Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5023750-52.2022.4.03.0000

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

AGRAVANTE: EDEN SIROLI RIBEIRO

Advogado do(a) AGRAVANTE: ANAMARIA PRATES BARROSO - SP322681-A

AGRAVADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5023750-52.2022.4.03.0000

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

AGRAVANTE: EDEN SIROLI RIBEIRO

Advogado do(a) AGRAVANTE: ANAMARIA PRATES BARROSO - SP322681-A
AGRAVADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

Trata-se de agravo de instrumento à decisão que, em ação civil pública, por imputação de improbidade administrativa, recebeu inicial com citação dos réus para contestação e, diante do determinado no AI 5004202-75.2021.4.03.0000, assentou que “se manifestará expressamente, após oitiva dos requeridos, sobre a manutenção da indisponibilidade de bens decretada. Para tanto será designada audiência na fase de instrução”.

Alegou-se que: (1) a decisão recebeu petição inicial e manteve indisponibilidade dos bens dos requeridos, deixando de adequar-se aos preceitos da Lei 14.230/2021, conforme decidido no AI 5004202-75.2021.4.03.0000; (2) a indisponibilidade ocorreu: "i) sem prévia oitiva dos Requeridos; ii) sem indicação pelo MPF, autor da ação, assim como na decisão de indisponibilidade a ocorrência efetiva de qualquer ato ou tentativa de dilapidação do patrimônio dos Requeridos, baseando-se a decretação da medida acautelatória de indisponibilidade de bens apenas nos fortes indícios da prática dos atos ímprobos imputados, presumido-se o periculum in mora nos termos da jurisprudência consolidada; iii) abrangendo o montante à multa civil nos respectivos valores da indisponibilidade de bens do Agravante; iv) não obedecendo à ordem preferencial de bens a serem indisponibilizados, eis que recaiu o bloqueio sobre contas bancárias do Agravante"; (3) continuam todos os bens bloqueados por prazo indeterminado até contestação e designação de audiência de instrução; e (4) presentes requisitos para tutela de urgência com suspensão dos efeitos da decisão “quanto à abertura de prazo para apresentação da Contestação até que se decida de modo urgente acerca da manutenção da indisponibilidade dos seus bens, após a oitiva dos Requeridos quanto ao tema. Inclusive, porque o d. Juízo de origem quando da manifestação expressa acerca da indisponibilidade dos seus bens, após a oitiva dos Requeridos, poderá entender pela necessidade de intimação do próprio órgão ministerial para realizar a adequação não apenas do requerimento de indisponibilidade de bens, quanto da própria inicial da Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, ante as substanciosas alterações não apenas nas tipificações (art. 9, 10 e 11), mas especialmente nas sanções previstas no art. 12 da Lei 8.429/1992”.

Houve contraminuta pelo parquet, pugnando pelo desprovimento do recurso, e memoriais pelo agravante, nos quais sustentou que: (i) conforme precedentes supervenientes da Corte, a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no ARE 843.989 “se refere especificamente a quais disposições da nova lei são irretroativas [quais sejam, “ora referindo-se à revogação do ato de improbidade administrativa culposo, ora se referindo ao novo prazo prescricional”], não dispondo sobre os demais”, inexistindo fundamento para descumprir o decidido no AI 5004202-75.2021.4.03.0000; (ii) além de descumprir tal determinação, a decisão agravada “acrescenta fundamentos que contradizem inclusive a petição inicial do Ministério Público Federal, assim como a própria decisão que decretou a indisponibilidade dos bens, e ainda mais, fundamenta sua posição com tese firmada pelo STJ (Tema 1055) em data anterior à fixação do Tema 1.199 pelo STF”, destoando das novas disposições da LIA; (iii) a manifestação judicial sobre a manutenção ou não da indisponibilidade de bens dos réus após oitiva das partes em audiência de instrução não tem previsão legal; (iv) a decisão agravada não configura ato jurídico perfeito, pois o acórdão descumprido foi proferido dentro dos parâmetros legais e com respaldo em jurisprudência prevalecente à época e que, inclusive, prevalecia quando do conhecimento pelo Juízo a quo da determinação da Turma, mesmo assim desconsiderada sem qualquer fundamentação; e (v) a situação jurídica tratada não se encontra consolidada, para efeito do artigo 14 do CPC, “justamente em razão da desconsideração do juízo a quo quanto à determinação imposta pelo Tribunal”.

É o relatório.

 

 


AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5023750-52.2022.4.03.0000

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

AGRAVANTE: EDEN SIROLI RIBEIRO

Advogado do(a) AGRAVANTE: ANAMARIA PRATES BARROSO - SP322681-A
AGRAVADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

  

 

V O T O

 

 

Senhores Desembargadores, a ação civil pública originária foi proposta na vigência da Lei 8.429/1992, com redação anterior às alterações da Lei 14.230/2021. Foi também na vigência da redação anterior da LIA decretada medida cautelar de indisponibilidade de bens dos réus, fundamentada em fortes indícios da prática dos atos ímprobos imputados e na jurisprudência dominante à época, que considerava implícito o periculum in mora, dispensando a comprovação de dilapidação do patrimônio ou sua iminência (ID 44034179, origem).

Tal decisão foi impugnada no bojo do AI 5004202-75.2021.4.03.0000, sobrevindo a Lei 14.230/2021, que foi aplicada retroativamente, no que favorável ao acusado, a teor do artigo 5º, XL, da Constituição Federal, e em conformidade com jurisprudência então dominante da própria Suprema Corte, quanto à equiparação adotada entre direito penal e direito administrativo sancionador, determinando-se, na oportunidade, “a adequação da decisão agravada às novas disposições da Lei 8.429/1992, com a redação dada pela Lei 14.230/2021, que deve ser aplicada enquanto não for eventualmente declarada inconstitucional, e em razão da consolidada jurisprudência acerca da retroatividade de normas que beneficiem os réus no âmbito do direito administrativo sancionador, tal qual se verifica no direito penal (grifamos, ID 257879996).

