Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0014027-30.2013.4.03.6105

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL

APELADO: CRODA DO BRASIL LTDA

Advogados do(a) APELADO: BRUNO VASCONCELOS CARRILHO LOPES - SP206587-A, CANDIDO RANGEL DINAMARCO - SP91537-A, DANIEL MENEGASSI ZOTARELI - SP356159-A, VITOR HUGO ANDRADE MACIEL - SP417534

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0014027-30.2013.4.03.6105

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL

 

APELADO: CRODA DO BRASIL LTDA

Advogado do(a) APELADO: CANDIDO RANGEL DINAMARCO - SP91537-A

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R E L A T Ó R I O

 

 

Tratam-se de remessa necessária, tida por submetida, e apelação interposta pelo Ministério Público Federal em face de sentença que julgou extinto o feito, sem resolução do mérito, ante o reconhecimento da carência da ação, por falta superveniente de interesse de agir.

A presente ação civil pública foi ajuizada pelo órgão ministerial contra a empresa CRODA do Brasil Ltda., em razão de alegado acesso ilegal desta a componentes do patrimônio genético brasileiro - composto pelas espécies vegetais tucumã, castanha-do-brasil e babaçu -; objetivando, em suma, a condenação da parte ré ao pagamento de indenização por dano coletivo, a ser revertida para fundo próprio de defesa e proteção do patrimônio biogênico nacional, nos termos dos arts. 26 e 33, da Medida Provisória nº 2.186-16/2001.

Narra a inicial que o presente feito é fruto de representação do IBAMA, consubstanciada nas investigações colhidas no bojo da “Operação Novos Rumos”, por ela implementada, que deram origem à instauração do Inquérito Civil nº 1.34.004.001150/2011-28, que ensejou a propositura da primeira Ação Civil Pública (processo nº 0005395-45.2016.4.03.6105). Ressalta que, após o desdobramento da linha de investigação e instauração do Inquérito Civil nº 1.34.004.000854/2013-45, o autor moveu a presente ação.

Considera que, de forma mais grave que no
caso da primeira ação civil pública, o autor observou, no presente feito, ao menos três espécies da flora nativa brasileira, cujos componentes genéticos foram acessados sem que, ao menos, tivesse a ré buscado a regularização da atividade ilícita a posteiori, a saber: o tucumã, o babaçu e a castanha do brasil.

Alega que a empresa ré reconheceu, inequivocamente, que procedeu ao acesso ilícito às estruturas genéticas das aludidas espécies que constituem o objeto da presente ação.

Requer, liminarmente, a decretação imediata da linha de produção de qualquer produto fabricado pela ré que derive de acesso não autorizado às espécies vegetais em referência, sob pena de multa diária.

Foi reconhecida a conexão do presente feito com a Ação Civil Pública nº 0005393-45.2013.4.03.6105.

Houve tentativa de conciliação, a qual restou infrutífera.

Sobreveio informações do MPF no sentido de que a parte ré, em 06/11/2013, após a distribuição desta ação, protocolou, junto ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), pedidos de regularização de acesso ao tucumã e à castanha do brasil.

Foi indeferida a tutela de urgência (ID 89987067, fls. 21/23).

Regularmente processado o feito, sobreveio sentença que julgou extinto o feito sem resolução do mérito, a teor do art. 267, VI do CPC/73, ante o reconhecimento da carência da ação, por falta de superveniente interesse de agir. Sem condenação em custas e honorários, à luz do art. 4º da Lei nº 9.289/96 e art. 18 da Lei nº 7.347/85.

Irresignado, apela o MPF, pugnando pela anulação da r. sentença, sob os seguintes fundamentos:

a) “diferentemente do sustentado em sentença, a expressa revogação da Medida Provisória n. 2.186-16/2001 não exclui o ‘motivo que ensejou o ajuizamento da presente ação’”;

b) “o Juízo Federal a quo não analisou na integralidade o texto da novel Lei n. 13.123/2015, destacando apenas como fundamento da extinção do feito seus artigos 3°, 11 e 12”;

c) “o Juízo Federal a que não enfrentou as questões postas na peça de impugnação de fls. 720-728, reiteradas nas razões finais de fls. 760-782, notadamente no que diz respeito â existência de precedente do Superior Tribunal de Justiça que se aplica perfeitamente ao caso ora em análise (caso do 'Novo Código Florestal')”.

Requer, liminarmente, o deferimento de medida proibitiva à apelada, “de promover qualquer acesso a componente do patrimônio genético brasileiro, em desconformidade com o atual regramento de sua tutela, agora à luz da já em vigor Lei nº 13.123/2015”. No mérito, pleiteia a anulação da sentença e o retorno dos autos à origem para prolação de nova sentença, com o enfrentamento do mérito. Sucessivamente, requer a reforma da sentença para que seja julgado procedente a presente ação civil pública.

Com contrarrazões (fls. 80/99, ID 89987024).

Na qualidade de custos legis, o Parquet Federal opinou pelo provimento do recurso de apelação ministerial (fl. 104/113, ID 89987024).

É a síntese do relatório.

 

 

 

 

 

 

 


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Advogado do(a) APELADO: CANDIDO RANGEL DINAMARCO - SP91537-A

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V O T O

 

 

 

A controvérsia trazida à lume nesta via recursal cinge-se às seguintes questões: a) se a entrada em vigor da Lei nº 13.123/2015 deu, ou não, ensejo à perda superveniente de objeto no presente feito; b) se é ou não suficiente a efetivação de um cadastro no órgão competente para a obtenção do direito de acessar o patrimônio genético brasileiro, à luz do art. 3º da Lei nº 13.123/2015; ou se são necessárias outras providências, tais como, “cadastro, autorização ou notificação”; c) se o art. 42 da citada lei se reveste de eficácia vinculante ou de mera possibilidade de desistência ou composição de litígios pela União e se o acordo celebrado entre Poder Público e a empresa CRODA seria ou não suficiente à reparação dos danos a direitos difusos e se a eximiria da responsabilidade administrativa decorrente de atos ilícitos pretéritos e violadores das normas de tutela do patrimônio genético; e, d) se a aplicação do art. 41 da nova lei poderia ou não excluir ou isentar a empresa apelada das sanções administrativas aplicadas anteriormente à assinatura do Termo de Compromisso ou se apenas suspende a exigibilidade das sanções; e) sobre a possibilidade de aplicação, por analogia, do entendimento do STJ, exarado no julgamento do REsp nº 1.240.122/PR, em que se reconheceu a não retroatividade do Código Florestal para ilícito ambientais pretéritos; e, por fim, f) a concessão da liminar.

Inicialmente, cumpre submeter ao duplo grau de jurisdição obrigatório a sentença que conclui pela carência da ação ou improcedência do pedido ou de parte do pedido deduzido em sede de ação civil pública, por força da aplicação analógica da regra contida no art. 19 da Lei nº 4.717/65. Nesse sentido, destaco os seguintes precedentes: AgInt no REsp 1379659/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/03/2017, DJe 18/04/2017; AGRESP 201001846488, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:25/04/2011.

Ausente alegações preliminares, passo ao exame do mérito.

No mérito, a r. sentença não comporta reparos. Vejamos.

Em se tratando de direito intertemporal ambiental, cumpre mencionar que as normas destinadas à defesa do meio ambiente têm aplicação imediata, por serem de ordem pública, aplicando-se aos fatos ocorridos sob a sua vigência, como também às consequências e aos efeitos decorrentes dos fatos ocorridos sob a égide da lei anterior.

Nesse sentido, vale destacar o entendimento de Édis Milaré, citado por Frederico Amado (in Direito Ambiental. Amado, Frederico – 10ª ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: Juspodivm, 2019, p. 45):

“Por sua vez, cumpre ressaltar que as normas editadas com o escopo de defender o meio ambiente, por serem de ordem pública, têm aplicação imediata, vale dizer aplicam-se não apenas aos fatos ocorridos sob sua vigência, como também às consequências e aos efeitos dos fatos ocorridos sob a égide da Lei anterior (facta pendentia)”.

Na espécie, o juízo a quo aplicou, corretamente, a legislação vigente para o caso concreto, editada posteriormente à propositura desta ação e que passou a vigorar durante a tramitação deste feito, porém, antes da prolação da r. sentença.

Nos termos da r. sentença, a Lei nº 13.123/2015 regulamentou o art. 225 da CF/88 (§1º, II e §4º) e a Convenção sobre a Diversidade Biológica (arts. 1, 8º, 10, 15 e 16), e revogou a MP nº 2.186-16, de 23/08/2001, não mais subsistindo o motivo que ensejou o ajuizamento da presente ação, in verbis:

“No caso, aduz o Parquet Federal, em suma, que a empresa CRODA DO BRASIL tem explorado espécies componentes do patrimônio genético brasileiro, a saber, babaçu, castanha-do-brasil e tucumã, antes de obter autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - CGen, em desconformidade com o art,20' da Medida Provisória n°2.186-16/2001.

Da análise dos autos, verifica-se que a empresa Ré vem tentando obter regularização de acesso ás espécies vegetais referidas junto ao órgão competente (CGen), já tendo obtido, inclusive, em parte, êxito em sua pretensão.

Ocorre que, no curso da presente demanda, proposta em 31.10.2013, sobreveio a Lei no 13.123, de 20 de maio de 2015, que, regulamentando o art. 225 da Constituição Federal (§1°, inciso II, e § 4°) e a Convenção sobre Diversidade Biológica a (artigos 1, 8, l0, 15 e 16), promulgada pelo Decreto n2 2519/98, revogou a Medida Provisória n° 2186-16, de 23 de agosto de 2001, não mais subsistindo o motivo que ensejou o ajuizamento da presente ação.”

Aplicando-se a lei de regência, no caso concreto, verifica-se que o art. 3º da Lei nº 13.123/2015 estabelece que o acesso ao patrimônio genético está condicionado ao cadastro, autorização ou notificação, nesses termos:

 “Art. 3º. O acesso ao patrimônio genético existente no País ou ao conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico e a exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo desse acesso somente serão realizados mediante cadastro, autorização ou notificação, e serão submetidos a fiscalização, restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições estabelecidos nesta Lei e no seu regulamento”.

Por sua vez, o legislador definiu o “acesso ao patrimônio genético”, em seu art. 2º, VII, como sendo a “pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado sobre amostra de patrimônio genético”. Nesse sentido, alinha-se o seguinte precedente do STJ: SLS: 1438 SP 2011/0222243-2, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Publicação: DJ 26/09/2011.

O art. 3º deve ser analisado à luz dos art. 11 e 12, todos da Lei nº 13.123/15, para fins de compreensão da norma e da aplicação do direito ao caso concreto.

Observa-se que o art. 12 do referido diploma legal menciona que “o acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional” deve ser submetido ao cadastramento, definido em regulamento, nos moldes do seu parágrafo 1º:

“Art. 12. Deverão ser cadastradas as seguintes atividades:

I - acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado dentro do País realizado por pessoa natural ou jurídica nacional, pública ou privada;

(...)

§ 1º O cadastro de que trata este artigo terá seu funcionamento definido em regulamento”.

O referido regulamento se trata do Decreto nº 8.772, de 11/05/2016, o qual criou o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SisGen, sistema eletrônico a ser implementado, mantido e operacionalizado pela Secretaria Executiva do CGen, para o gerenciamento de cadastros, autorizações de acesso ao patrimônio genético, cadastros de remessa de amostra de patrimônio genético, credenciamento das instituições mantenedoras das coleções ex situ, notificações de produto acabado ou material reprodutivo e dos atestados de regularidade de acesso. Confira-se:

“Art. 20. Fica criado o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado - SisGen, sistema eletrônico a ser implementado, mantido e operacionalizado pela Secretaria-Executiva do CGen para o gerenciamento:

I - do cadastro de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado, como também do cadastro de envio de amostra que contenha patrimônio genético para prestação de serviços no exterior;

II - do cadastro de remessa de amostra de patrimônio genético e do Termo de Transferência de Material;

III - das autorizações de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado e de remessa ao exterior, para os casos de que trata o art. 13 da Lei nº 13.123, de 2015;

IV - do credenciamento das instituições mantenedoras das coleções ex situ que contenham amostras de patrimônio genético;

V - das notificações de produto acabado ou material reprodutivo e dos acordos de repartição de benefícios; e

VI - dos atestados de regularidade de acesso”.

O referido Decreto dispõe, em seu art. 20, §1º, que o cadastramento deverá ser realizado previamente nos seguintes casos:

“Art. 20. (...)

§1º. O cadastramento deverá ser realizado previamente:

I. à remessa;

II. ao requerimento de qualquer direito de propriedade intelectual;

III. à comercialização do produto intermediário;

IV. à divulgação dos resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou de comunicação; ou

V. à notificação de produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido em decorrência do acesso”.

No que tange ao acesso ao patrimônio genético, o legislador não exigiu o cadastramento prévio, como estabeleceu para os casos envolvendo remessa, requerimento de direito de propriedade, comercialização de produto intermediário, divulgação de resultados em meios científicos ou notificação de produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido em decorrência do acesso.

Ao contrário das alegações recursais, a interpretação invocada pelo recorrente, de se aplicar o art. 12 apenas aos cadastrados de novos acessos a partir da vigência da nova lei, não deve ser acolhida, na medida em que as normas editadas com o escopo de defender o meio ambiente têm aplicação imediata, não se admitindo o fatiamento das normas para a aplicação do direito intertemporal, sob o crivo das partes.

Ademais, não se trata de aplicação retroativa da Lei nº 13.123/15, mas de aplicabilidade imediata, exatamente pela regulamentação do art. 225, caput e §1º da Constituição Federal, que dispõe sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, inserido no rol dos direitos fundamentais, de aplicação imediata, à luz do art. 5º, §§ 1º e 2º, todos da CF/88, constituindo-se norma de eficácia direta e irradiante sob todo o ordenamento jurídico, de modo a integrar, inclusive, o rol das cláusulas pétreas, nos moldes do art. 60, §4º, IV da CF/88.

