Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0000229-21.2018.4.03.6139

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

APELADO: SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA, VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA

Advogado do(a) APELADO: LEVI VIEIRA LEITE - SP280026-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0000229-21.2018.4.03.6139

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

APELADO: SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA, VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA

Advogado do(a) APELADO: LEVI VIEIRA LEITE - SP280026-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

A JUÍZA FEDERAL CONVOCADA MONICA BONAVINA:

Trata-se de Apelação Criminal interposta pelo Ministério Público Federal em face da r. sentença (Id 221774325), publicada em 18.11.2021 e proferida pela Exma. Juíza Federal Substituta Mariana Hiwatashi dos Santos, da 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, que julgou improcedente o pedido para absolver SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA, nascida em 27.11.1973 (Id 221774271 – fl. 121), e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA, nascido em 29.01.1964 (Id 221774271 – fl. 122), da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

Consta da denúncia:

SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e seu marido VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA induziram em erro a Caixa Econômica Federal, gestora operacional do programa Minha Casa Minha Vida, ao prestarem declarações falsas durante o cadastramento de famílias beneficiárias do programa, consistente em declarar falsamente que eram agricultora no ano de 2013. que não possuíam vínculos empregatícios e que a renda familiar anual era inferior a R$ 15.000,00 (quinze mil reais) logrando indevida vantagem econômica, ao serem habilitados ao programa e por meio dele adquirir financiamento para construção de imóvel residencial, que sabidamente não fazia jus, em manifesto prejuízo do erário, de modo que, assim agindo, incidiram nas penas do crime de estelionato majorado, esculpido no art. 171, § 3º, do Código Penal.

2. DO PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA

O Programa Minha Casa Minha Vida tem por finalidade (art. 1º Lei nº 11.977/09) criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais; ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 5.000,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais) e compreende os seguintes subprogramas: 1 - o Programa Nacional de Habitação Urbana - PNHU; e II -o Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR. Além disso, há ainda o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV - Recursos do Fundo de Arrendamento Residencial - FAR ou do Fundo de Desenvolvimento Social - FDS. Ele conta com subsídios do Governo Federal, nos termos do art. 2' da Lei nº 11.997/09, alterada pela Lei nº 12.424/11.

Na modalidade do PNHR, agricultores familiares e trabalhadores rurais (pescadores artesanais, silvícolas, ribeirinhos, quilombolas, comunidades tradicionais), com renda familiar bruta total de até R$15.000,00/ano, que nunca tenham recebido subvenções ou subsídios de finalidade habitacional, entre outros requisitos, podem adquirir financiamentos para construir ou reformar residências, além de valor fixo para Assistência Técnica - ATEC e Trabalho Social - TS, dos quais devem quitar apenas 4% do montante recebido, pagos em parcelas anuais, durante 4 anos (trata-se, portanto, de assistência social e não propriamente de financiamento imobiliário).

A contratação dá-se por grupos de trabalhadores, que variam de 4 a 50 integrantes, organizados por uma entidade sem fins lucrativos, como o Poder Público, cooperativas e sindicatos, as quais devem obrigatoriamente contribuir com o financiamento aportando recursos próprios, bens ou serviços economicamente mensuráveis.

A comprovação da renda pode ser feita por meio da apresentação da Declaração de Aptidão ao Pronaf - DAP. Dara agricultores familiares, ou por meios diversos, para os demais, inclusive, podendo sempre ser satisfeita com declaração emitida por cooperativa de produção e/ou comercialização, sindicato ou associação de classe à qual o proponente seja associado (entidades essas que também podem ser as próprias EOs).

Nota-se, portanto, que no âmbito do PNHR é a entidade organizadora - EO quem organiza e habilita os beneficiários, responsabiliza-se pela construção das casas, executa o trabalho técnico e social no empreendimento e inclusive procede às medidas judiciais contra o beneficiário que não cumprir com suas obrigações contratuais na forma do Termo de Cooperação e Parceria firmado entre a EO e a CEF, que também dispõe sobre as obrigações da EO:

(...)

O PNHR pode ser executado, na forma de Mutirão, Empreitada (a entidade contrata construtora) e Auto Construção Assistida. Todos os contratos de PNHR de Itapeva e de Itaberá são da modalidade autoconstrução assistida.

É a EO que desenvolve e propõe à CEF o projeto de intervenção habitacional. Ela também deve constituir duas comissões, formadas por um dirigente da EO mais dois beneficiários do programa, sendo a Comissão de Representantes - CRE, que efetua o acompanhamento financeiro do empreendimento, e a Comissão de Acompanhamento de Obra - CAO. Já a CEF/MCid deve analisar a viabilidade técnica de engenharia, jurídica, social e negocial da proposta e selecionar o melhor segundo os seguintes critérios:

(...)

A CEF firma contratos individuais de subsídios com os beneficiários pessoas físicas e deve também, tal como a própria instituição já informou em outras oportunidades, realizar inspeções in loco a cada quarta parte da obra que é concluída, após apresentação mensal de relatórios de acompanhamento de obras (Planilha de Levantamento de Serviços - PLS) ofertados pela EO. São feitas vistorias quando a obra atinge os percentuais de 25%, 50%, 75% e 100%, mas apenas 25% das moradias é verificada a cada vistoria. 0 custo do projeto é definido pela CEF, com base em tabelas de custo como o SINAPI.

Ademais, no Termo de Cooperação e Parceria - TCP a CEF se obriga a "analisar o enquadramento do beneficiário no programa" e a EO obriga-se a organizar e executar o processo de inscrição, seleção e classificação das famílias interessadas em obter subsídios", além de "solicitar ao gestor local do CADÚNICO a inserção ou atualização dos beneficiários Selecionados".

Todos os beneficiários de recursos do PNHR devem declinar corretamente dados juridicamente relevantes quando da emissão das DAP's, sob pena de cometerem crime,

A estruturação legal do PNHR é realmente um convite à corrupção. Confunde-se na mesma pessoa o interessado na obtenção do recurso público e o agente fiscalizador. Como agravante, é programa social que se desenvolve nos meandros mais pobres dos setores rurais brasileiros, o que facilita sobremaneira o engodo daqueles que seriam os verdadeiros beneficiários, a obtenção de "laranjas", o abuso do poder político para fins eleitoreiros, e mais um sem-número de irregularidades.