O acórdão foi assim ementado:

 

AI 5004202-75.2021.4.03.0000, Rel. Des. Fed. CARLOS MUTA, DJEN 31/05/2022: “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/1992. FATO NOVO. ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.230/2021. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. MEDIDA CAUTELAR DE INDISPONIBILIDADE DE BENS. REQUISITOS AUTORIZADORES. 1. Consolidada a jurisprudência no sentido de que se aplica ao direito administrativo sancionador os princípios fundamentais do direito penal, dentre os quais o da retroatividade da lei mais benigna ao réu, previsto no artigo 5º, XL, CF: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. 2. Em decorrência de tal extensão de princípios reguladores, o advento da Lei 14.230/2021, no que instituiu novo regramento mais favorável ao réu imputado ímprobo, deve ser considerado no exame de pretensões formuladas em ações civis públicas de improbidade administrativa, ainda que ajuizadas anteriormente à vigência da nova legislação. 3. Segundo a nova disciplina instituída pela Lei 14.230/2021, a indisponibilidade de bens do réu em ação de improbidade administrativa objetiva garantir integral reparação do dano ao erário ou recomposição do acréscimo patrimonial advindo do enriquecimento ilícito, podendo recair sobre bens e valores mantidos no exterior. A medida pode recair sobre bens de terceiro que tenha concorrido para a prática ímproba, ou de pessoa jurídica, se instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O decreto de indisponibilidade de bens, porém, não deve ocorrer quando implicar prejuízo à prestação de serviços públicos. 4. A decretação da medida, recorrível por agravo de instrumento, exige, além do convencimento da probabilidade da prática dos atos ímprobos imputados, “a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo”, bem como a prévia oitiva do réu, podendo esta última ser dispensada em situação excepcional devidamente comprovada e fundamentada. Não obstante tais objetivas disposições, a nova legislação previu expressamente que o “periculum in mora”, antes implícito na exegese da redação anterior, não mais pode ser presumido (§ 4º do artigo 16, LIA), aplicando-se à medida, no que pertinente, o regime da tutela provisória de urgência do Código de Processo Civil. 5. A indisponibilidade de bens pode ser substituída, a pedido, por caução, fiança bancária ou seguro-garantia, e o respectivo valor não pode ultrapassar o total do dano ou enriquecimento ilícito, apenas, apontados na inicial, não podendo abranger o montante relativo à multa civil e devendo ser rateado na hipótese de mais de um réu na ação, sujeitando-se, ainda, à readequação durante o curso do processo. 6. A nova lei ainda estipulou ordem preferencial de bens a serem indisponibilizados, podendo, quando inexistentes, recair o bloqueio sobre contas bancárias, observada a garantia legal da impenhorabilidade da quantia de até quarenta salários mínimos e do bem de família. 7. Ainda que a decretação de indisponibilidade de bens móveis e imóveis e ativos financeiros do agravante tenha, na espécie, fundamento na legislação e jurisprudência então vigentes - que consideravam implícito o periculum in mora e autorizavam a abrangência do valor relativo à multa civil aplicável -, a medida processual de caráter antecedente ou incidente admite reexame quando alterado o contexto fático ou jurídico que a respaldou, como ocorrido na hipótese, com modificações substanciais das disposições da Lei 8.429/1992. 8. No caso, com respaldo no entendimento jurisprudencial então vigente, não houve indicação pelo autor da ação, tampouco foi objeto de fundamentação da decisão agravada a ocorrência efetiva de qualquer ato ou tentativa de dilapidação do patrimônio dos réus, baseando-se a decretação da medida acautelatória de indisponibilidade de bens apenas nos fortes indícios da prática dos atos ímprobos imputados, presumido o periculum in mora nos termos da legislação consolidada. Evidenciada, assim, a necessidade de retorno dos autos à origem para que o Juízo a quo se manifeste expressamente, após oitiva dos requeridos, sobre a manutenção da indisponibilidade de bens decretada, à luz das novas disposições legislativas que exigem a presença concreta, efetiva e cumulativa dos requisitos da probabilidade da prática dos atos ímprobos imputados e urgência da medida, cujo valor deve restringir-se ao total da recomposição do erário e acréscimo patrimonial ilícito, sem abarcar eventual multa civil aplicável, observada a ordem preferencial de bloqueio e as hipóteses legais de impenhorabilidade, com possibilidade de substituição, se houver pedido, por caução idônea, fiança bancária ou seguro-garantia. 9. Agravo de instrumento parcialmente provido.”

 

Comunicado de tal acórdão, o Juízo a quo proferiu a decisão agravada em 27/07/2022, recebendo a inicial com a citação dos réus para contestação, assentando, especificamente sobre o que releva ao presente recurso, que (ID 257931857, origem):

 

“No que tange ao conjunto probatório carreados aos autos, é preciso ter em conta que além das declarações prestadas no âmbito do acordo de leniência, o inquérito civil foi instruído com cópias de e-mail, planilhas e comprovantes de transferências bancárias, extraídas de computadores apreendidos durante as diligências efetuadas, fls. 22 e seguintes do documento id n.º 43637999, descrevendo os valores transferidos aos requeridos e demais transações.

Constam ainda, demonstrativos referentes ao enriquecimento em valor incompatível com a renda declarada do requerido Eden, envolvendo diversas transações imobiliárias, fls. 30/ 32 do mesmo documento id.

Neste contexto, verifico que a presente ação civil pública foi instaurada com base em vasto conjunto probatório, que veio a ser corroborado pelas declarações obtidas nos acordos de leniência firmados com os demais envolvidos.

[...]

Neste contexto entendo que as medidas de indisponibilidade decretadas por este juízo devem ser mantidas neste momento, uma vez que a narrativa contida na inicial, os documentos acostados aos autos e a quantidade de pessoas envolvidas revelam grande habilidade para movimentação financeira e de bens.

[...]

Em razão da decisão proferida em sede de agravo, informo que este juízo se manifestará expressamente, após oitiva dos requeridos, sobre a manutenção da indisponibilidade de bens decretada. Para tanto será designada audiência na fase de instrução.”

 

Contra tal decisão, o agravante alegou que houve descumprimento do acórdão proferido no julgamento do AI 5004202-75.2021.4.03.0000.

A antecipação dos efeitos da tutela recursal foi indeferida em 13/10/2022, porque em 18/08/2022 já havia sido fixada a vinculante Tese 1.199/STF, no julgamento do ARE 843.989, com repercussão geral, no qual ficou definida a irretroatividade da Lei 14.230/2021, pelo que se concluiu, por tal decisão, que o acórdão da Turma (AI 5004202-75.2021.4.03.0000) restou superado pelo posterior entendimento firmado pela Suprema Corte, não mais persistindo, portanto, a eficácia de tal julgado, inclusive diante da expressa ressalva contida no respectivo teor (ID 264608059).