Nesse sentido, vale ressaltar as lições de Ingo Wolfgang Sarlet (in http://genjuridico.com.br/2020/08/25/direito-fundamental-ao-meio-ambiente/#_ftn2):

“Em razão da aderência do direito ao ambiente ao direito à vida, conforme a lição de Silva, há a contaminação da proteção ambiental com uma qualidade que impede sua eliminação por via de emenda constitucional[3], estando, por via de consequência, inserido materialmente no rol das matérias componentes dos limites materiais ao poder de reforma constantes do art. 60, § 4º, da CF/1988[4], de modo a conferir ao direito fundamental ao meio ambiente o status de cláusula pétrea.

Outra não poderia ser a interpretação constitucional dada ao direito ao meio ambiente, em vista da consagração da sua jusfundamentalidade. A consolidação constitucional da proteção ecológica como cláusula pétrea corresponde à decisão essencial da Lei Fundamental brasileira, em razão da sua importância do desfrute de uma vida com qualidade ambiental à proteção e equilíbrio de todo o sistema de valores e direitos constitucionais, e especialmente à dignidade humana, inclusive por meio do reconhecimento da sua dimensão ecológica[5] e do direito-garantia ao mínimo existencial ecológico, como já se manifestou a nossa Corte Constitucional.[6]”

O presente caso não comporta aplicação analógica da tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 1.240.122/PR, pois além de não ser o caso de aplicação das novas regras do Código Florestal, tampouco há que se falar em ilícitos ambientais pretéritos.

Noutro giro, a respeito da exigência de assinatura do Termo de Compromisso como condição para a regularização do acesso ao patrimônio genético, a Lei nº 13.123/2015 ressalva que o usuário estará dispensado de firmá-lo na hipótese de pesquisa científica, como é o caso dos autos, à luz do art. 2º, VII, suprindo tal necessidade por meio de cadastro ou autorização da atividade, nos moldes do art. 38, §2º.

Sobreleva anotar que o referido cadastro não é prévio, como já ressaltado neste decisum.

Acrescenta, o art. 38, §3º da citada lei, que o aludido cadastro e a autorização extinguem a exigibilidade das sanções administrativas previstas na Medida Provisória nº 2.186-16, de 23/08/2001, e especificadas nos arts. 15 e 20 do Decreto nº 5.459/2005, senão vejamos:

“Art. 38. Deverá regularizar-se nos termos desta Lei, no prazo de 1 (um) ano, contado da data da disponibilização do Cadastro pelo CGen, o usuário que, entre 30 de junho de 2000 e a data de entrada em vigor desta Lei, realizou as seguintes atividades em desacordo com a legislação em vigor à época:

I - acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado;

(...)

§ 2º Na hipótese de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado unicamente para fins de pesquisa científica, o usuário estará dispensado de firmar o Termo de Compromisso, regularizando-se por meio de cadastro ou autorização da atividade, conforme o caso.

§ 3º O cadastro e a autorização de que trata o § 2º extinguem a exigibilidade das sanções administrativas previstas na Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 , e especificadas nos arts. 15 e 20 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 , desde que a infração tenha sido cometida até o dia anterior à data de entrada em vigor desta Lei”.

Desse modo, sob o viés do novo Marco Legal da Biodiversidade, regulamentado pela Lei nº 13.123/15, não se verifica plausibilidade nas teses de ilegalidade no acesso da empresa recorrida ao patrimônio genético brasileiro, destacado na inicial, ou de exercício de atividades ilícitas, defendidas como fundamento jurídico do pedido de indenização do dano coletivo.

Ante a ausência de previsão legal quanto à ilicitude na conduta da empresa recorrida, é de rigor o reconhecimento da carência desta ação por falta superveniente de interesse de agir que motivou a propositura da presente ação, hipótese que extingue o presente feito, sem resolução do mérito, nos moldes do art. 267, VI do CPC/73, em razão da vigência da nova Lei 13.123/2015.

Como corolário, indefiro o pedido de concessão de liminar, ante a ausência de plausibilidade das razões recursais e dos requisitos ensejadores da medida.

Ainda que se não fosse, verifica-se, da leitura das razões recursais, a alteração da causa de pedir e do pedido formulado na inicial.

Constata-se do teor da exordial que o pedido da parte autora foi direcionado à condenação da empresa CRODA ao pagamento de indenização no percentual de 20% de seu faturamento bruto anual, por dano coletivo, “decorrente do acesso ilegal ao patrimônio genético brasileiro composto pelas espécies vegetais tucumã (Astrocatyum vulgare) castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa) e babaçu (Orbignya oleifera), a ser revertida para fundo próprio de defesa e proteção do patrimônio biogenético nacional conforme dispõem os artigos 26 e 33 da Medida Provisória nº 2.186 16/2001”.

Por sua vez, em sede de apelação, o pedido ministerial voltou-se à aplicação da Lei nº 13.123/2015, ao fundamento de que o art. 38, §1º condiciona a regularização do acesso ao patrimônio genético à assinatura do Termo de Compromisso, afastando-se, por fim, a possibilidade de isenção da responsabilidade administrativa da empresa demandada pelas infrações pretéritas. Inclusive, o pleito de liminar é voltado à concessão de “medida proibitiva à apelada CRODA DO BRASIL LTDA. de promover qualquer acesso a componente do património genético brasileiro, em desconformidade com o atual recuamento de sua tutela, agora à luz da já em vigor Lei n. 13.123/2015”.

De fato, razão assiste ao recorrido, na medida em que o ordenamento jurídico veda a alteração do pedido ou da causa de pedir após o saneamento do feito, à luz do art. 264 do CPC/73, vigente ao tempo da prolação da r. sentença.

Ante o exposto, nego provimento à remessa oficial, tida por submetida, e à apelação e mantenho a r. sentença tal como lançada.

É como voto.

 

VOTO DE MÉRITO

Vencido quanto à preliminar de carência da ação, passo à análise do mérito.

Inicialmente, cumpre mencionar que a presente ação civil pública não tem conexão com a ação civil pública nº 0005395-45.2016.4.03.6105, consoante decisão proferida no CC 0004099-03.2014.4.03.0000/SP (fls. 72/74, ID 89986969); inclusive, conforme destacado pelo MPF, na inicial da presente ação civil pública, o pedido e a causa de pedir das duas ações “são nitidamente distintos”. Todavia, diante da aparente semelhança com o vertente caso (aqueles autos, vale ressaltar, tramitam em segredo de justiça), imperioso destacar a análise realizada pela Corte Superior, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1962771/SP (Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 16/12/2022, Dje 20/12/2022).

Embora haja pendência de julgamento no STJ (agravo em recurso especial) naquela ACP, de fato, o que tem até o presente momento, é a decisão monocrática que concluiu pelo parcial provimento do recurso especial, para reformar o acórdão recorrido, de modo a: a) excluir a condenação da parte ré por danos morais (então fixada na origem, no patamar de R$ 1.279.000, 00, e mantida em segunda instância); e b) ajustar a condenação na obrigação de não fazer, para que seja determinada, à parte demandada, a abstenção de praticar qualquer das condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16 da Lei nº 13.123/2015, sem que realize o cadastro, obtenha a autorização ou formule a notificação, conforme o caso.

Em que pese o meu entendimento exarado em sede de preliminar, acerca da perda de objeto e da ausência de plausibilidade quanto à tese de ilegalidade no acesso ao patrimônio genético brasileiro, diante da superveniente vigência da Lei nº 13.123/15 (novo Marco Legal da Biodiversidade), não foi esta a conclusão levada à efeito pela maioria do Colegiado desta Turma Julgadora.

À guisa do entendimento sinalizado pelo STJ, passo a ajustar o meu entendimento na linha da atual jurisprudência, à luz dos princípios da segurança jurídica e da uniformidade das decisões.

Em síntese, a controvérsia vertida nestes autos centra-se em se decidir se houve, ou não, ilegalidade na prática da conduta, perpetrada pela empresa CRODA, de acesso a componente do patrimônio genético brasileiro (babaçu, castanha do Brasil e tucumã) antes de obtida a autorização prévia do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), à luz da Lei nº 13.123/2015 e da atual jurisprudência do STJ.

Vejamos o que consta da atual Lei nº 13.123/2015:

“Art. 3º. O acesso ao patrimônio genético existente no País ou ao conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico e a exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo desse acesso somente serão realizados mediante cadastro, autorização ou notificação, e serão submetidos a fiscalização, restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições estabelecidos nesta Lei e no seu regulamento”.

Nesse contexto, cumpre estabelecer a premissa que norteia o julgamento desta lide, nos termos da jurisprudência da Corte Cidadã (REsp nº 1962771/SP), sobre a superveniência do Marco Legal da Biodiversidade, qual seja: a alteração legislativa supramencionada, que deixou de exigir autorização prévia do poder público para toda espécie de acesso ao patrimônio genético, passando a exigir, conforme o caso, autorização, cadastro ou notificação. Confira-se trecho do decisum da lavra do E. Min. Gurgel de Faria, in verbis:

“Deveras, o artigo 493 do Código de Processo Civil, na linha do que já dispunha o artigo 462 da lei processual civil anterior, estabelece: [...] O fato superveniente consistiu na alteração legislativa supramencionada, que deixou de exigir autorização prévia do poder público para toda espécie de acesso ao patrimônio genético, passando a exigir, conforme ocaso, autorização, cadastro ou notificação.

Essa alteração legislativa produz repercussões sobre o julgamento do mérito da causa, uma vez que:

a) não se pode manter a sentença assim como lavrada, pois a ré estaria sujeita a obter autorização para hipóteses que a lei já não a exige;

b) não se pode considerar, pura e simplesmente, desprovida de objeto a causa, porquanto isso significaria dispensar a ré do cumprimento de qualquer exigência.

O caso é, a meu juízo, de levar-se em conta a inovação legislativa para atualizar-se o comando sentencial, de sorte que passe a refletir o atual quadro normativo vigente. Em outras palavras, não é possível ir tão longe quanto pretende a ré apelante, mas é dado acolher-se em parte seu reclamo, a fim de que não precise de autorização prévia para toda e qualquer intervenção sobre o patrimônio genético, mas de autorização, cadastro ou notificação, conforme as hipóteses previstas na legislação superveniente.

Ressalte-se que não é possível descartar-se, de pronto, qualquer das três figuras previstas na legislação em vigor. O julgado há de compreender todas as hipóteses antes compreendidas pela autorização, para que, doravante, a ré fique obrigada ao cadastro, à autorização prévia ou à notificação para a prática das condutas previstas.

Respectivamente, nos artigos 12, 13 e 16 da Lei n.13.123/2015”.

Tendo como parâmetro o referido julgado e a legislação em vigor, a autorização prévia, nos termos da atual Lei nº 13.123/2015, deixou de ser exigida para toda e qualquer intervenção sobre o patrimônio genético, bastando, tão somente, a autorização, o cadastro ou a notificação, conforme as hipóteses legais previstas neste diploma (arts. 12, 13 e 16), a saber:

“Art. 12. Deverão ser cadastradas as seguintes atividades:

I - acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado dentro do País realizado por pessoa natural ou jurídica nacional, pública ou privada;

II - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado por pessoa jurídica sediada no exterior associada a instituição nacional de pesquisa científica e tecnológica, pública ou privada;

III - acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado realizado no exterior por pessoa natural ou jurídica nacional, pública ou privada;

IV - remessa de amostra de patrimônio genético para o exterior com a finalidade de acesso, nas hipóteses dos incisos II e III deste caput ; e

V - envio de amostra que contenha patrimônio genético por pessoa jurídica nacional, pública ou privada, para prestação de serviços no exterior como parte de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico.

Art. 13. As seguintes atividades poderão, a critério da União, ser realizadas mediante autorização prévia, na forma do regulamento:

I - acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado em área indispensável à segurança nacional, que se dará após anuência do Conselho de Defesa Nacional;

II - acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado em águas jurisdicionais brasileiras, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, que se dará após anuência da autoridade marítima.

Art. 16. Para a exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado serão exigidas:

I - a notificação do produto acabado ou do material reprodutivo ao CGen; e

II - a apresentação do acordo de repartição de benefícios, ressalvado o disposto no § 5º do art. 17 e no § 4º do art. 25”.

Vale ressaltar que, para o STJ, não é possível descartar-se, de pronto, qualquer das três figuras previstas na legislação em vigor. Ao contrário, o julgado há de compreender todas as hipóteses antes abrangidas pela autorização, para que, a partir do novo diploma legal, a ré fique obrigada ao cadastro, autorização prévia ou à notificação para a prática das condutas previstas.

No vertente caso, a conduta imputada na exordial encontra-se assim delineada:

“Toda a linha de produtos da CRODA utiliza espécimes da flora nativa brasileira para o desenvolvimento de polímeros e componentes naturais para a indústria cosmética. A empresa extrai a matéria prima da região amazônica para então remetê-la à sede da empresa neste Município de Campinas que possui laboratórios equipados para o processamento refino e desenvolvimento dos produtos derivados da biodiversidade do Brasil.

No decorrer de suas atividades empresariais restou configurado que a ré CRODA DO BRASIL LTDA acessou irregularmente diversos componentes do patrimônio genético brasileiro sem a devida autorização por parte do CGEN para fins de bioprospecção e abastecimento de sua linha de produção de produtos cosméticos. Tudo isso se deu com o intuito de obtenção de vantagens pecuniárias ilícitas decorrentes da inobservância das disposições legais para a exploração”.

