APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5018452-20.2019.4.03.6100
RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR
APELANTE: INSTITUTO FEDERAL DE EDUCACAO, CIENCIA E TECNOLOGIA DE SAO PAULO
APELADO: OTAVIO LUIZ MEDEIROS TIBAGY
Advogado do(a) APELADO: ELISANGELA UMPIERRE VIEIRA - RS108048-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5018452-20.2019.4.03.6100 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: INSTITUTO FEDERAL DE EDUCACAO, CIENCIA E TECNOLOGIA DE SAO PAULO APELADO: OTAVIO LUIZ MEDEIROS TIBAGY Advogado do(a) APELADO: ELISANGELA UMPIERRE VIEIRA - RS108048-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Cuida-se de apelação de sentença que julgou procedente pedido de manutenção do autor em concurso público para o cargo de Professor de Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO – IFSP, na condição de cotista (pardo), conforme autodeclaração feita no ato da inscrição, prosseguindo-se nas demais fases do certame até sua nomeação e posse, bem como condenou o réu ao pagamento dos honorários advocatícios arbitrados em R$ 3.000,00 (Fls. 293/306-PJe – ID Num. 261618372 - Pág. 1). Em 02 de dezembro de 2019, OTAVIO LUIZ MEDEIROS TIBAGY ajuizou a presente ação em face do INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO - IFSP, sustentando, em síntese, que participou do concurso público para o cargo de Professor de Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO – IFSP, na condição de cotista (pardo), foi aprovado nas fases de prova objetiva e desempenho didático, mas, no entanto, na fase de confirmação da autodeclaração (heteroidentificação), não teve aquela confirmada. Ingressou com recurso, que restou indeferido. Solicitou mais informações sobre tal indeferimento, ao que a comissão respondeu que o autor não apresenta fenótipos típicos dos grupos étnicos raciais negros, não se enquadrando como negro e nem mesmo como pardo. Aduziu que o legislador das Leis 12.711/2012 e 12.990/2014, bem como o edital, exigiu apenas a autodeclaração como critério para concorrência às vagas reservadas aos cotistas, sendo inexigível a confirmação da autodeclaração. Aduziu, ainda, que a resposta ao recurso administrativo, pela comissão, foi omissa quanto às características físicas que estariam a afastar o autor da condição de afro-brasileiro, circunstância que deveria ter sido investigada de uma forma mais técnica, notadamente porque no edital não constou quais critérios o IFSP levaria em consideração para o enquadramento do candidato como afrodescendente. Requereu, então, a concessão de medida liminar para o fim de prosseguimento nas demais fases do certame, na condição de cotista (pardo) bem como o acolhimento do pedido para “manter o autor na qualidade de cotista conforme autodeclaração étnico racial no ato da inscrição e assim dar, seguimento as próximas fases do certame, até sua nomeação e posse”, condenando o réu ao pagamento dos encargos decorrentes da sucumbência. Deu à causa o valor de R$ 2.000,00. (Fls. 4/26 – ID Num. 261618269 - Pág. 1). Juntou os documentos fls. 75/204-PJe (ID Num. 261618271 - Pág. 1). O requerimento de concessão de antecipação da tutela foi deferido “apenas e tão somente para fins de suspender a exclusão do autor na condição de cotista do certame em questão, decorrente de sua reprovação na avaliação do critério de pessoa parda, permitindo-lhe o prosseguimento nas demais etapas do concurso, até ulterior decisão” (fls. 208/211-PJe – ID Num. 261618343 - Pág. 1). O INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO - IFSP ofertou contestação, na qual aduziu, em síntese, que a participação no certame na condição de cotista exige a autodeclaração do candidato, no momento da inscrição, e a confirmação dessa declaração em procedimento de heteroidentificação, que se trata uma avaliação fenotípica do candidato por uma comissão nomeada pela organização do certame. Nesse contexto, constituiu comissão composta por pessoas ligadas à causa racial que, após exame, concluiu que o autor não apresentou as características das pessoas afrodescendentes, não cabendo a substituição da decisão da comissão pela do Judiciário, sob pena de incursão indevida no mérito administrativo, em flagrante violação ao postulado da separação de poderes. Requereu fosse julgado improcedente o pedido, com condenação do autor nos encargos decorrentes da sucumbência (fls. 217/228-PJe – ID Num. 261618346 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. 