APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000383-62.2018.4.03.6006
RELATOR: Gab. 01 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS
APELANTE: UNIÃO FEDERAL, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZACAO E REFORMA AGRARIA - INCRA
APELADO: ANTONIO PEREIRA, NEUSA PIRES PEREIRA
Advogados do(a) APELADO: ALAN CRISTIAN BORTOLATO PEREIRA - MS23160-A, MARCELO LABEGALINI ALLY - MS8911-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000383-62.2018.4.03.6006 RELATOR: Gab. 01 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS APELANTE: UNIÃO FEDERAL, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZACAO E REFORMA AGRARIA - INCRA APELADO: ANTONIO PEREIRA, NEUSA PIRES PEREIRA Advogados do(a) APELADO: MARCELO LABEGALINI ALLY - MS8911-A, ALAN CRISTIAN BORTOLATO PEREIRA - MS23160-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de recursos de apelação interpostos pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA contra a sentença que julgou procedente o pedido, nos termos do artigo 487, I, do CPC, para lhes determinar que reintegrem a posse dos autores sobre o imóvel objeto da demanda, bem como que se abstenham de turbá-la ou esbulhá-la. A demanda, com pedido liminar, foi ajuizada por Antonio Pereira e Neusa Pires Pereira em face do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA e da União, visando à cessação de ameaça de turbação e/ou esbulho de sua posse sobre lote n. 11 do Projeto de Assentamento Pedro Ramalho, localizado no município de Mundo Novo/MS, expedindo-se mandado proibitório em desfavor dos réus. Intimados a se manifestar quanto ao pedido liminar, tanto INCRA quanto a União se opuseram à sua concessão. Foi realizada audiência de justificação prévia e conciliação, restando infrutífera a conciliação. A liminar foi deferida, para determinar a reintegração de posse em favor dos autores, bem como que os réus se abstivessem de turbá-la ou esbulhá-la. Em face dessa decisão, o INCRA e a União interpuseram agravos de instrumento (AIs nº 5000379-64.2019.4.03.0000 e 5003081-80.2019.4.03.0000), aos quais foi negado o efeito suspensivo. Os réus apresentaram contestações. Réplicas do autores. Sobreveio sentença, nos termos acima delineados. Os réus foram condenados ao pagamento de honorários advocatícios, fixados no percentual mínimo do §3º do art. 85 do CPC, a incidir sobre o valor atualizado da causa. Irresignado, o INCRA interpôs recurso de apelação, alegando que o lote em questão é bem de sua propriedade, que foi afetado ao serviço público, havendo, no caso, prevalência do interesse público sobre o privado. Sustenta, ainda, que, mesmo que o domínio do imóvel pertencesse aos autores, a área poderia ser desapropriada por utilidade pública. Aduz, por fim, que não prospera a fundamentação de falta de contraditório e ampla defesa no processo administrativo, eis que os autores foram devidamente notificados sobre o desmembramento de parte do lote em questão, para cessão de uso à Receita Federal. Requer, assim, a reforma da r. sentença, julgando-se improcedente a demanda e invertendo-se os ônus da sucumbência. Por sua vez, apela a União, arguindo, preliminarmente, a ausência de interesse processual, por inadequação da via eleita. No mérito, alega que: a) dada a ausência de titulação definitiva em favor dos autores, os réus detêm a posse e o domínio da área objeto dos autos, de modo a atrair a incidência da Súmula 487 do STF; b) o controle aduaneiro, a área de segurança nacional e o efetivo combate ao contrabando, descaminho e demais delitos demonstram o interesse público de se ampliar as instalações da Receita Federal em Mundo Novo/MS, de modo a autorizar que parte do lote em questão seja afetada a tal atividade, ainda mais se considerar que o INCRA destinou outra área aos apelados, como forma de compensação; c) a área litigiosa (6,3 hectares do lote n. 11) é a única que permite a expansão das atuais instalações da Receita Federal de forma contígua; e d) em observância do princípio da supremacia do interesse público, o pedido inicial deve ser julgado improcedente. Requer a concessão do efeito suspensivo ao recurso e a reforma integral da r. sentença, com a condenação dos apelados em honorários advocatícios, inclusive os recursais. Com contrarrazões, os autos vieram a este E. Tribunal. O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento das apelações. É o relatório.