Como se nota, os requisitos legais para a adesão ao PNHR são muito falhos. Basta que o pretendente declare-se no exercício de atividade rural, assim devidamente reconhecido em DAP para ser habilitado ao programa. Não há necessidade de comprovação de tempo mínimo nessa atividade. Desse modo, apenas podem ser excluídos aqueles com atividades urbanas ou vínculos públicos concomitantes ao período de habilitação ao programa.

De outro lado, de acordo com o art. 3º, II da Portaria MCid n. 194/2013, apenas são inelegíveis ao programa os trabalhadores que "sejam proprietários, cessionários ou promitentes compradores de imóvel residencial em qualquer localidade do território nacional".

Para completar, diversamente do PNHU, o PNHR não traz vedações ao pós -ocupação. Assim que constrói a moradia, o beneficiário está autorizado a vendê-la, arrendá-la, ou alterar sua finalidade. Deve apenas pagar parcela anual, por quatro anos, no valor de 1% do subsidio concedido.

Por fim, para a assinatura do contrato de financiamento, os beneficiários maiores de 18 (dezoito) anos devem firmar declaração em que assegurem, sob expressa ressalva penal, o preenchimento de requisitos para aderir ao programa, que são os seguintes:

(...)

No curso das investigações encetadas, verifica-se, de modo contundente, que os denunciados não se enquadravam nos requisitos exigidos pelo Programa.

3. AUTORIA E MATERIALIDADE

Na declaração dos dados cadastrais do beneficiário - GRUPO 1, assinada por SILVANA APARECIDIA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA em 2013, aquela declarou sob as penas legais, que exercia a atividade de agricultora no Bairro "Monjolinho" há aproximadamente 24 anos e 04 meses, auferindo renda de R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) pela atividade rural desenvolvida. Valdecir Francisco de Almeida, esposo de Silvana, declarou que também era agricultor no Bairro "Monjolinho' há aproximadamente 33 anos e 02 meses não auferindo nenhuma renda (f. 28/29).

Ambos declararam ainda que "não possuo (possuímos) nenhum vínculo empregatício formal com empresa pública ou privada" (f. 30).

Para comprovar a atividade rural exercida, o casal apresentou Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) (f. 26/27). A DAP foi expedida em 23.04.2013 pelo Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Itaberã - SINTRAF (CNPJ ri.' 03.970.681/0001-09), representada por Antônio Camargo de Oliveira, vulgo Serrinha (CPF n° 542.771.408-15). Apresentaram ainda, declarações de posse de boa-fé em área pública, assinada por eles, Marcos Antônio Augusto Pimentel (EO) e pelo Gestor Municipal José Benedito Garcia, tidas como possivelmente temerárias segundos os fatos noticiados pela Promotoria de Justiça em Itaberá (f. 41/44).

Mediante tal cadastro, ambos foram contemplados em 20.12.2013 no PNHR, cuja entidade organizadora (EO) é a Cooperativa de Habitação da Agricultura Familiar do Estado de São Pauto - COOPERHAF (CNPJ 13.045.47210001-02). então representada por Marco Antônio Augusto Pimentel. O objeto do contrato firmado, na modalidade aquisição de material de construção - autoconstrução assistida destina-se à produção ou reforma de imóvel residencial e ao pagamento da assistência técnica especializada e trabalho técnico social, a ser executada no prazo de 10 (dez) meses. O subsídio para edificação foi R$ 39.500,00 (trinta e nove mil e quinhentos reais), dos quais os beneficiários pagarão apenas R$ 1.140,00 (um mil cento e quarenta reais) (f. 45/49).

 

MUTUÁRIOS

EMPREENDIMENTO

EO

Silvana Aparecida de Carvalho Almeida e Valdecir Francisco de Almeida

João de Barro: Itaberá 9

COOPERHAF

 

No bojo do IPL 0504/2017 foram realizadas diligências de campo pelos agentes da Policial Federal aos casos detectados como suspeitos através de cruzamento de dados, dentre eles o do casal. Verificou-se que Silvana reside na cidade de Itapeva, pois a casa no Bairro Cafezal Novo ainda não estava pronta. Segundo o irmão de Silvana "ela vai morar na casa depois que ficar tudo pronto. Ainda falta ligar a energia" (f. 50/52).

Contudo, no âmbito desta Procuradoria da República verificamos através do CNIS que VALDECIR manteve relações empregatícias urbanas de 17.10.2008 a 02.2016 com a empresa Internacional Paper do Brasil Lida; 17.10.2008 a 12.2015 com a empresa Orsa Internacional Paper Embalagens; 17.10.2008 a 12/2012 com a empresa Jari Celulose Papel e Embalagens S/A. Registre-se que, em todas estas empresas, a renda auferida é inquestionavelmente superior a renda declarada de R$ 0,00 (f 69/72).

Ademais, VALDECIR ainda exercia atividades urbanas, justamente no período que alegava ter exercido atividade rural, citem-se, (i) 22.07.1992 a 19.10.1992 com a empresa Eucatex Florestal Ltda; (ii) 01.02.1993 a 27.05.1993 corri a empresa Empreiteira de Obras Silva Antunes S/c Ltda ME; (iii) 05.09.1994 a 06.10.1994 com a empresa Montcalm Montagens Industriais S/A; (iv) 19.10.1994 a 04.01.1995 com a empresa Empreiteira Satert SC Ltda; (v) 13.03.1995 a 02.08.2005 com a empresa Trascolima Transporte Coletivo Ltda; (vi) 03.08.2005 a 02.2007 com a empresa Mai - Manutenção Automação e Industrial Ltda-ME; (vii) 05.03.2007 a 17.10.2008 com a empresa PSN Montagens e Manutenção Industrial Ltda e (viii) 17.10.2008 a 08.2009 com a empresa Orsa Celulose Papel e Embalagens (f63/68).