Impugnando também os fundamentos adotados no indeferimento da antecipação dos efeitos da tutela recursal, o agravante sustentou, em suma, que a Suprema Corte entendeu pela irretroatividade da Lei 14.230/2021 somente quanto à revogação do ato ímprobo culposo e aos novos prazos de prescrição, nada decidindo quanto aos às demais alterações legislativas, não encontrando-se a decisão agravada respaldada em qualquer previsão legal ou jurisprudência dominante à época em que proferida.

Em 12/12/2022, foi publicado o inteiro teor do acórdão proferido no ARE 843.989, com trânsito em julgado em 16/02/2023, pondo fim a toda controvérsia dos autos.

Com efeito, eis a respectiva ementa:

 

ARE 843.989, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe 12/12/2022: “CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. IRRETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA (LEI 14.230/2021) PARA A RESPONSABILIDADE POR ATOS ILÍCITOS CIVIS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI 8.429/92). NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE REGRAS RÍGIDAS DE REGÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS CORRUPTOS PREVISTAS NO ARTIGO 37 DA CF. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 5º, XL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL AO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR POR AUSÊNCIA DE EXPRESSA PREVISÃO NORMATIVA. APLICAÇÃO DOS NOVOS DISPOSITIVOS LEGAIS SOMENTE A PARTIR DA ENTRADA EM VIGOR DA NOVA LEI, OBSERVADO O RESPEITO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA JULGADA (CF, ART. 5º, XXXVI). RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO COM A FIXAÇÃO DE TESE DE REPERCUSSÃO GERAL PARA O TEMA 1199. 1. A Lei de Improbidade Administrativa, de 2 de junho de 1992, representou uma das maiores conquistas do povo brasileiro no combate à corrupção e à má gestão dos recursos públicos. 2. O aperfeiçoamento do combate à corrupção no serviço público foi uma grande preocupação do legislador constituinte, ao estabelecer, no art. 37 da Constituição Federal, verdadeiros códigos de conduta à Administração Pública e aos seus agentes, prevendo, inclusive, pela primeira vez no texto constitucional, a possibilidade de responsabilização e aplicação de graves sanções pela prática de atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da CF). 3. A Constituição de 1988 privilegiou o combate à improbidade administrativa, para evitar que os agentes públicos atuem em detrimento do Estado, pois, como já salientava Platão, na clássica obra REPÚBLICA, a punição e o afastamento da vida pública dos agentes corruptos pretendem fixar uma regra proibitiva para que os servidores públicos não se deixem "induzir por preço nenhum a agir em detrimento dos interesses do Estado”. 4. O combate à corrupção, à ilegalidade e à imoralidade no seio do Poder Público, com graves reflexos na carência de recursos para implementação de políticas públicas de qualidade, deve ser prioridade absoluta no âmbito de todos os órgãos constitucionalmente institucionalizados. 5. A corrupção é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos, vital para a preservação da Democracia representativa. 6. A Lei 14.230/2021 não excluiu a natureza civil dos atos de improbidade administrativa e suas sanções, pois essa “natureza civil” retira seu substrato normativo diretamente do texto constitucional, conforme reconhecido pacificamente por essa SUPREMA CORTE (TEMA 576 de Repercussão Geral, de minha relatoria, RE n° 976.566/PA). 7. O ato de improbidade administrativa é um ato ilícito civil qualificado – “ilegalidade qualificada pela prática de corrupção” – e exige, para a sua consumação, um desvio de conduta do agente público, devidamente tipificado em lei, e que, no exercício indevido de suas funções, afaste-se dos padrões éticos e morais da sociedade, pretendendo obter vantagens materiais indevidas (artigo 9º da LIA) ou gerar prejuízos ao patrimônio público (artigo 10 da LIA), mesmo que não obtenha sucesso em suas intenções, apesar de ferir os princípios e preceitos básicos da administração pública (artigo 11 da LIA). 8. A Lei 14.230/2021 reiterou, expressamente, a regra geral de necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação do ato de improbidade administrativa, exigindo – em todas as hipóteses – a presença do elemento subjetivo do tipo – DOLO, conforme se verifica nas novas redações dos artigos 1º, §§ 1º e 2º; 9º, 10, 11; bem como na revogação do artigo 5º. 9. Não se admite responsabilidade objetiva no âmbito de aplicação da lei de improbidade administrativa desde a edição da Lei 8.429/92 e, a partir da Lei 14.230/2021, foi revogada a modalidade culposa prevista no artigo 10 da LIA. 10. A opção do legislador em alterar a lei de improbidade administrativa com a supressão da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa foi clara e plenamente válida, uma vez que é a própria Constituição Federal que delega à legislação ordinária a forma e tipificação dos atos de improbidade administrativa e a gradação das sanções constitucionalmente estabelecidas (CF, art. 37, §4º). 11. O princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador. 12. Ao revogar a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, entretanto, a Lei 14.230/2021, não trouxe qualquer previsão de “anistia” geral para todos aqueles que, nesses mais de 30 anos de aplicação da LIA, foram condenados pela forma culposa de artigo 10; nem tampouco determinou, expressamente, sua retroatividade ou mesmo estabeleceu uma regra de transição que pudesse auxiliar o intérprete na aplicação dessa norma – revogação do ato de improbidade administrativa culposo – em situações diversas como ações em andamento, condenações não transitadas em julgado e condenações transitadas em julgado. 13. A norma mais benéfica prevista pela Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa –, portanto, não é retroativa e, consequentemente, não tem incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes. Observância do artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal. 14. Os prazos prescricionais previstos em lei garantem a segurança jurídica, a estabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico; fixando termos exatos para que o Poder Público possa aplicar as sanções derivadas de condenação por ato de improbidade administrativa. 15. A prescrição é o perecimento da pretensão punitiva ou da pretensão executória pela INÉRCIA do próprio Estado. A prescrição prende-se à noção de perda do direito de punir do Estado por sua negligência, ineficiência ou incompetência em determinado lapso de tempo. 16. Sem INÉRCIA não há PRESCRIÇÃO. Sem INÉRCIA não há sancionamento ao titular da pretensão. Sem INÉRCIA não há possibilidade de se afastar a proteção à probidade e ao patrimônio público. 17. Na aplicação do novo regime prescricional – novos prazos e prescrição intercorrente – , há necessidade de observância dos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, com a IRRETROATIVIDADE da Lei 14.230/2021, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa. 18. Inaplicabilidade dos prazos prescricionais da nova lei às ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa, que permanecem imprescritíveis, conforme decidido pelo Plenário da CORTE, no TEMA 897, Repercussão Geral no RE 852.475, Red. p/Acórdão: Min. EDSON FACHIN. 19. Recurso Extraordinário PROVIDO. Fixação de tese de repercussão geral para o Tema 1199: "1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei".”

