Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5006935-61.2022.4.03.6181

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

RECORRENTE: GABRIEL MARCELINO PINTO

Advogado do(a) RECORRENTE: DIOGO PONTES MACIEL - PR89490-A

RECORRIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 
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 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5006935-61.2022.4.03.6181

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

RECORRENTE: GABRIEL MARCELINO PINTO

Advogado do(a) RECORRENTE: DIOGO PONTES MACIEL - PR89490-A

RECORRIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

A JUÍZA FEDERAL CONVOCADA MONICA BONAVINA:

Trata-se os autos de Habeas Corpus Preventivo, com pedido de liminar, impetrado pelo advogado Diogo Pontes Maciel em favor de GABRIEL MARCELINO PINTO em face do Delegado Superintendente Regional da Polícia Federal em São Paulo, do Delegado Geral da Polícia Civil do Estado de São Paulo e do Comandante da Polícia Militar do Estado de São Paulo, objetivando a expedição de salvo-conduto para que as autoridades policiais acima citadas se abstenham de atentar contra a liberdade de locomoção do ora paciente, de apreender as sementes de Cannabis Sativa que pretende importar, de impedir o cultivo de até 21 mudas da referida planta em estágio de floração, mensalmente, cuja finalidade seria extrair a substância cannabidiol, visando o tratamento das doenças que o acometeriam.

O  r. Juízo da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo (Dr. Fernando Toledo Carneiro) proferiu sentença, aos 15.09.2022,  indeferindo o pedido liminar e, de plano, julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, por falta de interesse processual,  com fundamento no art. 485, inciso VI, e art. 486, §1º, ambos, do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente à seara criminal nos termos do artigo 3º do Código de Processo Penal (ID266488524 – p.  1/6).

Inconformado, o paciente, ora recorrente, interpôs o presente Recurso em Sentido Estrito buscando a concessão da ordem de Habeas Corpus visando a expedição de salvo-conduto para autorizar a importação e plantio das sementes da planta Cannabis Sativa na quantidade  já mencionada na inicial para uso exclusivamente terapêutico (ID266488525 - p. 01/9).

Contrarrazões apresentadas pelo Ministério Público Federal (ID266489183 - p. 1/11).

Em juízo de retratação, a decisão restou mantida (ID266489188).

A d. Procuradoria Regional da República manifestou-se pelo provimento do recurso (ID267113693 - p. 1/7).

É o relatório.

Dispensada a revisão.

 

 

 

 

 

 

 


O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI

Peço vênia à e. Relatora para dela divergir quanto à necessidade de concessão de salvo-conduto ao recorrente.

O presente recurso em sentido estrito trata da possibilidade de pessoa portadora de doença crônica obter autorização para importar sementes, transportar e cultivar a planta Cannabis com vistas à extração do óleo para fins terapêuticos. 

 O juízo de primeiro grau, por entender que a pretensão do paciente deve ser dirimida na esfera cível, julgou extinto o habeas corpus, sem resolução do mérito, por falta de interesse processual, com fundamento no art. 485, inciso VI, e art. 486, §1º, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente à seara criminal nos termos do artigo 3º do Código de Processo Penal.

Do Cabimento do Habeas Corpus 

Pretende o recorrente a concessão de salvo-conduto para que possa importar sementes de maconha, a fim de cultivar a planta e dela extrair o seu óleo, sem que seja autuado por tal conduta, vedada pelos artigos 2º, caput, e 33, da Lei nº 11.343/2006. 

Dessa forma, não há que se falar em inadequação da via eleita, como entendeu a e. Relatora, porquanto é o habeas corpus o remédio constitucional para a obtenção do salvo conduto para que o paciente possa importar e cultivar as sementes de Cannabis Sativa sem que seja preso e/ou investigado pelo poder público por crimes da Lei 11.343/06. 

Outrossim, a questão a ser decidida prescinde de dilação probatória posto que o que está em discussão é a possibilidade da importação de sementes de cannabis para produção de medicamento extraído da sua planta, a despeito do quanto preconizado nos arts. 2º, caput, e 33, da Lei nº 11.343/2006. Para comprovar suas alegações, o recorrente juntou aos autos prova pré-constituída consubstanciada em relatórios médicos, prescrição do medicamento alternativo, autorização da ANVISA para importação, dentre outros documentos. 

 Mérito 

No caso dos autos, verifica-se que GABRIEL MARCELINO PINTO, atualmente com 39 anos de idade, encontra-se em tratamento em razão de dores crônicas na região chamada de “saco escrotal”, acarretando ataques de ansiedade, depressão, dentre outros efeitos colaterais, após cirurgia realizada em razão do aparecimento de hérnia inguinal.

Consoante o relatório do profissional médico que o acompanha (ID 266488528), “Foi prescrito o uso de analgésico e sedativos para dor, contudo, com baixa resposta no controle da dor e também surgimento outros efeitos colaterais no paciente. Paciente refere que o quadro de dor crônica de forma reflexa causa insônia, ataques de ansiedade, depressão, dentre outros efeitos colaterais. Relata que durante grande parte de sua vida fez uso de diversas medicações analgésicas, sem eficácia e piora progressiva dos sintomas. Paciente refere que iniciou uso Cannabis na forma de óleo, na tentativa de alívio dos sintomas, obtendo melhora global de forma imediata, conseguindo, até mesmo, dormir tranquilamente, sem intercorrências. Relata que o uso do óleo de Cannabis está auxiliando inclusive na realização das tarefas básicas do cotidiano, algo antes jamais proporcionado pelos medicamentos já utilizados pelo paciente. Menciona que ao longo desse período de tratamento não teve intercorrências relacionadas ao uso do óleo de Cannabis. Atualmente relata melhora diária e progressiva dos sintomas de dor, depressão e ansiedade”.