Advogados do(a) APELADO: MARCELO LABEGALINI ALLY - MS8911-A, ALAN CRISTIAN BORTOLATO PEREIRA - MS23160-A
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000383-62.2018.4.03.6006 RELATOR: Gab. 01 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS APELANTE: UNIÃO FEDERAL, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZACAO E REFORMA AGRARIA - INCRA APELADO: ANTONIO PEREIRA, NEUSA PIRES PEREIRA Advogados do(a) APELADO: MARCELO LABEGALINI ALLY - MS8911-A, ALAN CRISTIAN BORTOLATO PEREIRA - MS23160-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O A demanda, com pedido liminar, foi ajuizada por Antonio Pereira e Neusa Pires Pereira em face do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA e da União, visando à cessação de ameaça de turbação e/ou esbulho de sua posse sobre lote n. 11 do Projeto de Assentamento Pedro Ramalho, localizado no município de Mundo Novo/MS, expedindo-se mandado proibitório em desfavor dos réus. A liminar foi deferida, para determinar a reintegração de posse em favor dos autores, bem como que os réus se abstivessem de turbá-la ou esbulhá-la. A r. sentença julgou procedente o pedido, nos termos do artigo 487, I, do CPC, para confirmar a liminar concedida e determinar aos réus que reintegrem a posse dos autores sobre o imóvel objeto da demanda, bem como que se abstenham de turbá-la ou esbulhá-la. Os réus foram condenados ao pagamento de honorários advocatícios, fixados no percentual mínimo do §3º do art. 85 do CPC, a incidir sobre o valor atualizado da causa. Em suas razões recursais, o INCRA alega que o lote em questão é bem de sua propriedade, que foi afetado ao serviço público, havendo, no caso, prevalência do interesse público sobre o privado. Sustenta, ainda, que, mesmo que o domínio do imóvel pertencesse aos autores, a área poderia ser desapropriada por utilidade pública. Aduz, por fim, que não prospera a fundamentação de falta de contraditório e ampla defesa no processo administrativo, eis que os autores foram devidamente notificados sobre o desmembramento de parte do lote em questão, para cessão de uso à Receita Federal. Requer, assim, a reforma da r. sentença, julgando-se improcedente a demanda e invertendo-se os ônus da sucumbência. Por sua vez, apela a União, arguindo, preliminarmente, a ausência de interesse processual, por inadequação da via eleita. No mérito, alega que: a) dada a ausência de titulação definitiva em favor dos autores, os réus detêm a posse e o domínio da área objeto dos autos, de modo a atrair a incidência da Súmula 487 do STF; b) o controle aduaneiro, a área de segurança nacional e o efetivo combate ao contrabando, descaminho e demais delitos demonstram o interesse público de se ampliar as instalações da Receita Federal em Mundo Novo/MS, de modo a autorizar que parte do lote em questão seja afetada a tal atividade, ainda mais se considerar que o INCRA destinou outra área aos apelados, como forma de compensação; c) a área litigiosa (6,3 hectares do lote n. 11) é a única que permite a expansão das atuais instalações da Receita Federal de forma contígua; e d) em observância do princípio da supremacia do interesse público, o pedido inicial deve ser julgado improcedente. Requer a concessão do efeito suspensivo ao recurso e a reforma integral da r. sentença, com a condenação dos apelados em honorários advocatícios, inclusive os recursais. Passo à análise. 1. Do pedido de efeito suspensivo. De início, indefiro o pedido de concessão de efeito suspensivo ao presente recurso, por não vislumbrar os requisitos do artigo 995, parágrafo único, do CPC. 2. Da preliminar de ausência de interesse processual. A União alega que, para fins de adequação, é imprescindível que os autores de demandas possessórias estejam no legítimo exercício da posse, o que não se vislumbra no presente caso, vez que, a partir da data da notificação da destinação da área à União (06/07/2016), a ocupação pelos apelados caracteriza-se como mera detenção. Desse modo, não havendo posse, resta evidenciada a falta de interesse de agir dos apelados, por inadequação da via eleita. Todavia, razão não lhe assiste. Isso