APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5000378-46.2018.4.03.6004
RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA
APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5000378-46.2018.4.03.6004 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação, em Ação Civil Pública, proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, em face da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), em que se pleiteou a condenação da autarquia ao fornecimento mensal de combustível para a Comunidade Indígena Guató, bem como a obrigação de fazer consistente em instalar um Posto de Atendimento naquela Aldeia. Alega o autor que, em 05/11/2009, a Comunidade Indígena Guató protocolizou no Ministério Público Federal representação intitulada "Relato sobre o descaso da Funai", informando que a autarquia indigenista não encaminha requerimentos de benefícios previdenciários e assistenciais ao INSS, não realiza o pagamento de reparos já realizados nos barcos da comunidade e nem mesmo atende às chamadas telefônicas oriundas da aldeia Uberaba. Na representação, a Comunidade Indígena informa que, durante o ano de 2009, não recebe combustível da FUNAI para abastecer o barco, o qual é destinado a locomoção dos indígenas até a Cidade de Corumbá, explicando que "nós somos um povo isolado pois vivemos distante da cidade mais próxima que é Corumbá uma distância de 350 Km". Assevera que, em reunião com os membros da Comunidade Indígena Guató, foram relatados a ocorrência de óbitos de crianças recém-nascidas e abortos, em decorrência de graves omissões das instituições responsáveis pela assistência indígena. Expedido ofício para o Administrador Executivo Regional da FUNAI, em Campo Grande, obteve as seguintes respostas (ID Num. 46702103 - Pág. 6): - no início do 2° semestre de 2009 foi lançado pregão para aquisição de combustível para atender às demandas, sendo que Corumbá não havia se inscrito. Contudo, no mês de dezembro seria lançado novo pregão para atender aos municípios não atendidos; - em relação à instalação de Posto Avançado na Aldeia Uberaba é discussão da própria administração regional de Campo Grande junto à Administração em Brasília. Contudo, espera-se que a demanda seja atendida com a reestruturação da Funai promovida pela Comissão Nacional de Política Indigenista; - quanto às questões educacionais, aduziu que tem apenas papel de fiscalizadora. Aponta que, na reestruturação da FUNAI pelo Decreto n° 7.056, de 28 de dezembro de 2009, não houve previsão de instalação de Posto Avançado em Corumbá. Narra que, diante da dificuldade em se obter qualquer auxílio da FUNAI, a Comunidade Indígena dos Guatós, em 11/03/2010, protocolou petição requerendo ao Ministério Público Federal que solicitasse à PETROBRAS o fornecimento de 1.500 litros de óleo diesel mensal para a Associação dos Índios Guató Canoeiros do Pantanal. Acerca da necessidade de combustível para o barco, destaca o autor que (ID Num. 46702103 - Pág. 9): A Aldeia Uberaba dista cerca de 350 Km da cidade de Corumbá, sendo a acesso realizado tão-somente por via fluvial ou aérea. Por razões óbvias, os índios Guató utilizam-se do transporte fluvial. Em razão da enorme distância não é possível o deslocamento através de canoa, sendo necessário o recurso a barco de motor, razão pela qual, consequentemente, necessitam de combustível para seu funcionamento. É certo que a Comunidade precisa constantemente se deslocar da Aldeia para a Cidade para fins de atender às mais diversas e básicas necessidades, que foram amplamente discorridas pelos representantes e membros da comunidade em seus depoimentos (fls. 47/48, 50, 52/53). Como dito, a cidade mais próxima é Corumbá, não havendo como recorrerem a outra localidade. A Comunidade apesar de produzir diversos alimentos, não é completamente auto-subsistente, necessitando da aquisição de alguns gêneros alimentícios, de limpeza e de higiene pessoal. Ademais, muitos de seus membros também precisam deslocar-se até a Cidade para fins de receber aposentadoria, benefícios assistenciais, bem como para fins de atendimento odontológico e médico, que não são fornecidos satisfatoriamente na Aldeia. A Escola Indígena Toghophanãa, por sua vez, também depende do transporte viabilizado pelas embarcações Guató I e II para seu funcionamento. Suas necessidades vão desde o transporte dos professores da Cidade de Corumbá até a Aldeia, passando ainda pelo transporte de material didático, equipamentos de secretaria e merenda escolar. Quanta à necessidade de um Posto Avançado na Aldeia Uberaba, sustenta que diversos problemas seriam mais facilmente detectáveis e contornáveis, tal como a não realização do pregão para adquirir combustível porque Corumbá não se inscreveu. Segundo os índios Guató, “desde 2005 nenhum funcionário da Funai comparece à Comunidade, à exceção de uma visita em outubro de 2009 para tratar da carteira indígena. São cinco anos, pelo menos, de ausência da Funai na região. O que obriga a Comunidade a se deslocar, por vezes até Campo Grande, para fins de levar suas demandas ao conhecimento da fundação pública” (ID Num. 46702103 - Pág. 12). Em sede de tutela provisória, formulou os seguintes pedidos (ID Num. 46702103 - Pág. 23): Destarte, uma vez preenchidos os pressupostos legais, REQUER o Ministério Público Federal, em antecipação de tutela, a ser deferida com fundamento no art. 12 da Lei n° 7.347/85 c/c arts. 273 e 461, § 3°, do CPC, a Vossa Excelência que: a) determine à Funai que forneça, mensalmente, 1.200 litro de óleo diesel, 200 litros de gasolina, um galão de 20 litros de óleo 40 e 10 litros de óleo dois tempos, para abastecer o barco Guató I e o barco Guató II; b) determine que um funcionário da Funai, na qualidade de órgão protetor e promotor dos direitos indígenas, realize visitas em periodicidade mensal à Aldeia Uberaba, para fins de verificar as demandas da Comunidade, formalizando os requerimentos e encaminhando-os aos órgãos competentes, até que se instale um Posto de Atendimento na localidade, enviando relatório circunstanciado a, este Juízo e ao Ministério Público Federal a cada visita realizada; c) como medida de apoio às ordens anteriores: c.1) estabeleça multa semanal no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) pelo descumprimento dos itens anteriores. Ao final, requer (ID Num. 46702103 - Pág. 24): a) seja a ré condenada a fornecer, mensalmente, 1.200 litro de óleo diesel, 200 litros de gasolina, um galão de 20 litros de óleo 40 e 10 litros de óleo dois tempos, para abastecer o barco Guató I e o barco Guató II; b) seja a ré condenada à obrigação de fazer consistente em instalar um Posto de Atendimento na Aldeia Guató, a fim de garantir e manter assistência e promoção à Comunidade Indígena; c) seja a ré condenada às custas e despesas processuais, inclusive aquelas decorrentes de perícias e ônus da sucumbência. Intimada, a União informou que não tem interesse jurídico em intervir na relação processual, “cujo objeto litigioso refere-se a temática inerente ao âmbito de exercício autônomo da competência administrativa da Entidade Fundacional (FUNAI), à vista do princípio da