Nesse contexto, o médico Renan André Abdalla de Souza relata a tentativa, infrutífera, com outros medicamentos alopáticos que, além de não surtirem o efeito desejado, desencadearam uma série de efeitos colaterais. Assim, foi prescrito o medicamento “CBD Usa Hemp 6.000 mg Full Spectrum” (ID258924638).

Com o tratamento alternativo, o médico atesta que houve “melhora global de forma imediata, conseguindo, até mesmo, dormir tranquilamente, sem intercorrências” (ID 266488528).

Verifico que o recorrente recebeu autorização da ANVISA nº 036687.0965897/2021 para a importação de medicamento produzido com tais substâncias, válida até 16/08/2023 (ID 266488527). No entanto, em razão do alto custo do tratamento, o requerente alega não ter condições financeiras para a importação do medicamento Hemp CBD. Assim, pretende a concessão de salvo-conduto para que possa importar as sementes da cannabis sativa e cultivar a planta, dela extraindo o óleo, para fins medicinais, sem que lhe seja imputada qualquer das condutas descritas na Lei 11.343/06. 

Os documentos juntados aos autos e citados nessa decisão, de fato, comprovam a doença que acomete o recorrente, bem como a necessidade do uso do fármaco extraído a partir da cannabis para o seu tratamento, a falta de resposta ao tratamento alopático e a melhora do seu quadro com o uso da substância. Consta, ainda, dos autos notificação extrajudicial ao Secretário Municipal de Saúde de São Paulo requerendo o fornecimento da medicação à base de cannabis ao ora recorrente, datada de 23/08/2021 (ID 266488521).

Observo, contudo, que não há qualquer indicação do número de sementes necessárias para o plantio adequado da quantidade de plantas necessárias ao tratamento do recorrente. 

Contudo, a meu ver, a falta de indicação da quantidade de sementes necessárias para o tratamento não deve constituir óbice à concessão do salvo-conduto. Por outro lado, a ausência do laudo técnico não pode ensejar a autorização de importação de quantidade ilimitada de sementes. 

Ressalto que não há qualquer elemento indicativo de que o uso da Cannabis será para fins recreativos ou qualquer atividade ilícita. Sendo assim, fixo como quantidade máxima a ser importada 120 de sementes subespécie Cannabis sativa, por ano, consoante precedentes desta Corte (5000964-82.2020.4.03.6111, 5ª TURMA - Rel. Des. Paulo Fontes; 5000227-79.2020.4.03.6111, 5ª TURMA - Rel. Des. Maurício Kato, 5001157-97.2020.4.03.6111, 11ª TURMA – de minha relatoria). 

Ante o exposto, a pretensão do recorrente não comporta enquadramento em quaisquer dos elementos do conceito analítico de crime, sendo, de rigor, a concessão do salvo-conduto, a fim de que as autoridades coatoras se abstenham de adotar quaisquer medidas tendentes a cercear sua liberdade, em razão de atos de importação de sementes de cannabis, em quantidade limitada ao quanto necessário para a produção do medicamento prescrito, do plantio e cultivo de plantas Cannabis sativa e extração do seu princípio ativo, para uso próprio, com fins exclusivamente medicinais. 

Já decidiu esta Corte: 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CONCESSÃO DE SALVOCONDUTO PARA UTILIZAÇÃO DE CANNABIS MEDICINAL. RECURSO PROVIDO. 1. O objetivo da presente impetração é a concessão de salvo-conduto ao paciente, diagnosticado com pericardite, para que possa adquirir e plantar cannabis para fins medicinais. 2. Verifica-se que o paciente é portador de pericardite recorrente, cardiopatia grave que causa diversos efeitos colaterais em decorrência do uso de altas doses de corticoide, como desconfortos, dores, insônia e ansiedade. O recorrente iniciou o uso do óleo de canabidiol, apresentando melhora na qualidade de vida. 3. Comprovação do estado de saúde do paciente. 4. Inexistência de indicativos de que o emprego da Cannabis será para fins recreativos ou para quaisquer outras atividades indevidas. 5. Recurso provido. (TRF 3ª Região, RESE 5004906-14.2019.4.03.6126, Rel. Des. Federal Paulo Fontes, DJe 19/05/20). 

PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REEXAME NECESSÁRIO. ÓLEO DE CANNABIS SATIVA. PRODUÇÃO CASEIRA E ESPECÍFICA PARA TRATAMENTO TERAPÊUTICO/MEDICINAL INDIVIDUAL. REEXAME NECESSÁRIO NÃO PROVIDO. 1. A RDC n. 156/2017, da ANVISA, autoriza a produção de medicamentos contendo a substância ativa Cannabis Sativa Linneu (maconha), assim como a importação de medicamentos que detenham seu princípio ativo. 2. O uso pessoal e restrito do medicamento a ser produzido e submetido a análises laboratoriais específicas para balizar seus parâmetros nos casos de doença grave não apresenta qualquer lesividade social e permite a incidência do estado de necessidade exculpante para eximi-la de responder penalmente pela prática dos delitos previstos pela Lei n. 11.343/06. 3. Reexame necessário não provido.(TRF3, HABEAS CORPUS HC 5002723-18.2019.4.03.6111, Desembargador Federal MAURICIO YUKIKAZU KATO, 5ª Turma, 14/04/2020) 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. REMESSA NECESSÁRIA CRIMINAL. HABEAS CORPUS. SEMENTES E PLANTAS DE CANNABIS SATIVA. POSSE E UTILIZAÇÃO. DESPROVIMENTO. MANUTENÇÃO DA CONCESSÃO DA ORDEM. 1. Salvo-conduto concedido pelo Juízo a quo a fim de que as autoridades policiais se abstenham de investigar, repreender ou atentar contra a liberdade de locomoção do paciente e de seu cuidador, bem como deixando de apreender e destruir as sementes e insumos destinados à produção do óleo cânhamo para o uso próprio, limitando-se ao máximo de 20 (vinte) sementes por mês. 2. Considerado o entendimento jurisprudencial no sentido da expedição de salvo conduto para importação de sementes de Cannabis sativa para extração de óleo de canabidiol àqueles que necessitam da substância para tratamento de saúde, situação que restou comprovada pelo paciente, há que ser mantida a concessão da ordem. 3. Remessa necessária desprovida. (TRF 3ª Região, Remessa Necessária Criminal 5001582-13.2019.4.03.6127, Rel. Desembargador Federal André Custódio Nekatschalow, DJe 14/04/2020). 

 

Destaco, por fim, que o entendimento que já vinha sendo adotado por esta E. Décima Primeira Turma encontra-se em consonância com o mais recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça que, em sessão do dia 14/06/2022, concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa (maconha) com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário (RHC 147.169 e REsp 1.972.092). Confira-se a ementa de um dos julgados: 

 

