AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5030398-48.2022.4.03.0000
RELATOR: Gab. 08 - JUIZ CONVOCADO RENATO BECHO
AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL
AGRAVADO: B. F. R.
Advogado do(a) AGRAVADO: ADRIANO CESAR BRAZ CALDEIRA - SP161712-A
OUTROS PARTICIPANTES:
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5030398-48.2022.4.03.0000 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL AGRAVADO: B. F. R. Advogado do(a) AGRAVADO: ADRIANO CESAR BRAZ CALDEIRA - SP161712-A R E L A T Ó R I O Trata-se de agravo de instrumento à antecipação de tutela para fornecimento do fármaco Trikafta (elexacaftor/ivacaftor/tezacaftor), para tratamento de fibrose cística. Alegou, em suma, que: (1) a documentação juntada não é suficiente para demonstrar a imprescindibilidade do medicamento e a ineficácia da política pública; (2) o SUS possui protocolo de atendimento para a fibrose cística, oferecendo diversos medicamentos e a possibilidade de transplante pulmonar; (3) não se forneceu informações a respeito da capacidade pulmonar do autor, o que é essencial para se avaliar a indicação do medicamento, visto que os estudos foram realizados em pacientes com a doença estável, o que não parece ser o caso do autor; (4) não há evidências claras da superioridade do medicamento pleiteado sobre o tratamento público, sendo descabida seu fornecimento sem a realização de perícia judicial e comprovação da ineficácia da política pública; (5) o medicamento não acarreta cura da doença ou aumento expressivo da sobrevida, não havendo custo-efetividade em seu fornecimento; (6) a incorporação de novos medicamentos depende de avaliação criteriosa da CONITEC, que analisa, além das evidências científicas, a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, devendo ser respeitadas as decisões do órgão técnico; e (7) é necessária a realização de perícia médica por especialista da área. Houve contrarrazões. O parecer ministerial foi pelo desprovimento do agravo de instrumento. É o relatório.
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5030398-48.2022.4.03.0000 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL AGRAVADO: B. F. R. Advogado do(a) AGRAVADO: ADRIANO CESAR BRAZ CALDEIRA - SP161712-A V O T O Senhores Desembargadores, a legitimidade passiva para ações de prestação de saúde, firmada na jurisprudência a partir do princípio da solidariedade dos entes federados, foi reapreciada no julgamento no julgamento do Tema 793 (RE 855.178-ED), com tese jurídica assim aprovada: "Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro." Adotou-se, portanto, a solidariedade mitigada, em que se preserva, ao máximo, a opção do autor quanto ao ente a ser demandado, sem prejuízo, porém, da correção, pelo Juízo da causa, do polo passivo para integração de quem, nos termos da legislação, seja responsável pela prestação para que responda, diretamente, pela providência judicial demandada. A solidariedade, quanto ao dever geral de prestar assistência na área de saúde em regime único, descentralizado e hierarquizado, não inibe, pois, a integração à lide do ente federado que, especificamente, for responsável pelo objeto da prestação. A Suprema Corte, em reclamações destinadas a garantir a autoridade da decisão proferida no Tema 793 (RE 855.178-ED), assentou que, sem embargo da aplicação da tese da solidariedade, é obrigatória a integração à lide da União quando se identificar que lhe cabe responder, segundo regras de repartição de competência, pela prestação específica. Neste sentido: Rcl 50.481 AgR, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe 20/05/2022: “CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM RECLAMAÇÃO. INDEVIDA APLICAÇÃO DO TEMA 793 DA REPERCUSSÃO GERAL PELO JUÍZO DA ORIGEM. ÔNUS OBRIGACIONAL A SER SUPORTADO PELA UNIÃO. NECESSIDADE DE SUA INCLUSÃO NO POLO PASSIVO. AGRAVO INTERNO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. 1. O objeto do Agravo é a correta interpretação e aplicação da tese fixada no Tema 793 da Repercussão Geral, cujo teor é o seguinte: “os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”. 