A empresa International Paper do Brasil Lida, informou que VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA é empregado da empresa desde 17.10.2008, sendo que, nos anos de 2013 e 2014, desenvolveu suas atividades de 2ª a 6ª feira das 08h às 17h. VALDECIR ocupa o cargo de Técnico Manutenção, cujas atividades principais são a manutenção preventiva e corretiva de máquinas e equipamentos elétricos e acompanhamento da instalação de novas máquinas e equipamentos. Ainda segundo a empresa, Valdecir em 2013 recebia os seguintes rendimentos (f. 105/106):

 

Mês

Rendimento

Janeiro

R$ 1.845,91

Fevereiro

R$ 2.333,75

Março

R$ 1.930,08

Abril

R$ 1.767,13

Maio

R$ 2.038,71

Junho

R$ 2.916,49

Julho

R$ 2.057,50

Agosto

R$ 3.931,09

Setembro

R$ 1.760,56

Outubro

R$ 1.928,02

Novembro

R$ 1.972,21

Dezembro

$ 2.301,71

 

A empresa Jari Celulose, Papel e Embalagens S.A. informou que é sucessora por força de incorporação legal ocorrida em 16.08.2009, da empresa Orsa Celulose Papel e Embalagens S/A. Esclareceu ainda que (f. 103/104):

(...)

VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA contou que trabalha como técnico em manutenção elétrica em uma fábrica de papéis situada na cidade de Nova Campina. "Que atualmente nenhum dos membros de sua família é trabalhador rural, mas até 1993 moravam no sítio e eram trabalhadores rurais”. Que construiu uma casa em Itaberá/SP com recursos do PNHR. "Que quem cuidou da obtenção do financiamento foi sua esposa do declarante que tratou do caso com o vereador Serrinha " (f. 108).

Considerando que o financiamento de VALDECIR foi obtido em 2013, temos que ele não exercia a função de rurícola, indispensável à concessão do benefício, já que, durante todo o ano de 2013, ele exerceu ininterruptamente funções em empresa urbana privada, conforme acima demonstrado, inclusive auferindo renda superior a informada, que, se declarada, impediria sua habilitação para o Programa.

De outro lado, verifica-se que não consta vínculo formal no CNIS de SILVANA APARECIDA (f. 60).

SILVANA APARECIDA DE CARVALHO, ouvida no bojo do inquérito 0504/2014, narrou que foi a responsável por tratar das questões do financiamento obtido pelo PNHR, cujas tratativas foram feitas diretamente com o Vereador Serrinha. Afuma que não pagou valor algum a Serrinha. Assevera que obteve financiamento de R$ 6.000,00 pago diretamente ao pedreiro. “Que tanto o recebimento do dinheiro quanto a medição da obra e efetivo pagamento ao pedreiro era feito por Serrinha'. Afirma que "nunca teve qualquer cartão bancário ou senha para retirada de valores, porque era tudo feito por Serrinha" (f. 107).

Depreende-se que, no período de habilitação, notadamente na ocasião da expedição da DAP e assinatura do contrato com a CEF, SILVANA mantinha vínculos urbanos na cidade de Itapeva - não em ltaberá! - e naquela urbe morava na zona urbana, não satisfazendo assim, a condição de agricultora ou trabalhadora rural.

Registre-se que não foram localizadas propriedades imobiliárias em nome de SILVANA ou de VALDECIR (f. 73173-v, 1351137, 142/144,145).

Por fim, pontuamos que entendemos mais correta a imputação do crime de estelionato, em detrimento do crime Contra o Sistema Financeiro Nacional, previsto no art. 19 da Lei n. 7.492/86, em razão de que o programa habitacional Minha Casa Minha Vida, modalidade PNHR, trata-se de benefício assistencial e não financiamento habitacional. Como visto, o beneficiário arca apenas com porcentagem mínima do valor do imóvel e, ainda assim, financiada pelo prazo de 4 anos corm taxas de juros sensivelmente abaixo dos índices de inflação. Desse modo, as fraudes perpetradas não arrostam o bem juridicamente tutelado da higidez do mercado financeiro, mas sim o erário federal afeto à assistência social. De mais a mais, o crime imputado tem pena menor e essa questão trata-se de mera capitulação jurídica dos fatos, que não prejudica o direito à ampla defesa e ao contraditório (art. 383, CPP) (Id 221774273 – fls. 03/14).

 

Tipificação: art. 171, § 3º, do Código Penal.

A denúncia foi recebida em 08.11.2019 (Id 221774274 – fls. 03/04).

Sobreveio a r. sentença, que absolveu SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

Em suas razões de recurso, o órgão de acusação postula a condenação dos réus, ao argumento de que os elementos de convicção coligidos ao processo demonstram, com segurança, a existência do dolo necessário à perfeita subsunção das condutas ao tipo penal (Id 221774329).

Recebido o recurso, com contrarrazões (Id 221774335), subiram os autos a esta Egrégia Corte.

Oficiando nesta instância, a Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do recurso (Id 252973408).

É o relatório.

À revisão.

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
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OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

Confirmo o relatório apresentado pela MM. Juíza Federal Convocada Monica Bonavina.

 

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DELITO DE ESTELIONATO

O art. 171, parágrafo 3º, do Código Penal, assim dispõe:

Art. 171: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

(...)

§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

Trata-se de uma modalidade especial de estelionato, praticado contra entidades de direito público ou institutos de economia popular, assistência social ou beneficência (tais como a Caixa Econômica Federal e o INSS, por exemplo), de modo que é maior a reprovabilidade da conduta, já que tais entes prestam serviços fundamentais à sociedade, razão pela qual a lei prevê, para essa hipótese, uma causa especial de aumento de pena a ser considerada na terceira fase da dosimetria da pena.

Para a caracterização do crime de estelionato, devem estar presentes três requisitos fundamentais, quais sejam: I) o emprego de meio fraudulento, de que são exemplos o artifício (recurso engenhoso/artístico) e o ardil (astúcia, manha ou sutileza), ambos espécie do gênero fraude; II) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; III) a obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita (economicamente apreciável), sem o que não se há de falar em consumação deste delito.