“RECURSO ESPECIAL. CULTIVO DOMÉSTICO DA PLANTA CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. HABEAS CORPUS PREVENTIVO. RISCO PERMANENTE DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. SALVO-CONDUTO. POSSIBILIDADE. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. DESNECESSIDADE. ANVISA. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA. ATIPICIDADE PENAL DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.  1. O art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 apresenta-se como norma penal em branco, porque define o crime de tráfico a partir da prática de dezoito condutas relacionadas a drogas – importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer –, sem, no entanto, trazer a definição do elemento do tipo "drogas".  2. A definição do que sejam "drogas", capazes de caracterizar os delitos previstos na Lei n. 11.343/2006, advém da Portaria n. 344/1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. A Cannabis sativa integra a "Lista E" da referida portaria, que, em última análise, a descreve como planta que pode originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas. 3. Uma vez que é possível, ao menos em tese, que os pacientes (ora recorridos) tenham suas condutas enquadradas no art. 33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006, punível com pena privativa de liberdade, é indiscutível o cabimento de habeas corpus para os fins por eles almejados: concessão de salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis sativa, da qual se pode extrair a substância necessária para a produção artesanal dos medicamentos prescritos para fins de tratamento de saúde. 4. Também há o risco, pelo menos hipotético, de que as autoridades policiais tentem qualificar a pretendida importação de sementes de Cannabis no tipo penal de contrabando (art. 334-A do CP), circunstância que reforça a possibilidade de que os recorridos se socorram do habeas corpus para o fim pretendido, notadamente porque receberam intimação da Polícia Federal para serem ouvidos em autos de inquérito policial. Ações pelo rito ordinário e outros instrumentos de natureza cível podem até tratar dos desdobramentos administrativos da questão trazida a debate, mas isso não exclui o cabimento do habeas corpus para impedir ou cessar eventual constrangimento à liberdade dos interessados. 5. Efetivamente, é adequada a via eleita pelos recorridos – habeas corpus preventivo – haja vista que há risco, ainda que mediato, à liberdade de locomoção deles, tanto que o Juiz de primeiro grau determinou a apuração dos fatos narrados na inicial do habeas corpus pela Polícia Federal, o que acabou sendo expressamente revogado pelo Tribunal a quo, ao conceder a ordem do habeas corpus lá impetrado. 6. A análise da questão trazida a debate pela defesa não demanda dilação probatória, consistente na realização de perícia médica a fim de averiguar se os pacientes realmente necessitam de tratamento médico com canabidiol. A necessidade de dilação probatória – circunstância, de fato, vedada na via mandamental – foi afastada no caso concreto, tendo em vista que os recorridos apresentaram provas pré-constituídas de suas alegações, provas essas consideradas suficientes para a concessão do writ pelo Tribunal de origem, dentre as quais a de que os pacientes estavam autorizados anteriormente pela Anvisa a importar, com objetivo terapêutico, medicamento com base em extrato de canabidiol, para tratamento de enfermidades também comprovadas por laudos médicos, devidamente acostados aos autos. 7. Se para pleitear aos entes públicos o fornecimento e o custeio de medicamento por meio de ação cível, o pedido pode ser amparado em laudo do médico particular que assiste a parte (STJ, EDcl no REsp n. 1.657.156/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, 1ª S., DJe 21/9/2018), não há razão para se fazer exigência mais rigorosa na situação dos autos, em que a pretensão da defesa não implica nenhum gasto financeiro ao erário. 8. Há, na hipótese, vasta documentação médica atestando a necessidade de o tratamento médico dos pacientes ser feito com medicamentos à base de canabidiol, inclusive com relato de expressivas melhoras na condição de saúde deles e esclarecimento de que diversas vias tradicionais de tratamento foram tentadas, mas sem sucesso, circunstância que reforça ser desnecessária a realização de dilação probatória com perícia médica oficial. 9. Não há falar que a defesa pretende, mediante o habeas corpus, tolher o poder de polícia das autoridades administrativas. Primeiro, porque a própria Anvisa, por meio de seu diretor, afirmou que a regulação e a autorização do cultivo doméstico de plantas, quaisquer que sejam elas, não fazem parte do seu escopo de atuação. Segundo, porque não se objetiva nesta demanda obstar a atuação das autoridades administrativas, tampouco substituí-las em seu mister, mas, apenas, evitar que os pacientes/recorridos sejam alvo de atos de investigação criminal pelos órgãos de persecução penal. 10. Embora a legislação brasileira possibilite, há mais de 40 anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos (art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006; art. 2º, § 2º, da Lei n. 6.368/1976), fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo – quiçá por razões morais ou políticas – com a situação de uma número incalculável de pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação. 11. Em 2019, a Diretoria Colegiada da Anvisa, ao julgar o Processo n. 25351.421833/2017-76 – que teve como objetivo dispor sobre os requisitos técnicos e administrativos para o cultivo da planta Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos –, decidiu pelo arquivamento da proposta de resolução. Ficou claro, portanto, que o posicionamento da Diretoria Colegiada da Anvisa, à época, era o de que a autorização para cultivo de plantas que possam originar substâncias sujeitas a controle especial, entre elas a Cannabis sativa, é da competência do Ministério da Saúde, e que, para atuação da Anvisa, deveria haver uma delegação ou qualquer outra tratativa oficial, de modo a atribuir a essa agência reguladora a responsabilidade e a autonomia para definir, sozinha, o modelo regulatório, a autorização, a fiscalização e o controle dessa atividade de cultivo. 12. O Ministério da Saúde, por sua vez, a quem a Anvisa afirmou competir regular o cultivo doméstico de Cannabis, indicou que não pretende fazê-lo, conforme se extrai de Nota Técnica n. 1/2019-DATDOF/CGGM/GM/MS, datada de 19/8/2019, em resposta à Consulta Dirigida sobre as propostas de regulamentação do uso medicinal e científico da planta Cannabis, assinada pelo ministro responsável pela pasta. O quadro, portanto, é de intencional omissão do Poder Público em regulamentar a matéria. 13. Havendo prescrição médica para o uso do canabidiol, a ausência de segurança, de qualidade, de eficácia ou de equivalência técnica e terapêutica da substância preparada de forma artesanal – como se objeta em desfavor da pretendida concessão do writ – torna-se um risco assumido pelos próprios pacientes, dentro da autonomia de cada um deles para escolher o tratamento de saúde que lhes corresponda às expectativas de uma vida melhor e mais digna, o que afasta, portanto, a abordagem criminal da questão. São nesse sentido, aliás, as disposições contidas no art. 17 da RDC n. 335/2020 e no art. 18 da RDC n. 660/2022 da Anvisa, ambas responsáveis por definir "os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde". 14. Em 2017, com o advento da Resolução n. 156 da Diretoria Colegiada da Anvisa, a Cannabis Sativa foi incluída na Lista de Denominações Comuns Brasileiras – DCB como planta medicinal, marco importante em território nacional quanto ao reconhecimento da sua comprovada capacidade terapêutica. Em dezembro de 2020, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes – UNODC acolheu recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde sobre a reclassificação da Cannabis e decidiu pela retirada da planta e da sua resina do Anexo IV da Convenção Única de 1961 sobre Drogas Narcóticas, que lista as drogas consideradas como as mais perigosas, e a reinseriu na Lista 1, que inclui outros entorpecentes como a morfina – para a qual a OMS também recomenda controle –, mas admite que a substância tem menor potencial danoso. 15. Tanto o tipo penal do art. 28 quanto o do art. 33 se preocupam com a tutela da saúde, mas enquanto o § 1º do art. 28 trata do plantio para consumo pessoal ("Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica"), o § 1º, II, do art. 33 trata do plantio destinado à produção de drogas para entrega a terceiros. 16. A conduta para a qual os recorridos pleitearam e obtiveram salvo-conduto no Tribunal de origem não é penalmente típica, seja por não estar imbuída do necessário dolo de preparar substâncias entorpecentes com as plantas cultivadas (nem para consumo pessoal nem para entrega a terceiros), seja por não vulnerar, sequer de forma potencial, o bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras da Lei de Drogas (saúde pública). 17. O que pretendem os recorridos com o plantio da Cannabis não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento – potencialmente causador de dependência – próprio ou alheio, mas, tão somente, a extração das substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas na planta. Não há, portanto, vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento pessoal ou de terceiros. 18. Outrossim, a hipótese dos autos também não se reveste de tipicidade penal – aqui em sua concepção material –, porque a conduta dos recorridos, ao invés de atentar contra o bem jurídico saúde pública, na verdade intenciona promovê-lo – e tem aptidão concreta para isso – a partir da extração de produtos medicamentosos; isto é, a ação praticada não representa nenhuma lesividade, nem mesmo potencial (perigo abstrato), ao bem jurídico pretensamente tutelado pelas normas penais contidas na Lei n. 11.343/2006. 19. Se o Direito Penal é um mal necessário – não apenas instrumento de prevenção dos delitos, mas também técnica de minimização da violência e do arbítrio na resposta ao delito –, sua intervenção somente se legitima "nos casos em que seja imprescindível para cumprir os fins de proteção social mediante a prevenção de fatos lesivos" (SILVA SANCHEZ, Jesus Maria. Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch, 1992, p. 247, tradução livre). 20. O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada pela própria Constituição Federal à generalidade das pessoas (Art. 196. "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação"). 21. No caso, uma vez que o uso pleiteado do óleo da Cannabis Sativa, mediante fabrico artesanal, se dará para fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo subscrito por profissional médico especializado, chancelado pela Anvisa na oportunidade em que autorizou os pacientes a importarem o medicamento feito à base de canabidiol – a revelar que reconheceu a necessidade que têm no seu uso –, não há dúvidas de que deve ser obstada a iminente repressão criminal sobre a conduta praticada pelos pacientes/recorridos. 22. Se o Direito Penal, por meio da "guerra às drogas", não mostrou, ao longo de décadas, quase nenhuma aptidão para resolver o problema relacionado ao uso abusivo de substâncias entorpecentes – e, com isso, cumprir a finalidade de tutela da saúde pública a que em tese se presta –, pelo menos que ele não atue como empecilho para a prática de condutas efetivamente capazes de promover esse bem jurídico fundamental à garantia de uma vida humana digna, como pretendem os recorridos com o plantio da Cannabis sativa para fins exclusivamente medicinais. 23. Recurso especial do Ministério Público não provido, confirmando-se o salvo-conduto já expedido em favor dos ora recorridos.” (REsp 1.972.092, Rel. Min. Rogerio Schietti, 14/06/2022) 