2. A solidariedade atribuída a todos os entes (art. 23, II, da CF) não pode significar possibilidade absoluta de atropelo, por ordens judiciais, da estrutura fixada essencialmente a partir da lógica hierarquizada e sistematizada das ações e serviços públicos de saúde (art. 198, caput e I, da CF), materializada pela divisão de atribuição feita pela Lei 8.080/1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde. 3. A interpretação do Tema 793-RG deve considerar a existência de solidariedade entre todos os entes em caso de competência comum, mas deve observar o direcionamento necessário da demanda judicial ao ente responsável pela prestação específica pretendida, permitindo-se que o cumprimento seja direto e, eventual ressarcimento, eficaz. Nesses casos, quando identifica-se a responsabilidade direta da União pelo fornecimento do medicamento ou pelo tratamento pretendido, nos termos da Lei 8.080/1990, sua inclusão no polo passivo da demanda é medida necessária, a ser providenciada pelo juiz da causa, evitando-se o descompasso entre a previsão orçamentária e a concretização da despesas na área da saúde. 4. Da mesma forma, quando se objetivar a “incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica”, as quais são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, nos termos do art. 19-Q da Lei 8.080/1990, a inclusão da União também se fará necessária. 5. No caso concreto, entendeu-se pela desnecessidade da inclusão da União no polo passivo, sob o argumento de tratar-se de obrigação solidária de todos os Entes Políticos. Entretanto, trata-se de pedido de fornecimento de medicamento para tratamento oncológico, não incluído nas políticas públicas do SUS, o que obriga a sua participação da demanda. 6. Agravo Interno a que se dá provimento.” Em outros julgamentos da 1ª Turma (Rcl 49.918 AgR-ED e Rcl 50.412 AgR-AgR, Rel. Min. CARMEN LÚCIA, DJe 27/04/2022 e DJe 17/05/2022) decidiu-se neste mesmo sentido, ou seja, determinando a inclusão da União na lide, com deslocamento dos feitos à Justiça Federal, ainda na fase de conhecimento, considerando que: “7. Nesse contexto, a adequada aplicação do Tema 793 da repercussão geral exige seja a União incluída no polo passivo das ações obrigacionais quando os medicamentos ou tratamentos de saúde pleiteados: a) não tiverem seu uso ou aplicação aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa; b) forem solicitados para o tratamento de enfermidades diversas daquelas para as quais inicialmente prescritos pelos fabricantes e pelos órgãos de saúde (uso off label); c) não forem padronizados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec e incluídos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename ou na Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde – Renases; d) embora padronizados, tiverem seu financiamento, aquisição e dispensação atribuídos à União, segundo critérios de descentralização e hierarquização do SUS previstos no ordenamento jurídico vigente”. Observa-se, assim, que a integração à lide de entes federados pode ocorrer em caráter eventualmente subsidiário da responsabilidade de uns em relação a outros, como ainda por força de prestações específicas que lhes sejam exigíveis, como no caso da logística dos serviços de saúde (atividades de armazenamento, distribuição e acompanhamento na aplicação do medicamento ou tratamento em rede hospitalar). Como ente incumbido da responsabilidade técnica e financeira do Sistema Único de Saúde - SUS, além de figurar como ente subsidiário da responsabilidade atribuída por lei aos Estados e Municípios em caso de descumprimento, a presença da União na formação do polo passivo da relação processual é válida e regular, não se cogitando, pois, de qualquer vício neste tocante. No mérito, referente à tutela provisória requerida, é firme a interpretação constitucional no sentido da prevalência da garantia de tutela à saúde do cidadão hipossuficiente sobre eventual custo financeiro imposto ao Poder Público, pois o Sistema Único de Saúde - SUS deve prover meios para fornecimento de medicamento e tratamento que sejam necessários, segundo prescrição médica, a pacientes sem condições financeiras de custeio pessoal ou familiar, sem o que se afasta o Estado da concepção de tutela social, reconhecida e declarada pela Constituição de 1988. O risco de eventual adoção de tratamentos experimentais sem comprovada eficácia de medicamentos, com dispêndio de elevados recursos públicos, favorecendo poucos em detrimento de outros tantos, é preocupação que, sem dúvida alguma, deve orientar as Cortes Superiores e, de resto, tem repercutido no estado atual da jurisprudência, de modo a conter exageros e evitar abusos. Neste sentido o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.657.156, julgado sob o regime de recursos repetitivos (Tema 106), firmou o entendimento