 

Conquanto o entendimento pela irretroatividade da Lei 14.230/1992 tenha sido firmado pela Suprema Corte no exame da revogação da modalidade culposa de ato ímprobo e dos novos prazos prescricionais previstos, a fundamentação para tanto adotada não permite concluir diversamente quanto às demais alterações promovidas na LIA, inclusive e sobretudo no tocante aos inovadores requisitos e condicionantes legais para decreto de indisponibilidade de bens dos réus, discutidos no caso.

Daí porque, inclusive, irrelevantes na espécie, com vênia devida, os precedentes contrários desta Corte, invocados em memoriais, pois anteriores à publicação do inteiro teor, suficientemente esclarecedor a este respeito.

Com efeito, no voto condutor do acórdão proferido no ARE 843.989, o Relator Ministro ALEXANDRE DE MORAES, acompanhado pela maioria do Pleno do Supremo Tribunal Federal, consignou expressamente que (grifamos):

 

“[...]

A LIA definiu os atos de improbidade administrativa como aqueles que, possuindo natureza civil e devidamente tipificados em lei federal, ferem direta ou indiretamente os princípios constitucionais e legais da Administração Pública, independentemente de importarem enriquecimento ilícito ou de causarem prejuízo material ao erário (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 337; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses difusos e coletivos. São Paulo: Atlas, 1998. p. 83; PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Márcio Fernando Elias; FAZZIO JR., Waldo. Improbidade administrativa. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 60 e ss.; MELLO, Cláudio Ari. Improbidade administrativa: considerações sobre a Lei nº 8.426/92. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: RT, ano 3, n. 11, abr./jun. 1995, p. 49).

A natureza civil dos atos de improbidade administrativa é essencial para a análise da possibilidade ou não de aplicação retroativa das previsões da nova lei e decorre – diretamente – do comando constitucional, que é bastante claro ao consagrar a independência da responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa e a possível responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao utilizar a fórmula "sem prejuízo da ação penal cabível”.

Nesse exato sentido, FÁBIO KONDER COMPARATO ensina que:

 

"a própria Constituição distingue e separa a ação condenatória do responsável por atos de improbidade administrativa às sanções por ela expressas, da ação penal cabível, é, obviamente, porque aquela demanda não tem natureza penal” (Ação de improbidade: Lei 8.429/92. Competência ao juízo do 1° grau. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n. 9, jan. 1999.).

 

Esse é o mesmo entendimento de GIANPAOLO POGGIO SMANIO e de DAMÁSIO DE JESUS, ao afirmarem que:

 

"as sanções previstas para os atos de improbidade administrativa são de natureza civil, distintas daquelas de natureza penal. Os atos de improbidade administrativa deverão ser analisados na esfera da ilicitude dos atos civis e não dos tipos penais” (Responsabilidade penal e administrativa de prefeitos municipais. Boletim IBCCrim, n. 54, maio 1997).

 

A Lei 14.230/21, de maneira inexplicável, pretendeu, em seu artigo 17-D, excluir a natureza civil da ação de improbidade, em que pese, esse substrato partir da própria Constituição Federal, ao prever:

 

“A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil , vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).

 

Ora, ao errônea e fictamente tentar excluir a natureza civil da ação de improbidade, a lei não teve a força de excluir a natureza civil do ato de improbidade e suas sanções, pois essa “natureza civil” tem substrato diretamente do texto constitucional, conforme reconhecido pacificamente por essa CORTE.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL destacou, no julgamento do TEMA 576 de Repercussão Geral, de minha relatoria (RE n° 976.566/PA), a natureza civil dos atos de improbidade administrativa, afirmando que

 

“a Constituição Federal inovou no campo civil para punir mais severamente o agente público corrupto, que se utiliza do cargo ou de funções públicas para enriquecer ou causar prejuízo ao erário, desrespeitando a legalidade e moralidade administrativas, independentemente das já existentes responsabilidades penal e político-administrativa de Prefeitos e Vereadores”.

 

Nesse mesmo sentido, essa SUPREMA CORTE afirmou que:

 

“Os agentes políticos, com exceção do Presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, de modo que se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa, quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade.... O foro especial por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal em relação às infrações penais comuns não é extensível às ações de improbidade administrativa, de natureza civil” (PET 3240 AgR/DF, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, j. 10/05/18).

 

De igual maneira, como bem recordado no parecer do Ministério Público de São Paulo, que hoje se fez representar na sustentação oral por seu eminente Procurador Geral de Justiça, MÁRIO LUIZ SARRUBO:

 

“no julgamento da ADI n.° 2.797-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, em 15.09.2005, o STF declarou a inconstitucionalidade do foro privilegiado instituído pelo § 2° da Lei n.° 10.628 de 24.12.2002, ao argumento de que “a ação de improbidade tem natureza cível, enquanto o foro por prerrogativa de função restringe-se à seara penal”.

 

Ressalte-se, ainda, que o próprio legislador, ao editar a nova lei e alterar o artigo 17 da LIA, determinou que se seguisse o procedimento comum estabelecido no Código de Processo Civil, deixando óbvia sua natureza civil.

Não há, portanto, qualquer dúvida sobre a previsão constitucional da natureza civil dos atos de improbidade administrativa.

[...]

Ao revogar a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, entretanto, a Lei 14.230/2021, não trouxe qualquer previsão de “anistia” geral para todos aqueles que, nesses mais de 30 anos de aplicação da LIA, foram condenados pela forma culposa de artigo 10; nem tampouco determinou, expressamente, sua retroatividade ou mesmo estabeleceu uma regra de transição que pudesse auxiliar o intérprete na aplicação dessa norma – revogação do ato de improbidade administrativa culposo – em situações diversas como ações em andamento, condenações não transitadas em julgado e condenações transitadas em julgado.