 

Ante o exposto, divirjo da e. Relatora para dar provimento ao recurso em sentido estrito e conceder a GABRIEL MARCELINO PINTO, qualificado nos autos, SALVO-CONDUTO a fim de que as autoridades impetradas abstenham-se de proceder ao cerceamento da liberdade do recorrente pela prática das condutas de aquisição e importação de sementes, cultivo, uso, porte em trânsito - no trajeto entre a residência do paciente e os órgãos e entidades de pesquisa - e em residência, e de produção artesanal da planta Cannabis sativa L., em quantidade suficiente para produção de seu próprio óleo - para fins exclusivamente terapêuticos -, bem como para que se abstenham de apreenderem plantas, substâncias extraídas da planta, insumos e afins existentes em sua residência, para utilização na produção de medicamento, a par do resguardo da possibilidade de transporte/remessa de plantas e flores em quantidade adequada para teste de quantificação e análise de canabinoides, por meio de guia de remessa lacrada confeccionada pelo próprio recorrente aos órgãos e entidades de pesquisa, ainda que em outra unidade da federação, para que seja possível a parametrização laboratorial, quanto aos fins medicinais a que se destina, ficando autorizada e limitada, consoante entendimento desta Turma, a importação de 120 (cento e vinte) sementes a cada 12 (doze) meses para o cultivo da planta e produção de seu próprio óleo, bem como do uso do referido óleo, reitere-se, com fins exclusivamente medicinais. 

Por fim, consigno a possibilidade de fiscalização, pelas autoridades competentes. 

É o voto.


 
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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5006935-61.2022.4.03.6181

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

RECORRENTE: GABRIEL MARCELINO PINTO

Advogado do(a) RECORRENTE: DIOGO PONTES MACIEL - PR89490-A

RECORRIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

A JUÍZA FEDERAL CONVOCADA MONICA BONAVINA:

O presente Recurso em Sentido Estrito foi interposto contra decisão, do r. Juízo da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo/SP, que indeferiu o pedido liminar e, de plano, julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, por falta de interesse processual,  com fundamento no art. 485, inciso VI, e art. 486, §1º, ambos, do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente à seara criminal nos termos do artigo 3º do Código de Processo Penal.

 Nas razões apresentadas, o recorrente alega a necessidade de expedição de salvo-conduto para autorizar a importação e plantio das sementes da planta Cannabis Sativa na quantidade  mencionada na inicial para uso exclusivamente terapêutico.

Foram juntados documentos pessoais, relatório e prescrições médicas do ora recorrente.

DAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS QUE TRATAM DO TEMA AFETO ÀS DROGAS E DA POSSIBILIDADE CONFERIDA DE APLICAÇÃO DA CANNABIS PARA FINS MEDICINAIS E TERAPÊUTICOS

O tema afeto às substâncias entorpecentes e psicotrópicas foi tratado em diversas convenções internacionais, cabendo ser mencionada a Convenção ONU Única sobre Entorpecentes, assinada em Nova York em 30 de março de 1961; a Convenção ONU sobre Substâncias Psicotrópicas, assinada em Viena em 21 de fevereiro de 1971 e a Convenção ONU contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena em 20 de dezembro de 1988, todas devidamente internalizadas no ordenamento jurídico vigente na República Federativa do Brasil.