especialidade” (ID Num. 46702103 - Pág. 122). Após a resposta preliminar da FUNAI, foi deferido parcialmente o pedido liminar para que a ré (ID Num. 46702103 - Pág. 154): a) forneça mensalmente 1.200 (mil e duzentos) litros de óleo diesel, 200 (duzentos) litros de gasolina, 1 (um) galão de 20 (vinte) litros de óleo 40 e 10 (dez) litros de óleo dois tempos; b) destaque um funcionário seu para realizar visitas mensais à Aldeia Uberaba, a fim de verificar as demandas da Comunidade, formalizar os requerimentos e encaminhá-los aos órgãos competentes, enviando relatório circunstanciado ao Juízo e ao MPF a cada visita realizada, até que se instale uma Coordenação Técnica Local. Desta decisão a FUNAI interpôs agravo retido ID Num. 46702103 - Págs. 226-232. Na sentença, o r. Juízo Singular julgou procedentes os pedidos (ID Num. 46702106 - Págs. 7-29). Não houve condenação em honorários advocatícios. Apela a FUNAI requerendo, de início, o conhecimento do seu agravo retido. No mérito, aduz, em síntese: a) não mais responde pela tutela dos indígenas e, muito menos, ainda a comunidade indígena, já que a tutela descrita pela Lei n° 6.001/73 não foi recepcionada pela CF/88; b) instituto da tutela orfanológica previsto no Estatuto do índio não possui mais vigência, tendo os arts. 6°e 7° do Estatuto do Índio sido revogados tacitamente; c) a pretendida liberação de verbas públicas para a compra de combustíveis para abastecer veículos particulares (barco) não se coaduna com a missão institucional desta Fundação; d) não é cabível impor que a FUNAI instale uma estrutura física para abrigar a Coordenação Técnica Local — CTL de Corumbá no perímetro urbano no prazo de 3 meses, uma vez que nenhum prejuízo está tendo aos indígenas, até porque suas reivindicações estão sendo atendidas pelo Coordenador de Corumbá; e) não se encontra negligente para com a população indígena, sendo certo que os procedimentos tendentes à resguardar o interesse daquela comunidade indígena já estão previstos no planejamento de suas ações; f) não merece prosperar o entendimento de que a FUNAI deva ser condenada ao pagamento de uma multa diária. Requer “o provimento do presente recurso de apelação para ser reformada a respeitável sentença prolatada pelo Juiz a quo, reconhecendo a excludente da responsabilidade do Apelante/FUNAI, a improcedência do pedido inicial, com a inversão do ônus da sucumbência e, que caso assim essa colenda Turma não entender seja minorado o valor da multa imposta, bem como, assinalar um prazo razoável e proporcional, para que cesse essa determinação do item "a" imposta ad aeternum pela sentença, por medida da mais costumeira Justiça” (ID Num. 46702106 - Pág. 49). Com as contrarrazões, vieram os autos a esta E. Corte. O Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria da República, manifestou-se pela não provimento do recurso (ID Num. 82226924). É o relatório.
APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5000378-46.2018.4.03.6004 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Do agravo retido Embora o agravo retido não tenha sido previsto no CPC/2015, o recurso deve ser analisado segundo o princípio tempus regit actum, em estrita observância ao princípio da segurança jurídica. In casu, como houve reiteração do pedido de sua apreciação em apelação, conforme previa o art. 523, § 1º, do CPC/1973, o agravo retido deve ser conhecido. A apelante, inconformada com a decisão que deferiu parcialmente o pedido de tutela liminar, sustenta, em síntese: a) a pretendida liberação de verbas públicas para a compra de combustíveis para abastecer veículos particulares (barco) não se coaduna com a missão institucional desta Fundação; b) a FUNAI não se encontra negligente para com a população indígena, sendo certo que os procedimentos tendentes a resguardar o interesse daquela comunidade indígena já estão previstos no planejamento das ações da FUNAI e que a implantação de Coordenação Técnica Local para atender a Comunidade Guató está no planejamento; c) a obrigatoriedade de visita à Aldeia Uberaba perde o seu sentido e finalidade com a futura instalação de uma Coordenação Técnica Local em Corumbá, onde o atendimento às necessidades de proteção e promoção da comunidade Guató poderá ser efetivado com o profissionalismo e nas condições técnicas adequadas. Infere-se que as alegações são as praticamente idênticas àquelas aduzidas neste apelo. Deste modo, conheço do agravo retido, cuja apreciação será feita em conjunto com os fundamentos do recurso de apelação, evitando-se exame repetitivo das matérias. Das razões recursais A Constituição Federal de 1988, em seu art. 231, dispõe: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Segundo o dispositivo, aos povos indígenas foram titularizados direitos específicos quanto à sua organização social, aos seus costumes e crenças, às suas línguas e tradições, configurando aquilo que a doutrina denomina como o “direito à diferença”. Em sua obra, “O Direito dos Povos Indígenas”, Samia Roges Jordy Barbieri conceitua o “direito à diferença” nos seguintes termos: O direito de ser índio deve ser, em primeiro lugar, o respeito ao seu direito à alteridade e à diferença. A Constituição de 1988 avançou neste aspecto, graças à mobilização e o interesse dos movimentos indígenas e das entidades de apoio à causa indígena. A Carta Magna atual reconheceu aos povos indígenas o respeito à sua alteridade, defendendo a organização social, costumes, línguas, crenças e suas tradições. (...) A Constituição de 1988 na busca da eficácia aos preceitos, cujo avanço é considerável, rompeu uma tradição secular e reconheceu aos índios direitos permanentes. Agora, não falamos mais na política integracionista dizimadora, uma vez que os índios já não teriam que ser incorporados à comunhão nacional, forçosamente impingidos a assimilar nossa cultura, em detrimento da cultura indígena. (Editora Almedina Brasil, São Paulo, 2021, pgs. 38-39, grifei) Em termos singelos, o “direito à diferença” consiste não apenas no direito dos índios de serem índios, mas, principalmente, o de permanecerem como tal, mantendo as suas identidades, costumes, tradições e crenças. Nas diversas previsões do Texto Constitucional, percebe-se a preocupação do legislador originário de proteger a comunidade indígena de forma ampla, como se verifica, exemplificativamente, na regulamentação do direito à terra que tradicionalmente ocupam (art. 231, §§ 1º a 6º), na outorga de capacidade para ingressar em juízo na defesa de seus direitos sem depender de intermediação (art. 232) e na garantia de que o ensino seja feito em sua língua materna: Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Assim, dado o espectro regulatório, cabe ao Poder Público assegurar a tutela efetiva dos direitos aos índios, garantindo-lhes, além da proteção de sua cultura, hábitos e crenças, o mínimo suficiente para uma vida digna (CF, art. 1º, III). No paradigmático julgamento do caso “Raposa do Sol”, o E. Supremo Federal Tribunal estabeleceu o total de 19 (dezenove) condicionantes para a preservação de terras indígenas (Pet 3.388, Relator