Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Turma

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5017573-76.2020.4.03.6100

RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: SUKHJINDER SINGH MALII

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5017573-76.2020.4.03.6100

RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: SUKHJINDER SINGH MALII

OUTROS PARTICIPANTES:

(cfg) 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O 

 

 

Remessa necessária e apelação interposta pela UNIÃO contra a sentença (ID 186544511) que concedeu a segurança para determinar o processamento de pedido de autorização de residência no Brasil por parte de estrangeiro, com base em questão laboral, sem a apresentação do passaporte válido. 

Aduz a apelante (ID 186544520) que: 

a) a legislação aplicável aos estrangeiros é a Lei nº 13.445/2017, cujo artigo 31 determina a observância aos termos do regulamento que, no caso, é o Decreto nº 9.199/2017; 

b) 0 artigo 129 do Decreto nº 9.199/2017 manda que o pedido de autorização de residência seja instruído com o documento de viagem válido ou outro que comprove a identidade e a nacionalidade do postulante, determinação essa reforçada nas posteriores portarias interministeriais que tratam do assunto, como as de números 3, de 27/02/2018, e 12, de 13/06/2018; 

c) a exigência de documento de viagem, que se coaduna com o princípio constitucional da soberania, é relevante para que seja comprovada a identidade do solicitante e, por tabela, se possibilite verificar a veracidade e pertinência subjetiva dos demais documentos apresentados, tal como a inclusão em lista de restrições por ordem judicial ou por compromisso assumido pelo Brasil perante organismo internacional; 

d) e a Lei de Migração foi editada sob os auspícios da proteção de migrantes e da preservação da dignidade da pessoa humana, o que torna as suas poucas normas restritivas como o mínimo essencial e indispensável à segurança da população do Brasil. 

 

A Defensoria Pública da União, que representa o apelado neste feito, apresentou as contrarrazões recursais, nas quais requereu o desprovimento do apelo interposto (ID 186544526). 

  

A Procuradoria Regional da República da Terceira Região manifestou-se e opinou favoravelmente à manutenção da sentença concessiva da segurança (ID 192927390). 

 

Com a redistribuição do feito a este relator, a apelação foi recebida apenas no efeito devolutivo (ID 203749551). 

 

 

É o relatório. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5017573-76.2020.4.03.6100

RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: SUKHJINDER SINGH MALII

OUTROS PARTICIPANTES:

(cfg) 

 

 

 

 

V O T O 

 

Cuida-se de remessa necessária, acompanhada de apelação da UNIÃO, em que pleiteia a reforma da sentença concessiva da segurança, na qual foi determinado o processamento de pedido de autorização de residência no Brasil por parte do indiano SUKHJINDER SINGH MALII, com base em questão laboral, sem a apresentação do passaporte válido. 

Consta dos autos que o apelado ingressou no país e solicitou refúgio no ano de 2014 (ID 186544497, página 06), o que possibilitou a emissão da carteira de trabalho e previdência social em 20/10/2016 (ID 186544498, página 09) e há informação no referido documento de que se encontra empregado desde 01/10/2016 (ID 186544498, página 11). Quanto ao passaporte, informa que foi extraviado e não consegue obter um novo documento, pois, para isso, teria de solicitar auxílio das repartições consulares da Índia no Brasil, o que não seria possível diante de sua condição de solicitante de refúgio.   

 Dispõe a Constituição Federal sobre os direitos e garantias fundamentais (grifos nossos): 

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:  

(...)  

III - a dignidade da pessoa humana;  

(...) 

 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;  

(...) 

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.  

(...) 

 

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: 

(...) 

II - prevalência dos direitos humanos; 

(...) 

X - concessão de asilo político

 

Em cumprimento aos comandos constitucionais foi editada a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), que estabeleceu, entre seus princípios e garantias previstos no respectivo artigo 3º o direito à acolhida humanitária (inciso VI) e à inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas (inciso X), como forma de dar efetividade aos pilares que regem a política migratória brasileira, consoante se verifica dos artigos 14 e 30 do citado diploma legal: 

 

Art. 14. O visto temporário poderá ser concedido ao imigrante que venha ao Brasil com o intuito de estabelecer residência por tempo determinado e que se enquadre em pelo menos uma das seguintes hipóteses: 

I - o visto temporário tenha como finalidade: 

(...) 

c) acolhida humanitária; 

(...) 

e) trabalho; 

(...) 

 

§ 3º O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento. 

