APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5014721-84.2017.4.03.6100
RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE
APELANTE: UNIÃO FEDERAL
APELADO: A. A.
REPRESENTANTE: MERCIDIEU ATHENIS
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5014721-84.2017.4.03.6100 RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE APELANTE: UNIÃO FEDERAL APELADO: A. A. OUTROS PARTICIPANTES: (cfg) R E L A T Ó R I O Apelação interposta pela UNIÃO contra a sentença (ID 28460089) que julgou procedente a ação e declarou nulo o auto de infração e notificação relativo à multa discutida nos autos, lavrado sob o número 0183_03477_2017, em desfavor do estrangeiro A. A., menor de idade, por suposta permanência irregular em território nacional, uma vez ultrapassado o prazo legal para o seu registro. Aduz a apelante (ID 31672901): a) em preliminar, postula a anulação da sentença, ao invocar contradição do julgado, na medida em que, ao reconhecer a identidade da matéria de mérito da ação individual com a ação de natureza coletiva, incumbia ao juízo a quo colher a manifestação do autor quanto ao seu interesse no prosseguimento do feito individual e, como não o fez, era mandatória a determinação de sobrestamento da ação até o julgamento da demanda coletiva; b) ainda em preliminar, afirma ser vedada a concessão de medida liminar ou tutela de urgência que esgote todo o objeto da ação quando for ré a fazenda pública; c) quanto ao mérito, sustenta que os detentores de visto de ingresso para residência no país, bem como os de natureza humanitária, a exemplo dos haitianos, têm o dever de se apresentar perante a autoridade imigratória em até 30 (trinta) dias do ingresso no Brasil, conforme determina o art. 30, da Lei nº 6.815/80, e, uma vez que não o façam, sujeitam-se às penas da lei; d) a administração pública encontra-se vinculada ao princípio da legalidade e, ao se apresentar estrangeiro em situação irregular à autoridade imigratória, outra conduta dela não se pode esperar senão a de impor a penalidade, na medida em que se cuida de ato estritamente vinculado. Contrarrazões recursais foram apresentadas pela Defensoria Pública da União (ID 28460191), nas quais buscou afastar as preliminares arguidas pela UNIÃO e, no mérito, postulou a manutenção da sentença proferida, com o desprovimento do apelo. A apelação foi recebida nos efeitos devolutivo e suspensivo (ID 29723917). Juntado aos autos parecer da Procuradoria Regional da República da Terceira Região (ID 271059387), em que postula o desprovimento do apelo da UNIÃO. É o relatório.
REPRESENTANTE: MERCIDIEU ATHENIS
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5014721-84.2017.4.03.6100 RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE APELANTE: UNIÃO FEDERAL APELADO: A. A. OUTROS PARTICIPANTES: (cfg) V O T O I) Dos fatos Consta dos autos que ao menor de idade A. A., filho de Mercidieu Athenis e de Evena Jeanlus, haitianos em situação regular no país (ID 28459897, páginas 7/9), foi imposta multa administrativa (ID 28459895), com fulcro no artigo 125, inciso III, c/c artigo 30, ambos da Lei nº 6.815/80, no valor de R$ 827,75, por não se registrar no prazo legal. Pede a anulação da multa, pois considera que quando foi imposta, os pais já se encontravam em situação regularizada no país e, portanto, como filho e dependente, já possuía o direito subjetivo à permanência, o que torna a sanção ilegal. II) Da preliminar de nulidade da sentença Afasto a alegação da UNIÃO de nulidade da sentença em razão da existência de ação coletiva anterior (autos nº 0001612-88.2017.403.6100) que discute tema semelhante ao tratado nesta ação individual, conforme mencionada pelo próprio juízo a quo. O Superior Tribunal de Justiça já pacificou a questão, ao decidir que inexiste litispendência entre ação individual e ação coletiva, assim como não é oponível a coisa julgada formada na demanda coletiva para quem litiga individualmente e não desistiu da sua ação. Ademais, não há qualquer notícia de que o autor desta ação tenha intervindo na ação coletiva. Nesse sentido, transcrevo a ementa de recentes julgados da corte superior, com destaque para o tema enfrentado: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTIVA. NÃO OCORRÊNCIA. RESP 1.336.026/PE, JULGADO SOB O RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS. MODULAÇÃO DOS EFEITOS. 1. A jurisprudência do STJ entende que não existe litispendência entre ação individual e ação coletiva, e que é inaproveitável e não oponível a coisa julgada formada na ação coletiva para quem litiga individualmente e não desistiu de sua ação. (...) (STJ. AgInt no REsp 2021890 / PE. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL 2022/0265037-6. RELATOR Ministro HERMAN BENJAMIN (1132). ÓRGÃO JULGADOR T2 - SEGUNDA TURMA. DATA DO JULGAMENTO 28/11/2022. DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 13/12/2022) [grifo nosso] PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. AÇÃO COLETIVA E AÇÃO INDIVIDUAL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. INEXISTÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. NÃO OCORRÊNCIA. MATÉRIA JULGADA NO RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA 1.336.026/PE. TEMA 880. EFEITOS DO JULGADO MODULADOS PELA PRIMEIRA SEÇÃO EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO ANTES DE 17/03/2016. TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL. 30/06/2017. (...) 2. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de inexistir litispendência entre ação individual e ação coletiva, assim como no sentido de ser inaproveitável e inoponível a coisa julgada formada na ação coletiva para quem litiga individualmente e não desistiu de sua ação. 3. No caso, não tendo os autores requerido a suspensão da ação individual nem intervindo na ação coletiva como litisconsortes, não há óbice para a propositura da ação individual, pois não se configura a litispendência, e a coisa julgada formada na ação coletiva não os alcança. (...) (STJ. AgInt no REsp 1996276 / PB. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL 2022/0102818-6. RELATOR Ministro BENEDITO GONÇALVES (1142). ÓRGÃO JULGADOR T1 - PRIMEIRA TURMA. DATA DO JULGAMENTO 05/09/2022. DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 09/09/2022) [g. n.] Se não há litispendência entre as duas ações, não há fundamento para que se suspenda, de ofício, a ação individual, como postula a apelante, principalmente quando a própria Defensoria Pública da União, quando instada a se manifestar antes do julgamento dos embargos de declaração opostos pela UNIÃO contra a sentença, expressamente afirmou que não requereu a suspensão desta ação em razão da ação civil pública que ela própria ajuizara (ID 28460110). III) Da vedação da concessão da tutela cautelar que esgote o objeto da ação Invoca a UNIÃO, em preliminar, que o artigo 1.059 do CPC veda a concessão de medida liminar ou tutela de urgência que esgote todo o objeto da ação, quando a parte ré é a fazenda pública, motivo pelo qual pede a revogação da cautelar concedida neste feito. A questão, no entanto, está prejudicada em razão do enfrentamento do mérito recursal a seguir. IV) Do mérito A Constituição Federal, acerca dos direitos e garantias fundamentais, dispõe (grifos nossos): Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...) Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II - prevalência dos direitos humanos; (...) A Constituição consagra a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito, que constitui a República Federativa do Brasil. Daí decorre que o Estado tem também a finalidade de promover o bem-estar de todos, reduzir as desigualdades sociais, proteger a família, afastar qualquer situação de tratamento desumano e prestar assistência social aos necessitados. Em cumprimento aos comandos constitucionais, foi editada a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), que estabeleceu, entre seus princípios e garantias previstos no artigo 3º, o direito à acolhida humanitária (inciso VI) e à reunião familiar (inciso VIII) como forma de dar efetividade aos pilares que regem a política migratória brasileira. O artigo 30 do mesmo diploma legal prescreve que a residência poderá ser autorizada, quando tenha por finalidade, entre outras, a necessidade de reunião familiar: Art. 30. A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante, ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes hipóteses: I - a residência tenha como finalidade: (...) i) reunião familiar; (...) Já o subsequente artigo 37, ao tratar do visto ou autorização de residência para fins de reunião familiar, estabelece que será concedido entre outros ao filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, in verbis: Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante: (...) II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência; (...) O apelado é menor de idade, dependente de seus genitores, que se encontram em situação regular no Brasil, o que o coloca como beneficiário da autorização de residência para fins de reunião familiar. Ainda que não se tenha cumprido a formalidade do registro de estrangeiro dentro do prazo estabelecido na lei (hoje artigo 109, inciso III, da Lei nº 13.445/2017, que substitui os revogados artigos 125, inciso III, e 30, ambos da Lei nº 6.815/80, que serviram de fundamento para a imposição da multa na vigência da legislação anterior), não se pode deixar de anotar que o autor da ação tem direito a permanecer no país. Não é minimamente razoável impedir a regularização da situação migratória do filho de estrangeiros, principalmente quando este ainda é incapaz, sem que seja paga uma multa que se mostra excessiva diante da situação de hipossuficiência econômica da família. A não regularização da situação migratória impede a obtenção da documentação necessária para o exercício da cidadania. Nessa situação, a multa e a cobrança de taxas como condição para regularizar a permanência em território nacional, em valores que a família não tem condições de arcar sem afetar a própria subsistência, afronta o princípio da dignidade da pessoa humana. Dadas a circunstâncias do caso concreto, deve-se prestigiar a boa-fé do requerente, de forma a se afastar a sanção imposta, com o reconhecimento da nulidade do auto de infração lavrado. Esta corte regional já se pronunciou acerca do assunto e, ao ponderar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, decidiu pelo afastamento da multa administrativa imposta em situação análoga, in verbis: AÇÃO ANULATÓRIA. ATO ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PARA A PERMANÊNCIA. NULIDADE DA MULTA. 