Ministro Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009). Para o caso em julgamento, importa destacar o posicionamento exarado pelo Ministro Relator que, em seu voto, asseverou que os índios são “parte essencial da realidade política e cultural brasileira”. Em suas palavras: 53. É cada qual dessas etnias indígenas e suas particularizadas formas de organização social que se põem como alvo dos citados arts. 231 a 232, sem prejuízo da idéia central de que todas elas reunidas compõem um segmento ainda maior; um verdadeiro macro-conjunto populacional-aborígine que se vem somar àqueles constitutivos dos afro-descendentes e dos egressos de outros países ou continentes (a Europa portuguesa à frente). Dando-se que todos esses grandes conjuntos ou grupos humanos maiores são formadores de uma só realidade política e cultural: a realidade da nação brasileira. Entendida por nação brasileira essa espécie de linha imaginária que ata o presente, o passado e o futuro do nosso povo. É dizer, povo brasileiro como um só continente humano de hoje, de ontem e de amanhã, a abarcar principalmente os três elementares grupos étnicos dos indígenas, do colonizador branco e da população negra. (...) 54. Esses e outros dispositivos constitucionais, adiante indicados, são as âncoras normativas de que nos valemos para adjetivar de brasileiros os índios a que se reportam os arts. 231 e 232 da Constituição. Não índios estrangeiros, "residentes no País", porque para todo e qualquer estrangeiro residente no Brasil já existe a genérica proteção da cabeça do art. 5º da nossa Lei Maior ("Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)". Assumindo tal qualificação de pessoas naturais brasileiras, ressalte-se, decisivas conseqüências hermenêuticas para a compreensão do tema da demarcação das terras indígenas, pois as "organizações", "comunidades" e "populações" a que se refere o inciso V do art. 129 da Magna Carta Federal são constituídas de coletividades humanas genuinamente nacionais, todas alocadas em solo pátrio. In casu, discute-se o cabimento da obrigação da FUNAI consistente no fornecimento mensal de combustível necessário para suprir o transporte dos integrantes da Comunidade Indígena Guató e a instalação de um Posto de Atendimento no local para garantir e manter assistência daqueles indígenas. Do fornecimento mensal de combustível Ao justificar a necessidade do fornecimento mensal de combustível, o MPF aduziu, de início, que a Comunidade Guató, localizada na Aldeia Uberaba, vive de forma isolada, estando situada a 350 Km de Corumbá/MS, a cidade mais próxima. Assim, as únicas formas de acesso são por via fluvial ou aérea. Como não é viável economicamente a via aérea, os índios Guató se utilizam de dois barcos motorizados (Guató I e Guató II). Destaca que, embora a Comunidade até produza alimentos para atender suas necessidades, ela não é auto subsistente, na medida em que os índios Guató precisam se deslocar para Corumbá para receber aposentadoria ou benefícios assistenciais (ex: bolsa família), para obter atendimento médico e odontológico, para adquirir outros itens de necessidade básica, etc.. Quanto ao sistema educacional, o autor narra que o barco Guató I é utilizado para levar e trazer os professores, levar material didático, merenda escolar e materiais diversos sem os quais a Escola Indígena Toghophanãa não pode funcionar. Sintetiza o MPF afirmando que a “existência e funcionamento da Comunidade dependem diretamente e precipuamente do transporte fluvial de seus membros, que carecem transitar com frequência da Aldeia Uberaba para a Cidade de Corumbá, o que é realizado através das embarcações Guató I e II” (ID Num. 46702103 - Pág. 9). A FUNAI foi criada pela Lei nº 5.371/67 tendo por finalidade as atribuições descritas em seu art. 1º, entre as quais se destaca: Art. 1º Fica o Govêrno Federal autorizado a instituir uma fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos têrmos da lei civil, denominada "Fundação Nacional do Índio", com as seguintes finalidades: I - estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir enumerados: a) respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais; b) garantia à posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de tôdas as utilidades nela existentes; c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional; d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas; (...) IV - promover a prestação da assistência médico-sanitária aos índios; Quando do ajuizamento desta demanda (abril/10 – ID Num. 46702103 - Pág. 4), estava em vigor o Decreto nº 7.056/09, que, regulamentando a Lei nº 5.371/67, detalhou os mecanismos de promoção e auxílio aos índios pela FUNAI: Art. 2º A FUNAI tem por finalidade: I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção dos direitos dos povos indígenas; II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios: a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; f) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e (...) V - acompanhar as ações e serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas; (...) VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena; (...) IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas. O Decreto nº 7.056/09 foi revogado pelo Decreto nº 7.778/12, o qual foi revogado pelo Decreto nº 9.010/17, sendo que atualmente vigora o Decreto nº 11.226/22. No Decreto em vigência, as finalidades da FUNAI estão arroladas no art. 2º do Anexo I, apresentando as mesmas diretrizes já consagradas no Decreto nº 7.056/09. O dispositivo tem a seguinte redação: Art. 2º A Funai tem por finalidade: I - proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União; II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios: a) reconhecimento da organização social, dos costumes, das línguas, das crenças e das tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena e às suas comunidades e organizações; c) garantia, aos povos indígenas, do direito originário, da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam, da posse permanente e do usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia, aos povos indígenas isolados, do exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais sem a necessidade de serem contatados; e) garantia da proteção e da conservação do meio ambiente nas terras indígenas; f) garantia da promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; e g) garantia da participação dos povos indígenas e das suas organizações em instâncias do Estado que estabeleçam políticas públicas que lhes digam respeito; (...) V - monitorar as ações e os serviços de atenção à saúde dos povos indígenas; (...) VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, conforme a realidade de cada povo indígena; (...) IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção das terras e dos povos indígenas. Dentre o rol de competências, sobressaem-se o dever institucional da FUNAI de garantir a “promoção de direitos sociais” e o de “promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena”. Nesse contexto a FUNAI deve atuar buscando proteger efetivamente os direitos dos povos indígenas, os quais fazem parte de uma minoria que constantemente tem seus direitos flagrantemente violados no país. Em seu apelo, a autarquia defende que não tem qualquer obrigação de fornecer o combustível, uma vez que a tutela orfanológica prevista no art. 7º do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) não foi recepcionada pela CF/88. O dispositivo tem a seguinte redação: Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei. § 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória. § 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas. Segundo o Estatuto, presume-se que o indígena não possui capacidade civil, razão pela qual cumpriria à União, por meio da FUNAI, suprimi-la por meio da tutela orfanológica. De fato, a jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça já decidiu nos termos preconizados pela FUNAI: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS SUBMETIDOS AO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 2/STJ. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FAZENDA OCUPADA POR MEMBROS DA COMUNIDADE GUARANI ÑANDEVA. ATO PRATICADO PELOS INDÍGENAS POR SUA PRÓPRIA CONTA. PROCESSO DEMARCATÓRIO AINDA EM ANDAMENTO. ESBULHO CONFIGURADO. MULTA DIÁRIA IMPOSTA À FUNAI EM CASO DE NOVA INVASÃO. AFASTAMENTO. (...) 6. Sem razão o particular quando defende o restabelecimento da condenação da FUNAI ao ressarcimento pelos danos decorrentes do abatimento de animais ocorrido nessa ocupação. Conforme bem lançado nas contrarrazões da FUNAI, a tutela de natureza orfanológica prevista no Estatuto do Índio não foi recepcionado pela atual ordem constitucional, por isso a fundação não possui ingerência sobre as atitudes dos indígenas que, como todo cidadão, possuem autodeterminação e livre arbítrio, sendo despida de fundamento jurídico a decisão judicial que impõe ao ente federal a responsabilidade objetiva pelos atos ilícitos praticados por aqueles. (...) (REsp n. 1.650.730/MS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 20/8/2019, DJe de 27/8/2019.) Como bem destacado pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, “a CF/1988 consagrou o Princípio da alteridade, cujo corolário principal é o direito à diferença, implicando no dever de o Estado respeitar as peculiaridades de cada grupo social, ao mesmo tempo em que o impede de compeli-los a alterar seu modo de vida e visão de mundo” (AgInt no REsp n. 1.451.162/AL, Primeira Turma, julgado em 21/9/2020, DJe de 24/9/2020). No entanto, a questão ora debatida, qual seja, o fornecimento do combustível, não deve ser apreciada sobre o prisma da tutela orfanológica, porquanto não se está questionando a capacidade civil dos índios Guató. Como já ressaltado, o único meio plausível de locomoção da Comunidade Guató é a fluvial. E dada da distância de 350 Km até a cidade mais próxima (Corumbá), é inviável a utilização de embarcações manuais, como a canoa, por exemplo. Sob tal aspecto, impede destacar as seguintes observações feitas na r. sentença (ID Num. 46702106 - Pág. 13, grifei): A comunidade indígena em questão, Povo Guató, consiste em comunidade pré-colombiana que se enquadra no regime diferenciado de proteção de que trata o art. 231 da Constituição Federal e Estatuto do Índio. O local em que habitam, denominado Aldeia Uberaba, está situado na denominada "Ilha Insula", no Pantanal Sul Matogrossense, a uma distância considerável (350 Km) do centro urbano mais próximo (Corumbá), o que exige uma viagem de aproximadamente 24 (vinte e quatro) horas de barco pelo Rio Paraguai. Portanto, o fornecimento de combustível para os barcos motorizados, mais do que significar uma simples obrigação de dar, representa a própria sobrevivência e perpetuação daquela Comunidade. Trata-se de responsabilidade inerente às finalidades institucionais da FUNAI, criada para ser o órgão oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas no território nacional. No mesmo sentido, em 2007, a Organização das Nações Unidas editou a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas”, reconhecendo a obrigação de Estado de tutelar e proteger os seus direitos: Artigo 21 1. Os povos indígenas têm direito, sem qualquer discriminação, à melhora de suas condições econômicas e sociais, especialmente nas áreas da educação, emprego, capacitação e reconversão profissionais, habitação, saneamento, saúde e seguridade social. 2. Os Estados adotarão medidas eficazes e, quando couber, medidas especiais para assegurar a melhora contínua das condições econômicas e sociais dos povos indígenas. Particular atenção será prestada aos direitos e às necessidades especiais de idosos, mulheres, jovens, crianças e portadores de deficiência indígenas. Artigo 29 1. Os povos indígenas têm direito à conservação e à proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos. Os Estados deverão estabelecer e executar programas de assistência aos povos indígenas para assegurar essa conservação e proteção, sem qualquer discriminação. Artigo 39 Os povos indígenas têm direito a assistência financeira e técnica dos Estados e por meio da cooperação internacional para o desfrute dos direitos enunciados na presente Declaração. A obrigação do Poder Público para as comunidades indígenas também deve ser analisada sob a ótica dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, em especial a Convenção nº 169 da OIT, internalizada por força do Decreto nº 5.051/2004, posteriormente revogado pelo Decreto nº 10.088/19. Em seu Anexo LXXII, transcreve os termos da referida Convenção, sendo relevante destacar os seguintes dispositivos: Artigo 2º 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. 2. Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições; c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida. Artigo 7º (...) 2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria. Os documentos constantes dos autos são suficientes para comprovar que, em razão de omissão da FUNAI, a Comunidade Indígena Guató encontra-se desamparada, não tendo acesso aos direitos que se inserem no chamado mínimo existencial, conjunto de bens imprescindíveis para uma existência digna. Como bem destacado na r. sentença (ID Num. 46702106 - Pág. 14): A ausência de assistência revela efeitos deletérios de duas ordens: a) a falta de amparo quando os indígenas vêm à cidade, o que seria necessário posto que, ao viverem a maior parte do tempo em isolamento, estes revelam claras dificuldades em se comunicar e de fazer valer os seus direitos em nossa sociedade; b) a ausência de proteção dos indígenas em face dos indivíduos que passam pela Aldeia Uberaba (localizada na beira do Rio Paraguai), havendo notícias de que pescadores/turistas incitam os jovens indígenas a se prostituírem e a consumir álcool - fato comum em razão do intenso turismo de pesca na região. Resta cristalina, assim, a omissão do Estado em adotar as medidas necessárias a salvaguardar os direitos dos povos indígenas, de modo que, presente uma ilegalidade, ainda que sob a modalidade omissiva, impõe-se a atuação do Poder Judiciário a fim de compelir a Administração Pública a executar as atribuições que lhe são afetas, não havendo, pois, que se falar em violação