230/235-PJe – ID Num. 261618348 - Pág. 1). Réplica às fls. 239/241-PJe (ID Num. 261618352 - Pág. 1). Às fls. 287/288-PJe (ID Num. 261618368 - Pág. 1), o réu informou que, em decorrência do cumprimento da ordem de antecipação da tutela, o autor foi relacionado entre os candidatos convocáveis, nos seguintes termos: “A ordem de nomeação seguida é a de AC, AC, PP, AC, PCD. O candidato prestou sua prova para o campus de Registro e ficou em quarto lugar na classificação geral, e primeira PP (pretos e pardos). Essa vaga para o campus Registro é no caso uma vaga de ampla concorrência. Desta forma, o candidato em questão seguindo a ordem acima citada será o terceiro a ser nomeado no campus de Registro. Até o momento fora[m] disponibilizadas duas vagas de ampla concorrência para esse campus. De qualquer forma caso veja [venha] a surgir mais uma vaga nesse campus em específico, o candidato terá a prioridade para assumir a vaga.” Sobreveio, então, sentença julgando procedente o pedido, sob fundamento, em síntese, de que o ato de exclusão do candidato não foi fundamentado, da qual menciono as seguintes passagens e faço os seguintes destaques: “No presente caso, como o autor se insurgiu em face do ato administrativo que procedeu à sua exclusão do certame, era ônus da parte ré não apenas promover a comprovação / habilitação / qualificação dos membros da Comissão de Heteroidentificação, que decidiu pela exclusão do candidato, como, ainda, ter colacionado ao feito o parecer exarado pela referida Comissão, com as justificativas / considerações / motivações para a não consideração do fenótipo declarado pelo autor. Como mencionado anteriormente, a análise visual de um candidato (no feito, é possível apenas por meio da imagem colacionada – id 22737212, p. 01), para aferição de seu fenótipo, não é tão simples, e é irremediavelmente condicionada pelo seu cotejamento com a de membros familiares (ids 22737214 e 22737215). Se, no presente caso, a ascendência do candidato não pode ser levada em consideração para aferição de seu fenótipo, é evidente que, com mais razão, deverão ser expressos, claros e objetivos os elementos que foram considerados para o delineamento do fenótipo do autor. Nos termos da Portaria Normativa nº 04, de 06 de abril de 2018, restou normatizado, entre outros: i. garantia da publicidade e do controle social do procedimento de heteroidentificação, resguardadas as hipóteses de sigilo previstas nesta Portaria Normativa; ii. a comissão de heteroidentificação será constituída por cidadãos (...) que tenham participado de oficina sobre a temática da promoção da igualdade com base em conteúdo racial e do enfrentamento ao racismo disponibilizado pelo órgão responsável pela promoção da igualdade étnica previsto no § 1º do art. 49 da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010 (...) preferencialmente experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo; iii. a composição da comissão de heteroidentificação deverá atender ao critério da diversidade, garantindo que seus membros sejam distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade; iv. serão resguardos o sigilo dos nomes dos membros da comissão de heteroidentificação, podendo ser disponibilizados aos órgãos de controle interno e externo, se requeridos; v. os currículos dos membros da comissão de heteroidentificação deverão ser publicados em sítio eletrônico da entidade responsável pela realização do certame; vi. Serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação No feito, deixou a ré de apresentar o parecer da comissão, de identificar seus membros (para aferição de cumprimento das exigências normativas mencionadas alhures), de comprovar a publicação de seus currículos (o que permitiria parte da referida aferição), e, mais importante, de esclarecer quais características fenotípicas do candidato foram analisadas, limitando-se à juntada de um ofício expedido pelo Presidente da Comissão do Concurso em cujo bojo se consignou, reitere-se, que “a comissão informa que o processo de heteroidentificação foi realizado com base na Lei nº 12.990/2014 (Cotas - vagas destinadas a candidatos