porque, conforme bem salientado na r. sentença, a ocupação dos autores é legítima, oriunda de contrato de assentamento celebrado com o INCRA em 2003 (ID 131233784, p. 21/22), cujas cláusulas foram devidamente observadas pelos beneficiários desde então (ID 131233795, p. 03/04), estando o referido contrato em plena vigência até hoje. Ressalte-se, ainda, que a cessão de parte do lote à RFB não transforma necessariamente a ocupação dos apelados em mera detenção, sendo tal questão atinente ao mérito da presente demanda. Assim, para fins de aferição do interesse processual, a ocupação dos autores não é irregular podendo valer-se das ações possessórias para proteger sua posse. Dessa forma, rejeito a preliminar. 3. Do mérito. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) define reforma agrária como "o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade". Com efeito, a sua implementação tem como objetivo precípuo promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio, através de um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra (artigo 16 da mesma lei). A Lei nº 8.629/93, em consonância com o que prevê a Constituição Federal (artigo 189), dispõe que, no Programa Nacional de Reforma Agrária, cabe ao INCRA a distribuição das parcelas do imóvel rural aos beneficiários da reforma agrária, previamente cadastrados, por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso - CDRU. Na implantação do Projeto de Assentamento, será celebrado com o beneficiário contrato de concessão de uso, gratuito e inegociável, que conterá cláusulas resolutivas, tais como a obrigação do beneficiário de cultivar a parcela direta e pessoalmente, ou através de seu núcleo familiar, e de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos, assegurando-se a ele o direito de adquirir, em definitivo, título de domínio ou CDRU. Ademais, de acordo com o artigo 28 do Decreto nº 9.311/2018, que regulamenta a referida lei, a transferência definitiva dos lotes, por meio de CDRU ou de título de domínio, só poderá ser efetuada após: a) a área ser registrada em nome do INCRA ou da União; b) a realização da medição e demarcação dos lotes individuais e do georreferenciamento e certificação do perímetro do assentamento; c) o cumprimento das cláusulas do CCU pelo assentado; e d) a atualização do cadastro do assentado. No caso, os autores, ora apelados, firmaram contrato de assentamento com o INCRA, em 05/08/2003 (ID 131233784, p. 21/22), pelo qual se tornaram beneficiários do lote n. 11 do PA Pedro Ramalho, município de Mundo Novo/MS, com área de 12,2793 ha. Alegam que, desde então, exercem a posse sobre o lote em questão, sem descumprir nenhuma das cláusulas do contrato. Tal fato foi, inclusive, reconhecido pelo INCRA em parecer administrativo de 2015, nos seguintes termos: "(...) Observa-se que a família, desde que assinou o contrato de assentamento (fls. 9 e 10) vem cumprindo com as cláusulas propostas, entre elas: residir e explorar a parcela direta e pessoalmente. Tal fato pode ser comprovado pelos relatórios de vistorias constantes no processo. Observa-se também no processo e no espelho do beneficiário que não houve ainda encaminhamentos relativos à titulação do lote, estando, portanto, somente cedido ao ocupante. Ocorre que, em 22/02/2017, o INCRA destinou, em um novo contrato de cessão de uso, 6,3335 ha do referido lote para a ampliação das instalações da sede da Receita Federal do Brasil em Mundo Novo. Sobre a referida cessão, a autarquia informou que: "Em 11 de julho de 2014, a Inspetoria da Receita Federal em Mundo Novo da Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil em Brasília, encaminhou ao Incra Sede em Brasília, solicitação de cessão de uso de uma área lindeira a onde se encontra a sede da referida Inspetoria. Acompanhado desta solicitação, a Inspetoria encaminhou um relato sobre a situação que se encontrava na época, onde informava que devido ao aumento considerável do movimento de pessoas, cargas e mercadorias naquela unidade de fronteira, necessitava ampliar a sua área de depósito. Nesta solicitação, a Receita Federal encaminhou foto aérea da área a qual