de que constitui obrigação do Poder Público o fornecimento de medicamentos, ainda que não integrados em atos normativos do SUS, desde que presentes cumulativamente os seguintes requisitos: “(i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento.” Tal solução não destoa do entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento posterior de 11/03/2020, referente ao Tema 6, em repercussão geral, no RE 566.471, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, versando sobre o “Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”, em que se firmou, por maioria de votos, interpretação de que é possível compelir o Estado a fornecer medicamentos de alto custo não incorporados à lista do SUS, desde que provados os seguintes requisitos: imprescindibilidade no sentido de adequação e necessidade do medicamento, impossibilidade de substituição do fármaco por outro incorporado pelo SUS e incapacidade financeira do enfermo e de familiares. A partir do delineamento do recurso julgado, resta definir a redação da tese aprovada em repercussão geral, conforme constou da última certidão de julgamento lavrada em 28/08/2020: “Após o voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), que fixava a seguinte tese (tema 6 da repercussão geral): "O reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, depende da comprovação da imprescindibilidade – adequação e necessidade –, da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil"; do voto do Ministro Alexandre de Moraes, que fixava tese no seguinte sentido: “Na hipótese de pleito judicial de medicamentos não previstos em listas oficiais e/ou Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT’s), independentemente de seu alto custo, a tutela judicial será excepcional e exigirá previamente - inclusive da análise da tutela de urgência -, o cumprimento dos seguintes requisitos, para determinar o fornecimento ou ressarcimento pela União: (a) comprovação de hipossuficiência financeira do requerente para o custeio; (b) existência de laudo médico comprovando a necessidade do medicamento, elaborado pelo perito de confiança do magistrado e fundamentado na medicina baseada em evidências; (c) certificação, pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), tanto da inexistência de indeferimento da incorporação do medicamento pleiteado, quanto da inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; (d) atestado emitido pelo CONITEC, que afirme a eficácia, segurança e efetividade do medicamento para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde do requerente, no prazo máximo de 180 dias. Atendidas essas exigências, não será necessária a análise do binômio custo-efetividade, por não se tratar de incorporação genérica do medicamento"; e do voto do Ministro Roberto Barroso, que fixava a seguinte tese: “O Estado não pode ser obrigado por decisão judicial a fornecer medicamento não incorporado pelo SUS, independentemente de custo, salvo hipóteses excepcionais, em que preenchidos cinco requisitos: (i) a incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente; (ii) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; (iii) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; (iv) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; e (v) a propositura da demanda necessariamente em face da União, que é a entidade estatal competente para a incorporação de novos medicamentos ao sistema. Ademais, deve-se observar um parâmetro procedimental: a realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde tanto para aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, quanto, no caso de deferimento judicial do fármaco, para determinar que os órgãos competentes avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS”, pediu vista dos autos o Ministro Gilmar Mendes. Plenário, Sessão Virtual de 21.8.2020 a 28.8.2020.” Ainda assim, os requisitos essenciais - sem embargo de detalhamentos que possam ser redigidos no teor da tese aprovada - foram definidos no julgamento do RE 566.471. No caso, a incapacidade financeira do autor, beneficiário de assistência judiciária gratuita, para custeio do tratamento é incontroversa, em vista do valor elevado do medicamento, não tendo sido impugnada a concessão de justiça gratuita. O fármaco pleiteado possui registro na Anvisa, conforme apontado pela petição inicial, o que, em princípio, assegura a eficiência, adequação e segurança do medicamento no tratamento para o qual especificamente produzido e