(...) 

 

 

Art. 30. A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante, ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes hipóteses: 

I - a residência tenha como finalidade: 

(...) 

c) acolhida humanitária; 

(...)  

e) trabalho; 

(...) 

 

A Resolução Conjunta nº 01, de 09 de outubro de 2018, do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), instituído pela Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, ao promover a inserção no mercado de trabalho de solicitante de reconhecimento da condição de refugiado junto ao CONARE, assim dispôs no artigo 1º, in verbis

 

Art. 1º O Conselho Nacional de Imigração (CNIg) poderá conceder autorização de residência associada às questões laborais, nos termos do art. 162 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, a solicitante de reconhecimento da condição de refugiado que atender aos critérios estabelecidos abaixo:  

I – possuir documento que comprove ter apresentado solicitação de reconhecimento da condição de refugiado antes de 21 de novembro de 2017, data de entrada em vigor da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, regulamentada no Decreto nº 9.199, de 2017; 

II - possuir Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) com anotação de Contrato de Trabalho anterior a 21 de novembro de 2017 ou ter sido incluído no mercado formal de trabalho entre a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e o dia 21 de novembro de 2017; e 

III – não possuir autorização de residência com base em outra hipótese que tenha possibilitado o exercício de atividade laboral no Brasil, nos termos da legislação vigente. 

(...) 

 

O apelado solicitou refúgio antes de 27/11/2017 e comprovou ter carteira de trabalho e previdência social com vínculo laboral anotado, conforme acima indicado. Por despacho do Coordenador-Geral de Imigração Laboral do Conselho Nacional de Imigração, publicado no Diário Oficial da União de 17/07/2020, a residência, com fundamento na Resolução Conjunta CNIg/CONARE nº 01/2018, foi deferida a SUKHJINDER SINGH pelo prazo de dois anos.  

No que diz respeito à relação de documentos necessários para o processamento de pedidos de autorização de residência, o Estatuto dos Refugiados (Convenção da ONU de 1951) prevê a flexibilização das exigências documentais e regras procedimentais, diante das condições especiais dos refugiados, que se apresentam em situação de urgência ante a fuga do país de origem. O mesmo tratamento foi conferido pelo artigo 43 da Lei nº 9.474/1997, transcrito a seguir (grifo nosso):  

 

Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares. 

 

O art. 20 da Lei nº 13.445/2017 prevê a flexibilização documental para a identificação civil do solicitante de refúgio, verbis (g.n.): 

 

Art. 20. A identificação civil de solicitante de refúgio, de asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário poderá ser realizada com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser. 

 

O Decreto nº 9.199/2017, que regulamenta a Lei de Migração, estabelece o seguinte em seus artigos 68 e 121 (g.n.): 

 

Art. 68. O registro de dados biográficos do imigrante ocorrerá por meio da apresentação do documento de viagem ou de outro documento de identificação aceito nos termos estabelecidos em ato do Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública.  

(...)  

§ 2º O registro e a identificação civil das pessoas que tiveram a condição de refugiado ou de apátrida reconhecida, daquelas a quem foi concedido asilo ou daquelas beneficiadas com acolhida humanitária poderão ser realizados com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser. 

(...) 

 

Art. 121. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica do refugiado será considerada pelos órgãos da administração pública federal quando da necessidade de apresentação de documentos emitidos por seu país de origem ou por sua representação diplomática ou consular. 

 

A jurisprudência desta corte regional está consolidada no sentido da flexibilização das exigências documentais quando o pedido de visto ou autorização de residência tiver como requerente pessoa que imigra para o Brasil no intuito de obter melhores condições de vida, porém muitas vezes enfrenta dificuldades sociais e financeiras que a impossibilitam de apresentar a documentação necessária, a qual não raramente lhe é sonegada em razão do pedido de refúgio. Prevalece o entendimento da necessidade de mitigação da rigidez burocrática procedimental nesses casos, considerado que a regularização migratória é de interesse primordial da própria administração pública e representa condição essencial para que estrangeiros possam usufruir de seus direitos fundamentais no exercício da vida civil no Brasil. 