A respeito do primeiro requisito (emprego de meio fraudulento), é relevante mencionar que, ontologicamente, não se há de falar em distinção entre fraude penal e fraude civil, já que não há diferenças estruturais entre estas. Com efeito, não existe diferença entre a fraude civil e a fraude penal. Só há uma fraude. Trata-se de uma questão de qualidade ou grau, determinado pelas circunstâncias da situação concreta. Elas é que determinam se o ato do agente não passou de apenas um mau negócio ou se neles estão presentes os requisitos do estelionato, caso em que o fato será punível penalmente (TJRS, AP. Crim. 70013151618, 7ª Câm. Crim., Rel Sylvio Baptista Neto, j. 22.12.2005).

É possível que haja um comportamento ilícito e, todavia, circunscrito à esfera civil. Assim, por força dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade, é necessário, para a caracterização do crime de estelionato, que o agente tenha o dolo como fim especial de agir, sendo imprescindível a consciência, a vontade de enganar, ludibriar, com objetivo de obter vantagem ilícita em detrimento da vítima. É a presença do dolo que distinguirá uma conduta penalmente relevante daquela situação em que, por exemplo, o agente age com boa-fé, sem a intenção de enganar, mas, por motivos diversos, acaba por cometer um ilícito civil. Atente-se que se, por um lado, não se pode adentrar a consciência do indivíduo, por outro, é possível aferir a presença do elemento anímico a partir de fatores externos, ou seja, dos detalhes e circunstâncias que envolvem os fatos.

Ademais, ainda tratando da fraude como elemento central do delito de estelionato, é importante falar sobre a frequente hipótese em que a falsidade documental é o meio empregado para se obter êxito na empreitada criminosa. Neste caso, em observância ao princípio da consunção, deve prevalecer o entendimento de que o crime-meio (falsidade documental) deverá ser absorvido pelo crime-fim (estelionato), desde que, depois da utilização do documento falso para obtenção de vantagem ilícita, não reste qualquer potencialidade ofensiva, nos termos da súmula n.º 17 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.

A respeito do segundo requisito (induzimento ou manutenção da vítima em erro), é relevante mencionar que o erro é a consequência provocada pela fraude e que, em se constatando que a fraude não foi suficientemente hábil para provocar ou manter em erro a vítima (fraude grosseira), deverá haver, em princípio, o reconhecimento da hipótese de crime impossível, por absoluta ineficácia do meio ou absoluta impropriedade do objeto (inteligência do art. 17 do CP).

Já a respeito do terceiro requisito (obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita), cabe consignar que, em sendo o estelionato um crime material e de dano, sua consumação se dará com a efetiva obtenção da vantagem, isto é, a partir do momento em que a coisa passar da esfera de disponibilidade da vítima para a do infrator (ou de terceiro).

Além disso, não se deve perder de vista que a vantagem obtida pelo agente deve ser ilícita, ou seja, contrária ao ordenamento, uma vez que, se a vantagem for devida, ficará descaracterizado o delito de estelionato, podendo haver, por exemplo, a desclassificação para o delito de exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do artigo 345 do CP.

Feitas essas breves considerações, passa-se à análise dos fatos descritos na presente ação penal.

 

ANÁLISE DO CASO CONCRETO

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia em face de SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA pela prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, uma vez que, em 2013, induziram em erro a Caixa Econômica Federal, gestora operacional do programa Minha Casa, Minha Vida, ao prestarem declarações falsas durante o cadastramento de famílias beneficiárias do mencionado programa. Com efeito, a ré declarou que exercia a profissão de agricultora há aproximadamente vinte e quatro anos e auferia renda mensal de R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais), bem como que residia em zona rural, mas diligências realizadas por agentes da Polícia Federal demonstraram que, na verdade, sua moradia estava localizada em área urbana, no Município de Itapeva/SP. O réu, por sua vez, declarou que também era agricultor na mesma localidade, há aproximadamente trinta e três anos, e que não possuía vínculo empregatício formal ou renda (o campo “renda” foi preenchido com “R$ 0,00”), mas dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais demonstram que, na verdade, trabalhava em empresas urbanas e auferia renda, informação confirmada por algumas dessas empresas. Obtiveram, assim subsídio de R$ 39.500,00 (trinta e nove mil e quinhentos reais), dos quais pagariam somente R$ 1.400,00 (mil e quatrocentos reais).

Sobreveio a r. sentença, que absolveu SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

Em suas razões de recurso, o órgão de acusação postula a condenação dos réus, ao argumento de que os elementos de convicção coligidos ao processo demonstram, com segurança, a existência do dolo necessário à perfeita subsunção das condutas ao tipo penal.

 

MATERIALIDADE, AUTORIA DELITIVA E DOLO

A materialidade do crime de estelionato majorado está demonstrada pelos seguintes elementos:

- Proposta Individual para o Programa Nacional de Habitação Rural, na modalidade “aquisição de material de construção”, com custo de R$ 38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos reais), em nome da ré (Id 221774271 – fls. 21/23);

- Declaração dos Dados Cadastrais do Beneficiário subscrita pela ré, na qual informou que exercia a profissão de agricultora no bairro “Monjolinho”, com renda mensal de R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) (Id 221774271 – fl. 24);

- Declaração dos Dados Cadastrais do Beneficiário subscrita pelo réu, na qual informou exercer a atividade de agricultor no bairro “Monjolinho”, e que trabalhava em atividade rural há 33 anos e 02 meses. No campo “valor da renda da atividade rural”, ademais, constou “R$ 0,00” (Id 221774271 – fl. 25);

- Declaração subscrita pelos dois réus de que as informações prestadas nas declarações individuais são verdadeiras e de que, “no caso de informação de exercício de atividade com renda familiar ‘não comprovada’, que não possuo (possuímos) nenhum vínculo empregatício formal com empresa pública ou privada” (Id 221774271 – fls. 168);

- Declaração dos Beneficiários subscrita por ambos os réus, elaborada conforme modelo Id 221774271 – fls. 27/28);