para o qual pode ser prescrito. Todavia, ainda assim, não é isenta de controvérsia e pode ser objeto de análise judicial, mediante de concurso de estudos, pareceres, informações e dados técnicos produzidos ou extraídos de prova documental ou perícia judicial no curso do processo, entre outros elementos de formação da convicção do julgador, sobretudo porque todo e qualquer medicamento apenas pode ser considerado apto, seguro e eficiente diante do exame e acompanhamento da condição pessoal e do histórico do paciente frente à patologia para a qual feita a prescrição no sentido de evitar óbito, garantir cura, reduzir consequência da doença, controlar a evolução e permitir estabilização do quadro clínico, ou simplesmente permitir melhoria em estado geral da condição do paciente. No intermeio, considerada a pretensão de tutela de fornecimento gratuito de medicamento de alto custo, existe a questão crucial e prática da capacidade do sistema público de saúde - cujo orçamento não é infinito e, portanto, pode gerar efeito sobre outras demandas de saúde igualmente importantes - de suportar o financiamento de todo e qualquer medicamento para todo e qualquer paciente em toda e qualquer situação, colocando em contraposição a microvisão da proteção do direito individual com a macrovisão sistêmica da tutela do direito à vida e saúde como garantia social. Não é possível, pois, encontrar solução fácil nem isenta de dúvida ou crítica, sob variados aspectos, não apenas técnicos no âmbito da ciência médica e jurídica, como na perspectiva humanitária, ética e moral, entre outras tantas relevantes, porém do Poder Judiciário é exigido, por mandamento constitucional, apreciar a demanda e solucionar a controvérsia, por maiores e mais insuperáveis que sejam, pessoalmente para o julgador, os dilemas envolvidos e a serem enfrentados, sempre atento ao fato de que, por conceito e natureza, toda a escolha implica a não escolha da outra opção e, portanto por maior que seja a eventual cientificidade médica ou jurídica que ampara a decisão judicial sempre existe o risco de algum dano ou prejuízo individual, coletivo ou social. Para minorar tais riscos, em casos como o presente, a jurisprudência tem acentuado como mecanismo essencial na formulação de juízo decisório a consulta ao assim denominado sistema e-NATJUS, que consiste em cadastro de pareceres, notas e informações técnicas destinado a fornecer maior eficiência na solução de demandas judiciais de assistência à saúde, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, com atuação do Fórum Nacional do Judiciário, que elabora estudos e propõe medidas concretas e normativas com o objetivo de aperfeiçoamento do procedimento, reforço à efetividade de processos judiciais e prevenção de novos conflitos, tratando-se de ferramenta e base de dados cuja criação e manutenção, no âmbito de cada Tribunal, são obrigatórias como apoio técnico de profissionais da saúde incumbidos de elaborar pareceres e estudos sobre a medicina baseada em evidências. A favor da pretensão deduzida para fornecimento do medicamento Trikafta (elexacaftor/ivacaftor/tezacaftor) existe relatório médico, elaborado por profissional, Dr. Joaquim Carlos Rodrigues, CRM 31.334, pneumologista pediátrico, segundo dados colhidos em acesso livre a sítios na internet, atestando o diagnóstico da doença e afirmando, em relação ao medicamento pleiteado, que “foi comprovado aumento na porcentagem prevista de volume expiratório forçado em um segundo, conhecido como ppFEV1, que é um marcador estabelecido da progressão da doença pulmonar da fibrose cística. Além disso foi comprovado efeito positivo no aumento de IMC (melhora nutricional), redução do número de exacerbações e consequentemente redução do número de hospitalizações”. Aduziu, ainda, que o autor “faz seguimento clínico regularmente, realiza os exames que são solicitados e executa o tratamento diário adequado”, mas apresenta diversas complicações” (ID 259277383). Verifica-se dos autos que o menor, com idade atual de nove anos, acostou exame genético de novembro de 2013, com diagnóstico de fibrose cística (ID 261937068) e exames de função pulmonar (ID 259279076), tomografia de tórax (ID 259279417), ultrassom de abdômen (ID 259279817) e exames de suor e pezinho (ID’s 259277393 e 259277399). Para apurar em contraditório judicial a condição do autor e esclarecer pontos essenciais ao deslinde da causa, foi deferida perícia judicial, com a designação do Dr. Paulo Cesar