advém do Chefe do Executivo, autoridade máxima no escalão hierárquico deste Poder. Apesar disso, e em que pese a tentativa de a Administração regularizar a situação, com a edição da Portaria 427/2010, acabou por beneficiar servidores, com certeza; porém, em detrimento de tantos outros, que estavam sob o jugo da Portaria 304/2009.

Ora, os servidores outrora beneficiados pela Portaria 304 não poderiam mais ser prejudicados, ante a edição da Portaria 427/2010, sob pena de ofensa à segurança jurídica; houve consolidação da situação jurídica, por meio de ato da própria Administração (Portaria 304), o qual detém a presunção de legitimidade, com os reflexos patrimoniais e extra-patrimoniais decorrentes; os servidores moldaram suas vidas aos ditames estabelecidos na Portaria 304/2009; fincaram expectativas; assumiram compromissos; ascenderam no escalão hierárquico, enfim, uma gama de situações consolidadas, consumadas, que não poderiam absolutamente ser revistas pela Administração. Impede a modificação da posição jurídica, sobretudo, o princípio geral de Direito, fundamento da República brasileira: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, ‘caput’, III, CF).

Cuida-se da liberdade no sentido de projeto de vida. José Vilanova explica:

(...)

Reconhecido o problema, deve haver solução. Indaga-se se é o caso de decretação de nulidade da Portaria 427/2010. Ora, se o Judiciário anular o ato, ipso facto, haveria consequências jurídicas devastadoras, nefastas, a terceiros de boa-fé: os contemplados na Portaria 427 – os beneficiados por este ato seriam atingidos em suas esferas jurídicas.

Assim, em vista dessa consequência, não haveria Justiça – e o Direito estaria irremediavelmente falido! Como o diz Radbruck, a ideia de direito é a ideia de justiça; o Direito é a realidade que tem o sentido de servir a justiça.

Por conta da posição jurídica de servidores, existente desde a edição da Portaria 304, a forma idônea para resolver a contenda consiste na decretação da nulidade parcial da Portaria 427 (com efeitos retroativos), especificamente em face dos servidores prejudicados com a edição desse ato. Se, desde o nascedouro, a situação jurídica consolidou-se, atos jurídicos posteriores não podem mais modificá-la, suprimi-la.

(...)”.

A União sustenta que a Portaria n° 304/2009 teria sido editada em desacordo com o Decreto n° 84.669/1980 e que, por isso, foi necessário editar a Portaria n° 427/2010.

Pois bem.

A validade do ato administrativo deve ser analisada à luz da motivação indicada pela própria Administração Pública, sendo irrelevantes outros elementos fáticos que possam, em tese, justificar o ato. Neste ponto, veja-se a lição de Hely Lopes Meirelles:

“A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido”.

 (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 223-224).

Não é outra a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello:

“A propósito dos motivos da motivação, é conveniente, ainda, lembrar a ‘teoria dos motivos determinantes’.

De acordo com esta teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação dos ‘motivos de fato’ falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato, uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só seria válido se estes realmente ocorreram e o justificavam”.

(in Curso de Direito Administrativo, 17ª Edição, 2004, p. 370).

Oportuno registrar, ainda, que a Lei n° 9.784/1999 é expressa prever que os atos administrativos que importem em limitação de direitos ou anulação de outros atos administrativos devem ser motivados, in verbis:

“Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

(...)

VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.

(...)

§ 1° A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

(...)”.

É justamente esse o caso dos autos, em que a União pretendeu, por meio da Portaria n° 427/2010, revogar portaria anterior, desfazendo progressões funcionais e promoções que já haviam sido concedidas.

Nada obstante, referida portaria carece por completo de motivação. Confira-se o seu teor (disponível em https://unafisconacional.org.br/wp-content/uploads/2020/08/19042016_Portaria_427_2010.pdf, último acesso em setembro de 2002):

“Portaria n° 427, de 19 de julho de 2010.