- Cadastro do Agricultor Familiar em nome dos réus, onde consta que sua atividade principal é a agricultura, com renda total de R$ 3.000,00 (três mil reais), datada de 23.04.2013 e expedida pelo Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Itaberá – SINTRAF (Id 221774271 – fls. 31/32);

- Contrato para concessão a pessoa física de subsídios destinados à produção de unidade habitacional vinculada ao Programa Nacional de Habitação Rural, datado de 20.12.2013, com subsídio no valor de R$ 39.500 (trinta e nove mil e quinhentos reais), dos quais os beneficiários pagariam somente R$ 1.140,00 (mil, cento e quarenta reais) (Id 221774271 – fls. 50/59);

- Fotografias e informações obtidas em diligência de campo realizada por agentes da Polícia Federal no âmbito do IPL 0504/2017, segundo as quais a ré residia em Itapeva/SP, pois a casa que estava construindo em um sítio no bairro Cafezal Novo, em Itaberá/SP, ainda não estava pronta (Id 221774271 – fls. 60/61);

- Relatório de Pesquisa elaborado no âmbito da Procuradoria da República em São Paulo/SP, em que, a partir de dados obtidos no Cadastro Nacional de Informações Sociais, foram listadas relações empregatícias urbanas mantidas pelo réu com diversas empresas, sempre, evidentemente, com renda superior a zero, e duas das quais em períodos que perpassaram o ano de 2013 (Id 221774271 – fls. 72/85);

- Comunicação enviada pela empresa International Paper, que informou que o réu ocupa o cargo de Técnico de Manutenção desde 2008 e, em 2013 e 2014, desenvolveu suas atividades de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, com remuneração, em 2013, que variou de R$ 1.760,00 (mil, setecentos e sessenta reais) a R$ 3.931,09 (três mil, novecentos e trinta e um reais e nove centavos) (Id 221774271 – fls. 117/118).

 

A prova oral coligida ao processo comprova, ainda, a autoria delitiva.

A existência do dolo, por outro lado, não pode ser aferida com a segurança necessária à prolação de um decreto condenatório.

A propósito, a absolvição foi assim fundamentada pela magistrada singular:

 

Entretanto, há que se considerar que, nos casos como o presente, que envolvem o recebimento de recursos relacionados ao Programa Nacional de Habitação Rural, ainda que presentes a materialidade e autoria delitivas (consistentes no inequívoco recebimento de valores da União “a fundo perdido” sem que o beneficiário se enquadrasse nos requisitos exigidos pelo programa), como restou demonstrado acima, há relevante questão a ser avaliada, consistente na configuração do dolo (direito ou eventual) dos agentes.

A caracterização do dolo, em tais crimes, nem sempre é evidente. Faz-se necessário avaliar, em cada caso concreto, em atenção às peculiaridades de cada beneficiário, se lhe era possível conhecer a circunstância de que o programa em tela destinava-se a trabalhadores rurais, de baixa renda, e que ele não atendia aos requisitos estipulados.

É certo que o Programa em tela fornecia subvenção econômica para a reforma ou construção de imóvel destinado a trabalhadores rurais ou agricultores familiares, de baixa renda, na medida em que possibilitava a concessão de aproximadamente R$ 25.000,00, “a fundo perdido” pela União Federal. O caráter social do programa, portanto, é inequívoco e poderia ser intuído por qualquer pessoa, quer por se tratar de recursos fornecidos pelo Programa Minha Casa Minha Vida, notoriamente destinado a subsidiar moradia a pessoas de baixa renda, quer porque simplesmente não fazer sentido que o Governo Federal destine considerável soma de recursos públicos, sem previsão de reembolso, a qualquer interessado, que não no bojo de uma política setorial.

Por outro lado, tem-se que da análise dos elementos colhidos ao longo da instrução (deste e de diversos outros relacionados ao recebimento de benefícios do Programa Minha Casa Minha Vida Rural) que, como regra, os contratos para recebimento dos benefícios do programa, de fato, foram assinados em grupo, sem que os signatários tenham realizado, nessa oportunidade, uma leitura atenta dos termos contratuais. Há informações (em todos os feitos análogos) de que mesmo o preenchimento de vários dos dados do contrato teria sido realizado por pessoa diversa do beneficiário. Neste contexto, tem-se que a mera alegação de não leitura das cláusulas do contrato, como regra, não é apta a afastar a circunstância de que ao subscrever requerimento para figurar como beneficiário de programa de cunho evidentemente social, o signatário assumiu o risco de receber subvenção da União a que evidentemente não fazia jus, mediante inserção de informações falsas nos instrumentos contratuais.

Há que se perquirir, a partir dos elementos colhidos ao longo da instrução e submetidos ao crivo do contraditório, se à parte ré, sob as peculiaridades em que envolto seu caso, era possível conhecer tais circunstâncias e seu não enquadramento nas regras estipuladas pelo Programa.

No caso em tela, o documento de imóvel rural em nome dos pais da corré (José Maria de Carvalho - qualificado como agricultor - e Nilce Ferreira de Carvalho), com data de 16/06/1987 (Id. 37077349, fls. 32/43) e a certidão de casamento dos corréus, ocorrido em 02/02/1991, na qual o contraente é qualificado como "lavrador" (fl. 34, Id. 37078676) indicam que, consoante alegado, possuem eles origem rural.

Ademais, os dados do imóvel apontado no Cadastro do AgricuItor(a) Familiar (Id. 37078676, fl. 31) possui as mesmas características da propriedade em nome do pai da corré constantes da declaração de ITR de 2010, juntado pela defesa (Id. 37077349, fls. 45/49) - Sitio Cafezal, com 4,3 hectares -, apontando que a inscrição a ele se referia.