ao princípio da separação dos poderes. No que se refere à quantidade de combustível a ser fornecido para abastecer os barcos motorizados (1.200 litros de óleo diesel, 200 litros de gasolina, 1 galão de 20 litros de óleo 40 e 10 litros de óleo dois tempos), a r. sentença consigna que o montante almejado “é suficiente para apenas uma viagem mensal de ida e volta da aldeia à cidade” (ID Num. 46702106 - Pág. 17, grifei). Segundo os recibos acostados no ID Num. 46702105 - Pág. 228, o valor para aquisição dos combustíveis seria pouco mais de R$ 4.000,00, em junho/2014. Ora, impor que o pagamento deste valor seja custeado pelo Povo Guató, que tem suas atividades voltadas apenas para sua própria sobrevivência, teria o mesmo efeito prático de sentenciá-la à extinção. Com efeito, segundo o depoimento do índio Zaqueo de Souza Ferreira, transcrito na r. sentença, “Nós somos coletores e pescadores, nossa área não é desmatada, (...) tudo é floresta nativa, nós utilizamos ela somente para tirar aquilo que é necessário para nossa sobrevivência" (ID Num. 46702106 - Pág. 19). Mostra-se, portanto, temerária e indevida a abrupta interrupção do fornecimento do combustível à Comunidade Guató, configurando este descaso afronta ao art. 231 da CF/88, ao art. 1º, “a” e “c”, da Lei nº 5.371/67, ao art. 2º do Decreto nº 7.056/09 (atual Decreto nº 11.226/22) e à Convenção nº 169 da OIT. Da instalação de uma unidade de atendimento à comunidade indígena Ao deferir a instalação de unidade de atendimento à Comunidade Guató, o r. Juízo Singular assim justificou (ID Num. 46702106 - Pág. 22): E, no caso, não se revela como sendo legítima a decisão da FUNAI de deixar a comunidade indígena absolutamente desamparada. O que se verifica é que os Guatós constituem uma comunidade bastante isolada da Sociedade, tanto culturalmente, como fisicamente - situada a cerca de 350 Km de distância, por via fluvial, do centro urbano mais próximo. Com isso, é possível notar um grande abismo cultural, verificado até mesmo a partir dos depoimentos prestados em juízo, de modo que a sua integração com os membros da sociedade deve ser intermediada, de alguma forma, pela FUNAI. O Decreto nº 7.056/09, em vigor na época dos fatos, previa a existência das Coordenações Regionais, as quais tinham as seguintes competências: Art. 22. Às Coordenações Regionais compete: I - realizar a supervisão técnica e administrativa das coordenações técnicas locais e de outros mecanismos de gestão localizados em suas áreas de jurisdição, bem como exercer a representação política e social do Presidente da FUNAI; II - coordenar, controlar, acompanhar e executar as atividades relativas à proteção territorial e promoção dos direitos socioculturais das populações indígenas; III - executar atividades de promoção ao desenvolvimento sustentável das populações indígenas; IV - executar atividades de promoção e proteção social; V - preservar e promover a cultura indígena; VI - apoiar a implementação de políticas voltadas à proteção territorial dos grupos indígenas isolados e recém contatados; VII - apoiar a implementação de políticas de monitoramento territorial nas terras indígenas; VIII. executar ações de preservação ao meio ambiente; e IX - executar ações de administração de pessoal, material, patrimônio, finanças, contabilidade e serviços gerais, em conformidade com a legislação vigente. Com o Decreto nº 7.778/12, foram criadas as Coordenações Técnicas Locais (CTL), com as seguintes incumbências: Art. 23. Às Coordenações Técnicas Locais compete: I - planejar e implementar ações de promoção e proteção dos direitos sociais dos povos indígenas, de etnodesenvolvimento e de proteção territorial, em conjunto com os povos indígenas e sob orientação técnica das áreas afins da sede da FUNAI; II - implementar ações para a localização, monitoramento, vigilância, proteção e promoção dos direitos de índios isolados ou de recente contato em sua área de atuação, nos casos específicos de subordinação da Coordenação Técnica Local à Frente de Proteção Etnoambiental, conforme definido em ato do Presidente da FUNAI; III - implementar ações para a preservação e proteção do patrimônio cultural indígena; e IV - articular-se com outras instituições públicas e da sociedade civil para a consecução da política indigenista, em sua área de atuação. Em consulta ao sítio eletrônico da FUNAI, verifica-se que as seguintes informações da Coordenação Regional (CR) em Campo Grande/MS: A Coordenação Regional de Campo Grande está localizada no município de Campo Grande (MS) e atua junto aos povos indígenas das etnias Atikum ,Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva, Guató, Kinikinau, Kadiwéu , Ofayé-Xavante e Terena. Criada em 2009, a unidade é responsável por coordenar e monitorar a implementação de ações de proteção e promoção dos direitos de povos indígenas do estado do Mato Grosso do Sul. A área de atuação da CR Campo Grande abrange os municípios de Aquidauana (MS), Bodoquena (MS), Bonito (MS), Brasilândia (MS), Campo Grande (MS), Corumbá (MS), Dois Irmãos do Buriti (MS), Jaraguari (MS), Miranda (MS), Nioaque (MS), Porto Murtinho (MS), Rochedo (MS), Sidrolândia (MS), onde vivem aproximadamente 22 mil indígenas. (in https://www.gov.br/funai/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/coordenacoes-regionais-funai/cr-campo-grande, consulta em 10/11/22) No mesmo endereço eletrônico, consta a existência de uma Coordenação Técnica Local (CTL) em Corumbá. A própria sentença destaca a criação da CTL de Corumbá (ID Num. 46702106 - Pág. 23): No decorrer da presente ação judicial houve a instalação formal da CTL da FUNAI no município de Corumbá, com a destinação de um funcionário da instituição para atuar nesta Municipalidade. E, em razão de tal medida e, ainda, do teor dos depoimentos prestados em juízo, o Ministério Público Federal manifestou-se no sentido de que tal órgão seria suficiente para a satisfação das necessidades da comunidade indígena, desde que devidamente instalado e que fossem realizadas visitas mensais de um funcionário da FUNAI à aldeia. Resta clara, assim, a importância da instalação da CLT em Corumbá, sendo tal necessidade reconhecida pela própria FUNAI que, por conta própria, criou o órgão para atender a região. Resta, apenas, verificar se o órgão encontra-se devidamente instalado. Na época da prolação da r. sentença (junho/16), no entanto, embora estivesse formalmente presente no município de Corumbá, a estrutura da CTL era insuficiente para atender as necessidades das comunidades indígenas. Tanto que, na decisão, o r. Magistrado Singular transcreveu o depoimento do Cacique Severo Ferreira: "[...] hoje nós temos um funcionário aqui da FUNAI que trabalha aqui em Corumbá pra nós com dificuldade, porque não tem nem um lugar para ele trabalhar, não tem uma assistência da FUNAI, nem uma cadeira, uma mesa a FUNAI deu pra ele, nem um computador". A primeira notícia nos autos de instalação da CLT em Corumbá é o Ofício n° 227/GAB/CRCGR/11, de 04/07/11 (ID Num. 46702104 - Pág. 109): b) Iniciamos procedimento visando locação de espaço para funcionamento da CTL, entretanto, o Decreto Presidencial n°. 