negros) e na Portaria Normativa nº 4, de 06 de abril de 2018 da Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério do Planejamento. E o candidato acabou sendo eliminado (...)” (id 24450613, p. 02). Considerando-se, nesse diapasão, que não houve a escorreita motivação do ato administrativo que concluiu pela impossibilidade de o autor concorrer a uma vaga destinada a candidatos negros/pardos, de rigor a procedência do feito.” (destaquei) Por fim, condenou o réu ao pagamento dos honorários advocatícios arbitrados em R$ 3.000,00 (Fls. 293/306-PJe – ID Num. 261618372 - Pág. 1). Apela o réu renovando, basicamente, os mesmos fundamentos articulados na contestação (fls. 326/332-PJe – ID Num. 261618377 - Pág. 1) O autor juntou documentação comprobatória de sua nomeação (Portaria nº 3.295/IFSP, de 24 de junho de 2022 – fls. 338-PJe – ID Num. 261618382 - Pág. 1), posse e entrada em exercício (em 25-07-2022 – fls. 342/343-PJe – ID Num. 261618385 - Pág. 1). Sem contrarrazões, vieram os autos a esta Corte. É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5018452-20.2019.4.03.6100 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: INSTITUTO FEDERAL DE EDUCACAO, CIENCIA E TECNOLOGIA DE SAO PAULO APELADO: OTAVIO LUIZ MEDEIROS TIBAGY Advogado do(a) APELADO: ELISANGELA UMPIERRE VIEIRA - RS108048-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Ao início, anoto se tratar de sentença ilíquida proferida contra o INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO - IFSP, autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, sendo de rigor a aplicação do disposto no art. 496, I, do NCPC-15 (“Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; ...”), não se lhe aplicando a exceção do disposto no § 3º (“§ 3º Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a: – 1.000 (mil) salários mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público”). Nesse sentido, a pacífica orientação do STJ, quando em vigor o antigo CPC-73, que veiculava norma semelhante (“Art. 475 - ... § 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor”): “REEXAME NECESSÁRIO. DISPENSA LEGAL. SENTENÇA ILÍQUIDA. INAPLICABILIDADE. 1. As sentenças ilíquidas desfavoráveis à União, ao Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às respectivas autarquias e fundações de direito público estão sujeitas ao reexame necessário. 2. A exceção contida no art. 475, § 2º, do CPC não se aplica às hipóteses de pedido genérico e ilíquido, pois esse dispositivo pressupõe uma sentença condenatória "de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos". Precedentes. 3. Embargos de divergência conhecidos e providos. (EREsp 699.545/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 15/12/2010, DJe 10/02/2011)” “RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. REEXAME NECESSÁRIO. SENTENÇA ILÍQUIDA. CABIMENTO. 1. É obrigatório o reexame da sentença ilíquida proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias e fundações de direito público (Código de Processo Civil, artigo 475, parágrafo 2º). 2. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao procedimento do artigo 543-C do Código de Processo Civil. (REsp 1101727/PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/11/2009, DJe 03/12/2009)” “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE CONHECIMENTO. MUNICÍPIO AUTOR. SENTENÇA IMPROCEDENTE. SUBMISSÃO AO DUPLO GRAU. NECESSIDADE. 1. A controvérsia reside em saber se a sentença de improcedência proferida em demanda ajuizada pelo ente público, no caso o Município, está sujeita ao duplo grau de jurisdição. 2. A ação de cobrança foi ajuizada pelo Município de Esplanada contra a União, objetivando-se a fixação do valor mínimo anual por aluno e o pagamento de complementação para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério - FUNDEF - entre os anos de 1998 a 2002, nos termos do § 1º do art. 6º da Lei 9.424/1996 (e-STJ fl. 13). 3. O Juízo de primeira instância julgou improcedente o pedido da municipalidade e extinguiu o processo com resolução do mérito, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil (e-STJ fls. 141-144). Após, o magistrado de piso determinou a remessa dos autos ao TRF da 1ª Região, tendo em vista o disposto no artigo 475, inciso I, do CPC (e-STJ fl.. 147). 