Em que pese a CEF possua o dever de analisar o procedimento de inscrição dos beneficiários ao programa, do que consta dos autos, sequer se diligenciou a razão do comprovante de endereço apresentado encontrar-se em nome de terceiro não identificado (Vilma Aparecida da Rosa Carvalho - fl. 35, Id. 37078676) e não no nome dos beneficiários ou do proprietário das terras (pai da ré) e tampouco a veracidade da "Autodeclaração de Posseiro de Boa-fé de Área do Poder Público", que deveria ter sido objeto do "Relatório fotográfico" e confrontada com o "Cadastro de Agricutor(a) Familiar", em que se tem a propriedade do "Sítio Almeida" (que também é diverso daquele apontado nos documentos da propriedade rural em nome do pai da corré).

Observa-se que a CEF tinha meios de identificar inconsistências na inscrição dos réus, tendo, inclusive, realizado inúmeras pesquisas (Id. 37078676, fls. 36/45). Todavia, não buscou o extrato de CNIS dos corréus/beneficiários - como o MPF fez - o que facilmente traria a existência de vínculos urbanos ou analisou criticamente o cadastro.

É de se pontuar que é possível que o preenchimento da documentação tenha sido realizado por outras pessoas e previamente ao dia marcado para a assinatura, tendo-se em vista que os documentos possuem o mesmo padrão de configuração, que nem todos possuem a data do ato e que na "Declaração dos Beneficiários" (fls. 27/28 - Id. 37078676), verifica-se que há campos que se quedaram como no "modelo", como é o caso do item 7 e 8:

" (...)

7. Minha renda bruta anual é de R$ (Por extenso) e autorizo a CAIXA a consultar a minha renda bruta anual junto ao Cadastro de Participantes do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e a Relação Anual de Informações Sociais - RAIS para fins de confirmação do enquadramento no Programa- 8. Na ocorrência de falsa declaração, declaro que o total dos recursos recebidos a título de (Se GI preencher com- "subsídios deve ser devolvido ao Tesouro Nacional". Se GII e GIII Preencher com: "financiamentos elou subsídios deve ser devolvido ao Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço - FGTS e ao Tesouro Nacional), atualizado pela SELIC, desde a data de liberação até a data de devolução.

(...)"

Ressalte-se também que a "Declaração dos Dados Cadastrais do Beneficiário- PNHR Grupo I" encontra-se sem data (conta apenas com o ano) e só conta com assinatura na última folha (folha 03), não tendo sequer rubrica nas demais páginas (01 e 02), onde constam a profissão de agricultor, o tempo de exercício dessa atividade e a renda dos réus.

Assim, ainda que os réus, de fato, não preenchessem todos os requisitos exigidos para enquadramento no PMCMVR (os vínculos urbanos desde 1992 (exercício profissional e residência), fato incontroverso nos autos, já seria o bastante para a negativa do subsídio), o fato é que o conjunto probatório gera dúvida razoável acerca da efetiva existência de dolo, porquanto os indícios tornam viável a afirmação de que eles supunham fazer jus ao benefício pleiteado.

A prova oral aponta no sentido de que os participantes do programa não foram instruídos de forma clara e específica acerca dos requisitos exigidos para adesão ao PMCMVR, muito embora fosse de senso comum que o benefício se destinava a pequenos produtores rurais, eis que deveriam apresentar a DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf).

A inscrição foi intermediada pelo Sindicato Rural, passando a documentação pelo escritório de "Serrinha", que estaria auxiliando os inscritos no cadastro. Pelo que é possível conceber que os réus tenham acreditado que a análise de seus documentos estivesse sendo feita de acordo com os requisitos do programa. A presença de representantes da CEF a apresentar o contrato para assinatura possivelmente reforçou a ideia de regularidade.

Há que se considerar, ainda, que lhes teria sido dito que o objetivo do programa era trazer de volta ao labor rural aqueles que com ele tivessem algum vínculo.

Tem-se que, se por um lado, as alegações da defesa de que teriam os réus apresentado a CTPS e comprovante de residência na cidade de Itapeva ao procurar informações do programa; por outro, não restou comprovado que, utilizando-se de fraude, realizaram declarações falsas com o intuito de obter vantagem indevida de que sabiam não fazer jus. Certo é que, no julgamento de demandas penais, vige o princípio do "in dubio pro reo".

A análise dos documentos integrantes do processo de inscrição dos réus possui muitas falhas e incongruências. Contudo, estes passaram por várias pessoas que tinham o dever de verificar a regularidade, como a entidade organizadora e a CEF. O despreparo dos representantes destes não pode gerar presunção contra os réus de que tenham agido sabidamente de forma fraudulenta e nem afastar a possibilidade de falta de esclarecimento acerca dos requisitos e objetivo do projeto.

Frise-se, por fim, que, embora não se possa alegar desconhecimento da lei e que a falta de leitura de documentos em que se apõe assinatura (seja por confiança, falta de tempo ou qualquer outro motivo) não retira a responsabilidade, não restou comprovado que os réus tenham tido a intenção ou assumido deliberadamente o risco de gerar dano à União mediante a obtenção fraudulenta de benefício do PMCMVR/PNHR.   

Nesse contexto, extrai-se do conjunto probatório que há dúvida razoável quanto à efetiva ciência dos réus acerca do caráter ilícito da vantagem por eles obtida, afastando-se, assim, a existência de prova do dolo dos réus, uma vez que, para o delito em questão, exige-se, como elemento subjetivo, a presença do dolo específico para o estelionato, consistente no agir especial do agente para apoderar-se de vantagem ilícita. Por conseguinte, a absolvição é medida que se impõe.

Neste sentido:

(...)

Por fim, é de consignar que, de acordo com o princípio da intervenção mínima, a tutela do direito penal somente deve ocorrer quando os demais ramos do direito não forem capazes de proteger suficientemente aqueles bens considerados de maior importância. Por ser a sanção penal mais gravosa, exige-se a demonstração de requisitos mais específicos.

No caso em tela, a irregularidade constatada a gerar a indevida obtenção de subvenção econômica no ato da contratação do financiamento habitacional pelos réus, por ausência de comprovação da intenção fraudulenta, não é punível no âmbito penal.