teriam interesse, que seria uma faixa do lote nº 11 do PA Pedro Ramalho. Devido a esta solicitação, foi realizada vistoria ocupacional (folha 28) no lote nº 11 para subsidiar a decisão do Superintendente Regional. Em vistoria ao local, foi constatado que a parcela estava regularmente ocupada e explorada pelo assentado. Após esta informação, o processo foi encaminhado a PFE do Incra para emissão de Parecer Jurídico (folhas 33 a 42), onde a mesma se posicionou favorável a cessão de uso, desde que fosse levantado a disponibilidade de outros lotes vagos no mesmo Assentamento para colocar a disposição do Sr. Antônio. Após levantamento realizado no local foi verificado a existência de uma área remanescente da criação do Assentamento, lindeira ao lote nº 11 que poderia ser disponibilizada para compensar a área a ser desmembrada para atender a Receita Federal. Foram elaborados mapas e memoriais da área a ser cedida para a Receita Federal e da nova área do lote nº 11 (folhas 47 a 52). No intuito de não prejudicar o parceleiro, esta nova área foi delimitada de tal forma que ficasse com o mesmo tamanho do lote inicialmente repassado ao mesmo. Analisando os mapas se pode verificar que a área inicialmente repassa possuía 12,00 ha e a nova área possui 12,6374 ha. Tendo encontrado uma solução viável, que atendesse a Receita Federal e ao mesmo tempo não prejudicasse o parceleiro, no que diz respeito a mudança de lote ou perda de área do lote nº 11, o Superintendente Regional do Incra tomou a decisão de fazer as alterações no lote nº 11. Em 09 de setembro de 2016, foi recebida pelo Sr. Antônio Pereira o Ofício nº 799/2016- Incra/SR(16)MS/G/F (folhas 63 e 64) onde o Notificava sobre a readequação da área do Lote nº 11 e sobre o desmembramento de parte da área para cessão de uso à Receita Federal. Em 22 de fevereiro de 2017, o Superintendente Regional procedeu a assinatura do Contrato de Cessão de Uso CRT/INCRA/MS/Nº 2.000/2017 (folhas 106 a 108), cedendo a área de 6,3533 ha para Receita Federal de Mundo Novo." (ID 131233793) Por sua vez, a União assevera que a cessão de parte lote n. 11 para uso da Receita Federal do Brasil foi compensada pelo acréscimo de uma área lindeira, correspondente a um antigo corredor ecológico, o que fez com que a nova área do referido lote passasse a ser inclusive maior (12,6374 ha), inexistindo, portanto, prejuízo aos autores. Alega que os autores foram notificados, à época, pelo INCRA e não se insurgiram administrativamente. Aduz a supremacia do interesse público, posto que se trata de área estratégica para a fiscalização fazendária e de fronteira. Todavia, conforme consignado pelo D. Juízo a quo, a área lindeira incorporada ao lote n. 11 não é equivalente àquela cedida à RFB, sendo reconhecido pela própria União, na audiência de justificação, que se trata de área de intenso conflito, tanto em razão de invasões quanto por ser rota de contrabandistas e traficantes de drogas e de armas. Assim, a sua incorporação ao lote colocaria em risco a integridade física dos assentados. Ademais, o ilustre representante da AGU, nos autos do processo administrativo relativo à cessão de uso à RFB (proc. n. 54293.000336/2014-67), assinalou que, se, por um lado, é inegável o interesse social e a utilidade pública da ampliação das instalações da RFB para fins de aperfeiçoamento do controle aduaneiro e de combate ao contrabando e descaminho, por outro, deve ser considerado o fato do lote em questão encontrar-se regularmente ocupado e explorado, há mais de 10 anos, por uma família de trabalhadores rurais. Assim, tendo em vista que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não é absoluto, manifestou-se pela legalidade da cessão de uso, desde que fosse colocado à disposição dos assentados "outro lote, no mesmo Projeto de Assentamento, constatado abandono, ou se ocupado irregularmente, após retomada, ou em outro Projeto Assentamento, caso interessem, cabendo à Receita Federal, em contrapartida, arcar com as indenizações de todas as benfeitorias edificadas no lote e a remoção da família" (ID 131233795, p. 11). Porém, não foi o que ocorreu, pois, em