Com efeito, debruçando-se sobre o conteúdo da Convenção ONU Única sobre Entorpecentes de 1961, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 5, 07 de abril de 1964, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 54.216, de 27 de agosto de 1964, nota-se que, a despeito de haver o reconhecimento pela comunidade internacional de que a toxicomania é um grave mal para o indivíduo e um perigo social e econômico para a humanidade, há uma preocupação com a saúde tanto física como moral do ser humano, motivo pelo qual se reconhece que o uso médico de substâncias entorpecentes mostra-se indispensável para o alívio da dor e do sofrimento, prevendo que medidas adequadas devem ser levadas a efeito para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tal desiderato medicamentoso ou terapêutico.

Por sua vez, a Convenção ONU sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 90, de 05 de dezembro de 1972, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 79.388, de 14 de março de 1977, ao mesmo tempo em que esboça a devida preocupação do seio internacional com a saúde e o bem-estar da humanidade decorrente dos problemas sociais e de saúde pública que resultam da utilização de substâncias psicotrópicas (determinando a adoção de medidas de prevenção e de combate ao abuso de tais substâncias), não se descura de pontuar que o emprego de tais expedientes guarda também profundos reflexos na medicina e na ciência, destacando que os contornos médico-científicos permitem a disponibilização de tais substâncias entorpecentes como forma de ajudar no combate ou na dessensibilização de enfermidades.

Já a Convenção ONU contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 162, de 14 de junho de 1991, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 154, de 26 de junho de 1991, destaca a preocupação da comunidade internacional com a crescente expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela exploração de crianças em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condição de instrumentos utilizados na produção, na distribuição e no comércio ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, donde é possível concluir, ante o reiterado emprego do termo "ilícito", a coexistência de substâncias entorpecentes empregadas para fins lícitos (como, por exemplo, o medicinal e o terapêutico), fazendo coro com os anteriores diplomas normativos mencionados.

Desta feita, cotejando o plexo de normas internacionais que tratam do tema drogas, bem como os termos em que tal assunto é versado, depreende-se que o cenário internacional (a repercutir na ordem jurídica interna da República Federativa do Brasil), baseado na necessidade de se resguardar a devida dignidade ao portador de doença, assente na aplicação de substâncias entorpecentes e psicotrópicas para fins de debelação do mal que acomete o cidadão, situação esta que não pode ser encaixada nas regras que visam coibir, internacional ou nacionalmente, a traficância empregada para fins recreativos.

DO DISCIPLINAMENTO INTRODUZIDO PELA LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006, E DA POSSIBILIDADE CONFERIDA DE APLICAÇÃO DA CANNABIS PARA FINS MEDICINAIS E TERAPÊUTICOS

Infere-se da ementa da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, sua preocupação em reprimir a produção não autorizada de substâncias empregáveis no tráfico ilícito de drogas (Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências), cabendo destacar a possibilidade conferida à União Federal (art. 2º, parágrafo único) em autorizar o plantio, a cultura e a colheita de substâncias entorpecentes exclusivamente para fins medicinais ou científicos (Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas).

Dentro desse contexto, a despeito de indicada legislação tratar como figura típica a traficância nas diversas modalidades insculpidas a partir de seu artigo 33, bem como de prever o porte de drogas para fins pessoais como infração penal (artigo 28 - cuja análise de constitucionalidade encontra-se afeta ao C. Supremo Tribunal Federal por meio do reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional no RE 635659 RG, tema 506, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, desde 08 de dezembro de 2011: Constitucional. 2. Direito Penal. 3. Constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006. 3. Violação do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. 6. Repercussão geral reconhecida), vislumbra-se a existência de permissivo trazido pelo legislador no sentido de que se mostraria possível o emprego de drogas quando necessária à proteção da saúde do ser humano.

Aliás, tal possibilidade encontra seu embasamento em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil insculpidos no art. 1º da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana (A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - A dignidade da pessoa humana (...)), cabendo destacar, outrossim, que o Poder Constituinte Originário erigiu à condição de direito social a saúde (conforme se verifica do art. 6º do Texto Magno: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição).

Dentro do contexto ora exposto, que se forma até mesmo por força das Convenções Internacionais declinadas anteriormente, nota-se a possibilidade de que plantas psicotrópicas tenham seu emprego lícito quando utilizadas para fins medicinais e para objetivos terapêuticos, desde que devidamente autorizado.

DO CASO CONCRETO

Do quanto acima foi exposto, tem-se a possibilidade legal de uso de cannabis sativa para fins medicinais.

Resta-nos avaliar se nos moldes propostos pelo paciente.

Como parâmetro para decidir, por analogia, parto dos elementos mínimos configurados pelo Superior Tribunal de Justiça nos EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 1.657.156 – R, que fixou a tese:

 

A tese fixada no julgamento repetitivo passa a ser: A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência. Modula-se os efeitos do presente repetitivo de forma que os requisitos acima elencados sejam exigidos de forma cumulativa somente quanto aos processos distribuídos a partir da data da publicação do acórdão embargado, ou seja, 4/5/2018.