4. A Corte regional não conheceu da remessa oficial, ao entendimento de ser prescindível submeter sentença de improcedência ao duplo grau de jurisdição quando a ação de conhecimento for ajuizada pelo próprio Município. 5. A determinação contida no inciso I do artigo 475 do Código Processual é expressa, no sentido de que todas as sentenças proferidas contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, respectivas autarquias e fundações de direito público devem submeter-se ao regime do duplo grau de jurisdição. 6. As únicas ressalvas inseridas pelo legislador no Código Processual se encontram nos §§ 2 e 3º da citada norma, quais sejam, respectivamente: a) "nos casos em que a condenação, ou o direito controvertido for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor"; b) "quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente". 7. Se o legislador não excluiu expressamente a submissão ao duplo grau quando o ente público - autor da demanda de conhecimento - for vencido, não cabe ao intérprete excluí-la de maneira mais gravosa à parte. Aplica-se, in casu, a máxima "inclusio unius alterius exclusio". Precedente: (AgRg no Ag 954.848/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 04.03.09). 8. Retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que a sentença seja reexaminada, nos termos do artigo 475, inciso I, do Código de Processo Civil. 9. Recurso especial provido. (REsp 1144732/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2009, DJe 15/10/2009)” Tenho, portanto, por interposta a remessa oficial, nos termos do art. 496, I, do NCPC/2015. Ainda ao início, anoto que a Administração Pública é regida pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, CF). Disso decorre que os atos praticados pelos seus agentes são revestidos de presunção de veracidade e legitimidade, que, para ser afastada, exigem apresentação / produção de prova tendente a afastar aquela presunção. Nesse sentido, a pacífica orientação da jurisprudência nas diversas vertentes do Direito Administrativo, inclusive em feito de minha relatoria. Precedentes: STJ: AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS RECONHECIDA. CONCURSO PÚBLICO REALIZADO. RESERVA VAGAS COTAS. PREVISÃO EDITALÍCIA RESPEITADA. INTERESSE PÚBLICO. LEGITIMIDADE. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA. 1. O deferimento do pedido de suspensão está condicionado à cabal demonstração de que a manutenção da decisão impugnada causa efetiva lesão ao interesse público. 2. A suspensão de segurança é medida excepcional que não tem natureza jurídica de recurso, razão pela qual não propicia a devolução do conhecimento da matéria para eventual reforma. 3. Não foram apresentados argumentos robustos que pudessem infirmar os fundamentos da decisão impugnada de que o Poder Judiciário não deve imiscuir-se na seara administrativa do Poder Executivo, sem a caracterização de flagrante desvio de finalidade, que poderia justificar uma tomada de decisão substitutiva de forma excepcional. Agravo interno improvido. (AgInt na SLS n. 3.032/PE, relator Ministro Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 12/4/2022, DJe de 19/4/2022.) PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. AGENTE PENITENCIÁRIO. EXAME PSICOTÉCNICO. INAPTIDÃO AFIRMADA POR LAUDO OFICIAL. CONTRAPROVA. LAUDO PARTICULAR QUE NÃO POSSUI A FORÇA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA CAPAZ DE PRONTAMENTE EVIDENCIAR A ALEGADA VIOLAÇÃO DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. DILAÇÃO PROBATÓRIA. INVIABILIDADE NO ESTREITO PROCEDIMENTO MANDAMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO NEGADO POR DECISÃO MONOCRÁTICA. POSSIBILIDADE REGIMENTAL. 1. A negativa de seguimento a recurso ordinário por decisão monocrática encontra amparo no art. 557 do CPC/1973 e no art. 34, XVIII, do RISTJ, dispositivo este que, expressão do princípio constitucional da razoável duração do processo, confere poderes ao Relator para "negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente, contrário a súmula do Tribunal, ou quando for evidente a incompetência deste", como foi o caso dos autos, em que a insuficiência das provas lançou fundadas dúvidas sobre as alegações do impetrante quanto à validade do exame psicotécnico que o reprovou. 