A Lei 14.230/2021, somente, estabeleceu uma genérica aplicação “ao sistema de improbidade administrativa os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”, que precisa ser compreendida.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, inovou em matéria de Administração Pública, consagrando os princípios e preceitos básicos referentes à gestão da coisa pública.

Ressalte-se que nenhuma das Constituições anteriores havia constitucionalizado os princípios e preceitos básicos do Direito Administrativo de maneira tão detalhada e completa quanto a atual Constituição Federal de 1988 (Cf. a respeito: HILTON CAMPANHOLE Lobo; ADRIANO CAMPANHOLE. Constituições do Brasil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2000; Constituição da República Federativa do Brasil (1946, 1967, 1969, 1988): quadro comparativo. Brasília: Senado Federal, 1996.), e, igualmente, tal hipótese não encontra paralelo no Direito Comparado.

Como destacou JOSÉ CRETELLA JÚNIOR,

 

“pela primeira vez na história do Direito Constitucional positivo brasileiro vamos encontrar, na Lei Magna, a expressão Administração Pública, no Capítulo VII, cujo título é precisamente este: Administração Pública” (A administração pública. In: Vários autores. A Constituição brasileira de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 94).

 

Poder-se-ia afirmar ainda que a atual Constituição da República codificou as principais normas do Direito Administrativo, que, como lembra JEAN RIVEIRO, é essencialmente não codificado (Direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1981. p. 35); prevendo normas de gerência, contratação, publicidade, entre outras; além do Estatuto do Servidor Público e de mecanismos de controle da Administração.

A codificação constitucional das normas administrativas possibilitou a consagração de uma Teoria Geral do Direito Constitucional Administrativo, voltada para a observância dos princípios constitucionais básicos e tendo por finalidade limitar o poder estatal, prevendo instrumentos de controle e meios de responsabilização dos agentes públicos, para garantia de transparência e probidade na administração e voltados para o combate à corrupção.

Como salientado por MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO,

 

“a corrupção, embora sua feição mude de época para época, é um fenômeno presente em todos os tempos. Dela, não escapa regime algum. Igualmente, ela existe no mundo inteiro, conquanto em níveis diversos. É assim um mal que todo regime tem de estar preparado para enfrentar”. Contudo, observa o citado professor, a corrupção é “particularmente grave numa democracia. Esta, com efeito, confia na representação para realizar o interesse geral. Se ela é corrupta e persegue o seu bem particular, o regime fica totalmente desfigurado. Além disso, na democracia, rapidamente a corrupção desmoraliza o Poder além de ser um fator de ineficiência. Por isso, pode levar facilmente à perda da legitimidade do regime” (A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 87-88).

 

Dessa forma, em face da modernização e do agigantamento do Estado, a constitucionalização do Direito Administrativo representou verdadeiro instrumento de combate à corrupção em todos os níveis da Administração Pública, em defesa da legitimidade do regime democrático.

Importante lembrar a lição de KARL LOEWESTEIN, quando afirmou que,

 

“na sociedade do Século XX, se pode considerar como o fenômeno mais digno de ser ressaltado a transformação do Estado Legislativo em Estado Administrativo” (Teoria de la constitucion. Barcelona: Ariel, 1946. p. 66).

 

A Constituição de 1988, portanto, constitucionalizou regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos, dando novos contornos ao Direito Administrativo Sancionador (DAS), que deixou de somente regular a relação administrado/administração, passando a ter princípios e valores próprios de regência da legalidade e moralidade na atuação do Poder Público.

Essa concepção, como anteriormente citado, foi consagrada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, como esclarecem PIMENTA OLIVEIRA e MUSETTI GROTTI:

 

"A Constituição reconhece o valor jurídico diferenciado do interesse público como categoria própria e não assimilável aos meros interesses pronunciados por administradores públicos ou meramente associados aos órgãos e entes públicos e governamentais, por lei ou atos infralegais. Não se trata de mero conceito jurídico indeterminado que a teoria da linguagem possa esgotar como operacionalizá-lo. O interesse público é um conceito recepcionado na Constituição. Isto se faz no capítulo próprio dos Direitos e Garantias Fundamentais (artigo 19, inciso I), no capítulo dedicado à Administração Pública, em seu significado funcional (artigo 37, inciso LX, na disciplina das leis (artigo 66, parágrafo 1°), na atividade de gestão da função pública na Magistratura (artigo 93, inciso VIII e artigo 95, inciso II) e no Ministério Público (artigo 128, parágrafo 5°, inciso I, alínea b), e na distinção do campo da legalidade (tal como cristalizado na própria Constituição) do preceituado como próprio ao interesse público, em seu ADCT (artigo 51 ADCT). Esta presença constitucional significa que aos intérpretes não é dado ignorar ou reduzir sua relevância no sistema jurídico, devendo cumprir a função de demonstrar a suas projeções normativas no processo de concretização constitucional" (Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 22, nº 120, p. 83-126, març./abr. 2020, p. 90).

 

É nesse sentido que deve ser entendido e interpretado o denominado “Direito Administrativo Sancionador (DAS)”, que é sub-ramo do Direito Administrativo e consiste na "expressão do efetivo poder de punir estatal, que se direciona a movimentar a prerrogativa punitiva do Estado, efetivada por meio da Administração Pública e em face do particular ou administrado" (BENEDITO GONÇALVES; RENATO CÉSAR GUEDES GRILO). Os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador no regime democrático da constituição de 1988. Revista Estudos Institucionais, v. 7, nº 2, mai./ago. 2021, p. 468).

Diferentemente do Direito Penal, que materializa o ius puniendi na seara judicial, mais precisamente no juízo criminal; o Direito Administrativo Sancionador tem aplicação no exercício do ius puniendi administrativo; sendo ambos expressões do poder punitivo estatal, porém representando sistemas sancionatórios que “não guardam similitude de lógica operativa” (JOSÉ ROBERTO PIMENTA OLIVEIRA; DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROSSI. Direito Administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 22, nº 120, p. 83-126, mar./abr., 2020, p. 90).