nenhum momento os assentados puderam manifestar interesse ou discordância em relação à incorporação daquela área específica a seu lote, sendo somente notificados sobre a decisão unilateral da autarquia, sem qualquer menção à possibilidade de interposição de recurso - "Assim sendo, NOTIFICAMOS os senhores da alteração do Lote 11 para sua ciência" (ID 131233796, p. 02) - em clara violação ao contraditório e à ampla defesa. Além disso, embora o laudo de vistoria tenha identificado que a área estava "coberta em sua totalidade por pastagens de Brachiaria brizantha" (ID 131233796, p. 04), não houve qualquer determinação de indenização aos assentados por tais benfeitorias. Nessa senda, ao contrário do que alega a União, não há que se falar em incidência da Súmula 487 do STF ("Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada"), pois, o fato do domínio do imóvel pertencer ao INCRA não o autoriza a modificar unilateralmente contrato firmado em 2003 com assentados que, desde então, têm cumprido todas as cláusulas contratuais, explorando adequadamente o lote, e que, por isso, ao menos em tese, já poderiam até mesmo pleitear o título de domínio do imóvel. Frise-se, ainda, que o princípio da supremacia do interesse público não é absoluto, fato reconhecido pelo próprio representante da AGU, nos autos do processo administrativo, que impôs condições - não cumpridas integralmente - para a cessão de uso à RFB, a fim de que os legítimos possuidores não fossem prejudicados. Dessa forma, conforme bem salientado pelo D. Juízo a quo e reiterado no parecer do Ministério Público Federal, "não se está a dizer que dita alteração não seria possível. Todavia, nos moldes em que realizada, caracteriza-se ilegal, razão pela qual não há como reconhecer a ausência de legitimidade da posse dos Autores, que se encontra amparada em contrato de cessão de uso devidamente formalizado com a Administração Pública". Assim, irrepreensível a r. sentença ao autorizar a reintegração de posse em favor dos apelados, determinando aos apelantes que se abstenham de turbá-la ou esbulhá-la. Condeno o INCRA e a União ao pagamento de honorários advocatícios recursais, os quais fixo em 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa. Em face do exposto, nego provimento aos recursos de apelação do INCRA e da União, nos termos da fundamentação. É o voto.
Advogados do(a) APELADO: MARCELO LABEGALINI ALLY - MS8911-A, ALAN CRISTIAN BORTOLATO PEREIRA - MS23160-A
Na ultima vistoria realizada no lote, datada de 18 de dezembro de 2014 tem-se: O Sr. Antônio Pereira e a Sra. Neusa Pires Pereira residem no lote, receberam crédito de instalação apoio inicial, habitação e O lote possui estrada, água potável e energia elétrica. Nas observações é descrito: “Em vistoria realizada no lote 11 no dia 18/12/2014, encontramos O Sr. Antônio Pereira e a Sra. Neusa Pires Pereira, titulares da parcela. (...) No lote há uma casa de alvenaria coberta com telha de fibrocimento medindo aproximadamente 10 x 7 metros e uma casa de madeira coberta com telha de barro, medindo 5 x 6 metros. informou que a parcela está toda cercada com cerca de arame liso 5 fios. Existe também no lote 2 barracões, um medindo 6 x 4 m e outro medindo 15 x 17 m. Possui ainda trator. Há também pomar com árvores frutíferas e onde também cultiva milho e outras culturas para subsistência.” Anexo encaminha relatório fotográfico da parcela." (ID 131233795, p. 03/04)
E M E N T A
APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO POSSESSÓRIA. INCRA. UNIÃO. LOTE DA REFORMA AGRÁRIA. CESSÃO DE USO À RECEITA FEDERAL DO BRASIL. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL REJEITADA. POSSE DOS APELADOS ORIUNDA DE CONTRATO DE ASSENTAMENTO DE 2003. OBSERVÂNCIA DE TODAS AS CLÁUSULAS CONTRATUAIS PELOS ASSENTADOS. DESMEMBRAMENTO DO LOTE EFETUADO DE FORMA UNILATERAL PELO INCRA. VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO NÃO É ABSOLUTO. NÃO CUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES IMPOSTAS PARA A MODIFICAÇÃO DO LOTE. LEGITIMIDADE DA POSSE DOS AUTORES. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. RECURSOS IMPROVIDOS.