 

No caso dos autos, no que toca à comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, ora recorrente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, tem-se os seguintes documentos (ID266488518 - p. 1.; 266488520 - p. 1/2 e 266488522 - p. 1/3):

  1. Prescrição de CBD Usa Hemp 6000mg full spectrum, em 30/07/2021;
  2. Atestado médico firmado por Renan André Abdalla de Souza, CRM/PR 42.232, emitido em 19/11/2021, indicando a continuidade do tratamento com o óleo derivado da planta cannabis, uma vez que o recorrente estaria apresentando evolução positiva no tratamento, sem apresentar rejeição ou efeitos adversos;
  3. Notificação extrajudicial ao Secretário Municipal de Saúde de São Paulo requerendo o fornecimento da medicação à base de cannabis ao ora recorrente, datada de 23/08/2021.

Considero o requisito atendido.

Quanto à incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito há alegação da parte; todavia, sem provas que o demonstrem.

No que toca à existência de registro do medicamento na ANVISA, o recorrente apresentou autorização de importação do produto derivado de cannabis, expedido pela ANVISA, com validade até 16.08.2023 (ID266488519 - p. 1/2).

No entanto, não comprovou ter apresentado pedido perante a ANVISA para obter autorização de cultivo da planta para extração do medicamento.

Observo que a RDC ANVISA n. 327/19 prescreve: “Art. 7° A Anvisa concederá Autorização Sanitária para a fabricação e a importação de produtos de Cannabis.”

Destaco que o paciente obteve junto à ANVISA autorização de importação até agosto de 2023 do produto CBD Tincture - USAHemp, nada consta, entretanto, quanto a autorização para produção de medicamentos.

Tenho conhecimento das decisões favoráveis ao pleiteado na inicial, por parte deste E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, bem como do Colendo Superior Tribunal de Justiça.

Entretanto, não havendo tais precedentes efeito vinculante deixo de adotá-los, pelos motivos que passo a declinar.

Primeiro, tenho que o ambiente processual adequado para que os pedidos como os da inicial sejam veiculados seja uma ação de conhecimento no bojo da jurisdição cível, dado que a dilação probatória é essencial. Os pressupostos fáticos para a concessão da tutela jurisdicional demandam dilação probatória e o rito sumário do habeas corpus ou do mandado de segurança não o permite.

Sob essa ótica têm sido julgados inúmeros pedidos de fornecimento de óleo de canabidiol, no âmbito da jurisdição cível, como inclusive já decidido em primeiro grau por esta Magistrada (autos n. PJEC 0052464-90.2020.4.03.6301), em processo judicial que ainda tramita em primeiro grau de jurisdição.

Segundo, o magistrado julgador de primeiro grau pode dispensar a realização de perícia médica, segundo a tese fixada pelo STJ, mas não se trata de dever de dispensar. Assim, o juiz de primeiro grau pode determinar a realização de perícia médica ou ao menos solicitar parecer técnico na plataforma e-NatJus, do Conselho Nacional de Justiça, que inclusive tem um estudo sobre medicamento derivado de cannabis sativa em tratamento de TEA (transtorno do espectro autista), intitulado “Derivados Da Cannabis E Seus Análogos Sintéticos - Indicação: adultos e crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA)”, disponível no site do CNJ: www.cnj.jus.br/e-natjus.

Terceiro, o magistrado pode determinar a realização de prova oral, para os esclarecimentos que entender necessários.

Por exemplo, no caso dos autos, consta que o recorrente tentou diversos tratamentos convencionais, sem sucesso; todavia, não constato prova documental referente à prescrição de outros remédios, de que tais medicamentos foram adquiridos, a título oneroso ou gratuito, e de que não foram eficazes. 

Quarto, o pedido de fornecimento pode ser direcionado ao Poder Público, que tem sido condenado em diversos casos a fornecer medicamentos derivados de maconha, como se colhe de inúmeros precedentes.

Quinto, especificamente, no Estado de São Paulo foi sancionada a Lei n. 17.618, de 31 de janeiro de 2023, que determina:

 

Artigo 1º - Fica instituída a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outras substâncias canabinóides, incluindo o tetrahidrocanabidiol, em caráter de excepcionalidade pelo Poder Executivo nas unidades de saúde pública estadual e privada conveniada ao Sistema Único de Saúde - SUS.

Artigo 2º - A política instituída tem como objetivo adequar a temática do uso da cannabis medicinal aos padrões de saúde pública estadual mediante a realização de estudos e referências internacionais, visando ao fornecimento e acesso aos medicamentos de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outras substâncias canabinóides, incluindo o tetrahidrocanabidiol aos pacientes portadores de doenças que comprovadamente o medicamento diminua as consequências clínicas e sociais dessas patologias.

Parágrafo único - São objetivos específicos desta política:

1. diagnosticar e tratar pacientes cujo tratamento com a cannabis medicinal possua eficácia ou produção científica que incentive o tratamento;

2. promover políticas públicas de debate e fornecimento de informação a respeito do uso da medicina canábica por meio de palestras, fóruns, simpósios, cursos de capacitação de gestores e demais atos necessários para o conhecimento geral da população acerca da cannabis medicinal, realizando parcerias público-privadas com entidades, de preferência sem fins lucrativos.

 (...)

Artigo 5º - A Política instituída será responsabilidade da Secretaria da Saúde, que definirá as competências em cada nível de atuação.

Parágrafo único - A Secretaria da Saúde, deverá no prazo de 30 (trinta) dias a contar a partir da publicação desta lei, criar comissão de trabalho para implantar a as diretrizes desta política no Estado, com participação de técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa à cannabis e de associações representativas de pacientes.

(...)

Artigo 10 - Esta lei entra em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua publicação.