À luz da jurisprudência atual do STJ e do novo diploma legal (Lei nº 13.123/15), a conduta descrita na exordial deve ser considerada para fins de enquadramento da norma no novo comando legal, a exigir a autorização, o cadastro ou a notificação para fins de acesso ao patrimônio genético brasileiro, sem o qual a conduta é tida como ilegal.

Isto posto, de rigor a reforma da sentença para ajustar o presente caso ao entendimento jurisprudencial do STJ e, nessa medida, condeno a empresa ré CRODA DO BRASIL LTDA ao cumprimento de obrigação de não fazer, consistente em se abster de praticar qualquer das condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16, todos da Lei nº 13.123/2015, sem que realize o cadastro, obtenha a autorização ou formule a notificação, conforme o caso.

Presentes os requisitos configuradores da tutela inibitória, ante a irregularidade decorrente do descumprimento do comando normativo e da manifesta continuidade na prática da conduta ilícita, concedo a liminar para determinar que a ré, ora apelada, se abstenha de promover qualquer acesso a componente do patrimônio genético brasileiro (babaçu, castanha do Brasil e tucumã), em desconformidade com o atual regramento de sua tutela, à luz da Lei nº 13.123/2015, relativamente às condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16 deste diploma legal.

Noutro giro, não assiste razão ao recorrente no que tange ao alegado dano moral coletivo, na medida em que não restaram configurados os elementos constitutivos do abalo extrapatrimonial, para fins de reparação civil.

Para tanto, imperioso destacar que o dano moral coletivo requer a demonstração da lesão a valores fundamentais da sociedade, de forma injusta e intolerável, dispensando-se a prova dos prejuízos concretos ou do efetivo abalo moral. Nesse sentido, colho os seguintes precedentes do STJ: AgInt no AREsp n. 2.160.486/PR, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 5/12/2022; REsp 1502967/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018.

Nessa esteira, não vislumbro, na hipótese dos autos, a configuração da lesão extrapatrimonial ou, ao menos, o risco efetivo e grave a valores tidos como fundamentais (sob o pálio da Constituição Federal); notadamente, pelo exame da conduta narrada na exordial, qual seja, o desenvolvimento de pesquisa antes da obtenção da autorização do Poder Público.

Diante desse cenário, não se vislumbra como configurada a alegada lesão, ante a manifesta ausência da demonstração da gravidade da conduta, que ensejou ofensa a valores tidos como fundamentais.

Ainda que se não fosse, cumpre ressaltar o entendimento jurisprudencial do STJ, exarado no REsp nº 1962771/SP, segundo o qual a legislação posterior evidenciou que o só descumprimento da norma anterior não poderia implicar dano moral coletivo. Confira-se:

“Há, ainda, outro elemento que, na minha visão, confirma não ter havido lesão a valor fundamental da sociedade de forma injusta e intolerável. É que o legislador, em momento posterior e mais amadurecido a respeito do tema, passou a exigir, conforme o caso, autorização, cadastro ou notificação para acessar ao patrimônio genético.

Isto é, esmoreceu-se bastante a necessidade de autorização prévia para a deflagração de pesquisa relacionada ao acesso ao patrimônio genético, o que, a meu ver, sinaliza que os estudos anteriores e que não obtiveram essa autorização formal - como no caso - não poderiam causar, por si só, abalo intolerável ao bem jurídico ali protegido (meio ambiente/diversidade).

Em outras palavras: se a autorização prévia passou a ser, em larga medida, prescindível, não é possível concluir que antes bastaria a realização de estudos sem aquela (a autorização) para caracterizar abalo moral e coletivo.

Observa-se que esse último raciocínio desenvolvido não implica realizar a retroação da lei nova, tese já afastada em linhas passadas. O que se está levando em consideração é que a legislação posterior evidenciou que o só descumprimento da norma anterior não poderia implicar dano moral coletivo”.

Nesse viés, não se pode concluir que o descumprimento das normas insertas no art. 2º e nos arts. 10º e 11, todos da MP nº 2.186-16/2001 (que reproduzem, em síntese, o acesso irregular a espécies do patrimônio genético brasileiro sem prévia autorização do CGEN), ao tempo dos fatos, por si só, coloque em risco ou ameace a diversidade do patrimônio genético brasileiro e configure o dano moral coletivo.

Ainda que se não fosse, insta ressaltar que a empresa ré tomou providências para a obtenção da regularização de acesso às espécies vegetais referidas na inicial, junto ao órgão competente, como se observa dos documentos juntados à contestação (ID 89987067), que apontam, ao menos três pedidos de autorização de acesso, constando, ainda, a demora no atendimento das solicitações. Como bem pontuado na r. sentença, a ré chegou a obter, em parte, êxito em sua pretensão.

Desse modo, por todos os ângulos que se analise a questão, não há que se falar na configuração de dano moral coletivo.

Ante o exposto, concedo a liminar, para determinar que a empresa ré se abstenha de promover qualquer acesso a componente do patrimônio genético brasileiro (tucumã, castanha do Brasil e babaçu), em desconformidade com a Lei nº 13.123/2015, relativamente às condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16 deste diploma legal, e dou parcial provimento ao apelo ministerial, apenas para condenar a empresa ré ao cumprimento de obrigação de não fazer, nos termos da fundamentação, excluindo o pleito de danos morais coletivos.

É COMO VOTO.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0014027-30.2013.4.03.6105

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL

APELADO: CRODA DO BRASIL LTDA

Advogado do(a) APELADO: CANDIDO RANGEL DINAMARCO - SP91537-A

 

  

 

V O T O - V I S T A

 

 

Senhores Desembargadores, após atenta leitura do voto proferido pelo relator, pedi vista dos autos para maior reflexão sobre a causa.

Trata-se, como já exposto no relatório lavrado, de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, em que se imputa à ré, ora apelada, conduta ilícita de acesso a patrimônio genético de espécies da biodiversidade nacional  – tucumã (astrocatyum vulgare) castanha-do-brasil (bertholletia excelsa) e babaçu (orbignya oleifera) – sem prévia autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), como então previsto no artigo 2º, c/c os artigos 10º e 11, da Medida Provisória 2.186-16/2001. Foram formulados pedidos de mérito voltados a obstar a produção e comercialização de qualquer produto derivado de tais acessos até a devida regularização da ré perante a Administração, bem como condenação em danos morais coletivos.

O voto da relatoria é pela manutenção da sentença, que extinguiu o feito sem julgamento do mérito, sob fundamento de perda de interesse processual decorrente do advento da Lei 13.123/2015, que revogou a Medida Provisória 2.186-16/2001 e não mais exige autorização prévia para acesso a patrimônio genético, mas mero cadastro, salvo pontuais exceções alheias aos fatos discutidos na lide. Apontou o relator que, sob o novo Marco da Biodiversidade, a conduta contestada não é ilícita, e que o recorrente haveria modificado o pedido inicial, ao postular, em apelação, tutela liminar para que a ré seja obstada de realizar qualquer acesso sem prévia regularização sob os termos da Lei 13.123/2015.

Peço vênia para divergir.

Com efeito, esta Turma teve oportunidade de apreciar, com bastante profundidade, ação civil pública em tudo similar (autos 0005393-45.2013.4.03.6105), múltiplas vezes referenciada no processamento desta lide, envolvendo as mesmas partes, com fatos e argumentos congêneres, e processamento contemporâneo ao destes autos na Subseção Judiciária de origem (houve inclusive debate a respeito de possível conexão, solucionado no CC 0004099-03.2014.4.03.0000, Rel. Des. Fed. NELTON DOS SANTOS, decisão monocrática publicada em 28/11/2014). Naquele processo, discutia-se acesso a patrimônio genético de outras espécies da flora brasileira – theobroma grandiflorum (cupuaçu), theobroma cacao (cacau), e passiflora edulis (maracujá) -, com tentativa de regularização da ré perante o CGEN anteriormente ao ajuizamento da ação coletiva.

À ocasião, foi mantida a sentença, que afastara a perda de objeto da ação civil pública e julgara parcialmente procedente a lide, nos seguintes termos (grifos nossos):

 

"Diante do acima exposto, julgo parcialmente procedentes os pedidos deduzidos pelo Ministério Público Federal, e pela União Federal, na condição de assistente litisconsorcial, em face de Croda do Brasil Ltda. resolvendo o mérito com fundamento no artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno a requerida a obrigação de não fazer consistente na proibição de produzir insumos, polímeros, óleos vegetais e quaisquer produtos derivados de componentes do patrimônio biogenético brasileiro sem a devida autorização do CGEN - Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, mantendo-se em parte a liminar outrora deferida (fls. 419/420), observando-se no caso a modulação de seus efeitos quanto à exclusão da determinação "decorrentes do acesso a conhecimento tradicional associado", bem como ficando a requerida sujeita ao controle e aos procedimentos de prévia autorização, nos termos da legislação vigente à época da solicitação, conforme fundamentação supra.

Condeno, também, a requerida ao pagamento de indenização a título de danos morais coletivos, que ora fixo em R$ 1.279.000,00 (um milhão, duzentos e setenta e nove mil reais), montante esse a ser atualizado em regular liquidação de sentença, com a aplicação de correção monetária e juros de mora desde a presente fixação até o efetivo pagamento, observando-se no cálculo os critérios postos no Manual de Orientação de Procedimentos para os Cálculos na Justiça Federal, aprovado pelas Resoluções CJF nºs. 134/2010 e 267/2013, ou a que lhes suceder nos termos do artigo 454 do Provimento nº 64/2005 da E. Corregedoria-Geral da Justiça Federal.

O valor pago a título de danos morais coletivos nos presentes autos será revertido a favor do fundo próprio de defesa e proteção do patrimônio genético nacional, nos termos informados na fase própria ao Juízo da execução.

Diante da sucumbência recíproca cada parte deverá arcar com os honorários de seu procurador (artigo 86, caput, do CPC).

Custas na forma da lei, observando-se no presente caso a isenção ao Ministério Público Federal e à União Federal (art. 4º, I, III e IV, da Lei nº 9.289/1996).

Sentença sujeita ao duplo grau obrigatório de jurisdição, nos termos do artigo 496, inciso I, do Código de Processo Civil vigente, em vista do disposto no artigo 19 da Lei nº 7.347/1985, e, por aplicação analógica da primeira parte do artigo 19 da Lei n.º 4.717/1965, conforme jurisprudência e fundamentação supra."

 

Estas as ementas do julgamento de mérito e do acórdão proferido, posteriormente, em sede de embargos de declaração (grifos nossos):

 