No caso, o apelado é nacional da Índia e comprovou ser hipossuficiente, razão pela qual não se há de exigir que providencie novos documentos válidos sobre os quais não tem condições financeiras de obtê-los no país origem, sob pena de violação dos princípios da razoabilidade e da isonomia. Além disso, ao buscar proteção contra o seu Estado nacional com o pedido de refúgio, não seria minimamente plausível que se dirigisse aos órgãos consulares daquele país para solicitar a emissão de novo passaporte indiano. Nesse cenário, dado que é solicitante tanto de refúgio quanto de regularização migratória por questão laboral, aplicável por analogia a dispensa prevista no artigo 20 da Lei nº 13.445/2017. Nesse sentido, transcrevo ementa de recente julgado sobre caso análogo conduzido nesta 4ª Turma: 

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. ESTRANGEIRA REFUGIADA. PROCESSAMENTO DE AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA POR QUESTÕES LABORAIS. DISPENSA DE APRESENTAÇÃO DE PASSAPORTE. FLEXIBILIZAÇÃO DOCUMENTAL. POSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 

- A jurisprudência desta corte regional está consolidada no sentido da flexibilização das exigências documentais quando o pedido de visto ou autorização de residência tiver como requerente pessoa oriunda de país que notadamente enfrenta crises sociais e humanitárias. 

- A apelada é solicitante de refúgio, além de ser hipossuficiente, razão pela qual não se há de exigir que providencie documentos sobre os quais não tem condições financeiras de obtê-los no país origem, sob pena de violação dos princípios da razoabilidade e da isonomia. Afirmou que a embaixada de seu país de origem no Brasil não emite passaporte para refugiados. Nesse cenário, dado que é solicitante tanto de refúgio quanto de regularização migratória, aplicável por analogia a dispensa prevista no artigo 20 da Lei nº 13.445/2017.   

- Remessa necessária e apelação da UNIÃO desprovidas.  

(TRF3. ApelRemNec - APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA / SP 5006814-87.2019.4.03.6100. Relator(a) Juiz Federal Convocado SIDMAR DIAS MARTINS. Órgão Julgador 4ª Turma. Data do Julgamento 09/02/2023. Data da Publicação: 14/02/2023/Fonte Intimação via sistema) 

 

Destarte, diante da impossibilidade de apresentação de passaporte válido para processamento de pedido de autorização de residência com base na Resolução Conjunta CNIg/CONARE nº 01/2018, a sentença concessiva da segurança deve ser mantida. 

Diante do exposto, NEGO PROVIMENTO à remessa necessária e ao recurso de apelação interposto pela UNIÃO.

 

É como voto. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A 

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. ESTRANGEIRO COM PEDIDO DE REFÚGIO. PROCESSAMENTO DE AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA POR QUESTÃO LABORAL. DISPENSA DE APRESENTAÇÃO DE PASSAPORTE VÁLIDO. FLEXIBILIZAÇÃO DOCUMENTAL. POSSIBILIDADE. RECURSOS DESPROVIDOS.  

- A jurisprudência desta corte regional está consolidada no sentido da flexibilização das exigências documentais quando o pedido de visto ou autorização de residência tiver como requerente pessoa que imigra para o Brasil no intuito de obter melhores condições de vida, porém muitas vezes enfrenta dificuldades sociais e financeiras que a impossibilitam de apresentar a documentação necessária, a qual não raramente lhe é sonegada em razão do pedido de refúgio.  

- O apelado é solicitante de refúgio, além de ser hipossuficiente, razão pela qual não se há de exigir que providencie documentos sobre os quais não tem condições financeiras de obtê-los no país origem, sob pena de violação dos princípios da razoabilidade e da isonomia. Além disso, ao buscar proteção contra o seu Estado nacional com o pedido de refúgio, não seria minimamente plausível que se dirigisse aos órgãos consulares daquele país para solicitar a emissão de novo passaporte indiano. Nesse cenário, dado que é solicitante tanto de refúgio quanto de regularização migratória por questão laboral, aplicável por analogia a dispensa prevista no artigo 20 da Lei nº 13.445/2017. Precedentes. 

- Remessa necessária e apelação da UNIÃO desprovidas. 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quarta Turma, à unanimidade, decidiu NEGAR PROVIMENTO à remessa oficial e ao recurso de apelação interposto pela UNIÃO, nos termos do voto do Des. Fed. ANDRÉ NABARRETE (Relator), com quem votaram a Des. Fed. MÔNICA NOBRE e o Juiz Fed. Conv. SILVA NETO. Ausentes, justificadamente, em razão de férias, a Des. Fed. MARLI FERREIRA (substituída pelo Juiz Fed. Conv. SILVA NETO) e o Des. Fed. MARCELO SARAIVA , nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.