Na impossibilidade de aplicação do Direito Penal ao sistema de improbidade, por expressa determinação constitucional que prevê responsabilidades diversas (CF, art. 37, §4º), a nova lei optou, expressamente, por estabelecer a aplicação do Direito Administrativo Sancionador no âmbito do sistema de improbidade administrativa, reforçando a natureza civil do ato de improbidade.

E o fez, para garantir um maior rigor procedimental nas investigações e uma maior efetividade na aplicação do contraditório e ampla defesa.

Na presente hipótese, portanto, para a análise da retroatividade ou irretroatividade não da norma mais benéfica trazida pela Lei 14.230/2021 – revogação do ato de improbidade administrativa culposo – o intérprete deverá, obrigatoriamente, conciliar os seguintes vetores:

(1) A natureza civil do ato de improbidade administrativa definida diretamente pela Constituição Federal;

(2) A constitucionalização, em 1988, dos princípios e preceitos básicos, regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos, dando novos contornos ao Direito Administrativo Sancionador (DAS)

(3) A aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema de improbidade administrativa por determinação legal;

(4) Ausência de expressa previsão de “anistia geral” aos condenados por ato de improbidade administrativa culposo ou de “retroatividade da lei civil mais benéfica”;

(5) Ausência de regra de transição.

A análise conjunta desses vetores interpretativos nos conduz à conclusão de que o princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador.

O inciso XL deve ser interpretado em conjunto com o inciso XXXVI, ambos do artigo 5º da Constituição Federal.

Em regra, a lei não deve retroagir, pois “não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, inclusive no campo penal, salvo, excepcionalmente, quando se tratar de lei penal mais benéfica, quando então “retroagirá para beneficiar o réu”. Trata-se, portanto, de expressa e excepcional previsão constitucional de retroatividade.

O art. 6º da LINDB também estatui a irretroatividade das leis, ao estabelecer que:

 

“A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

 

Portanto, a retroatividade das leis é hipóteses excepcional no ordenamento jurídico, sob pena de ferimento à segurança e estabilidade jurídicas; e, dessa maneira, inexistindo disposição expressa na Lei 14.230/2021, não há como afastar o princípio do tempus regit actum.

A norma constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal mais benéfica funda-se em peculiaridades únicas desse ramo do direito, o qual está vinculado à liberdade do criminoso (princípio do favor libertatis), fundamento inexistente no Direito administrativo sancionador; sendo, portanto, regra de exceção, que deve ser interpretada restritivamente, prestigiando-se a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos; principalmente porque no âmbito da jurisdição civil, impera o princípio tempus regit actum.

Nesse sentido, RAFAEL MUNHOZ DE MELLO afirma que:

 

“não se pode transportar para o Direito Administrativo Sancionador a norma penal da retroatividade da lei que extingue a infração ou torna mais amena a sanção punitiva", pois "não há no Direito Administrativo sancionador o princípio da retroatividade da lei benéfica ao infrator”. É que o dispositivo constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal mais benéfica "funda-se em peculiaridades únicas do Direito Penal, inexistentes no Direito Administrativo Sancionador" (Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição federal de 1988. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 154-155).

 

RICARDO BARROS LEONEL defende que

 

“a aplicação retroativa da disciplina mais benéfica da tutela da probidade administrativa colide, quando menos, com os dois dispositivos constitucionais: o art. 5º, XL, da CF, que tem aplicação restrita ao direito penal (aplicado na jurisdição, ou à sua feição na esfera administrativa, que é o direito administrativo disciplinar); e o art. 37, § 4º, da CF, que deixa assentado que a tutela da probidade administrativa e as sanções relacionadas aos atos ilícitos não são penais, mas sim civis” (“Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao direito sancionador”. In: Consultor Jurídico, em 17 de novembro de 2021, citado por ROGÉRIO TADEU ROMANO, In: Aspectos Polêmicos da Lei de Improbidade Administrativa Uma Hipótese de Aplicação da Nova Lei de Improbidade Administrativa e o Direito Intertemporal, p. 86. Revista de Direito Administrativo, nº 197, maio 2022).

 

Nesse sentido da irretroatividade, a Segunda Turma desta CORTE já decidiu no ARE 1019161 AgR, Rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 12/5/2017, no qual o Relator consignou que:

 

“Verifica-se, portanto, que a retroatividade da norma mais benéfica em favor do réu é um princípio exclusivo do Direito Penal, onde está em jogo a liberdade da pessoa, admitindo, até mesmo, o ajuizamento de revisão criminal após o trânsito em julgado da sentença condenatória, há qualquer tempo”.

 

Confira-se a ementa do acórdão:

 

“Ementa: ELEITORAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS PARTIDÁRIAS DO EXERCÍCIO DE 2009. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RETROATIVIDADE DA NORMA MAIS BENÉFICA (LEI 13.165/2015) NA IMPOSIÇÃO DE MULTA POR CONTAS REJEITADAS. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DAS REGRAS DE APLICAÇÃO DA NORMA CONSTANTES NA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DIRETA AO TEXTO CONSTITUCIONAL. OFENSA REFLEXA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I – O processo de análise de contas partidárias está contido no conjunto da jurisdição cível, na qual impera o princípio do tempus regit actum. Ou seja, na análise de um fato determinado, deve ser aplicada a lei vigente à sua época. II - O caráter jurisdicional do julgamento da prestação de contas não atrai, por si só, princípios específicos do Direito Penal para a aplicação das sanções, tais como o da retroatividade da lei penal mais benéfica. III - Questão que se interpreta com base na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), sendo esta a norma que trata da aplicação e da vigência das leis, uma vez que não há violação frontal e direta a nenhum princípio constitucional, notadamente ao princípio da não retroatividade da lei penal (art. 5°, XL, da CF/1988). IV - Eventual violação ao texto constitucional, que no presente caso entendo inexistente, se daria de forma meramente reflexa, circunstância que torna inviável o recurso extraordinário. V - Agravo regimental a que se nega provimento.”

 

Nesse precedente, o eminente Ministro Relator, RICARDO LEWANDOWSKI, realçou que “na análise de um fato determinado, deve ser aplicada a lei vigente à sua época.”