ApCiv 0005393-45.2013.4.03.6105, Rel. Juíza Conv. DENISE AVELAR, e-DJF3 10/03/2020: "DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AMBIENTAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEDIDA PROVISÓRIA 2.186-16/2001. ACESSO A PATRIMÔNIO BIOGENÉTICO NACIONAL SEM AUTORIZAÇÃO ESTATAL PRÉVIA. DANO EXTRAPATRIMONIAL COLETIVO. LEI 13.123/2015. PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO DA AÇÃO. INOCORRÊNCIA. ALEGAÇÃO DE QUE O REGRAMENTO DA MATÉRIA, À ÉPOCA, ERA TURVO. INÉRCIA DO ESTADO EM FIRMAR POSICIONAMENTO. IRRELEVÂNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE DE SUJEIÇÃO DA LIVRE INICIATIVA E PESQUISA À CHANCELA DO PODER PÚBLICO. INOCORRÊNCIA. INDENIZAÇÃO CUMULADA COM MULTA ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE BIS IN IDEM. 1. Descabe conhecimento de agravo retido cujo pedido de exame não foi reiterado no apelo. 2. O fato de que a nova legislação a respeito do tema não mais exige autorização prévia do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para o acesso ao patrimônio genético nacional não exime a ré de responsabilização civil e administrativa pela prática de ato tido por ilícito sob a égide da normatização anterior. O raciocínio do apelo, conquanto possa, eventualmente, ser pertinente na esfera penal, não se aplica à espécie, na medida em que subsiste a caracterização de um dano ocorrido e a pretensão à sua reparação. Vigora aqui, a regra geral de direito de que o fato deve ser valorado segundo a ordem jurídica vigente quando de sua manifestação fenomênica. Precedente da Corte Superior. 3. Em caráter mais específico, a rigorosa principiologia atinente ao direito ambiental aponta para a mesma conclusão, na medida em que composta por mandamentos que convergem para a obrigatoriedade de indenização a qualquer dano ambiental, enquanto proteção de interesse difuso. Neste sentido, estabelecida a responsabilidade objetiva, em matéria ambiental, em função de princípios tais como o da proibição do retrocesso, do poluidor-pagador e do usuário-pagador. 4. O dano efetivamente existiu. A legislação anterior condicionava o acesso ao patrimônio genético nacional à prévia autorização sob a concepção de que o uso irregular dessa informação representava risco ao meio ambiente. Neste contexto, este perigo não adviria tão somente da manipulação de material genético: a identificação clandestina de potencial econômico de espécies endêmicas poderia desencadear prospecção desmedida e sem o devido controle governamental, e, por consequência, sensível desequilíbrio sistêmico ambiental. Deriva-se, o desrespeito da apelante ao regramento aplicável ao seu intento econômico caracteriza, efetivamente e por si, dano extrapatrimonial ao interesse difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de uma das facetas eficaciais de ainda outro princípio de direito ambiental, o da prevenção. 5. A multa administrativa não se confunde com a indenização. A primeira tem caráter repressivo, enquanto punição; a segunda objetiva a reparação de um dano, possuindo viés restaurativo. Logo, não há bis in idem a ser considerado na incidência de ambas. 6. A União não é a credora da indenização pleiteada nestes autos - para fins de aplicação do artigo 44 da Lei 13.123/2015 ("Ficam remitidas as indenizações civis relacionadas a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado das quais a União seja credora."). A ação civil pública legitima processualmente o Ministério Público (dentre outros entes) a defender direito alheio - no caso, interesse difuso de titularidade da coletividade: em essência, pretensão de toda a sociedade quanto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos do artigo 225 da Constituição Federal. É esta coletividade que, em realidade, detém o direito tutelado. Portanto, a constatação de que a União seria a administradora do fundo a ser beneficiado pela indenização pleiteada nestes autos não a torna detentora do direito. 7. Tampouco os pleitos de condenação em obrigação de não fazer (suspensão de produção e comercialização de produtos a partir de acesso irregular e proibição do próprio acesso irregular) restam prejudicados. O artigo 38 da Lei 13.123/2015 elucida a necessidade de regularização das empresas que, dentre outras condutas, acessaram irregularmente patrimônio genético sob a égide legal anterior, condicionada à assinatura de Termo de Compromisso, ou, quando menos, cadastro. 8. A Medida Provisória 2.186-16/2001 claramente condicionava o acesso ao patrimônio genético à autorização prévia. Não havia insegurança jurídica em relação ao comando de que o acesso ao patrimônio genético se dava mediante autorização. Se dúvida existisse quanto ao procedimento adequado para obter a autorização legalmente estipulada, o acesso sem chancela do Poder Público claramente não figurava como opção viável e condizente com a previsão legal transcrita de início. Se entendia a apelante que a inércia do CGEN em esclarecer o regime aplicável para atividade malferia direito próprio, o caminho a ser adotado era o de submissão da questão ao Poder Judiciário, como garante a Constituição Federal, e não o da autotutela. 9. Eventual conivência do órgão fiscalizador não valida a conduta contra legem. A propósito, não se pode invocar non venire contra factum proprium na vigência de norma expressamente proibitiva da conduta adotada, uma vez que não se deve cogitar, propriamente, de quebra de confiança legítima - nem se argumentar sobre a presunção da legalidade de ato notoriamente em desacordo com a norma legal. Frise-se, ainda que se admitisse ter ocorrido desrespeito à máxima de proibição de comportamento contraditório da parte do CGEN ou do MPF, disto não se derivaria a transmutação de conduta ilícita em lícita, pelo que o argumento é inócuo. De mais a mais, a própria alegação de incerteza do procedimento a ser adotado contradiz a ideia de um posicionamento seguramente consolidado do CGEN a favor do acesso a patrimônio genético prévio à chancela do Estado. Sob outro enfoque, não se pode manejar o princípio para deliberadamente convalidar situações de infração sistemática e direta à legislação, sob pena de chancela de mecanismo de remição a ruir - no que tange à espécie - o rígido arcabouço normativo de proteção ao meio ambiente. 10. A alegada proteção constitucional à livre iniciativa não se sobrepõe, a priori e peremptoriamente, à defesa, também constitucional, do meio ambiente. Conhecida, neste tocante, a moderna concepção constitucionalista de que a colisão de princípios constitucionais deve ensejar um sopesamento que assegure a máxima eficácia possível de ambos. Note-se, assim, que a livre iniciativa não é irrestrita. Ora, afigura-se razoável, desta maneira, sujeitar à autorização governamental o exercício de uma pretensão particular que pode, potencialmente, repercutir negativamente sobre interesse da coletividade - tanto mais diante da essencialidade da preservação do meio ambiente. Mais uma vez, vê-se a concretização dos princípios de direito ambiental da prevenção e da precaução. 11. A pretensão de diferenciar "fiscalização", como consta do artigo 225 da Constituição Federal, de "autorização", enquanto vocábulos tendentes a expressar conceitos diversos, conquanto dotada de rigor semântico, é inócua. Inicialmente porque não se pode assumir tal propriedade de discurso do contribuinte: em linguagem corrente, pode-se perfeitamente conceber a "fiscalização" como abrangente da necessidade de que o Poder Público chancele atividades de particulares que possam repercutir negativamente no meio ambiente. Em segundo lugar, o mencionado artigo 225 da Constituição Federal utiliza ainda outras expressões que, razoavelmente, compreendem a possibilidade de exigir-se autorização: "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País" (§ 1º, II), "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para (...) o meio ambiente" (§1º, V); "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies" (§ 2°, VIII). 12. Tampouco cabe inquinar de inconstitucionalidade o controle estatal dos contratos de repartição de benefícios, visto que também o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético é tutelado pela Medida Provisória 2.186-16/2001. A legislação visa, quanto ao ponto, preservar o conhecimento de comunidades que, por si identificaram usos de espécies nativas, e aperfeiçoaram métodos e técnicas para usufruir destes potenciais. Uma vez que, no mais dos casos, esse conhecimento tradicional não é valorado economicamente por tais grupos, verifica-se hipossuficiência na relação destes com agentes regulares de mercado, para compartilhamento e comercialização deste conhecimento. Logo, arrazoado que o Estado aprove os contratos firmados, como condição de eficácia dos negócios jurídicos, como forma de proteção de tais comunidades. A espécie, aliás, faz prova da plausibilidade desta regulamentação, já que, à época da autuação, a ora apelante admitiu que não repartia benefícios derivados de parte das espécies que explorava. 13. Deve-se atestar que o contraste com o direito consumerista (que também compreende hipossuficientes e nem por isso submete contratos à aprovação estatal) apenas possuiria valor de convicção se demonstrado ser aquele o único arcabouço normativo possível e razoável para a tutela dos direitos das partes hipossuficientes. Tal prova, contudo, não ocorreu. Importa ressaltar que o escopo de um contrato de adesão entre empresas e consumidores em nada se assemelha a um contrato para exploração de espécie endêmica mediante repartição de benefícios auferidos, como forma de preservação de propriedade intelectual e patrimônio histórico imaterial. 14. A jurisprudência pátria fornece múltiplos precedentes do cabimento de indenização a título de danos morais coletivos em ação civil pública. Por sua vez, a fixação da indenização em 1% do valor da receita líquida da apelante no ano fiscal de 2012 (R$ 1.279.000,00, em valores históricos) não se afigura desmedida. É irrelevante a comparação desta quantia com o lucro obtido da prospecção irregular de espécies nativas: o dano causado não deve necessariamente guardar apenas correspondência, com o proveito obtido com a conduta ilícita. A aferição, diversamente, deve ser pautada, à égide da equidade, no impacto causado à proteção ao meio ambiente e na capacidade econômica do agente, não se avistando exagero na sentença quanto ao ponto. Vislumbra-se, ainda, que o Juízo a quo ponderou sobre o que entendeu como contribuição dos entes estatais para a conduta danosa, arbitrando indenização em um décimo do requerido na inicial, em valores que, até porque calculados em percentual (mínimo) da receita líquida de um ano fiscal, não sobreoneram a apelante. 15. Agravo retido não conhecido. Apelação e remessa oficial desprovidas."

 

ApCiv ED 0005393-45.2013.4.03.6105, Rel. Desembargador Federal CARLOS MUTA, j. 02/12/2020: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AMBIENTAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEDIDA PROVISÓRIA 2.186-16/2001. ACESSO A PATRIMÔNIO BIOGENÉTICO NACIONAL SEM AUTORIZAÇÃO ESTATAL PRÉVIA. DANO EXTRAPATRIMONIAL COLETIVO. LEI 13.123/2015. TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO. PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO DA AÇÃO. INOCORRÊNCIA. REMIÇÃO LEGAL DE EVENTUAL PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DE QUE A UNIÃO SEJA CREDORA. INAPLICABILIDADE. REPARAÇÃO DEVIDA À COLETIVIDADE. RAZÕES DE DECIDIR APLICADAS NA ADI 4.901, QUANTO AO CÓDIGO FLORESTAL DE 2012. MATÉRIA DISTINTA SOB ANÁLISE. PROTEÇÃO DE CONFIANÇA LEGÍTIMA AFASTADA DIANTE DE CONDUTA INDISCUTIVELMENTE ILÍCITA, AINDA QUE NÃO REPREENDIDA PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DE SUJEIÇÃO DA LIVRE INICIATIVA E PESQUISA À CHANCELA DO PODER PÚBLICO. INOCORRÊNCIA. PROPORCIONALIDADE DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA PONTUAL ACRÉSCIMO DE FUNDAMENTAÇÃO. PRETENSÕES INFRINGENTES REJEITADAS. 1. O termo de compromisso firmado pela embargante não alterou substancialmente o cenário já apreciado pelo voto da relatoria proferido ao início do julgamento, teve duração breve e voltado a procedimentos específicos, inclusive autuados, parcialmente, no decorrer desta ação civil pública. Em que pese cabível acréscimo de fundamentação sobre o ponto, não se verifica razão, portanto, à afirmação, para fim de modificação do julgado, de que fazem prova de que inexiste risco de novas atividades irregulares, em desacordo com a legislação de regência. Pelo contrário, a existência de autuações com ação civil pública em curso induz, a princípio, impressão diametralmente oposta. 2. Ainda que assim não fosse, como observação adicional, caberia compreender que atividades do réu dirigidas à regularização de condutas judicializadas anteriormente como fundamento de pleito de condenação inibitória, ainda que cabalmente dissipassem qualquer risco futuro (o que não é o caso, saliente-se), não ensejariam a perda de objeto do feito. É que, considerado o princípio da causalidade processual e a percepção de que o pedido inicial era, de fato, plausível, faz jus o autor ao provimento jurisdicional meritório que solicitara, de modo a adequadamente pacificar a lide, até porque tal decisão não importaria qualquer sobreoneração do réu (que, em tese, já se obrigara a cessar a conduta contestada, de toda a forma). Registre-se que o Superior Tribunal de Justiça já aplicou para ações de rito ordinário o entendimento, comum em sede de mandado de segurança, de que o cumprimento de liminar não enseja perda de objeto da lide. 3. Como a própria embargante reconhece, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é titularizado pela coletividade, sem individualização. Logo, naturalmente tem-se que a indenização de eventual dano a tal posição jurídica ativa não é revertida a indivíduos, por impossibilidade material e prática. Assim, é concentrada em fundo próprio, administrado pelo Estado, o que não torna a União titular do direito ao qual se refere a reparação em discussão. Até porque, conforme histórica jurisprudência das Cortes Superiores, o direito ao meio ambiente equilibrado é indisponível (tanto mais pela União), fundamento recentemente validado em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, para assentar que a reparação de dano ambiental é pretensão imprescritível (RE 654.833). 4. A arguição de que a Medida Provisória 2.186-16/2001 não tutela o meio ambiente, mas o patrimônio genético e o conhecimento tradicional a este associado é mera reiteração de argumento deduzido no apelo (ID. 107525359, f. 41 e seguintes), devidamente abordado, e vencido, no aresto embargado. Os embargos aparentemente pretendem descaracterizar, como matéria relativa ao trato do meio ambiente, conjunto de disposições: i) orientado pela Convenção de Diversidade Biológica da ONU (conforme regra o artigo 7º da Medida Provisória 2.186-16/200, que ademais define, por exemplo, os conceitos de "espécie ameaçada de extinção" e "bioprospecção"); ii) sob supervisão de órgão criado junto ao Ministério do Meio Ambiente, integrado, por, dentre outros membros, representantes do IBAMA, FUNAI, IPJB-RJ, INPA e EMBRAPA (artigo 2° do Decreto 3.945/2001, que regulamentou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético); iii) estruturado para regular a exploração científica e comercial de espécies vegetais e animais que ocorrem no território nacional; e iv) que prevê valores de natureza sancionatória ou reparatória a serem revertidos para o Fundo Nacional do Meio Ambiente. Forçosa a conclusão de que a tese não comporta acolhimento. 5. O caso dos autos não discute o tema da proibição de retrocesso, sendo inaplicável o quanto decidido na ADI 4.901, a respeito do Novo Código Florestal. A celeuma que se instalou neste tocante entre a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal orbita destacadamente em torno da aplicação ex tunc do artigo 62 do Código Florestal, cuja própria construção semântica impõe a discussão da possibilidade de eficácia retroativa, ao referenciar elemento fático pretérito (no mais das vezes ao próprio dano em análise) como parâmetro de incidência. Diverso é o caso em que houve fato consumado sob determinada égide normativa e a posteriori exsurge novo regramento que não sinaliza eficácia retroativa quanto à caracterização ou reparação de danos ocorridos anteriormente (vide o já explanado acima, a partir da análise inclusive das normas posteriores constantes da Lei 13.123/2015). Não se trata de manejar proibição de retrocesso para impedir a eficácia retroativa prevista diretamente pela própria norma posterior, mas de aplicar o regramento vigente à época dos fatos (este o sentido da invocação do precedente da Corte Superior na espécie pela Turma), considerando que não há norma nova a exigir retroação. A rigor, os argumentos “tempus regit actum” e “proibição de retrocesso” são distintos, detém bases diversas e são independentemente aplicáveis (nada obstante frequentemente manejados em conjunto). 6. Tampouco é pertinente a aplicação do inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”). Uma vez mais, confunde-se a embargante com o objeto dos autos: a pretensão indenizatória, como já se disse à exaustão, não é sanção, não se confunde com a multa. A ocorrência e constatação de dano ambiental a ser reparado é questão diversa e autônoma em relação à sanção aplicada sobre conduta que, alega-se, não é mais infracional perante a nova égide normativa. Este segundo ponto sequer é objeto dos autos. 7. É certo que o acesso a patrimônio genético, por si e em si, não cria arma biológica, por exemplo (artigo 5º da Medida Provisória 2.186-16/2001), sem a existência de etapas posteriores de produção. Falece sentido, porém, em pretender arguir que o acesso clandestino a patrimônio genético não representa, portanto, dano ou não deveria sofrer qualquer restrição, na forma do regramento então vigente. Se “é vedado o acesso a patrimônio genético para práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas”, e existia rito para obtenção do acesso (que compreendia, conforme farta prova dos autos, demonstração detalhada de qual seria a finalidade do acesso solicitado) a violação do regramento legal aplicável é, naturalmente, evento danoso e ilícito.  Em se tratando de direito ambiental, como diversas vezes já se assentou ser o caso, vige o princípio da prevenção (que, registre-se, não foi revogado pelo Código Florestal de 2012 tampouco pela jurisprudência subsequente, que segue o aplicando). Seguindo o argumento da embargante, o controle de acesso não possuiria qualquer relação com a prevenção de riscos que a própria medida provisória assumia que poderiam decorrer do acesso, arguição desprovida de consistência lógica. Não se vê por que afastar a plausível interpretação de que a restrição de acesso a patrimônio genético pretendia, justamente, segundo o arranjo normativo então vigente, obstar acesso clandestino ou abusivo que, sem conhecimento da Administração, poderia gerar "práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e desenvolvimento de armas biológicas e químicas", nos dizeres da norma promulgada. 8. Inexiste confiança legítima a ser tutelada em relação à conduta que, sem a menor dúvida, está em desacordo com qualquer interpretação que se queira dar à norma legal que a rege. Não há como se desconsiderar, para ser ao menos possível discutir confiança legítima, o imperativo de que haja razoável e plausível entendimento de que a conduta está amparada não só na prática administrativa, mas na lei. Não se afigura sequer remotamente plausível ou razoável defender que a prática de ato sabidamente ilícito é seguramente tutelada pela lei tão somente porque a autoridade administrativa com poder de fiscalização não exerce, de regra, a pretensão sancionatória correlata. De fato, quando muito, é possível, diferentemente, a supressão da sanção aplicável à conduta praticada em desacordo com a lei, e nesta medida indiscutivelmente infracional, a partir da ponderação de princípios de proporcionalidade e razoabilidade, a partir de caracterização de boa-fé do particular. Na espécie, a análise dos fatos demonstra, com bastante clareza, que a embargante não possuía certeza do respaldo da conduta praticada, diversamente do alegado, como se infere da conduta adotada perante as autoridades administrativas. Não se verifica elemento algum a tutelar qualquer confiança legítima no caso, para fim de incidência do artigo 2º da Lei 9.784/1999 ou do artigo 24 da LINDB. 9. Aplicável também aos contratos de repartição de benefícios decorrentes de acesso a patrimônio genético sem transferência de conhecimento tradicional associado as conclusões do acórdão embargado quanto às avenças centradas em tais saberes. Em suma, o fundamento norteador do acórdão, neste ponto, é que se afigura plausível o arcabouço jurídico que impõe anuência estatal para tutelar a parte contratual que, presume-se, não detém experiência para precificar o objeto do contrato, o que é elemento central do negócio jurídico. De maneira de todo semelhante ao caso do acesso a conhecimento tradicional, não necessariamente o detentor da área em que ocorre a espécie de biodiversidade a ser estudada possui conhecimento do potencial econômico respectivo, que frequentemente exsurge apenas de estudo especializado e direcionado para tal fim, motivado por inferências, por vezes igualmente derivadas de produção científica especializada, matéria da qual não é razoável supor aprioristicamente que o provedor qualquer noção. 10. Quando menos, a prévia anuência do Poder Público garante que o contrato de repartição de benefícios ao menos exista. Neste sentido, reitera-se o que já afirmado no aresto contestado: a ora embargante, em parte dos casos objeto destes autos, apenas passou a repartir benefícios quando da autuação dos projetos de regularização, anos depois de ocorridos os acessos respectivos e de iniciada a comercialização dos produtos derivados de tais pesquisas. Não se avista a inconstitucionalidade aventada à restrição da pesquisa e livre iniciativa, portanto. 11. A referência, pelo aresto embargado, a “lucro” e não a “faturamento” (grandeza utilizada pelo apelo para tratar do assunto, no sentido de que a indenização fixada pela sentença, em 1% da receita líquida da empresa no ano de 2012, corresponde à integralidade do faturamento da ora embargante relativo a produtos derivados de acesso ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira no período) não deriva de erro. A fundamentação é no sentido de que mesmo se, dentro do faturamento, não se depure lucro algum (podendo inclusive ser constatado prejuízo), trata-se de questão que não possui relevo apriorístico a, por si, ser capaz de afastar o cabimento de qualquer pretensão indenizatória contrária. Como se queira, substituindo “lucro” por “faturamento” no excerto abordado pela embargante, o sentido do texto remanesce rigorosamente incólume e aplicável à espécie. A indenização não foi fixada pela sentença com base no proveito econômico supostamente obtido, tanto menos exclusivamente a partir de tal circunstância. Vale lembrar que o pedido originário do parquet nestes autos foi o de que a obrigação indenizatória fosse fixada em 10% da receita líquida da embargante (ID. 107524714, f. 23), o que, muito prudentemente, foi rechaçado pelo Juízo de origem, valorando as circunstâncias fáticas concretas do caso. 12. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, apenas para efeito de pontual acréscimo de fundamentação, rejeitando todas as pretensões infringentes."