Posto isso, JULGO IMPROCEDENTE o pedido formulado na denúncia a fim de ABSOLVER os acusados, SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA, da imputação que lhe fora feita, com fundamento no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal (Id 221774325 – fls. 14/17)

 

Na fase inquisitiva da persecução penal, SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA declarou:

QUE confirma que tratou das questões do financiamento obtido pelo Programa Nacional de Habitação Rural - PNRR; QUE todas as tratativas foram feitas com o vereador SERRINHA: QUE SERRINHA tinha um escritório na estrada de ltabera/SP; QUE não pagou nenhum valor para o vereador SERRINHA e que atualmente paga somente R$ 285,00 anuais para a Caixa Econômica Federal; QUE no total obteve R$ 6.000,00 de financiamento que foi pago diretamente para o pedreiro; QUE o pedreiro foi indicado por SERRINHA; QUE tanto o recebimento do dinheiro quanto a medição da obra e efetivo pagamento ao pedreiro era feito por SERRINHA. QUE a declarante nunca teve qualquer cartão bancário ou senha para retirada de valores, porque era tudo feito por SERRINHA; QUE não se recorda o nome do pedreiro que construiu sua casa; QUE não sabe se houve qualquer sobra do valor obtido pelo financiamento aqui tratado (Id 221774271 – fl. 121).

 

Sob o crivo do contraditório, afirmou que morava em um sítio em Itaberá/SP antes de residir em Itapeva/SP e sonhava em voltar para aquela região. Em conversas com seu irmão e vizinhos, descobriu que eles estavam construindo residências na localidade, motivo pelo qual compareceu ao escritório do Vereador Serrinha, onde lhe solicitaram que levasse alguns documentos, entre os quais a escritura do imóvel herdado dos pais. Disse que as informações sobre o programa eram fornecidas durante reuniões e que, após comparecer a quatro delas, foi informada por telefone de que havia sido contemplada. Especificou que durante os encontros, que eram organizados por Serrinha, os responsáveis explicavam que se tratava de um programa chamado “João de Barro”, que consistia em incentivos para que pessoas que já haviam residido em áreas rurais voltassem a elas e exercessem a agricultura familiar. Relatou, ainda, que não trabalhava à época, mas seu marido sim, como eletricista. Declarou, enfim, que assinou os documentos da Caixa Econômica Federal na última reunião, mas não os leu, uma vez que eram vários, assim como muitas pessoas, e a orientação recebida era de que apenas os assinassem (Id 221774305).

 

VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA, por sua vez, inicialmente asseverou:

QUE trabalha como técnico em manutenção elétrica em uma fábrica de papéis situada na cidade de Nova Campina/SP; QUE atualmente nenhum dos membros de sua família é trabalhador rural, mas até 1993 moravam no sítio e eram trabalhadores rurais; QUE construiu uma casa em ltabera/SP com recursos obtidos pelo Programa Nacional de Habitação Rural - PNHR; QUE quem cuidou da obtenção do financiamento foi sua esposa do declarante que tratou do caso com o vereador SERRINHA; QUE os detalhes de tal financiamento podem ser esclarecidos, por sua esposa (Id 221774271 – fl. 122).

 

Em audiência de instrução e julgamento, relatou que trabalhava como eletrotécnico na época. Expôs que tomou conhecimento do programa através de um familiar e decidiu participar porque sonhava em voltar a morar no campo, motivo pelo qual compareceu a uma única reunião, em que foi informado de que o intuito era incentivar pessoas que tinham nascido e crescido em zonas rurais a retornarem à agricultura familiar. Sobre a documentação, disse que não declarou ser agricultor, pois não lhe perguntaram que profissão exercia, e que assinou os documentos da Caixa Econômica Federal rapidamente, pois foi instado a tanto (disseram-lhe apenas: “assina aqui”) (Id 221774305).

Na mesma direção, Luisael Benedito Leite, testemunha arrolada pela defesa, aduziu que as explicações acerca do programa eram feitas em reuniões, mas sem detalhes, pois muitas pessoas participavam, e que em geral era dito que tinha direito ao subsídio quem fosse morador da área rural. Declarou que os documentos eram entregues no escritório de Serrinha, que realizava a conferência, e que os contratos foram todos assinados na Câmara Municipal, ocasião em que a pessoa era chamada por nome apenas para assinar o contrato. Disse, enfim, que os réus tinham residido em um sítio, mas deixaram a zona rural fazia em torno de vinte anos (Id 221774305).

Antônio Salvador de Oliveira, por fim, prestou declarações similares. Aduziu que a documentação era entregue no escritório de Serrinha, em Itaberá/SP, e que as reuniões em que eram repassadas informações sobre o programa aconteciam em um barracão. Disse, também, que os contratos foram assinados na Câmara Municipal, e que, depois disso, não recebeu recursos diretamente, uma vez que Serrinha, na condição de representante do sindicato, eram quem administrava o dinheiro e pagava diretamente as contas das obras. Relatou, ainda, que nas reuniões eram informados de que se tratava de um projeto para trazer de volta para a agricultura familiar pessoas que haviam crescido na zona rural, mas passado a viver na cidade, e que não especificavam que era necessário ser agricultor para participar do programa. A propósito, relatou que os réus moraram no bairro “Manjolinho”, uma área rural, mas já haviam estabelecido residência na cidade à época dos fatos (Id 221774305).

Tais declarações, em cotejo com a prova oral constante dos autos, demonstram, de fato, que remanesce dúvida acerca do dolo dos réus, consistente na intenção deliberada de obterem vantagem ilícita mediante a apresentação de declarações falsas à Caixa Econômica Federal.

Com efeito, a despeito de tratar-se de programa de subvenção econômica com nítido caráter social, a prova testemunhal indica que não havia detalhamento acerca dos requisitos de participação, inclusive porque as informações eram repassadas em reuniões das quais participava grande número de pessoas, de maneira que é plausível que os réus desconhecessem que não se enquadravam nas hipóteses legais de recebimento de recursos destinados à construção de moradias.