 

Como se observa, concluiu a Suprema Corte no ARE 843.989, quanto aos pontos apreciados no paradigma, pela irretroatividade da Lei 14.230/2021 às ações de improbidade administrativa em curso – salvo quanto à revogação do tipo ímprobo anteriormente previsto – seja porque ausente previsão legal neste sentido, seja porque inaplicável ao direito administrativo sancionador o princípio do artigo 5º, LV, CF, próprio e específico do direito penal, por já constituir exceção, de interpretação restrita, à regra geral de irretroatividade da lei, em homenagem à preservação dos atos jurídicos perfeitos e ao princípio tempus regit actum.

A partir de tal fundamentação, não cabe admitir, como pretendido, solução dada somente a algumas disposições da Lei 14.230/2021. Pelo contrário, pode-se extrair, inclusive, que a fundamentação adotada no ARE 843.989 é aplicável, em princípio, pelos motivos elucidados, a toda alteração válida promovida na Lei 8.429/1992.

Neste ponto, nota-se que os memoriais encartados nos autos acabam por inverter o sentido das razões de decidir do acórdão da Corte Suprema. O voto condutor reiteradamente aludiu ao ponto da irretroatividade específica da sistemática prescricional e da supressão da tipificação de ato ímprobo culposo não porque aplicável apenas a tais situações, mas singelamente porque, como aclarado no início do julgamento, tais foram os limites de cognição no caso em referência.

O Supremo Tribunal Federal não fez qualquer juízo de valor explícito sobre demais comandos legais promulgados. Sucede que tal delimitação não inibe que outras instâncias judiciárias interpretem os fundamentos utilizados no julgamento do ARE 843.989 para apreciar casos que tratem das demais normas da Lei 14.230/2021. Ao contrário, em respeito ao dever de formação de jurisprudência coesa (artigo 926 do CPC) deve ser justamente prescrutada a aplicabilidade do entendimento fixado pela Corte Suprema aos demais casos análogos, garantindo interpretação sistemática e convergente da legislação. 

Neste passo, observa-se que o efetivamente reiterado pelo voto do Ministro ALEXANDRE DE MORAES é que a retroatividade é exceção, não regra, como visto na transcrição acima. Portanto, parte-se da presunção, relativa, de que a nova norma não retroage, sendo a demonstração da pertinência de tal efeito excepcional abrangida pelo ônus probatório da parte que o suscita. Na espécie, as razões da agravante sustentam tal retroação como regra geral, o que, como visto, improcede diante do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

Desta maneira, ainda que a decisão agravada tenha sido proferida antes da definição da Tese 1.199/STF, a superveniência do respectivo julgamento (ARE 843.989) suplantou o acórdão no AI 5004202-75.2021.4.03.0000 – do qual sequer se cogita de violação, dada a expressa ressalva contida no respectivo teor quanto a eventual julgamento posterior do tema constitucional pela Suprema Corte, como de fato ocorrido -, mantendo incólume a indisponibilidade de bens dos réus decretada à luz da legislação então vigente e jurisprudência dominante em tal contexto normativo, assim, convalidando, consequentemente, o pronunciamento judicial recorrido.

A partir de tais observações, conclui-se, ademais, que mesmo que admitido que a eficácia prospectiva do novo regramento seria suficiente a desconstituir a indisponibilidade de bens decretada (já que o bloqueio não seria ato jurídico perfeito, dado que se protrai no tempo, sendo que não mais subsistem as previsões legais e fundamentos fáticos que lhe justificaram) não haveria que se acolher, porém, a irresignação. 

A regra aplicável em tal situação, considerando tratar-se de medida de cautela processual, é o artigo 14 do CPC, que assim dispõe:

 

"Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada."

 

Diversamente do alegado, o bloqueio de bens deferido antes do advento da Lei 14.230/2021 e com base na jurisprudência aplicável à época é, efetivamente, "situação consolidada", nos termos ora explanados, já que suprimido o fundamento pelo qual o AI 5004202-75.2021.4.03.0000 havia entendido pela respectiva reforma (a saber, a retroatividade geral da Lei 14.230/2021), ressalva que, como já dito, constou expressamente do dispositivo do julgado. Não cabendo, pois, pressupor, aprioristicamente, retroatividade ao regramento relativo a constrições patrimoniais, exsurge hígida a decisão proferida sob a égide legal anterior.

Perceba-se que o entendimento é apenas de que a decisão de indisponibilidade de bens não perde eficácia de pleno direito com o advento da Lei 14.230/2021, tal como sustentado no agravo, o que não significa ser impassível de revisão. Não há que se partir da premissa de que o bloqueio é ilegal, tampouco que, impositivamente, deve ser readequado ao regramento superveniente sobre indisponibilidade de bens, porém nada impede eventual nova análise a partir do cotejo dos contornos do caso concreto frente ao novel panorama jurídico – o que, de resto, a própria decisão agravada sinalizou possa ocorrer após instrução processual.

Enfim, não mais persistindo a eficácia do invocado no acordão proferido no AI 5004202-75.2021.4.03.0000, dada a superveniência do julgamento do ARE 843.989, com efeito vinculante (Tema 1.199/STF), a decisão agravada não se revela ilegal, arbitrária ou desarrazoada, pelo que deve ser mantida.

Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento.

É como voto.

 



E M E N T A

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. LEI 8.429/1992. DETERMINAÇÃO DE ADEQUAÇÃO ÀS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.230/2021. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO NO ARE 843.989. TESE 1.199/STF. INEXISTÊNCIA DE RETROATIVIDADE GERAL DA LEI MAIS BENÉFICA ÀS AÇÕES JÁ EM CURSO. PERDA DE EFICÁCIA DO ACÓRDÃO PROFERIDO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO ANTERIOR. MEDIDA DE CAUTELA PROCESSUAL. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. ARTIGO 14 DO CPC. CONSTRIÇÃO LÍCITA, PASSÍVEL DE REVISÃO.

1. A ação civil pública originária foi proposta na vigência da Lei 8.429/1992, com redação anterior às alterações da Lei 14.230/2021. Foi também na vigência da redação anterior da LIA decretada medida cautelar de indisponibilidade de bens dos réus, fundamentada em fortes indícios da prática dos atos ímprobos imputados e na jurisprudência dominante à época, que considerava implícito o periculum in mora, dispensando a comprovação de dilapidação do patrimônio ou sua iminência.