 

Tenho que as razões de decidir versadas e acolhidas por esta Turma, nestes dois julgamentos, para afastar a conjectura de perda de objeto da ação, seguem fundamentalmente hígidas, sendo desde logo aplicáveis, per relationem, à espécie, conforme as considerações e adições a seguir.

Com efeito, na linha do decidido por unanimidade em tais oportunidades, não há perda de objeto da lide em relação à pretensão indenizatória.

É certo que existem precedentes do Supremo Tribunal Federal que afastaram raciocínios similares ao constante do voto proferido em embargos de declaração, ao diferenciar os efeitos e repercussões da aplicação dos princípios de proibição do retrocesso e tempus regit actum, segregando normas que expressamente determinam aplicação retroativa de seu conteúdo daquelas que não o fazem. Contudo, ainda que se exclua tal fundamento, a conclusão então alcançada segue intacta. É que, como nota diferencial relevante, a própria Lei 13.123/2015 não descaracteriza como ilícitas as condutas violadoras ao regime normativo anterior (grifos nossos):

 

"Art. 38. Deverá regularizar-se nos termos desta Lei, no prazo de 1 (um) ano, contado da data da disponibilização do Cadastro pelo CGen, o usuário que, entre 30 de junho de 2000 e a data de entrada em vigor desta Lei, realizou as seguintes atividades em desacordo com a legislação em vigor à época:

I - acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado;

II - acesso e exploração econômica de produto ou processo oriundo do acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado, de que trata a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 ;

III - remessa ao exterior de amostra de patrimônio genético; ou

IV - divulgação, transmissão ou retransmissão de dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado.

§ 1º A regularização de que trata o caput está condicionada a assinatura de Termo de Compromisso.

§ 2º Na hipótese de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado unicamente para fins de pesquisa científica, o usuário estará dispensado de firmar o Termo de Compromisso, regularizando-se por meio de cadastro ou autorização da atividade, conforme o caso.

§ 3º O cadastro e a autorização de que trata o § 2º extinguem a exigibilidade das sanções administrativas previstas na Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 , e especificadas nos arts. 15 e 20 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 , desde que a infração tenha sido cometida até o dia anterior à data de entrada em vigor desta Lei.

§ 4º Para fins de regularização no Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI dos pedidos de patentes depositados durante a vigência da Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 , o requerente deverá apresentar o comprovante de cadastro ou de autorização de que trata este artigo.

(...)

Art. 41. A assinatura do Termo de Compromisso suspenderá, em todos os casos:

I - a aplicação das sanções administrativas previstas na Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 , e especificadas nos arts. 16 a 19 e 21 a 24 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 , desde que a infração tenha sido cometida até o dia anterior à data da entrada em vigor desta Lei; e

II - a exigibilidade das sanções aplicadas com base na Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 , e nos arts. 16 a 19 e 21 a 24 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 .

§ 1º O Termo de Compromisso de que trata este artigo constitui título executivo extrajudicial.

§ 2º Suspende-se a prescrição durante o período de vigência do Termo de Compromisso.

§ 3º Cumpridas integralmente as obrigações assumidas no Termo de Compromisso, desde que comprovado em parecer técnico emitido pelo Ministério do Meio Ambiente:

I - não se aplicarão as sanções administrativas de que tratam os arts. 16, 17, 18 , 21, 22, 23 e 24 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 ;

II - as sanções administrativas aplicadas com base nos arts. 16 a 18 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 , terão sua exigibilidade extinta; e

III - os valores das multas aplicadas com base nos arts. 19 , 21 , 22 , 23 e 24 do Decreto nº 5.459, de 7 de junho de 2005 , atualizadas monetariamente, serão reduzidos em 90% (noventa por cento) do seu valor.

§ 4º O usuário que tiver iniciado o processo de regularização antes da data de entrada em vigor desta Lei poderá, a seu critério, repartir os benefícios de acordo com os termos da Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 .

§ 5º O saldo remanescente dos valores de que trata o inciso III do § 3º será convertido, a pedido do usuário, pela autoridade fiscalizadora, em obrigação de executar uma das modalidades de repartição de benefícios não monetária, previstas no inciso II do caput do art. 19 desta Lei.

§ 6º As sanções previstas no caput terão exigibilidade imediata nas hipóteses de:

I - descumprimento das obrigações previstas no Termo de Compromisso por fato do infrator; ou

II - prática de nova infração administrativa prevista nesta Lei durante o prazo de vigência do Termo de Compromisso.

§ 7º A extinção da exigibilidade da multa não descaracteriza a infração já cometida para fins de reincidência.

(...)

Art. 43. Permanecem válidos os atos e decisões do CGen referentes a atividades de acesso ou de remessa de patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado que geraram produtos ou processos em comercialização no mercado e que já foram objeto de regularização antes da entrada em vigor desta Lei.

§ 1º Caberá ao CGen cadastrar no sistema as autorizações já emitidas.

§ 2º Os acordos de repartição de benefícios celebrados antes da entrada em vigor desta Lei serão válidos pelo prazo neles previstos."

 

Como se vê, conquanto a atual Lei da Biodiversidade tenha criado mecanismos que permitem, de maneira condicionada, a remição expressiva de parte das sanções administrativas devidas com fulcro na legislação anterior, o próprio estabelecimento destas regras demonstra que não há reversão do entendimento de que tais condutas, uma vez confirmadas, caracterizavam efetivamente ato ilícito, e assim continuam sendo valoradas. Do contrário haveria extinção incondicionada de qualquer punição ou obrigação pendente.

Não cabe, assim, cogitar de novatio in mellius a ensejar a perda de objeto do pedido indenizatório inicial – que, note-se, não se confunde com a sanção administrativa. Na medida em que a própria Lei 13.123/2015 expressamente entende como ilícito o acesso a patrimônio biogenético pretérito em desacordo com o regramento da Medida Provisória 2.186-16/2001 (inclusive tomando tal fato como referência para o conteúdo eficacial de numerosas regras novas, como visto acima), é derivação necessária que a reparação civil por eventual dano verificado por tal conduta segue exigível.

A situação é diversa, portanto, daquelas objeto de divergência entre as Cortes Superiores, em que se discute, de regra, conduta que a legislação posterior não identifica como danosa. No caso dos autos, o legislador optou literalmente por, concomitantemente à mudança de paradigma, expressar a irregularidade de ato praticados em desacordo com a égide normativa anterior, impondo requisitos ao abrandamento das sanções então aplicadas.

Assim, constatada conduta caracterizadora, em tese, de dano ambiental (que, a rigor, sequer dependeria de ilicitude, em se tratando de proteção ao meio ambiente), segundo o regramento da Medida Provisória 2.186-16/2001, subsiste o imprescritível dever de indenização respectivo (RE 654.833, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe 24/06/2020, Tema 999/STF).

Tampouco resta prejudicado o interesse do parquet no tocante à obrigação de não fazer, voltada a impor à ré a devida regularização perante a Administração, previamente à continuidade de atividades produtivas e comerciais derivadas de acesso a patrimônio genético de biodiversidade brasileira. Conquanto, em regra, não mais se fale de autorização prévia, ainda há, quando menos, dever de cadastro.

Neste ponto, vênia devida, não se verifica modificação do pedido inicial, mas simples consideração de legislação superveniente ao processamento da lide. Houve, ao limite, adaptação ao fato novo identificado (que efetivamente não pode ser desconsiderado, na forma do artigo 493 do CPC) o que não desborda dos limites impostos pelo princípio da congruência, na espécie. De fato, a interpretação dos pedidos e das causas de pedir formuladas na origem segundo o conjunto da postulação e o princípio da boa-fé (artigo 322, § 2º, CPC) permite concluir que o objetivo da lide, neste tocante, é impor, à ré, adequação aos procedimentos de fiscalização vigentes. Este o cerne da pretensão deduzida. Havendo modificação, e não supressão, da forma pela qual a Administração acompanha o acesso a patrimônio genético pela ré, subsiste o interesse jurídico na demanda, nesta quadra.

Como ressaltou o Desembargador Federal Nelton dos Santos, quando do julgamento de mérito da ApCiv 0005393-45.2013.4.03.6105 (grifos nossos):

 

“Como se vê, o que, à vista da legislação revogada, pressupunha autorização prévia, passou a exigir, conforme o caso, autorizaçãocadastro ou notificação.

Cumpre perquirir, portanto, sobre as eventuais repercussões, sobre o julgamento da causa, produzidas pela superveniência legislativa.

Sobre o tema, o Ministério Público Federal, ora autor e apelado, entende que não há perda de objeto, para tanto invocando a máxima tempus regit actum (f. 1.137 e seguintes). Em sua argumentação, todavia, cinge-se a analisar o pedido de indenização, com relação ao qual efetivamente subsiste o interesse de agir, como bem demonstrou a e. relatora em seu voto.

Já a ré e apelante sustenta que a Lei n. 13.123/2015 eliminou a exigência de prévia autorização, substituindo-a por mero cadastro, salvo nas excepcionalíssimas hipóteses do artigo 13, que seriam estranhas ao caso dos autos (f. 1.077 e seguintes).