Além disso, apurou-se que os contratos eram assinados na Câmara Municipal, em grupo, quando então era feita chamada nominal para que cada pessoa subscrevesse o seu, o que torna plausível que os signatários, ainda que alfabetizados, não tenham lido atentamente todas as informações contidas nos documentos. A propósito, tanto os réus quanto as duas testemunhas ouvidas em juízo relataram que quem lidava com a documentação era o Vereador Serrinha, de maneira que há indícios fortes de que não inseriram diretamente as informações nos documentos que assinaram. Reforça tal conclusão o fato de os documentos terem sido impressos com os campos já preenchidos, e não a caneta, além de alguns sequer estarem completos (na declaração acostada ao Id 221774271 – fls. 168, por exemplo, o campo da data de assinatura não foi preenchido). Além disso, em alguns campos da Declaração de Beneficiários as instruções de preenchimento não foram sequer removidas, como revelam os trechos “minha renda bruta anual é de R$ (Por extenso)” e “o total dos recursos recebidos a título de (Se GI preencher com: ‘subsídios deve ser devolvido ao Tesouro Nacional’. Se GII e GIII preencher com: ‘financiamentos e/ou subsídios deve ser devolvido ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e ao Tesouro Nacional” (Id 221774271 – fl. 27).

É bem verdade que não se trata, em geral, de documentos extensos, a impor uma cansativa leitura de sucessivas cláusulas contratuais redigidas em linguagem técnica, mas sim de declarações em poucas folhas e alguns dados, de maneira que não seria necessária uma análise detida e exaustiva do conteúdo dos documentos que os réus subscreveram para que as desconformidades fossem percebidas.

Entretanto, as declarações dos réus em juízo, aliadas às das duas testemunhas ouvidas sob o crivo do contraditório, indicam que as informações atinentes ao programa de construção de moradias eram fornecidas de modo impreciso e talvez até mesmo incorreto, do que poderiam realmente supor que tinham direito ao subsídio, bem como que quem lidava com a documentação era o Vereador Serrinha e, enfim que a assinatura dos contratos aconteceu na Câmara Municipal, por várias pessoas em sequência, que eram instadas a fazê-lo com celeridade, circunstâncias, enfim, que não permitem que se ultrapasse a esfera da mera possibilidade acerca da existência do dolo para aquela da certeza, necessária a uma condenação.

A manutenção da absolvição dos réus, portanto, é medida que se impõe, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

 

CONCLUSÃO

Ante o exposto, voto por NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Ministério Público Federal, para manter a absolvição de SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.



E M E N T A

 

PENAL. CRIME DE ESTELIONATO MAJORADO. ART. 171, § 3º, DO CÓDIGO PENAL. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PLEITO CONDENATÓRIO. IMPROCEDÊNCIA. PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA. INSERÇÃO DE DECLARAÇÕES FALSAS EM DOCUMENTOS APRESENTADOS À CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. DOLO, CONTUDO, NÃO EVIDENCIADO. APELAÇÃO DESPROVIDA.

- A materialidade do crime de estelionato majorado está demonstrada principalmente pelas declarações constantes de documentos subscritos pelos réus e fornecidas à Caixa Econômica Federal de que eram agricultores e residiam em zona rural, além de possuírem renda anual total inferior àquela estabelecida como limite pelo programa, informações cuja falsidade foi demonstrada quando confrontadas com aquelas obtidas através de diligência de campo realizada por agentes de Polícia Federal, dados de um dos réus no Cadastro Nacional de Informações Sociais e comunicações remetidas pelas empresas nas quais ele exerceu atividade urbana, assim como pela prova oral coligida ao processo. A prova oral coligida ao processo comprova, ainda, a autoria delitiva.

- Por outro lado, remanesce dúvida acerca do dolo dos réus, consistente na intenção deliberada de obterem vantagem ilícita mediante a apresentação de declarações falsas à Caixa Econômica Federal. Com efeito, a despeito de tratar-se de programa de subvenção econômica com nítido caráter social, a prova testemunhal indica que não havia detalhamento acerca dos requisitos de participação, inclusive porque as informações eram repassadas em reuniões das quais participava grande número de pessoas, de maneira que é plausível que os réus desconhecessem que não se enquadravam nas hipóteses legais de recebimento de recursos destinados à construção de moradias. Além disso, apurou-se que os contratos eram assinados na Câmara Municipal, em grupo, quando então era feita chamada nominal para que cada pessoa o assinasse, o que torna plausível que os signatários, ainda que alfabetizados, não tenham lido atentamente todas as informações contidas nos documentos. A propósito, tanto os réus quanto as duas testemunhas ouvidas em juízo relataram que quem lidava com a documentação era um vereador, de maneira que há indícios fortes de que não inseriram diretamente as informações constantes dos documentos que assinaram. Reforça tal conclusão o fato de os documentos terem sido impressos com os campos já preenchidos, e não a caneta, além de alguns sequer estarem completos. É bem verdade que não se trata, em geral, de documentos extensos, a impor uma cansativa leitura de sucessivas cláusulas contratuais redigidas em linguagem técnica, mas sim de declarações em poucas folhas e alguns dados, de maneira que não seria necessária uma análise detida e exaustiva do conteúdo dos documentos que os réus subscreveram para que a desconformidade de alguns dados fosse percebida. Entretanto, as declarações deles em juízo, aliadas às das duas testemunhas ouvidas sob o crivo do contraditório, indicam que as informações atinentes ao programa de construção de moradias eram fornecidas de modo impreciso e talvez até mesmo incorreto, do que poderiam realmente supor que tinham direito ao subsídio, bem como que quem lidava com a documentação era o mencionado vereador e, enfim que a assinatura dos contratos aconteceu na Câmara Municipal, por várias pessoas em sequência, que eram instadas a fazê-lo com celeridade, circunstâncias, enfim, que não permitem que se ultrapasse a esfera da mera possibilidade acerca da existência do dolo para aquela da certeza, necessária a uma condenação.

- Apelação interposta pelo Ministério Público Federal desprovida, para manter a absolvição de SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, REVISÃO RATIFICADA PELO DES. FED. HÉLIO NOGUEIRA. A Décima Primeira Turma, por unanimidade, decidiu NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Ministério Público Federal, para manter a absolvição de SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.