1. Os apelantes ingressaram em território brasileiro em 30/03/2013, na condição de turistas, com prazo inicial de estada até 28/06/2014. Em 29/07/2014, compareceram à Superintendência da Polícia Federal a fim de requisitar o pedido de permanência em território nacional com base em prole brasileira, nascida na cidade de São Paulo no dia 08/02/2014. Na ocasião, eles foram notificados e autuados, por estada irregular no país, descumprindo assim, o que prescreve o Art. 137 do Decreto 86.715/81. Em razão dos autos de infração e notificação 5104/2014 e 5204/2014, lhes foi aplicada multa de R$ 827,27, correspondente a cada auto de infração, somando um valor de R$ 1654,54 2. Ocorre que o pedido de permanência dos autores, por possuir prole brasileira, o qual tramitava no Ministério da Justiça foi deferido, de sorte que é nula a multa aplicada, uma vez que os requerentes já haviam preenchidos os requisitos para a permanência no país. 3. O Brasil é signatário do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia e Chile que estabelece a isenção de multas e outras sanções administrativas para aqueles que requerem sua regularização migratória, o que certamente se presta a estimular a condição de legalidade no País. 4. A imposição de multa, considerada a situação de hipossuficiência dos autores, certamente impede a regularização migratória. Deve ser prestigiada a boa-fé dos autores, possibilitando a regularização da sua situação sem a imposição de multa, em observância aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 5. Apelação da União a que se nega provimento. (TRF3. ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP 0023734-42.2010.4.03.6100. Relator(a) Desembargador Federal MARCELO MESQUITA SARAIVA. Órgão Julgador 4ª Turma. Data do Julgamento 15/07/2022. Data da Publicação/Fonte Intimação via sistema DATA: 29/07/2022) Correto, portanto, o posicionamento do juízo a quo ao declarar a nulidade do Auto de Infração e Notificação nº 0183_03477_2017 e, consequentemente, afastar a exigência da multa administrativa imposta. V) Dispositivo Ante o exposto, rejeito as preliminares invocadas pela UNIÃO e, no mérito, NEGO PROVIMENTO ao recurso de apelação interposto, de forma a manter integralmente a sentença proferida. É como voto.
REPRESENTANTE: MERCIDIEU ATHENIS
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. AÇÃO ANULATÓRIA. ATO ADMINISTRATIVO. FILHO MENOR DE IDADE DE ESTRANGEIROS REGULARES NO PAÍS. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PARA AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA. NULIDADE DA MULTA. PRELIMINARES REJEITADAS. RECURSO DESPROVIDO.
- Afastada a alegação de nulidade da sentença em razão da existência de ação coletiva anterior que discute tema semelhante ao tratado nesta ação individual. O Superior Tribunal de Justiça já pacificou a questão, ao decidir que inexiste litispendência entre ação individual e ação coletiva, assim como não é oponível a coisa julgada formada na demanda coletiva para quem litiga individualmente e não desistiu da sua ação. Ademais, não há qualquer notícia de que o autor desta ação tenha intervindo na ação coletiva.
- Invoca a UNIÃO que o artigo 1.059 do CPC veda a concessão de medida liminar ou tutela de urgência que esgote todo o objeto da ação, quando a parte ré é a fazenda pública, motivo pelo qual pede a revogação da cautelar concedida neste feito. A questão, no entanto, está prejudicada em razão do enfrentamento do mérito recursal.
- A Constituição Federal consagra a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito, que constitui a República Federativa do Brasil. Daí decorre que o Estado tem também a finalidade de promover o bem-estar de todos, reduzir as desigualdades sociais, proteger a família, afastar qualquer situação de tratamento desumano e prestar assistência social aos necessitados
- O apelado é menor de idade, dependente de seus genitores, que se encontram em situação regular no Brasil, o que o coloca como beneficiário da autorização de residência para fins de reunião familiar. Ainda que não se tenha cumprido a formalidade do registro de estrangeiro dentro do prazo estabelecido na lei (hoje artigo 109, inciso III, da Lei nº 13.445/2017, que substitui os revogados artigos 125, inciso III, e 30, ambos da Lei nº 6.815/80, que serviram de fundamento para a imposição da multa na vigência da legislação anterior), não se pode deixar de anotar que o autor da ação tem direito a permanecer no país. Não é minimamente razoável impedir a regularização da situação migratória do filho de estrangeiros, principalmente quando este ainda é incapaz, sem que seja paga uma multa que se mostra excessiva diante da situação de hipossuficiência econômica da família. A não regularização da situação migratória impede a obtenção da documentação necessária para o exercício da cidadania. Nessa situação, a multa e a cobrança de taxas como condição para regularizar a permanência em território nacional, em valores que a família não tem condições de arcar sem afetar a própria subsistência, afronta o princípio da dignidade da pessoa humana. Dadas a circunstâncias do caso concreto, deve-se prestigiar a boa-fé do requerente, de forma a se afastar a sanção imposta, com o reconhecimento da nulidade do auto de infração lavrado.
- Correto, portanto, o posicionamento do juízo a quo ao declarar a nulidade do auto de infração e notificação e, consequentemente, afastar a exigência da multa administrativa imposta.
- Rejeitadas as preliminares e, no mérito, apelo desprovido.