Penso, com a máxima vênia, que não há falar em perda de objeto. Não pelas razões expendidas pelo Ministério Público Federal ou pelos votos que me precederam, porquanto relacionadas à questão indenizatória e não à obrigação de não fazer.

Para que se perdesse o objeto, seria necessário que:

a) a legislação abolisse, por inteiro, qualquer modalidade de controle por parte do poder público, incidente sobre a atividade proibida à ré; ou, não sendo assim,

b) a ré demonstrasse ter obtido a autorização, ter feito o cadastro ou ter dirigido a notificação, nos termos da legislação superveniente.

Afora essas duas hipóteses, o interesse de agir subsiste, cumprindo ao órgão julgador, apenas, considerar o fato legislativo superveniente e dispor a respeito de suas repercussões sobre o caso dos autos.”

 

Note-se, ainda, que as atividades da ré não dispensariam, em tese, a formalização de Termo de Compromisso sob a nova legislação, já que, vênia à relatoria, os acessos não ocorrem exclusivamente para pesquisa científica, e sim, para bioprospecção com fins comerciais, como afirmado desde a inicial e inconteste nos autos (ID 89987020, f. 17). Tanto assim que a repercussão da assinatura de documentos dessa natureza foi debatida no julgamento dos embargos de declaração ao acórdão de mérito proferido na ApCiv 0005393-45.2013.4.03.6105, como visto acima.

Repise-se, finalmente, como já asseverado no feito em referência, que a Lei 13.123/2015 autoriza (não obriga) a União a desistir de litígio judicial que verse sobre a matéria (artigo 42, II). Assim, seja pela facultatividade como pela divergência de destinatário, a regra não pode ser oposta ao Ministério Público Federal para impor o encerramento da lide sem apreciação da pretensão inicial.

Assim, sem adentrar à procedência meritória dos pedidos iniciais, a meu sentir não há perda de objeto das pretensões autorais.

Ante o exposto, divirjo para, ao momento, dar parcial provimento ao apelo e a remessa oficial, tida por submetida, para afastar a extinção sem resolução do mérito com o consequente retorno dos autos ao relator para prosseguimento como de direito.  

É como voto.

 

VOTO COMPLEMENTAR (MÉRITO)

 

 

Senhores Desembargadores, retomado o julgamento da lide nesta oportunidade, no exame do mérito, acompanho em parte o relator, no tocante à liminar e à obrigação de fazer.

Divirjo, contudo, no afastamento do dano moral coletivo. Neste ponto, não se desconhece que o caso congênere julgado por esta Turma (em que se entendeu pelo cabimento de reparação por dano moral coletivo) foi parcialmente reformado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Contudo, como ressaltado pelo relator, a decisão monocrática proferida ainda pende de confirmação pela 1ª Turma da Corte Superior (diante dos agravos internos interpostos) pelo que entendo não ser possível, por ora, falar-se em pacificação da questão em qualquer sentido.

Sob tal prisma, avançando no exame dos autos, tem-se que, no caso presente, assim como no feito correlato anteriormente apreciado por esta Turma, a ré admitiu expressamente o acesso à informação genética das espécies indicadas na inicial (ID's  8998702, f. 22/23). A nota diferencial do caso dos autos é a de que, ao momento do ajuizamento da presente ação civil pública, a empresa ainda não havia procurado regularizar tais condutas perante o CGEN (havendo notícia no acervo documental que, durante o processamento da demanda, buscou conformar os acessos relativos à castanha-do-brasil e tucumã, ID's 89987022, f. 110 e seguintes, e 89987023).

A argumentação vertida pela apelada é congênere àquela já superada, integralmente, nos autos da ApCiv 0005393-45.2013.4.03.6105.

Assim, como foi ressaltado naquela ocasião, não há que se falar o acesso a patrimônio genético sem autorização prévia do Ministério do Meio Ambiente foi realizado com base em confiança legítima, pois havia norma legal expressa em sentido contrário.

Como ressaltara a Turma (grifos nossos):

 

"Neste tocante, por primeiro é necessário assentar que a apelante não nega a prática imputada (acesso desautorizado a patrimônio genético), mas apenas sua qualificação jurídica. Em seguida, pertinente apontar que a Medida Provisória 2.186-16/2001 claramente condicionava o acesso ao patrimônio genético à autorização prévia:

"Art. 2o  O acesso ao patrimônio genético existente no País somente será feito mediante autorização da União e terá o seu uso, comercialização e aproveitamento para quaisquer fins submetidos à fiscalização, restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições estabelecidos nesta Medida Provisória e no seu regulamento."

Veja-se, não havia insegurança jurídica em relação ao comando de que o acesso ao patrimônio genético se dava mediante autorização. Este era o ponto de partida de qualquer regulamentação infralegal da matéria, e de qualquer intepretação casuística que se fizesse necessária.

Condizentemente, previu o Decreto 5.459/2005:

"CAPÍTULO II

DAS INFRAÇÕES CONTRA O PATRIMÔNIO GENÉTICO

 Art. 15.  Acessar componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica sem autorização do órgão competente ou em desacordo com a obtida

Multa mínima de R$ 10.000 (dez mil reais) e máxima de R$ 100.000,00 (cem mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de R$ 200,00 (duzentos reais) e máxima de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), quando se tratar de pessoa física.

§ 1o  A pena prevista no caput será aplicada em dobro se o acesso ao patrimônio genético for realizado para práticas nocivas ao meio ambiente ou práticas nocivas à saúde humana.

§ 2o  Se o acesso ao patrimônio genético for realizado para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas, a pena prevista no caput será triplicada e deverá ser aplicada a sanção de interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento."

Se dúvida existisse quanto ao procedimento adequado para obter a autorização legalmente estipulada, o acesso sem chancela do Poder Público claramente não figurava como opção viável e condizente com a previsão legal transcrita de início. Se entendia a apelante que a inércia do CGEN em esclarecer o regime aplicável para atividade malferia direito próprio, o caminho a ser adotado era o de submissão da questão ao Poder Judiciário, como garante a Constituição Federal, e não o da autotutela.

Registre-se que o teor do artigo 34 da medida provisória, conquanto mencionado como base, não ratifica a postura adotada:

"Art. 34.  A pessoa que utiliza ou explora economicamente componentes do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado deverá adequar suas atividades às normas desta Medida Provisória e do seu regulamento."

Manejar o dispositivo acima para firmar a tese de que era possível o acesso desautorizado, desde que posteriormente houvesse regularização, consubstancia verdadeira burla à sistemática divisada. O que se previu foi que aqueles que já exploravam patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, antes da edição da medida provisória, deveriam adequar-se, e não que essa prospecção poderia ser realizada ao vilipêndio da proteção reservada ao meio ambiente nos demais preceitos do diploma, sob a promessa de futura regularização. A alegação olvida regra basilar de hermenêutica, ao colocar em conflito direto comandos de um mesmo sistema normativo.

Cabe observar, ainda, que a eventual conivência do órgão fiscalizador não valida a conduta contra legem. A propósito, não se pode invocar non venire contra factum proprium na vigência de norma expressamente proibitiva da conduta adotada, uma vez que não se deve cogitar, propriamente, de quebra de confiança legítima - nem se argumentar sobre a presunção da legalidade de ato notoriamente em desacordo com a norma legal. Frise-se, ainda que se admitisse ter ocorrido desrespeito à máxima de proibição de comportamento contraditório da parte do CGEN ou do MPF, disto não se derivaria a transmutação de conduta ilícita em lícita, pelo que o argumento é inócuo. De mais a mais, a própria alegação de incerteza do procedimento a ser adotado contradiz a ideia de um posicionamento seguramente consolidado do CGEN a favor do acesso a patrimônio genético prévio à chancela do Estado.

Sob outro enfoque, não se pode manejar o princípio para deliberadamente convalidar situações de infração sistemática e direta à legislação, sob pena de chancela de mecanismo de remição a ruir - no que tange à espécie - o rígido arcabouço normativo de proteção ao meio ambiente.

 

Tais fundamentos foram ratificados no julgamento dos aclaratórios opostos (grifos nossos):

 

"Em segundo lugar, aparenta ser necessário enunciar, novamente, repetindo o aresto embargado, que inexiste confiança legítima a ser tutelada em relação à conduta que, sem a menor dúvida, está em desacordo com qualquer interpretação que se queira dar à norma legal que a rege. Não há como se desconsiderar, para ser ao menos possível discutir confiança legítima, o imperativo de que haja razoável e plausível entendimento de que a conduta está amparada não só na prática administrativa, mas na lei. Não se afigura sequer remotamente plausível ou razoável defender que a prática de ato sabidamente ilícito é seguramente tutelada pela lei tão somente porque a autoridade administrativa com poder de fiscalização não exerce, de regra, a pretensão sancionatória correlata. Calha ao caso até mesmo a invocação da vetusta máxima latina nemo auditur propriam turpitudinem allegans.

De fato, quando muito, é possível, diferentemente, a supressão da sanção aplicável à conduta praticada em desacordo com a lei, e nesta medida indiscutivelmente infracional, a partir da ponderação de princípios de proporcionalidade e razoabilidade, a partir de caracterização de boa-fé do particular. De maneira excepcional, é possível declaração judicial da ineficácia da regra legal."

 

Naqueles autos, foi demonstrado, ainda que, na verdade, a irregularidade da conduta da ré não se limitava ao acesso clandestino a patrimônio genético, estendendo-se, também, à repartição dos benefícios comerciais obtidos. Foi apontado, igualmente, que os pedidos de regularização de acesso, muitos anos depois de já ocorrido o estudo respectivo e inclusive com produtos derivados já em comercialização, eram instruídos com projetos indicando que se tratava de obtenção futura de informação genética, em desconformidade com os fatos, a indicar que, diversamente do alegado, o acesso seguido de regularização não era praxe tolerada (afinal, não haveria porquê alterar datas dos eventos ocorridos, se assim fosse) e sobre a qual havia expectativa legítima.

Na espécie, sequer houve pedido de regularização até o ajuizamento da ação civil pública, a tornar ainda mais subsistente a tese de que a conduta foi praticada de acordo com qualquer padrão de “normalidade”, já que a própria apelada não nega que a regularização a posteriori do acesso a patrimônio genético era devida, de qualquer forma. Nem se diga que não houve possibilidade de adequação por interrupção dos trabalhos do CGEN (sobrestamento dos pedidos de regularização em curso) pois tal evento, segundo consta dos autos, apenas veio a ocorrer em 2007, anos depois dos acessos ocorridos ao patrimônio genético do tucumã e castanha-do-brasil), e cessou em meados de 2011, anos antes da protocolização da inicial destes autos.

É inconteste, portanto, a ilicitude da conduta praticada.

No tocante à apontada inexistência de dano ambiental, bem como da alegação de que a Medida Provisória 2.186-16/2001 não tutelaria matéria ambiental e, ainda, a aventada inconstitucionalidade da exigibilidade de autorização para acesso a patrimônio genético para fins comerciais, vale-se do quanto já expôs a Turma, exaurindo tais temas, nos autos 0005393-45.2013.4.03.6105 (grifos nossos):

 

"Destaque-se que o dano efetivamente existiu. A legislação anterior condicionava o acesso ao patrimônio genético nacional à prévia autorização sob a concepção de que o uso irregular dessa informação representava risco ao meio ambiente. Neste contexto, este perigo não adviria tão somente da manipulação de material genético: a identificação clandestina de potencial econômico de espécies endêmicas poderia desencadear prospecção desmedida e sem o devido controle governamental, e, por consequência, sensível desequilíbrio sistêmico ambiental. Deriva-se, o desrespeito da apelante ao regramento aplicável ao seu intento econômico caracteriza, efetivamente e por si, dano extrapatrimonial ao interesse difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de uma das facetas eficaciais de ainda outro princípio de direito ambiental, o da prevenção.

Cumpre salientar que a regularização posterior - que no caso dos autos não foi espontânea - não demonstra a inexistência de dano. A responsabilização é objetiva,no que tange ao prejuízo ao meio ambiente no exercício de atividade sem pleno conhecimento e controle do órgão regulador. A autorização, nesta linha, não significa a inexistência do risco, mas, pelo contrário, a implementação de medida de cautela à concretização de qualquer dano (dirimindo, exatamente, o risco existente), já que a apelante, a partir daquele momento, desenvolveria suas atividades segundo os parâmetros e controle administrativos estabelecidos.

(...)

Indo adiante, a tese de inconstitucionalidade da necessidade de autorização prévia para o acesso ao patrimônio biogenético nacional também não vinga.

Veja-se, a alegada proteção constitucional à livre iniciativa não se sobrepõe, a priori e peremptoriamente, à defesa, também constitucional, do meio ambiente. Conhecida, neste tocante, a moderna concepção constitucionalista (calcada majoritariamente em excertos de Dworkin e Alexy) de que a colisão de princípios constitucionais deve ensejar um sopesamento que assegure a máxima eficácia possível de ambos. Note-se, assim, que a livre iniciativa não é irrestrita. Deveras intuitivo, não se pode dizer que uma lei sancionando determinada conduta (diga-se, o Código Penal a tipificar o roubo) é inconstitucional porque fere o postulado do artigo 170, parágrafo único da Constituição Federal.

Ora, afigura-se razoável, desta maneira, sujeitar à autorização governamental o exercício de uma pretensão particular que pode, potencialmente, repercutir negativamente sobre interesse da coletividade - tanto mais diante da essencialidade da preservação do meio ambiente. Mais uma vez, vê-se a concretização dos princípios de direito ambiental da prevenção e da precaução.

Neste sentido entendeu esta Turma ao apreciar a questão, em agravo de instrumento tirado destes autos (grifos nossos):

(...)