Pinto e agendamento para 13/06/2023. Todavia, a consulta ao repositório do sistema e-NATJUS revela que não existe consenso técnico suficiente a amparar o fornecimento de medicamento nas circunstâncias do caso concreto, mormente em sede de tutela antecipada com cognição sumária e provisória da lide. Dentre os pareceres do sistema e-NATJUS consta a Nota Técnica 115.369, informando que “Os ensaios clínicos que demonstram benefício do medicamento excluíram pacientes mais graves e com infecções crônicas relacionadas com pior prognóstico, uma vez que isso poderia afetar negativamente os resultados esperados com o medicamento. Infelizmente, muitos pacientes possuem esses fatores de pior prognóstico” e que “Nenhum medicamento, incluindo o Trikafta, é capaz de promover a cura da doença ou de modificar o seu curso clínico”. Apontou, ainda, não haver urgência no presente caso (ID 274428177, origem). No mesmo sentido são as Notas Técnicas 120.670, 118.948, 115.908 e 117.372. Sem adentrar mais detalhadamente no trato do espectro da eficiência terapêutica do medicamento, o que mais importa, em cognição recursal provisória, é avaliar se o tratamento deve ser iniciado imediatamente ou se deve prosseguir com base apenas em tutela provisória de urgência, anteriormente ao julgamento do mérito, fase processual em que outros e todos os elementos de convicção podem e devem ser aprofundadamente avaliados na origem e, em seguida, nesta instância recursal, observado, assim, o contraditório e o devido processo legal. Sob a perspectiva processual em referência, não se avista comprovado, diante do que consta dos autos, requisito de urgência para imposição ao Poder Público de obrigação de fornecer medicamento para início imediato ou continuidade em caráter precário do tratamento preconizado. Sem embargo, portanto, de que, em caso de situação superveniente, seja o fato levado a conhecimento do Juízo a quo para apreciação, o contexto fático-jurídico do caso concreto, nesta apreensão cognitiva prefacial, não autoriza, pelo que consta dos autos, a providência requerida. Ante o exposto, dou provimento ao agravo de instrumento. É como voto.
E M E N T A
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TUTELA PROVISÓRIA DA SAÚDE. TRATAMENTO MEDICAMENTOSO. PEDIDO DE FORNECIMENTO. "TRIKAFTA". INCAPACIDADE FINANCEIRA. REGISTRO NA ANVISA. ELEMENTOS DE ANÁLISE DO CASO CONCRETO. NECESSIDADE E URGÊNCIA NÃO CORROBORADAS POR CRITÉRIOS TÉCNICOS NO CASO CONCRETO. PROVIMENTO DO RECURSO.
1. A legitimidade passiva para ações de prestação de saúde, firmada na jurisprudência a partir do princípio da solidariedade dos entes federados, foi reapreciada no julgamento do Tema 793 (RE 855.178-ED), com tese jurídica assim aprovada: "Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro". Adotou-se, portanto, a solidariedade mitigada, em que se preserva, ao máximo, a opção do autor quanto ao ente a ser demandado, sem prejuízo, porém, da correção, pelo Juízo da causa, do polo passivo para integração de quem, nos termos da legislação, seja responsável pela prestação para que responda, diretamente, pela providência judicial demandada. A solidariedade, quanto ao dever geral de prestar assistência na área de saúde em regime único, descentralizado e hierarquizado, não inibe, pois, a integração à lide do ente federado que, especificamente, for responsável pelo objeto da prestação. A Suprema Corte, em reclamações destinadas a garantir a autoridade da decisão proferida no Tema 793 (RE 855.178-ED), assentou que, sem embargo da aplicação da tese da solidariedade, é obrigatória a integração à lide da União quando se identificar que lhe cabe responder, segundo regras de repartição de competência, pela prestação específica. A integração à lide de entes federados pode ocorrer em caráter eventualmente subsidiário da responsabilidade de uns em relação a outros, como ainda por força de prestações específicas que lhes sejam exigíveis, como no caso da logística dos serviços de saúde (atividades de armazenamento, distribuição e acompanhamento na aplicação do medicamento ou tratamento em rede hospitalar). Como ente incumbido da responsabilidade técnica e financeira do Sistema Único de Saúde - SUS, além de figurar como ente subsidiário da responsabilidade atribuída por lei aos Estados e Municípios em caso de descumprimento, a presença da União na formação do polo passivo da relação processual é válida e regular, não se cogitando, pois, de qualquer vício neste tocante.