O COORDENADOR-GERAL DE RECURSOS HUMANOS – SUBSTITUTO, DA SUBSECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E ADMINISTRAÇÃO DA SECRETARIA EXECUTIVA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA, usando da delegação de competência que lhe foi concedida pelo inciso XI do art. 18 da Portaria n° 92, de 07 de abril de 2001, do Ministro de Estado da Fazenda, publicada no Diário Oficial de 09 de abril de 2001, e tendo em vista o disposto no Decreto n° 84.669, de 29 de abril de 1980, na legislação complementar e de acordo com o Decreto n° 6.852, de 15 de maio de 2009, publicado no DOU de 18 de maio de 2009, resolve:

I – Posicionar os servidores constantes do Anexo I desta Portaria de acordo com o disposto no Decreto 84.669/80.

II – Proceder ao enquadramento dos citados servidores, no cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, a partir de 01 de julho de 2009, em conformidade com a Lei n° 11.890 de 24 de dezembro, publicada no Diário Oficial da União de 26 de dezembro de 2009.

III – Tornar sem efeito as Portarias COGRH/SPOA/MF n°s 67/2008, 187/2008, 105/2009, 304/2009, 398/2009 e 102/2010, na parte referente aos referidos servidores.

(...)”.

Como se vê, tal portaria limita-se a mencionar, muito brevemente, que os servidores estariam sendo posicionados “de acordo com o disposto no Decreto 84.669/80”.

Não explica, no entanto, por qual motivo estaria tornando sem efeito as portarias anteriores.

Essa explicação até aportou aos autos, uma vez que a União alega que o reposicionamento de servidores anteriormente previsto na Portaria n° 304/2009 teria violado preceitos objetivos do Decreto n° 84.669/80.

Nada obstante, tenho que não é possível convalidar a motivação trazida pela União nestes autos, sob pena de violação à teoria dos motivos determinantes, como exaustivamente fundamentei até aqui.

Desta forma, forçoso concluir que a Portaria n° 427/2010 é ilegal porque imotivada e, portanto, editada em violação ao artigo 50, incisos I e VIII e § 1°, todos da Lei n° 9.784/1999.

Muito embora entenda que tal fundamento seja suficiente para manter o acolhimento do pedido autoral, acrescento que a portaria também é nula por desrespeitar a garantia constitucional à irredutibilidade de vencimentos, a boa-fé objetiva, aa segurança jurídica e o devido processo legal, valendo-me da fundamentação lançada em sentença, per relationem.

Do dano moral

Reformo a sentença para afastar a condenação ao pagamento de indenização por dano moral.

Isto porque, para o reconhecimento do dano moral, torna-se necessária a demonstração, por parte do ofendido, de prova de exposição a situação relevante de desconforto, de humilhação, de exposição injustificada a constrangimento e outras semelhantes; à mingua dessa demonstração, impossível se faz o reconhecimento de dano moral exclusivamente pelo fato da alteração da remuneração do servidor público.

A vida em sociedade reclama algumas concessões por parte de seus agentes, não sendo de se atribuir a meros desencontros administrativos, sem repercussões de maior relevância, a composição de danos morais, sob pena de se banalizar o próprio instituto.

E não há que se falar em dano moral in re ipsa, ou presumido, porque este se configura tão somente nas hipóteses em que o evento tem potencial danoso suficiente a dispensar a prova da ocorrência de dano moral em concreto, o que não é o caso da modificação dos vencimentos dos servidores substituídos porque tal situação pode ser de elevado ou mínimo impacto na esfera de direitos patrimoniais ou extrapatrimoniais da parte, a depender do caso concreto.

No caso dos autos, a Portaria n° 427/2010 tornou sem efeitos progressões funcionais e promoções anteriormente concedidas a auditores substituídos pelo sindicato autor.

Apesar de a situação ser certamente desagradável, não consta que daí tenha havido desdobramentos relevantes, como uma possível dificuldade financeira dos substituídos.

Não está claro nem mesmo qual foi a efetiva redução financeira percebida pelos substituídos, ou, ao menos, por parte deles, ônus que incumbia à parte autora, enquanto fato constitutivo de seu direito.

Desta forma, ausente prova mínima desses desdobramentos, tenho que o caso é de afastamento da condenação da União ao pagamento de indenização por dano moral.