1. A demanda, com pedido liminar, foi ajuizada por Antonio Pereira e Neusa Pires Pereira em face do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA e da União, visando à cessação de ameaça de turbação e/ou esbulho de sua posse sobre lote n. 11 do Projeto de Assentamento Pedro Ramalho, localizado no município de Mundo Novo/MS, expedindo-se mandado proibitório em desfavor dos réus.
2. A liminar foi deferida, para determinar a reintegração de posse em favor dos autores, bem como que os réus se abstivessem de turbá-la ou esbulhá-la.
3. A r. sentença julgou procedente o pedido, nos termos do artigo 487, I, do CPC, para confirmar a liminar concedida e determinar aos réus que reintegrem a posse dos autores sobre o imóvel objeto da demanda, bem como que se abstenham de turbá-la ou esbulhá-la. Os réus foram condenados ao pagamento de honorários advocatícios, fixados no percentual mínimo do §3º do art. 85 do CPC, a incidir sobre o valor atualizado da causa.
4. Em suas razões recursais, o INCRA alega que o lote em questão é bem de sua propriedade, que foi afetado ao serviço público, havendo, no caso, prevalência do interesse público sobre o privado. Sustenta, ainda, que, mesmo que o domínio do imóvel pertencesse aos autores, a área poderia ser desapropriada por utilidade pública. Aduz, por fim, que não prospera a fundamentação de falta de contraditório e ampla defesa no processo administrativo, eis que os autores foram devidamente notificados sobre o desmembramento de parte do lote em questão, para cessão de uso à Receita Federal. Requer, assim, a reforma da r. sentença, julgando-se improcedente a demanda e invertendo-se os ônus da sucumbência.
5. Por sua vez, apela a União, arguindo, preliminarmente, a ausência de interesse processual, por inadequação da via eleita. No mérito, alega que: a) dada a ausência de titulação definitiva em favor dos autores, os réus detêm a posse e o domínio da área objeto dos autos, de modo a atrair a incidência da Súmula 487 do STF; b) o controle aduaneiro, a área de segurança nacional e o efetivo combate ao contrabando, descaminho e demais delitos demonstram o interesse público de se ampliar as instalações da Receita Federal em Mundo Novo/MS, de modo a autorizar que parte do lote em questão seja afetada a tal atividade, ainda mais se considerar que o INCRA destinou outra área aos apelados, como forma de compensação; c) a área litigiosa (6,3 hectares do lote n. 11) é a única que permite a expansão das atuais instalações da Receita Federal de forma contígua; e d) em observância do princípio da supremacia do interesse público, o pedido inicial deve ser julgado improcedente. Requer a concessão do efeito suspensivo ao recurso e a reforma integral da r. sentença, com a condenação dos apelados em honorários advocatícios, inclusive os recursais.
6. Indeferido o pedido de concessão de efeito suspensivo ao presente recurso, por não se vislumbrar os requisitos do artigo 995, parágrafo único, do CPC.
7. A União alega que, para fins de adequação, é imprescindível que os autores de demandas possessórias estejam no legítimo exercício da posse, o que não se vislumbra no presente caso, vez que, a partir da data da notificação da destinação da área à União (06/07/2016), a ocupação pelos apelados caracteriza-se como mera detenção. Desse modo, não havendo posse, resta evidenciada a falta de interesse de agir dos apelados, por inadequação da via eleita.