Neste tocante, cumpre assinalar que a ciência e pesquisa não são fins em si. Note-se, neste sentido, que a apelante revela em seu recurso que seu interesse científico no pequi, por exemplo, deriva do fato de que produtos fabricados a partir da espécie "ganhavam destaque no mercado de comésticos", de modo que pediu autorização prévia para o respectivo estudo genético "visando, obviamente, fazer frente às empresas concorrentes em seu segmento empresarial", mas pela demora do CGEN em apreciar a requisição "fez com que o ativo perdesse seu lugar de destaque no mercado, antes mesmo que a CRODA pudesse ter estudado suas características". Pois bem, a proteção da ciência e pesquisa certamente não tem por escopo, primordialmente, garantir o lucro privado. O interesse mercadológico pode, sem dúvida, funcionar de força motriz para o desenvolvimento e a partilha de conhecimento, mas são estes últimos, em verdade, os fins primordiais da intervenção estatal na e sobre a atividade econômica, na medida em que materializam interesse coletivo. Este, portanto, é o vértice de harmonização - no que pertinente à espécie - do regramento de proteção ao meio ambiente, à livre iniciativa e a ciência e pesquisa. Neste propósito, descortina-se que a regulação estatal é importante à garantia da concorrência empresarial: o regular desenvolvimento da livre iniciativa, bem observado, exige parametrização normativa (pense-se, neste sentido, na Lei 12.529/2011 e o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência).

Ademais, a experiência mostra que a afirmação, constante do apelo de que "o conhecimento a respeito dos potenciais econômicos de determinada espécie conscientiza a todos de seu valor e da necessidade de preservá-la para as gerações futuras" prova-se imprecisa, haja vista o consabido e crescente risco de extinção de espécies animais e vegetais, bem como a degradação de biomas, decorrentes de exploração com viés prioritariamente econômico.

É pertinente divisar ainda, que o posicionamento em parecer do Min. Eros Grau, mencionado no apelo, aponta inconstitucionalidade na submissão "a autorização da União, indistintamente, qualquer acesso ao patrimônio genético existente no País, ainda que não praticado com o intuito de uso econômico""ainda que não vise à industrialização de produto ou à aplicação de processo passível ou não de proteção intelectual". Ora, a apelante, pretendia, justamente, como declarado, o uso econômico de seus achados científicos, logo, o argumento não lhe aproveita: a inconstitucionalidade, na forma como aventada, não abrangeria o seu caso.

(...)

Registre-se que a argumentação acessória de que o artigo 2º da Medida Provisória 2.1.86/2001 não tutela o meio ambiente (no sentido de que o acesso em si não causa dano e o fornecimento de matéria-prima é tema fora do escopo da legislação em foco) revela-se despropositada. Como já explanado anteriormente, a cautela em relação ao acesso a patrimônio genético insere-se sob a percepção de que o mal gerenciamento de tais dados tem potencial para causar risco ambiental sistêmico. Este contexto impede tanto a alegação de que a exigência de chancela prévia do Poder Público é restrição desproporcional, arbitrária e aleatória, como impõe a análise orgânica das normas da medida provisória.

Neste propósito, exsurge claro o arcabouço normativo voltado à proteção do meio ambiente, figurando o controle de acesso ao patrimônio genético como uma das medidas de prevenção e precaução do Estado:

"Art. 1o  Esta Medida Provisória dispõe sobre os bens, os direitos e as obrigações relativos:

(...)

IV - ao acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e a utilização da diversidade biológica.

(...)

Art. 5o  É vedado o acesso ao patrimônio genético para práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas.

Art. 6o  A qualquer tempo, existindo evidência científica consistente de perigo de dano grave e irreversível à diversidade biológica, decorrente de atividades praticadas na forma desta Medida Provisória, o Poder Público, por intermédio do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, previsto no art. 10, com base em critérios e parecer técnico, determinará medidas destinadas a impedir o dano, podendo, inclusive, sustar a atividade, respeitada a competência do órgão responsável pela biossegurança de organismos geneticamente modificados."

Finalmente, tampouco cabe inquinar de inconstitucionalidade o controle estatal dos contratos de repartição de benefícios, visto que também o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético é tutelado pela Medida Provisória 2.186-16/2001:

"Art. 1o  (...)

II - ao acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, relevante à conservação da diversidade biológica, à integridade do patrimônio genético do País e à utilização de seus componentes;"

A legislação visa, quanto ao ponto, preservar o conhecimento de comunidades que, por si, identificaram usos de espécies nativas, e aperfeiçoaram métodos e técnicas para usufruir destes potenciais. Uma vez que, no mais dos casos, esse conhecimento tradicional não é valorado economicamente por tais grupos, verifica-se hipossuficiência na relação destes com agentes regulares de mercado, para compartilhamento e comercialização deste conhecimento. Logo, arrazoado que o Estado aprove os contratos firmados, como condição de eficácia dos negócios jurídicos, como forma de proteção de tais comunidades. A espécie, aliás, faz prova da plausibilidade desta regulamentação, já que, à época da autuação, a ora apelante admitiu que não repartia benefícios derivados de parte das espécies que explorava."

 

Nos embargos de declaração (grifos nossos):

 

"Avançando, a arguição de que a Medida Provisória 2.186-16/2001 não tutela o meio ambiente, mas o patrimônio genético e o conhecimento tradicional a este associado é mera reiteração de argumento deduzido no apelo (ID. 107525359, f. 41 e seguintes), devidamente abordado, e vencido, no aresto embargado:

(...)

Os embargos aparentemente pretendem descaracterizar, como matéria relativa ao trato do meio ambiente, conjunto de disposições: i) orientado pela Convenção de Diversidade Biológica da ONU (conforme regra o artigo 7º da Medida Provisória 2.186-16/200, que ademais define, por exemplo, os conceitos de "espécie ameaçada de extinção" e "bioprospecção"); ii) sob supervisão de órgão criado junto ao Ministério do Meio Ambiente, integrado, por, dentre outros membros, representantes do IBAMA, FUNAI, IPJB-RJ, INPA e EMBRAPA (artigo 2° do Decreto 3.945/2001, que regulamentou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético); iii) estruturado para regular a exploração científica e comercial de espécies vegetais e animais que ocorrem no território nacional; e iv) que prevê valores de natureza sancionatória ou reparatória a serem revertidos para o Fundo Nacional do Meio Ambiente. Forçosa a conclusão de que a tese não comporta acolhimento.

Anote-se que também é incorreta a arguição de que a exigência de autorização de acesso não possui relação com controle ambiental, o que, alegou a embargante, tratou-se de afirmação não fundamentada do acórdão, pois a partir de tal momento (concessão da autorização) o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético faria apenas supervisão da repartição de benefícios eventualmente devida.

Como pode ser lido no aresto, conforme o trecho já reproduzido (“a autorização, nesta linha, não significa a inexistência do risco, mas, pelo contrário, a implementação de medida de cautela à concretização de qualquer dano (dirimindo, exatamente, o risco existente), já que a apelante, a partir daquele momento, desenvolveria suas atividades segundo os parâmetros e controle administrativos estabelecidos”), o próprio processo de autorização de acesso, por si, já se caracteriza como controle ambiental. Ao afirmar “que a apelante, a partir daquele momento, desenvolveria suas atividades segundo os parâmetros e controle administrativos estabelecidos”, a Turma pontuou que as informações prévias que condicionam o acesso fornecem conhecimento das atividades realizadas à Administração e permitem tal controle, e não que caberia ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético a fiscalização posterior à obtenção da autorização.

Assim, revela-se livre de dúvida que os princípios próprios de direito ambiental são aplicáveis à espécie.

(...)

De outra parte, a alegação que de que o acesso em si não produz dano sem ato independente posterior, além de ainda mais uma imputação de error in judicando, imprópria na sede de embargos de declaração, não se sustenta logicamente. 

Cumpre, nesta quadra, a transcrição do artigo 5º da Medida Provisória 2.186-16/2001, mencionado pela embargante neste capítulo do recurso:

“Art. 5o  É vedado o acesso ao patrimônio genético para práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas.”

Ora, é certo que o acesso a patrimônio genético, por si e em si, não cria arma biológica, por exemplo, sem a existência de etapas posteriores de produção. Falece sentido, porém, em pretender arguir que, portanto, o acesso clandestino a patrimônio genético não representa dano ou não deveria sofrer qualquer restrição, na forma do regramento então vigente. Se “é vedado o acesso a patrimônio genético para práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas”, e existia rito para obtenção do acesso (que compreendia, conforme farta prova dos autos, demonstração detalhada de qual seria a finalidade do acesso solicitado) a violação do regramento legal aplicável é, naturalmente, evento danoso e ilícito Em se tratando de direito ambiental, como diversas vezes já se assentou ser o caso, vige o princípio da prevenção (que, registre-se, não foi revogado pelo Código Florestal de 2012 tampouco pela jurisprudência subsequente, que segue o aplicando).

A Turma demonstrou deveras claramente tal raciocínio:

(...)

Perceba-se que as regras condicionantes do acesso não constituem fim em si mesmo, dissociado do resto da regência normativa da matéria. Seguindo o argumento da embargante, o controle de acesso não possuiria qualquer relação com a prevenção de riscos que a própria medida provisória assumia que poderiam decorrer do acesso, arguição desprovida de consistência lógica. Não se vê por que afastar a plausível interpretação de que a restrição de acesso a patrimônio genético pretendia, justamente, segundo o arranjo normativo então vigente, obstar acesso clandestino ou abusivo que, sem conhecimento da Administração, poderia gerar "práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e desenvolvimento de armas biológicas e químicas"nos dizeres da norma promulgada.

(...)

Prosseguindo, a narrativa de que o acórdão teria alcançado conclusão equivocada quando do exame das alegações referentes à inconstitucionalidade de condicionamento de atividades científicas e econômicas à autorização prévia, para além de notoriamente imputarem simples erro de julgamento, restam largamente prejudicadas, na medida em que já refutadas, uma vez mais, as premissas de base da tese (a saber, que a Medida Provisória 2.186-16/2001 não tutela direito ambiental e que o acesso a patrimônio genético, por si, não tem aptidão de causar dano ao meio ambiente).

Como a própria embargante admitiu, a restrição da liberdade científica e econômica apenas seria legítima se houvesse risco a ser prevenido. Ora, esta é precisamente a conclusão do aresto embargado:

(...)”

 

Sobre a tese de impossibilidade de fixação de dano moral coletivo, a jurisprudência segue assente em sentido contrário a tal argumentação (grifos nossos):

 

AgInt no REsp 1.797.753, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe de 01/02/2022: "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. TELEFONIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO MORAL COLETIVO. POSSIBILIDADE. FALHA EM SERVIÇO. ALTERAÇÃO DAS CONCLUSÕES DA CORTE DE ORIGEM. SÚMULA N. 7/STJ. 1. Mostra-se inviável, na via especial, o exame de questões que não foram debatidas pela instância a quo. Incidência da Súmula 211/STJ. 2. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão de que é possível a condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em Ação Civil Pública. Precedentes. 3. O apelo especial é recurso de fundamentação vinculada e está adstrito às hipóteses de infringência ao direito federal infraconstitucional, não se prestando ao reexame de fatos e provas. A pretensão da recorrente exige análise do acervo probatório dos autos, o que seria necessário para se modificar as conclusões do aresto impugnado quanto à não ocorrência do dano moral e readequação do quantum indenizatório. A medida é sabidamente vedada na via eleita, em razão do óbice da Súmula n. 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento."

 

AgInt nos EREsp n. 1.408.397, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, Corte Especial, DJe de 7/6/2021: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TELEFONIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE DANOS MORAIS COLETIVOS. POSSIBILIDADE. CONSOLIDADA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 168/STJ. 1. De acordo com a jurisprudência do STJ, é possível a condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em sede de ação civil pública. Precedentes: AgInt nos EREsp 1.502.179/PE, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 01/09/2020, DJe 08/09/2020; e EREsp 1410698/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/11/2018, DJe 03/12/2018; 2. Incidência do óbice previsto na Súmula 168/STJ: "Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado". 3. Agravo interno não provido.”

 

Saliente-se que, concretamente, a indenização segue exigível, pois não é atingida pela remição dos valores devidos à União prevista no artigo 44 da Lei 13.123/2015 ("Ficam remitidas as indenizações civis relacionadas a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado das quais a União seja credora") . É que, em se tratando de tutela do direito difuso ao meio ambiente equilibrado, na forma do artigo 225 da Constituição Federal, a pretensão é titularizada pela coletividade, e não pela Administração, que figura, no que releva aos autos, como mera gestora do fundo destinatário da reparação econômica pretendida.

Novamente, recorrendo-se ao já fundamentado pela Turma sobre o ponto, nos autos 0005393-45.2013.4.03.6105 (grifos nossos):

 

“De mais a mais, tem-se que a União não é a credora da indenização pleiteada nestes autos - para fins de aplicação do artigo 44 da Lei 13.123/2015 ("Ficam remitidas as indenizações civis relacionadas a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado das quais a União seja credora.")A ação civil pública legitima processualmente o Ministério Público (dentre outros entes) a defender direito alheio - no caso, interesse difuso de titularidade da coletividade: em essência, pretensão de toda a sociedade quanto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos do artigo 225 da Constituição Federal. É esta coletividade que, em realidade, detém o direito tutelado. Portanto, a constatação de que a União seria a administradora do fundo a ser beneficiado pela indenização pleiteada nestes autos não a torna detentora do direito.

 

De igual sorte, em sede de embargos de declaração (grifos nossos):

 

"Avançando, as alegações no sentido de que a União seria titular da indenização a ser percebida nestes autos (de modo que prevaleceria, portanto, a remição constante do artigo 44 da Lei 13.123/2015) pretende unicamente revolver questão expressamente discutida na decisão colegiada embargada:

(...)