7.446/2011 restringiu a locação de imóveis, permitindo apenas ao Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão autorizar novas contratações. Desta forma estamos providenciando a devida formalização processual, que inclui o levantamento de possíveis imóveis e parecer jurídico emitido pela Procuradoria da FUNAI para que possamos solicitar a autorização de locação ao MPOG. Posteriormente, foram realizadas inúmeras tentativas administrativas pelo MPF para viabilizar a adequação da CLT em Corumbá, cumprindo apontar a reunião realizada com a Procuradoria da República no Município de Corumbá, em 14/02/13, onde constou a seguinte ata de reunião (ID Num. 46702105 - Pág. 76): Quanto ao imóvel a ser utilizado pela FUNAI em Corumbá, informou-se que ainda não há sede para a CTL em razão da dificuldade na locação de imóvel decorrente da discrepância entre a avaliação da SPU e o valor pedido pelo proprietário. Nesse sentido, será estudada a possibilidade de uma locação emergencial de um imóvel por 01 (um) ano, possibilitando a locação de imóvel adequado, de acordo com as exigências da SPU, nesse prazo. Na sentença, proferida em 2016, o r. Juízo Singular destaca que a CLT em Corumbá ainda não havia sido instalada (ID Num. 46702106 - Pág. 26): Passados cerca de cinco anos desde o início dos procedimentos de locação de imóvel para CTL sem que se obtivesse sucesso, é de se reconhecer a ineficiência da Administração Pública e a consequente possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. Isto é, a FUNAI, em verdade, já decidiu instalar a CTL em Corumbá e, inclusive iniciou procedimentos administrativos para a locação de imóvel com a finalidade de sediar seu órgão local, sem, contudo, concluí-los dentro de um período razoável de tempo. Considerando o tempo decorrido sem que fosse finalizado o procedimento e, ainda, por ser viável a criação de uma estrutura física (que é diminuta: somente necessária para abrigar um técnico) dento de curto espaço de tempo - ainda que por meio de parcerias firmadas com entidades públicas -; revela-se razoável fixar o prazo de 3 (três) meses para o cumprimento da referida obrigação de fazer. De fato, soa extremamente desarrazoada a demora de mais de 5 anos sem a efetiva instalação da CTL em Corumbá, restando patente a omissão do Poder Público em estruturar o órgão para atuar de forma constante em benefício da Comunidade Indígena, violando frontalmente os direitos sociais e a dignidade humana de todos os índios abrangidos pelo seu campo de atuação. Deve-se destacar que, no que concerne à aplicação dos direitos fundamentais, vigora a proibição da proteção deficiente. Assim, quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais. Não adianta um direito ser garantido pela Constituição se não for possível garantir a efetivação desse direito. A alegação de que a intervenção do Poder Judiciário determinando a implementação de políticas públicas diante da omissão do Estado violaria a separação dos poderes não se sustenta, pois a concretização dos direitos fundamentais dos índios é dever institucional da FUNAI, não podendo ficar condicionada à boa vontade do administrador. Deve-se esclarecer que nenhum poder é ilimitado, e todos devem ser suscetíveis de controle, já que todo aquele que exerce poder de forma ilimitada tende a abusar dele, violando deveres estabelecidos constitucionalmente. Seria um absurdo pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido visando a garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos indígenas. Impende ressaltar que o E. Supremo Tribunal Federal e o E. Superior Tribunal de Justiça reconhecem que, em casos excepcionais, é possível o controle judicial de políticas públicas, não configurando isso violação à separação de poderes: DEFENSORIA PÚBLICA - DIREITO DAS PESSOAS NECESSITADAS AO ATENDIMENTO INTEGRAL, NA COMARCA EM QUE RESIDEM, PELA DEFENSORIA PÚBLICA - PRERROGATIVA FUNDAMENTAL COMPROMETIDA POR RAZÕES ADMINISTRATIVAS QUE IMPÕEM, ÀS PESSOAS CARENTES, NO CASO, A NECESSIDADE DE CUSTOSO DESLOCAMENTO PARA COMARCA PRÓXIMA ONDE A DEFENSORIA PÚBLICA SE ACHA MAIS BEM ESTRUTURADA - ÔNUS FINANCEIRO, RESULTANTE DESSE DESLOCAMENTO, QUE NÃO PODE, NEM DEVE, SER SUPORTADO PELA POPULAÇÃO DESASSISTIDA - IMPRESCINDIBILIDADE DE O ESTADO PROVER A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL COM MELHOR ESTRUTURA ADMINISTRATIVA - MEDIDA QUE SE IMPÕE PARA CONFERIR EFETIVIDADE À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL INSCRITA NO ART. 5º, INCISO LXXIV, DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA - OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS - SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL - O RECONHECIMENTO, EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO "DIREITO A TER DIREITOS" COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS - INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) - LEGITIMIDADE DESSA ATUAÇÃO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS - O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO - A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO - A TEORIA DA "RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES" (OU DA "LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES") - CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE SOBRE A OMISSÃO DO ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) - DOUTRINA - PRECEDENTES - A FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E A ESSENCIALIDADE DESSA INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.(RE 763667 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/10/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-246 DIVULG 12-12-2013 PUBLIC 13-12-2013)(grifei) ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS - DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MANIFESTA NECESSIDADE. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DE TODOS OS ENTES DO PODER PÚBLICO. NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL. NÃO HÁ OFENSA À SÚMULA 126/STJ. 1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes. 2. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal. 3. In casu, não há impedimento jurídico para que a ação, que visa a assegurar o fornecimento de medicamentos, seja dirigida contra o Município, tendo em vista a consolidada jurisprudência do STJ: "o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros" (REsp 771.537/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005). 4. Apesar de o acórdão ter fundamento constitucional, o recorrido interpôs corretamente o Recurso Extraordinário para impugnar tal matéria. Portanto, não há falar em incidência da Súmula 126/STF. 5. Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp 1107511/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/11/2013, DJe 06/12/2013)(grifei) Ao julgar procedente o pedido para determinar a efetiva instalação da unidade de atendimento, o dispositivo da r. sentença foi assim redigido: b) À instalação de estrutura física adequada para abrigar a Coordenação Técnica Local- CTL de Corumbá dentro do prazo de três meses, sob pena de incorrer em multa semanal no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); ressaltando-se que, em virtude da implementação da estrutura física no perímetro urbano de Corumbá (e não na Aldeia Uberaba), deverá haver visitas ao menos trimestrais do funcionário da FUNAI à comunidade indígena. Dado os fatos descritos nos autos, não vislumbro irregularidades na cominação acima imposta. Ao regulamentar o procedimento da obrigação de fazer ou de não fazer (“tutela específica”), o Diploma Processual em vigor prevê diversas medidas de natureza executiva, estando, dentre elas, a multa cominatória (“astreinte”) no art. 537: Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito. § 1º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que: I - se tornou insuficiente ou excessiva; II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento. Na tutela específica, o propósito do legislador é compelir a parte devedora a praticar a obrigação almejada, entregando ao credor o mesmo resultado que ele obteria caso o cumprimento tivesse sido espontâneo. Neste sentido, a multa cominatória ostenta especial importância, tanto que o Código de Processual Civil autoriza o magistrado a fixá-la de ofício em qualquer fase do processo de conhecimento ou de execução. Impende considerar, por outro lado, que a previsão da multa coercitiva possui os condicionantes de ser “suficiente e compatível com a obrigação”. Ou seja, caso a obrigação almejada pelo credor seja efetivamente cumprida pelo devedor, nos termos em que foi proposta, a multa cominatória perde a sua principal razão de existir. Ocorre que a mora do Poder Público em instalar devidamente a CTL de Corumbá remonta a, pelo menos, 5 anos desde o início das tratativas para sua viabilização. Resta claro, desta forma, a necessidade de manutenção da multa cominatória. Sobre a fixação da multa cominatória, o E. Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade de sua adoção como forma de compelir o Poder Público a efetivar os direitos fundamentais (v.g. ARE 639337 AgR, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 Divulg 14-09-2011 Public 15-09-2011 Ement Vol-02587-01 PP-00125). No caso, o montante de multa semanal no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) não se mostra desproporcional ou desarrazoado, tendo em vista os legítimos direitos constitucionais assegurados às Comunidades Indígenas. Quanto às visitas trimestrais do funcionário da FUNAI à comunidade indígena, entendo que, mesmo com a instalação da CTL de Corumbá, não há perda superveniente de sua utilidade. Com efeito, estando o funcionário na localidade, ele poderá averiguar os impactos concretos das políticas administrativas adotadas pela FUNAI para resguardar e garantir os direitos fundamentais dos índios Guató. Cuida-se de elemento cognitivo que não pode ser obtido apenas se o funcionário permanecer na sede da CTL de Corumbá. Além disso, por ser trimestral, o deslocamento do funcionário público designado para a Comunidade não acarretará prejuízos às atividades cotidianas da autarquia federal naquela região. Dos honorários advocatícios No que tange aos honorários advocatícios, a C. Corte Especial do E. Superior Tribunal de Justiça, nos autos do EAREsp 962.250/SP, consolidou o entendimento de que, em Ação Civil Pública, por força do princípio da simetria, não há condenação em honorários advocatícios da parte requerida quando inexistente a má-fé, tal como ocorre com a parte autora, conforme o disposto no art. 18 da Lei nº 7.347/85: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DISSENSO CONFIGURADO ENTRE O ARESTO EMBARGADO E ARESTO PARADIGMA ORIUNDO DA QUARTA TURMA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA INTENTADA PELA UNIÃO. CONDENAÇÃO DA PARTE REQUERIDA EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ. DESCABIMENTO. ART. 18 DA LEI N. 7.347/1985. PRINCÍPIO DA SIMETRIA. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Trata-se de recurso interposto em ação civil pública, de que é autora a União, no qual pleiteia a condenação da parte requerida em honorários advocatícios, sob o fundamento de que a regra do art. 18 da Lei n. 7.347/1985 apenas beneficia o autor, salvo quando comprovada má-fé. 2. O acórdão embargado aplicou o princípio da simetria, para reconhecer que o benefício do art. 18 da Lei n. 7.347/1985 se aplica, igualmente, à parte requerida, visto que não ocorreu má-fé. Assim, o dissenso para conhecimento dos embargos de divergência ocorre pelo confronto entre o aresto embargado e um julgado recente da eg. Quarta Turma, proferido nos EDcl no REsp 748.242/RJ, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 12/4/2016, DJe 25/4/2016. 3. Com efeito, o entendimento exposto pelas Turmas, que compõem a Primeira Seção desta Corte, é no sentido de que, "em favor da simetria, a previsão do art. 18 da Lei 7.347/1985 deve ser interpretada também em favor do requerido em ação civil pública. Assim, a impossibilidade de condenação do Ministério Público ou da União em honorários advocatícios - salvo comprovada má-fé - impede serem beneficiados quando vencedores na ação civil pública" (STJ, AgInt no AREsp 996.192/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 30/8/2017). No mesmo sentido: AgInt no REsp 1.531.504/CE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 21/9/2016; AgInt no REsp 1.127.319/SC, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 18/8/2017; AgInt no REsp 1.435.350/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 31/8/2016; REsp 1.374.541/RJ, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 16/8/2017. 4. De igual forma, mesmo no âmbito da Terceira e Quarta Turmas do Superior Tribunal de Justiça, ainda que o tema não tenha sido analisado sob a óptica de a parte autora ser ente de direito público - até porque falece, em tese, competência àqueles órgãos fracionários quando num dos polos da demanda esteja alguma pessoa jurídica de direito público -, o princípio da simetria foi aplicado em diversas oportunidades: AgInt no REsp 1.600.165/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 20/6/2017, DJe 30/6/2017; REsp 1.438.815/RN, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/11/2016, DJe 1º/12/2016; REsp 1.362.084/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/5/2017, DJe 1º/8/2017. 5. Dessa forma, deve-se privilegiar, no âmbito desta Corte Especial, o entendimento dos órgãos fracionários deste Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, em razão da simetria, descabe a condenação em honorários advocatícios da parte requerida em ação civil pública, quando inexistente má-fé, de igual sorte como ocorre com a parte autora, por força da aplicação do art. 18 da Lei n. 7.347/1985. 6. Embargos de divergência a que se nega provimento. (EAREsp 962.250/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 15/08/2018, DJe 21/08/2018) Adoto o mesmo o argumento para afastar a condenação da parte vencida ao pagamento das custas e despesas processuais. Por fim, esgotada a análise do vertente recurso, fica prejudicado o agravo retido. Ante o exposto, nego provimento à apelação e julgo prejudicado o agravo retido. É como voto.