8. Todavia, razão não lhe assiste. Isso porque, conforme bem salientado na r. sentença, a ocupação dos autores é legítima, oriunda de contrato de assentamento celebrado com o INCRA em 2003, cujas cláusulas foram devidamente observadas pelos beneficiários desde então, estando o referido contrato em plena vigência até hoje. Ressalte-se, ainda, que a cessão de parte do lote à RFB não transforma necessariamente a ocupação dos apelados em mera detenção, sendo tal questão atinente ao mérito da presente demanda.
9. Assim, para fins de aferição do interesse processual, a ocupação dos autores não é irregular podendo valer-se das ações possessórias para proteger sua posse. Preliminar rejeitada.
10. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) define reforma agrária como "o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade". Com efeito, a sua implementação tem como objetivo precípuo promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio, através de um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra (artigo 16 da mesma lei).
11. A Lei nº 8.629/93, em consonância com o que prevê a Constituição Federal (artigo 189), dispõe que, no Programa Nacional de Reforma Agrária, cabe ao INCRA a distribuição das parcelas do imóvel rural aos beneficiários da reforma agrária, previamente cadastrados, por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso - CDRU. Na implantação do Projeto de Assentamento, será celebrado com o beneficiário contrato de concessão de uso, gratuito e inegociável, que conterá cláusulas resolutivas, tais como a obrigação do beneficiário de cultivar a parcela direta e pessoalmente, ou através de seu núcleo familiar, e de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos, assegurando-se a ele o direito de adquirir, em definitivo, título de domínio ou CDRU.
12. Ademais, de acordo com o artigo 28 do Decreto nº 9.311/2018, que regulamenta a referida lei, a transferência definitiva dos lotes, por meio de CDRU ou de título de domínio, só poderá ser efetuada após: a) a área ser registrada em nome do INCRA ou da União; b) a realização da medição e demarcação dos lotes individuais e do georreferenciamento e certificação do perímetro do assentamento; c) o cumprimento das cláusulas do CCU pelo assentado; e d) a atualização do cadastro do assentado.
13. No caso, os autores, ora apelados, firmaram contrato de assentamento com o INCRA, em 05/08/2003, pelo qual se tornaram beneficiários do lote n. 11 do PA Pedro Ramalho, município de Mundo Novo/MS, com área de 12,2793 ha. Alegam que, desde então, exercem a posse sobre o lote em questão, sem descumprir nenhuma das cláusulas do contrato. Tal fato foi, inclusive, reconhecido pelo INCRA em parecer administrativo de 2015.
14. Ocorre que, em 22/02/2017, o INCRA destinou, em um novo contrato de cessão de uso, 6,3335 ha do referido lote para a ampliação das instalações da sede da Receita Federal do Brasil em Mundo Novo. Sobre a referida cessão, a autarquia informou que: "Em 11 de julho de 2014, a Inspetoria da Receita Federal em Mundo Novo da Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil em Brasília, encaminhou ao Incra Sede em Brasília, solicitação de cessão de uso de uma área lindeira a onde se encontra a sede da referida Inspetoria. (...) que seria uma faixa do lote nº 11 do PA Pedro Ramalho. Devido a esta solicitação, foi realizada vistoria ocupacional (folha 28) no lote nº 11 para subsidiar a decisão do Superintendente Regional. Em vistoria ao local, foi constatado que a parcela estava regularmente ocupada e explorada pelo assentado. Após esta informação, o processo foi encaminhado a PFE do Incra para emissão de Parecer Jurídico (folhas 33 a 42), onde a mesma se posicionou favorável a cessão de uso, desde que fosse levantado a disponibilidade de outros lotes vagos no mesmo Assentamento para colocar a disposição do Sr. Antônio. Após levantamento realizado no local foi verificado a existência de uma área remanescente da criação do Assentamento, lindeira ao lote nº 11 que poderia ser disponibilizada para compensar a área a ser desmembrada para atender a Receita Federal. (...) Tendo encontrado uma solução viável, que atendesse a Receita Federal e ao mesmo tempo não prejudicasse o parceleiro, no que diz respeito a mudança de lote ou perda de área do lote nº 11, o Superintendente Regional do Incra tomou a decisão de fazer as alterações no lote nº 11".