2. No mérito recursal, referente à tutela provisória requerida, é firme a interpretação constitucional no sentido da prevalência da garantia de tutela à saúde do cidadão hipossuficiente sobre eventual custo financeiro imposto ao Poder Público, pois o Sistema Único de Saúde - SUS deve prover meios para fornecimento de medicamento e tratamento que sejam necessários, segundo prescrição médica, a pacientes sem condições financeiras de custeio pessoal ou familiar, sem o que se afasta o Estado da concepção de tutela social, reconhecida e declarada pela Constituição de 1988.
3. O risco de eventual adoção de tratamentos experimentais sem comprovada eficácia de medicamentos, com dispêndio de elevados recursos públicos, favorecendo poucos em detrimento de outros tantos, é preocupação que, sem dúvida alguma, deve orientar as Cortes Superiores e, de resto, tem repercutido no estado atual da jurisprudência, de modo a conter exageros e evitar abusos. Neste sentido o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.657.156, julgado sob o regime de recursos repetitivos (Tema 106), firmou o entendimento de que constitui obrigação do Poder Público o fornecimento de medicamentos, ainda que não integrados em atos normativos do SUS, desde que presentes cumulativamente os seguintes requisitos: “(i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento”.
4. Tal solução não destoa do entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento posterior de 11/03/2020, referente ao Tema 6, em repercussão geral, no RE 566.471, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, versando sobre o “Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”, em que se firmou, por maioria de votos, interpretação de que é possível compelir o Estado a fornecer medicamentos de alto custo não incorporados à lista do SUS, desde que provados os seguintes requisitos: imprescindibilidade no sentido de adequação e necessidade do medicamento, impossibilidade de substituição do fármaco por outro incorporado pelo SUS e incapacidade financeira do enfermo e de familiares. A partir do delineamento do recurso julgado, resta definir a redação da tese aprovada em repercussão geral, conforme constou da última certidão de julgamento lavrada em 28/08/2020. Ainda assim, os requisitos essenciais - sem embargo de detalhamentos que possam ser redigidos no teor da tese aprovada - foram definidos no julgamento do RE 566.471.
5. No caso, a incapacidade financeira do autor para custeio do tratamento é incontroversa, em vista do valor elevado do medicamento.
6. O fármaco pleiteado possui registro na Anvisa, conforme apontado pela petição inicial, o que, em princípio, assegura a eficiência, adequação e segurança do medicamento no tratamento para o qual especificamente produzido e para o qual pode ser prescrito. Todavia, ainda assim, não é isenta de controvérsia e pode ser objeto de análise judicial, mediante de concurso de estudos, pareceres, informações e dados técnicos produzidos ou extraídos de prova documental ou perícia judicial no curso do processo, entre outros elementos de formação da convicção do julgador, sobretudo porque todo e qualquer medicamento apenas pode ser considerado apto, seguro e eficiente diante do exame e acompanhamento da condição pessoal e do histórico do paciente frente à patologia para a qual feita a prescrição no sentido de evitar óbito, garantir cura, reduzir consequência da doença, controlar a evolução e permitir estabilização do quadro clínico, ou simplesmente permitir melhoria em estado geral da condição do paciente.
7. No intermeio, diante da pretensão de tutela de fornecimento gratuito de medicamento de alto custo, existe a questão crucial e prática da capacidade do sistema público de saúde - cujo orçamento não é infinito e, portanto, pode gerar efeito sobre outras demandas de saúde igualmente importantes - de suportar o financiamento de todo e qualquer medicamento para todo e qualquer paciente em toda e qualquer situação, colocando em contraposição a microvisão da proteção do direito individual com a macrovisão sistêmica da tutela do direito à vida e saúde como garantia social. Não é possível, pois, encontrar solução fácil nem isenta de dúvida ou crítica, sob variados aspectos, não apenas técnicos no âmbito da ciência médica e jurídica, como na perspectiva humanitária, ética e moral, entre outras tantas relevantes, porém do Poder Judiciário é exigido, por mandamento constitucional, apreciar a demanda e solucionar a controvérsia, por maiores e mais insuperáveis que sejam, pessoalmente para o julgador, os dilemas envolvidos e a serem enfrentados, sempre atento ao fato de que, por conceito e natureza, toda a escolha implica a não escolha da outra opção e, portanto por maior que seja a eventual cientificidade médica ou jurídica que ampara a decisão judicial sempre existe o risco de algum dano ou prejuízo individual, coletivo ou social.