E M E N T A
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AGRAVO RETIDO. REITERAÇÃO EM APELAÇÃO. DIREITO INDÍGENA. CONTROLE JUDICIAL. OMISSÃO DA FUNAI. VIOLAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA COMUNIDADE INDÍGENA GUATÓ. FORNECIMENTO DE COMBUSTÍVEL. EFETIVA INSTALAÇÃO DA CTL DE CORUMBÁ. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO DOS PODERES. MULTA COMINATÓRIA. CABIMENTO. RECURSO IMPROVIDO.
1. Embora o agravo retido não tenha sido previsto no CPC/2015, o recurso deve ser analisado segundo o princípio tempus regit actum, em estrita observância ao princípio da segurança jurídica. In casu, como houve reiteração do pedido de sua apreciação em apelação, conforme previa o art. 523, § 1º, do CPC/1973, o agravo retido deve ser conhecido.
2. Segundo o art. 231 da CF/88, aos povos indígenas foram titularizados direitos específicos quanto à sua organização social, aos seus costumes e crenças, às suas línguas e tradições, configurando aquilo que a doutrina denomina como o “direito à diferença”. Em termos singelos, o “direito à diferença” consiste não apenas no direito dos índios de serem índios, mas, principalmente, o de permanecerem como tal, mantendo as suas identidades, costumes, tradições e crenças.
3. Nas diversas previsões do Texto Constitucional, percebe-se a preocupação do legislador originário de proteger a comunidade indígena de forma ampla, como se verifica, exemplificativamente, na regulamentação do direito à terra que tradicionalmente ocupam (art. 231, §§ 1º a 6º), na outorga de capacidade para ingressar em juízo na defesa de seus direitos sem depender de intermediação (art. 232) e na garantia de que o ensino seja feito em sua língua materna.
4. Ao justificar a necessidade do fornecimento mensal de combustível, o MPF aduziu, de início, que a Comunidade Guató, localizada na Aldeia Uberaba, vive de forma isolada, estando situada a 350 Km de Corumbá/MS, a cidade mais próxima. Assim, as únicas formas de acesso são por via fluvial ou aérea. Como não é viável economicamente a via aérea, os índios Guató se utilizam de dois barcos motorizados (Guató I e Guató II).
5. A FUNAI foi criada pela Lei nº 5.371/67 tendo por finalidade as atribuições descritas em seu art. 1º. Quando do ajuizamento desta demanda (abril/2010 – ID Num. 46702103 - Pág. 4), estava em vigor o Decreto nº 7.056/09, que, regulamentando a Lei nº 5.371/67, detalhou os mecanismos de promoção e auxílio aos índios pela FUNAI.
6. Dentre o rol de competências, sobressaem-se o dever institucional da FUNAI de garantir a “promoção de direitos sociais” e o de “promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena”.
7. O fornecimento de combustível para os barcos motorizados, mais do que significar uma simples obrigação de dar, representa a própria sobrevivência e perpetuação daquela Comunidade.
8. A obrigação do Poder Público para as comunidades indígenas também deve ser analisada sob a ótica dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, em especial a Convenção nº 169 da OIT, internalizada por força do Decreto nº 5.051/2004, posteriormente revogado pelo Decreto nº 10.088/19.
9. Na época da prolação da r. sentença (junho/16), no entanto, embora estivesse formalmente presente no município de Corumbá, a estrutura da Coordenação Técnica Local (CTL) era insuficiente para atender as necessidades das comunidades indígenas.
10. Soa extremamente desarrazoada a demora de mais de 5 anos sem a efetiva instalação da CTL em Corumbá, restando patente a omissão do Poder Público em estruturar este órgão para atuar de forma constante em benefício da Comunidade Indígena, violando frontalmente os direitos sociais e a dignidade humana de todos os índios abrangidos por ela.
11. A alegação de que a intervenção do Poder Judiciário determinando a implementação de políticas públicas diante da omissão do Estado violaria a separação dos poderes não se sustenta, pois a concretização dos direitos fundamentais dos índios é dever institucional da FUNAI, não podendo ficar condicionada à boa vontade do administrador.
12. Na tutela específica, o propósito do legislador é compelir a parte devedora a praticar a obrigação almejada, entregando ao credor o mesmo resultado que ele obteria caso o cumprimento tivesse sido espontâneo. Ocorre que a mora do Poder Público em instalar devidamente a CTL de Corumbá remonta a, pelo menos, 5 anos desde o início das tratativas para sua viabilização. Resta claro, desta forma, a necessidade de manutenção da multa cominatória aplicada.
13. Quanto às visitas trimestrais do funcionário da FUNAI à comunidade indígena, entendo que, mesmo com a instalação da CTL de Corumbá, não há perda superveniente de sua utilidade. Estando o funcionário na localidade, ele poderá averiguar os impactos concretos das políticas administrativas adotadas pela FUNAI para resguardar e garantir os direitos fundamentais dos índios Guató. Cuida-se de elemento cognitivo que não pode ser obtido apenas se o funcionário permanecer na sede da CTL de Corumbá.
14. Apelação improvida. Agravo retido prejudicado.