2. Tal decisão foi objeto do AI 5004202-75.2021.4.03.0000, sobrevindo a Lei 14.230/2021, aplicada retroativamente, no que favorável ao acusado, a teor do artigo 5º, XL, da Carta Federal, e em conformidade com jurisprudência da própria Suprema Corte, quanto à equiparação adotada entre direito penal e direito administrativo sancionador, determinando-se, na oportunidade, “a adequação da decisão agravada às novas disposições da Lei 8.429/1992, com a redação dada pela Lei 14.230/2021, que deve ser aplicada enquanto não for eventualmente declarada inconstitucional, e em razão da consolidada jurisprudência acerca da retroatividade de normas que beneficiem os réus no âmbito do direito administrativo sancionador, tal qual se verifica no direito penal”.

3. Em 18/08/2022 foi fixada a vinculante Tese 1.199/STF, no julgamento do ARE 843.989, com repercussão geral, publicado o inteiro teor do respectivo acórdão em 12/12/2022, com trânsito em julgado em 16/02/2023. Conquanto o entendimento pela irretroatividade da Lei 14.230/1992 tenha sido firmado pela Suprema Corte no exame da revogação da modalidade culposa de ato ímprobo e dos novos prazos prescricionais previstos, a fundamentação para tanto adotada não permite concluir diversamente quanto às demais alterações promovidas na LIA, inclusive e sobretudo face aos inovadores requisitos e condicionantes legais para decreto de indisponibilidade de bens dos réus, discutidos no caso.

4. Concluiu a Suprema Corte no ARE 843.989, em relação aos pontos apreciados no julgamento, pela irretroatividade da Lei 14.230/2022 às ações de improbidade administrativa em curso – salvo quanto à revogação do tipo ímprobo anteriormente previsto – seja porque ausente previsão legal neste sentido, seja porque inaplicável ao direito administrativo sancionador o princípio do artigo 5º, LV, CF, próprio e específico do direito penal, por já constituir exceção, de interpretação restrita, à regra geral de irretroatividade da lei, em homenagem à preservação dos atos jurídicos perfeitos e ao princípio tempus regit actum.

5. A partir de tal fundamentação, não cabe admitir, como pretendido, solução dada somente a algumas disposições da Lei 14.230/2021. Pelo contrário, pode-se extrair, inclusive, que a fundamentação adotada no ARE 843.989 é aplicável, pelos motivos elucidados, à toda alteração válida promovida na Lei 8.429/1992. O voto condutor reiteradamente aludiu ao ponto da irretroatividade específica da sistemática prescricional e da supressão da tipificação de ato ímprobo culposo não porque aplicável apenas a tais situações, mas singelamente porque, como aclarado no início do julgamento, tais foram os limites de cognição no caso em referência.

6. O Supremo Tribunal Federal não fez qualquer juízo de valor explícito sobre demais comandos legais promulgados. Sucede que tal delimitação não inibe que outras instâncias judiciárias interpretem os fundamentos utilizados no julgamento do ARE 843.989 para apreciar casos que tratem das demais normas da Lei 14.230/2021. Ao contrário, em respeito ao dever de formação de jurisprudência coesa (artigo 926 do CPC) deve ser justamente prescrutada a aplicabilidade do entendimento fixado pela Corte Suprema aos demais casos análogos, garantindo interpretação sistemática e convergente da legislação. Neste passo, observa-se que o efetivamente reiterado pelo voto do Ministro ALEXANDRE DE MORAES é que a retroatividade é exceção, não regra, como visto na transcrição acima. Portanto, parte-se da presunção, relativa, de que a nova norma não retroage, sendo a demonstração da pertinência de tal efeito excepcional abrangida pelo ônus probatório da parte que o suscita. Na espécie, as razões da agravante sustentam tal retroação como regra geral, o que, como visto, improcede diante do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

7. Ainda que a decisão agravada tenha sido proferida antes da definição da Tese 1.199/STF, a superveniência do respectivo julgamento (ARE 843.989) suplantou o acórdão no AI 5004202-75.2021.4.03.0000 – do qual sequer se cogita de violação, dada a expressa ressalva contida no respectivo teor quanto a eventual julgamento posterior do tema constitucional pela Suprema Corte, como de fato ocorrido -, mantendo incólume a indisponibilidade de bens dos réus decretada à luz da legislação então vigente e jurisprudência dominante em tal contexto normativo, assim, convalidando, consequentemente, o pronunciamento judicial recorrido.

8. A partir de tais observações, conclui-se, ademais, que mesmo que admitido que a eficácia prospectiva do novo regramento seria suficiente a desconstituir a indisponibilidade de bens decretada (já que o bloqueio não seria ato jurídico perfeito, dado que se protrai no tempo, sendo que não mais subsistem as previsões legais e fundamentos fáticos que lhe justificaram, inicialmente) não haveria que se acolher, porém, a irresignação. A regra aplicável em tal situação, considerando tratar-se de medida de cautela processual, é o artigo 14 do CPC, observando-se que o bloqueio de bens deferido antes do advento da Lei 14.230/2021 e com base na jurisprudência aplicável à época é, efetivamente, "situação consolidada", nos termos ora explanados, já que suprimido o fundamento pelo qual o AI 5004202-75.2021.4.03.0000 havia entendido pela respectiva reforma (a saber, a retroatividade geral da Lei 14.230/2021), ressalva que, como dito, constou expressamente do dispositivo do julgado. Não cabendo, pois, pressupor, aprioristicamente, retroatividade ao regramento de constrições patrimoniais, exsurge hígida a decisão proferida sob a égide legal anterior.

9. Perceba-se que o entendimento é apenas de que a decisão de indisponibilidade de bens não perde eficácia de pleno direito com o advento da Lei 14.230/2021, tal como sustentado no agravo, o que não significa ser impassível de revisão. Não há que se partir da premissa de que o bloqueio é ilegal, tampouco que, impositivamente, deve ser readequado ao regramento superveniente sobre indisponibilidade de bens, porém nada impede eventual nova análise a partir do cotejo dos contornos do caso concreto frente ao novel panorama jurídico – o que, de resto, a própria decisão agravada sinalizou possa ocorrer após instrução processual.

10. Enfim, não mais persistindo a eficácia do invocado no acordão proferido no AI 5004202-75.2021.4.03.0000, dada a superveniência do julgamento do ARE 843.989, com efeito vinculante (Tema 1.199/STF), a decisão agravada não se revela ilegal, arbitrária ou desarrazoada, pelo que deve ser mantida.

11. Agravo de instrumento desprovido.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo de instrumento , nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.