Note-se que a argumentação vertida pelos embargos declaratórios neste tocante padece de consistência. Como a própria embargante reconhece, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é titularizado pela coletividade, sem individualização. Logo, naturalmente tem-se que a indenização de eventual dano a tal posição jurídica ativa não é revertida a indivíduos, por impossibilidade material e prática. Assim, é concentrada em fundo próprio, administrado pelo Estado, o que não torna a União titular do direito ao qual se refere a reparação em discussão.

Neste passo, antes de confirmar o argumento lançado pela embargante, o artigo 33 da Medida Provisória 2.186-16/2001 o infirma.

Este o teor do dispositivo:

“Art. 33.  A parcela dos lucros e dos royalties devidos à União, resultantes da exploração econômica de processo ou produto desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, bem como o valor das multas e indenizações de que trata esta Medida Provisória serão destinados ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, criado pela Lei no 7.797, de 10 de julho de 1989, ao Fundo Naval, criado pelo Decreto no 20.923, de 8 de janeiro de 1932, e ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, criado pelo Decreto-Lei no 719, de 31 de julho de 1969, e restabelecido pela Lei no 8.172, de 18 de janeiro de 1991, na forma do regulamento. (Regulamento).  

Parágrafo único.  Os recursos de que trata este artigo serão utilizados exclusivamente na conservação da diversidade biológica, incluindo a recuperação, criação e manutenção de bancos depositários, no fomento à pesquisa científica, no desenvolvimento tecnológico associado ao patrimônio genético e na capacitação de recursos humanos associados ao desenvolvimento das atividades relacionadas ao uso e à conservação do patrimônio genético.”

O que o dispositivo considera eventualmente devido à União, diretamente, são royalties e lucros, e não “o valor das multas e indenizações”, o que se extrai da interpretação literal do texto. O dispositivo não preconiza “parcela dos lucros, royalties, multas e indenizações devidas à União”, mas “parcela dos lucros e royalties devidos à União, resultantes da exploração econômica de processo ou produto desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, bem como [construção aditiva que não comunica, sem nova afirmação, o complemento “devidos à União” à construção frasal seguinte] o valor de multas e indenizações”.

Até porque, conforme histórica jurisprudência das Cortes Superiores, o direito ao meio ambiente equilibrado é indisponível (tanto mais pela União), fundamento recentemente validado em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, para assentar que a reparação de dano ambiental é pretensão imprescritível:

(...)

A rigor, apenas o fato de que o artigo 42 da Lei 13.123/2015 faculta (não impõe), e exclusivamente à União (e não a outros órgãos legitimados à tutela de interesses difusos, como o Ministério Público Federal), a desistência de ações judiciais já é suficiente para se afastar o alegado nexo causal reiterado nestes embargos de declaração.”

 

Assim, em síntese, a conduta de acesso a patrimônio genético de biodiversidade nacional sem prévia autorização da União, sob a égide da Medida Provisória 2.186-16/2001, caracteriza dano ambiental, subsistindo o respectivo dever de indenização, em favor da coletividade, conclusões ratificadas pelas disposições da própria Lei 13.123/2015 (que expressamente sinaliza manter a compreensão de que tal conduta deve continuar sendo valorada como ilícita, inclusive impondo dever de regularização perante a Administração).

Contudo, não há como arbitrar o valor da reparação no montante pretendido pela parte autora (20% do faturamento bruto anual, tendo como base o exercício fiscal de 2012, recorte temporal eleito em função da contemporaneidade às investigações preliminares conduzidas).

Esta Turma, na ação civil pública 0005393-45.2013.4.03.6105, manteve a condenação definida na sentença, de 1% da receita líquida de 2012 da ré – totalizando, em valores históricos, R$ 1.279.000,00. A condenação pretendida nestes autos equivale a mais que o dobro daquela pleiteada no feito referido (em que se pretendia arbitramento em 10% do faturamento líquido no ano fiscal de 2012), pois o parquet entende a conduta praticada nestes autos mais grave, já que não houve qualquer impulso de regularização dos acessos desautorizados pela ré, tal circunstância.

De fato, a jurisprudência tem destacado a função da obrigação judicial de indenizar dano moral coletivo (a exemplo: REsp 1.737.412, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe de 8/2/2019). Contudo, há notícia nos autos de que a ré já foi autuada pelo IBAMA em função dos acessos irregulares discutidos nestes autos, inclusive com valores majorados justamente pela falta de tentativa de regularização prévia (ID 89987022, f. 07/08). Assim, não há como se incorporar este fundamento punitivo à condenação em danos morais em análise, sob pena de bis in idem. Esta diferenciação entre obrigação restaurativa (a rigor, redistributiva) e punitiva foi, inclusive, destacada nos autos 0005393-45.2013.4.03.6105 para afastar alegação de sanção dúplice, manejada pela ré:

 

"De outra parte, registre-se que, como já didaticamente explicado pelo aresto embargado, a multa administrativa aplicada não se confunde com a indenização do dano ocorrido, de modo que a eventual suspensão ou mesmo remição da primeira (que sequer é objeto desta lide), é desinfluente quanto ao cabimento da segunda:

"De outro lado, a multa administrativa não se confunde com a indenização. A primeira tem caráter repressivo, enquanto punição; a segunda objetiva a reparação de um dano, possuindo viés restaurativo. Logo, não há bis in idem a ser considerado na incidência de ambas. A mesma conclusão, de toda a forma, já se extrairia da independência da esfera administrativa face à civil, pontuada expressamente no artigo 30, § 3º, da medida provisória:

(...)"

 

Abstraída, para a questão em enfrentamento, a diferenciação estabelecida pelo autor (inexistência de tentativa de regularização anterior por parte da apelada) e suprimida a correspondente valoração punitiva pretendida, as condutas discutidas nestes autos pouco ou nada diferem daquelas aferidas por esta Turma nos autos da ação civil pública pretérita referenciada. Assim, em paridade com o decidido anteriormente, afigura-se razoável e proporcional, diante das características do caso concreto e precedente específico da Turma, fixar condenação em danos morais em idêntico valor ao definido na ação 0005393-45.2013.4.03.6105, ou seja, 1% da receita líquida da apelada no ano fiscal de 2012, devidamente corrigido.

Desde logo, registre-se expressamente a fundamentação da Turma sobre a razoabilidade do quantum estabelecido (grifos nossos):

 

"Por sua vez, a fixação da indenização em 1% do valor da receita líquida da apelante no ano fiscal de 2012 (R$ 1.279.000,00, em valores históricos) não se afigura desmedida. É irrelevante a comparação desta quantia com o lucro obtido da prospecção irregular de espécies nativas: o dano causado não deve necessariamente guardar apenas correspondência com o proveito obtido com a conduta ilícita. A aferição, diversamente, deve ser pautada, à égide da equidade, no impacto causado à proteção ao meio ambiente e na capacidade econômica do agente, não se avistando exagero na sentença quanto ao ponto. Vislumbra-se, ainda, que o Juízo a quo ponderou sobre o que entendeu como contribuição dos entes estatais para a conduta danosa, arbitrando indenização em um décimo do requerido na inicial, em valores que, até porque calculados em percentual (mínimo) da receita líquida de um ano fiscal, não sobreoneram a apelante."

 

Na apreciação dos embargos de declaração subsequentes (grifos nossos):

 

"A referência a “lucro” e não a “faturamento” (grandeza utilizada pelo apelo para tratar do assunto, no sentido de que a indenização fixada pela sentença, em 1% da receita líquida da empresa no ano de 2012, corresponde à integralidade do faturamento da ora embargante relativo a produtos derivados de acesso ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira no período) não deriva de erro. A fundamentação é no sentido de que mesmo se, dentro do faturamento, não se depure lucro algum (podendo inclusive ser constatado prejuízo), trata-se de questão que não possui relevo apriorístico a, por si, ser capaz de afastar o cabimento de qualquer pretensão indenizatória contrária. Como se queira, substituindo "lucro" por "faturamento" no excerto acima, o sentido do texto remanesce rigorosamente incólume e aplicável à espécie.

Repise-se, a indenização não foi fixada pela sentença com base no proveito econômico supostamente obtido, tanto menos exclusivamente a partir de tal circunstância. Vale lembrar que o pedido originário do parquet nestes autos foi o de que a obrigação indenizatória fosse fixada em 10% da receita líquida da embargante (ID. 107524714, f. 23), o que, muito prudentemente, foi rechaçado pelo Juízo de origem, valorando circunstâncias fáticas concretas do caso (ID. 107525399, f. 238/239):

(...)”

 

Ante o exposto, é devida a condenação da ré em danos morais, quantificados em 1% da receita líquida que auferiu no ano fiscal de 2012, valores a serem destinados ao Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios - FNRB (artigo 32, VII, da Lei 13.123/2015), bem como à obrigação de não fazer, impondo à ré que se abstenha de produzir ou comercializar qualquer produto derivado de acesso não regularizado (seja mediante cadastro, autorização, notificação, assinatura de termo de compromisso ou qualquer método aplicável, conforme o caso, segundo a legislação atualmente em vigor) à informação genética das espécies tucumã (Astrocatyum vulgare) castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa) e babaçu (Orbignya oleífera).

Indevida condenação em honorários advocatícios, em se tratando de ação civil pública (artigo 18 da Lei 7.347/1985).

Ante o exposto, acompanho o relator quanto à liminar concedida e à obrigação de não fazer determinada, porém divirjo para fixar indenização por dano moral, assim reformando a sentença para dar parcial provimento, em maior extensão, à apelação do Ministério Público Federal e à remessa oficial, tida por submetida.

É como voto.


E M E N T A

 

DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. PATRIMÔNIO GENÉTICO BRASILEIRO: TUCUMÃ, CASTANHA DO BRASIL E BABAÇU. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 13.123/2015. APLICAÇÃO IMEDIATA, COM OBSERVÂNCIA DAS CONDUTAS PRATICADAS SOB A ÉGIDE DA LEGISLAÇÃO ANTERIOR. CONDENAÇÃO EM OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER: ABSTENÇÃO DE ACESSO AO PATRIMÔNIO SEM AUTORIZAÇÃO, CADASTRO OU NOTIFICAÇÃO DA AUTORIDADE COMPETENTE. DANO MORAL COLETIVO NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE LESÃO EFETIVA A VALORES FUNDAMENTAIS. JURISPRUDÊNCIA DO STJ EM CASO ANÁLOGO. LIMINAR CONCEDIDA. APELO PARCIALMENTE PROVIDO.

01. Inicialmente, cumpre mencionar que a preliminar de perda de objeto restou superada pela maioria dos componentes integrantes desta Terceira Turma Julgadora. Preliminar de carência da ação afastada, nos termos do voto divergente.

02. No mérito, o pleito ministerial merece parcial provimento, à luz da novel legislação de regência e da atual jurisprudência do STJ, colhida em caso semelhante (REsp nº 1962771/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 16/12/2022, Dje 20/12/2022), em observância aos princípios da segurança jurídica e da uniformidade das decisões.

03. Em síntese, a controvérsia vertida nestes autos centra-se em se decidir se houve, ou não, ilegalidade na prática da conduta, perpetrada pela empresa CRODA, de acesso a componente do patrimônio genético brasileiro (babaçu, castanha do Brasil e tucumã) antes de obtida a autorização prévia do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), à luz da Lei nº 13.123/2015 e da atual jurisprudência da Corte Superior.

04. Para o STJ, não é possível se descartar, de pronto, qualquer das três figuras previstas na legislação em vigor, qual seja, a Lei nº 13.123/2015. Ao contrário, o julgado há de compreender todas as hipóteses antes abrangidas pela autorização, para que, a partir do novo diploma legal, a ré fique obrigada ao cadastro, autorização prévia ou à notificação para a prática das condutas previstas.

05. Isto posto, de rigor a condenação da empresa ré CRODA DO BRASIL LTDA ao cumprimento de obrigação de não fazer, consistente em se abster de praticar qualquer das condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16, todos da Lei nº 13.123/2015, sem que realize o cadastro, obtenha a autorização ou formule a notificação, conforme o caso.

06. Presentes os requisitos configuradores da tutela inibitória, ante a irregularidade decorrente do descumprimento do comando normativo e da manifesta continuidade na prática da conduta ilícita. Liminar concedida, em segunda instância, para determinar que a ré, ora apelada, se abstenha de promover qualquer acesso a componente do patrimônio genético brasileiro (referente ao tucumã, à castanha do Brasil e ao babaçu), em desconformidade com o atual regramento legal (Lei nº 13.123/2015), relativamente às condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16, deste diploma legal.

07. Noutro giro, não se pode concluir que o descumprimento das normas insertas no art. 2º e nos arts. 10º e 11, todos da MP nº 2.186-16/2001, ao tempo dos fatos, por si só, coloque em risco ou ameace a diversidade do patrimônio genético brasileiro. Portanto, não há que se falar em dano moral coletivo, na espécie, notadamente, ante a ausência de demonstração do abalo extrapatrimonial, que se reveste da necessária demonstração da lesão a valores fundamentais da sociedade, de forma injusta e intolerável.

08. Liminar deferida. Apelo parcialmente provido.

 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Turma, por maioria, afastou a extinção sem resolução do mérito, com o retorno dos autos ao Relator para prosseguimento como de direito, nos termos do voto do Des. Fed. CARLOS MUTA. Prosseguindo, por unanimidade, concedeu a liminar, para determinar que a empresa ré se abstenha de promover qualquer acesso a componente do patrimônio genético brasileiro (tucumã, castanha do Brasil e babaçu), em desconformidade com a Lei nº 13.123/2015, relativamente às condutas previstas nos arts. 12, 13 e 16 deste diploma legal, e, por maioria, deu parcial provimento à apelação do Ministério Público Federal e à remessa oficial, tida por submetida, nos termos do voto do Des. Fed. CARLOS MUTA, vencidos o Relator e a Des. Fed. MONICA NOBRE, que o faziam em extensão diversa. Lavrará o acórdão o Relator, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.