Dos juros de mora e atualização monetária

Mantenho a sentença também neste ponto, porque consentânea com o quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal (Tema de Repercussão Geral n° 810):

"1) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina os juros moratórios aplicáveis a condenações da Fazenda Pública, é inconstitucional ao incidir sobre débitos oriundos de relação jurídico-tributária, aos quais devem ser aplicados os mesmos juros de mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito tributário, em respeito ao princípio constitucional da isonomia (CRFB, art. 5º, caput); quanto às condenações oriundas de relação jurídica não-tributária, a fixação dos juros moratórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança é constitucional, permanecendo hígido, nesta extensão, o disposto no art. 1º-F da Lei nº 9.494/97 com a redação dada pela Lei nº 11.960/09; e 2) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina".

Dos honorários advocatícios

Sem honorários recursais em razão do parcial provimento do recurso da União.

Dispositivo

Ante o exposto, voto por dar parcial provimento à apelação para afastar a condenação da ré ao pagamento de indenização por dano moral em favor dos substituídos do sindicato autor.

É como voto.



E M E N T A

DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. SINDICATO. PORTARIA N° 427/2010. DESCENSO FUNCIONAL E FINANCEIRO. ATO IMOTIVADO: ILEGALIDADE. TEMA DE REPERCUSSÃO GERAL N° 82: INAPLICABILIDADE. ART. 16 DA LACP: INCONSTITUCIONALIDADE. DANO MORAL NÃO DEMONSTRADO. HONORÁRIOS RECURSAIS: NÃO CABIMENTO.

1. Por meio da presente ação coletiva, pretende o sindicato autor o afastamento dos efeitos financeiros da Portaria n° 427/2010, restabelecer os substituídos às suas classes e padrões remuneratórios anteriores à Portaria, a condenação da União à devolução dos valores e ao pagamento de indenização por dano moral a cada um dos substituídos atingidos pelo decesso funcional.

2. Se, nos termos do dispositivo constitucional, o sindicato age em prol de uma categoria e, mais, se a decisão proferida toca com os interesses da categoria, deve ser reconhecido aos futuros associados o direito de vindicar o resultado útil de decisão que está a beneficiar aquela categoria com a qual está diretamente ligada.

3. Inaplicável ao caso o Tema de Repercussão Geral n° 82/STF, que se refere a associações e não a sindicatos. A representatividade dos sindicatos é diversa e mais ampla do que a representatividade de associações. Rejeitada, portanto, a tese de ilegitimidade ativa ad causam.

4. O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a limitação geográfica prevista no artigo 16 da LACP (Tema de Repercussão Geral n° 1.075). Rejeitada a tese de limitação dos efeitos da decisão aqui proferida aos limites geográficos do Juízo de Origem.

5. A validade do ato administrativo deve ser analisada à luz da motivação indicada pela própria Administração Pública, sendo irrelevantes outros elementos fáticos que possam, em tese, justificar o ato. Doutrina de Hely Lopes Meirelles e de Celso Antônio Bandeira de Mello.

6. A Portaria n° 427/2010 é ilegal porque imotivada e, portanto, editada em violação ao artigo 50, incisos I e VIII e § 1°, todos da Lei n° 9.784/1999.

7. Muito embora tal fundamento seja suficiente para manter o acolhimento do pedido autoral, acrescenta-se que a portaria também é nula por desrespeitar a garantia constitucional à irredutibilidade de vencimentos, a boa-fé objetiva, aa segurança jurídica e o devido processo legal, consoante a fundamentação lançada em sentença, ora adotada per relationem.

8. Para o reconhecimento do dano moral, torna-se necessária a demonstração, por parte do ofendido, de prova de exposição a situação relevante de desconforto, de humilhação, de exposição injustificada a constrangimento e outras semelhantes; à mingua dessa demonstração, impossível se faz o reconhecimento de dano moral exclusivamente pelo fato da alteração da remuneração do servidor público.

9. No caso dos autos, a Portaria n° 427/2010 tornou sem efeitos progressões funcionais e promoções anteriormente concedidas a auditores substituídos pelo sindicato autor. Apesar de a situação ser certamente desagradável, não consta que daí tenha havido desdobramentos relevantes, como uma possível dificuldade financeira dos substituídos.

10. Sem honorários recursais em razão do parcial provimento do recurso da União.

11. Apelação parcialmente provida para afastar a condenação da ré ao pagamento de indenização por dano moral em favor dos substituídos do sindicato autor.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Primeira Turma, por unanimidade, deu parcial provimento à apelação para afastar a condenação da ré ao pagamento de indenização por dano moral em favor dos substituídos do sindicato autor, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.