 

Assim, o pedido poderá ser dirigido ao Poder Público do Estado de São Paulo nos termos da novel legislação.

Sexto, tenho que a saúde pública como um todo e a individual serão mais adequadamente tuteladas com o fornecimento pelo Poder Público do medicamento, que se alega necessário, preparado em laboratório, sob controles de qualidade, registrado junto à ANVISA, do que caso a produção seja efetivada pela própria pessoa interessada.

Destaque-se que a Resolução Anvisa contém inúmeras balizas a respeito de tais medicamentos, que a meu ver não são atendidas facilmente em produção caseira.

A impetrante menciona a Lei 11.343/2006, que institui o Sisnad e seu artigo 2º:

Art. 2o Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas. (grifei)

 

Ora, tenho que a lei permita o uso medicinal, mas não confere o direito subjetivo público à pessoa física de produzir seu próprio óleo em domicílio. São situações bem diversas.

Sétimo, é necessário estabelecer prazo para a concessão da tutela jurisdicional, o quantitativo de sementes a serem importadas anualmente, definir se o cultivo será indoor ou outdoor, o destino do lixo produzido com a atividade etc. São questões a serem objeto de dilação probatória, inviabilizada no rito estrito do habeas corpus.

Oitavo, tenho que todo e qualquer medicamento possa ter interação com outros, de modo que a meu ver a permissão deva ter parâmetros factuais para se deliberar a respeito de revisão e acompanhamento periódicos sobre a continuidade do tratamento.

Nono, penso que havendo uma sentença judicial, ainda que proferida por juízo cível, não estaria tipificada conduta delituosa, pois ausente o elemento típico “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Quanto à necessidade de salvo-conduto poderia ser requerida em habeas corpus uma vez obtida tutela jurisdicional em ação civil e realizada na sede processual adequada toda a prova necessária.

De lege ferenda, tenho que seja prudente a criação de um cadastro nacional de pessoas autorizadas a importar sementes de cannabis sativa para fins medicinais.

Encaminhando-me para o fim das minhas considerações, observo em reforço a toda a argumentação supra que a Resolução ANVISA n. 660/2022 não prevê a importação de sementes de cannabis sativa. Portanto, para que uma tutela jurisdicional delibere sobre um “vazio regulamentar” faz-se necessária muita cautela, pois a atividade jurisdicional estaria a substituir a administrativa, que é permeada de atos e procedimentos que garantam a maior segurança possível no procedimento.

Uma consideração final: em caso de falecimento da parte que possui a autorização judicial para a importação tenho que deva haver uma comunicação para que a importação seja encerrada.

Concluo, pois, que a via estreita do habeas corpus não permite a necessária dilação probatória para o deferimento de tutela jurisdicional tão complexa.

Por todo o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


E M E N T A

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CONCESSÃO DE SALVO CONDUTO PARA IMPORTAÇÃO E UTILIZAÇÃO DE CANNABIS PARA FIM EXCLUSIVAMENTE MEDICINAL. RECURSO PROVIDO. 

Possibilidade de pessoa portadora de doença crônica obter autorização para importar sementes, transportar e cultivar a planta Cannabis com vistas à extração do óleo para fins terapêuticos. 

Comprovadas as doenças que acometem o recorrente, bem como a necessidade do uso do fármaco extraído a partir da cannabis para o seu tratamento, a ausência de respostas ao tratamento alopático convencional e a melhora do seu quadro com o uso da substância. Inexistência de qualquer elemento indicativo de que o uso da Cannabis será para fins recreativos ou qualquer atividade ilícita. 

Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Concessão de salvo-conduto para garantir o cultivo da planta Cannabis sativa (maconha) com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrer qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário (RHC 147.169 e REsp 1.972.092). 

Recurso provido. 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Décima Primeira Turma, por maioria, decidiu, dar provimento ao recurso em sentido estrito e conceder a GABRIEL MARCELINO PINTO, qualificado nos autos, SALVO-CONDUTO a fim de que as autoridades impetradas abstenham-se de proceder ao cerceamento da liberdade do recorrente pela prática das condutas de aquisição e importação de sementes, cultivo, uso, porte em trânsito - no trajeto entre a residência do paciente e os órgãos e entidades de pesquisa - e em residência, e de produção artesanal da planta Cannabis sativa L., em quantidade suficiente para produção de seu próprio óleo - para fins exclusivamente terapêuticos -, bem como para que se abstenham de apreenderem plantas, substâncias extraídas da planta, insumos e afins existentes em sua residência, para utilização na produção de medicamento, a par do resguardo da possibilidade de transporte/remessa de plantas e flores em quantidade adequada para teste de quantificação e análise de canabinoides, por meio de guia de remessa lacrada confeccionada pelo próprio recorrente aos órgãos e entidades de pesquisa, ainda que em outra unidade da federação, para que seja possível a parametrização laboratorial, quanto aos fins medicinais a que se destina, ficando autorizada e limitada, consoante entendimento desta Turma, a importação de 120 (cento e vinte) sementes a cada 12 (doze) meses para o cultivo da planta e produção de seu próprio óleo, bem como do uso do referido óleo, reitere-se, com fins exclusivamente medicinais, nos termos do voto do Des. Fed. José Lunardelli, acompanhado pelo Des. Fed. Nino Toldo, vencida a Relatora que NEGAVA PROVIMENTO ao recurso., nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.