8. Para minorar tais riscos, em casos como o presente, a jurisprudência tem acentuado como mecanismo essencial na formulação de juízo decisório a consulta ao assim denominado sistema e-NATJUS, que consiste em cadastro de pareceres, notas e informações técnicas destinado a fornecer maior eficiência na solução de demandas judiciais de assistência à saúde, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, com atuação do Fórum Nacional do Judiciário, que elabora estudos e propõe medidas concretas e normativas com o objetivo de aperfeiçoamento do procedimento, reforço à efetividade de processos judiciais e prevenção de novos conflitos, tratando-se de ferramenta e base de dados cuja criação e manutenção, no âmbito de cada Tribunal, são obrigatórias como apoio técnico de profissionais da saúde incumbidos de elaborar pareceres e estudos sobre a medicina baseada em evidências.
9. A favor da pretensão deduzida para fornecimento do medicamento Trikafta (elexacaftor/ivacaftor/tezacaftor) existe relatório médico, elaborado por profissional, pneumologista pediátrico, segundo dados colhidos em acesso livre a sítios na internet, atestando o diagnóstico da doença e afirmando, em relação ao medicamento pleiteado, que “foi comprovado aumento na porcentagem prevista de volume expiratório forçado em um segundo, conhecido como ppFEV1, que é um marcador estabelecido da progressão da doença pulmonar da fibrose cística. Além disso foi comprovado efeito positivo no aumento de IMC (melhora nutricional), redução do número de exacerbações e consequentemente redução do número de hospitalizações”. Aduziu, ainda, que o autor “faz seguimento clínico regularmente, realiza os exames que são solicitados e executa o tratamento diário adequado”, mas apresenta diversas complicações”. Verifica-se que o menor, com idade atual de nove anos, acostou exame genético de novembro de 2013, com diagnóstico de fibrose cística e exames de função pulmonar, tomografia de tórax, ultrassom de abdômen e exames de suor e pezinho. Para apurar em contraditório judicial a condição do autor e esclarecer pontos essenciais ao deslinde da causa, foi deferida perícia judicial.
10. Todavia, a consulta ao repositório do sistema e-NATJUS revela que não existe consenso técnico suficiente a amparar o fornecimento de medicamento nas circunstâncias do caso concreto, mormente em sede de tutela antecipada com cognição sumária e provisória da lide. Dentre os pareceres do sistema e-NATJUS consta a Nota Técnica 115.369, informando que “Os ensaios clínicos que demonstram benefício do medicamento excluíram pacientes mais graves e com infecções crônicas relacionadas com pior prognóstico, uma vez que isso poderia afetar negativamente os resultados esperados com o medicamento. Infelizmente, muitos pacientes possuem esses fatores de pior prognóstico” e que “Nenhum medicamento, incluindo o Trikafta, é capaz de promover a cura da doença ou de modificar o seu curso clínico”. Apontou, ainda, não haver urgência no presente caso. No mesmo sentido são as Notas Técnicas 120.670, 118.948, 115.908 e 117.372.
11. Sem adentrar mais detalhadamente no trato do espectro da eficiência terapêutica do medicamento, o que mais importa, em cognição recursal provisória, é avaliar se o tratamento deve ser iniciado imediatamente ou se deve prosseguir com base apenas em tutela provisória de urgência, anteriormente ao julgamento do mérito, fase processual em que outros e todos os elementos de convicção podem e devem ser aprofundadamente avaliados na origem e, em seguida, nesta instância recursal, observado, assim, o contraditório e o devido processo legal.
12. Sob a perspectiva processual em referência, não se avista comprovado, diante do que consta dos autos, requisito de urgência para imposição ao Poder Público de obrigação de fornecer medicamento para início imediato ou continuidade em caráter precário do tratamento preconizado. Sem embargo, portanto, de que, em caso de situação superveniente, seja o fato levado a conhecimento do Juízo a quo para apreciação, o contexto fático-jurídico do caso concreto, nesta apreensão cognitiva prefacial, não autoriza, pelo que consta dos autos, a providência requerida.
13. Agravo de instrumento provido.