15. Por sua vez, a União assevera que a cessão de parte lote n. 11 para uso da Receita Federal do Brasil foi compensada pelo acréscimo de uma área lindeira, correspondente a um antigo corredor ecológico, o que fez com que a nova área do referido lote passasse a ser inclusive maior (12,6374 ha), inexistindo, portanto, prejuízo aos autores. Alega que os autores foram notificados, à época, pelo INCRA e não se insurgiram administrativamente. Aduz a supremacia do interesse público, posto que se trata de área estratégica para a fiscalização fazendária e de fronteira.
16. Todavia, conforme consignado pelo D. Juízo a quo, a área lindeira incorporada ao lote n. 11 não é equivalente àquela cedida à RFB, sendo reconhecido pela própria União, na audiência de justificação, que se trata de área de intenso conflito, tanto em razão de invasões quanto por ser rota de contrabandistas e traficantes de drogas e de armas. Assim, a sua incorporação ao lote colocaria em risco a integridade física dos assentados.
17. Ademais, o ilustre representante da AGU, nos autos do processo administrativo relativo à cessão de uso à RFB (proc. n. 54293.000336/2014-67), assinalou que, se, por um lado, é inegável o interesse social e a utilidade pública da ampliação das instalações da RFB para fins de aperfeiçoamento do controle aduaneiro e de combate ao contrabando e descaminho, por outro, deve ser considerado o fato do lote em questão encontrar-se regularmente ocupado e explorado, há mais de 10 anos, por uma família de trabalhadores rurais. Assim, tendo em vista que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não é absoluto, manifestou-se pela legalidade da cessão de uso, desde que fosse colocado à disposição dos assentados "outro lote, no mesmo Projeto de Assentamento, constatado abandono, ou se ocupado irregularmente, após retomada, ou em outro Projeto Assentamento, caso interessem, cabendo à Receita Federal, em contrapartida, arcar com as indenizações de todas as benfeitorias edificadas no lote e a remoção da família".
18. Porém, não foi o que ocorreu, pois, em nenhum momento os assentados puderam manifestar interesse ou discordância em relação à incorporação daquela área específica a seu lote, sendo somente notificados sobre a decisão unilateral da autarquia, sem qualquer menção à possibilidade de interposição de recurso - "Assim sendo, NOTIFICAMOS os senhores da alteração do Lote 11 para sua ciência" - em clara violação ao contraditório e à ampla defesa. Além disso, embora o laudo de vistoria tenha identificado que a área estava "coberta em sua totalidade por pastagens de Brachiaria brizantha", não houve qualquer determinação de indenização aos assentados por tais benfeitorias.
19. Nessa senda, ao contrário do que alega a União, não há que se falar em incidência da Súmula 487 do STF ("Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada"), pois, o fato do domínio do imóvel pertencer ao INCRA não o autoriza a modificar unilateralmente contrato firmado em 2003 com assentados que, desde então, têm cumprido todas as cláusulas contratuais, explorando adequadamente o lote, e que, por isso, ao menos em tese, já poderiam até mesmo pleitear o título de domínio do imóvel.
20. Frise-se, ainda, que o princípio da supremacia do interesse público não é absoluto, fato reconhecido pelo próprio representante da AGU, nos autos do processo administrativo, que impôs condições - não cumpridas integralmente - para a cessão de uso à RFB, a fim de que os legítimos possuidores não fossem prejudicados.
21. Dessa forma, conforme bem salientado pelo D. Juízo a quo e reiterado no parecer do Ministério Público Federal, "não se está a dizer que dita alteração não seria possível. Todavia, nos moldes em que realizada, caracteriza-se ilegal, razão pela qual não há como reconhecer a ausência de legitimidade da posse dos Autores, que se encontra amparada em contrato de cessão de uso devidamente formalizado com a Administração Pública".
22. Assim, irrepreensível a r. sentença ao autorizar a reintegração de posse em favor dos apelados, determinando aos apelantes que se abstenham de turbá-la ou esbulhá-la.
23. Condenação do INCRA e da União ao pagamento de honorários advocatícios recursais, fixados em 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa.
24. Apelações não providas.