2. A inaptidão do candidato, declarada por laudo pericial oficial, não pode ser afastada, em sede de mandado de segurança, com a tão só apresentação de contraprova consubstanciada em laudo particular produzido por profissional escolhido pelo impetrante, sobretudo em virtude da presunção de veracidade que caracteriza os atos administrativos, resultando, desse contexto, a ausência da necessária e indispensável prova pré-constituída capaz de prontamente evidenciar a afirmada violação de direito líquido e certo. 3. A opção pelo mandado de segurança oferece ao impetrante as vantagens da maior celeridade processual e da prioridade na tramitação em relação às ações comuns. Todavia, essa opção cobra o preço da prévia, cabal e incontestável demonstração dos fatos alegados, mediante a apresentação prova documental idônea, a ser apresentada desde logo com a inicial e que prontamente revele a liquidez e certeza do direito afirmado. 4. No caso concreto, a documentação trazida, para além de questionar a presunção de veracidade de que gozam os laudos oficiais, deixa, na melhor das hipóteses, dúvida razoável quanto a aptidão do candidato para o específico desempenho das atribuições do cargo de Técnico Penitenciário, controvérsia que somente poderia ser dirimida mediante adequada dilação probatória, que não pode ter lugar na estreita via mandamental. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no RMS 45.562/MS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 06/10/2016) TRF3: ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CURSO PREPARATÓRIO DE CADETES DO AR. EXAME MÉDICO. REPROVAÇÃO. ESCOLIOSE ACIMA DE 12 GRAUS COOB. LEGITIMIDADE. 1. Discute-se o ato administrativo que concluiu pela inaptidão do autor para ingresso nos quadros das Forças Armadas, por ter sido reprovado no exame médico por apresentar escoliose com grau acima de 12 (doze) graus Cobb. 2. As regras estabelecidas para os concursos públicos, destinadas a todos os interessados, fixadas previamente pela Administração Pública vem a "propiciar o acesso em igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II da C.F". (MEIRELLES, Hely Lopes - Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição, São Paulo, Malheiros, 2.002, p. 409). Referidas regras, predispostas àqueles que pretendam competir à uma vaga no serviço público, portanto, de domínio público, encontram-se insertas no edital cujo objetivo é caracterizar a impessoalidade dos competidores. Dessa forma, oportuniza-se a participação de qualquer interessado, desde que sejam atendidas as suas condições e as previstas em lei, sobre a qual em hipótese alguma deve ser afastar. Conclui-se, pois, que "A Administração é livre para estabelecer as bases do concurso e os critérios de julgamento, desde que o faça com igualdade para todos os candidatos..." (MEIRELLES, Hely Lopes - Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição, São Paulo, Malheiros, 2.002, p. 410). 3. A composição dos ordenamentos citados denota que as Forças Armadas podem estabelecer, diante dos critérios de conveniência e oportunidade do serviço, discricionariamente, as condições para o processo seletivo de ingresso no serviço militar, desde que pautada pelo ordenamento. Melhor dizendo, a Administração, nas mais variadas esferas do Poder, deve se pautar pelo sistema jurídico vigente e sua discricionariedade a ele se limita, premissas dentre as quais se encontra a possibilidade de avaliação das moléstias impeditivas do exercício da carreira militar. 4. Não há qualquer ofensa ao princípio da legalidade, porquanto não há como exigir que a lei preveja todas as hipóteses relativas à capacidade física dos candidatos a ingresso nas Forças Armadas, razão pela qual o artigo 10 da Lei nº 6.880/1980 conferiu expressamente ao regulamento a tarefa de fazê-la. 5. As exigências constantes do Edital são aplicáveis a todos os candidatos, sem distinção, não se cuidando de inovação, pois já se encontravam previstas nas Instruções Técnicas das Inspeções de Saúde na Aeronáutica, aprovada pela Portaria DIRSA Nº 012/SDTEC, de 9 de março 2009, editadas com a finalidade de estabelecer os requisitos, causas de incapacidade, normas e rotinas para a execução das Inspeções de Saúde pelas Juntas de Saúde do Sistema de Saúde da Aeronáutica (SISAU), aplicáveis em todo âmbito militar e civil da Aeronáutica. 6. O autor submeteu-se a exame perante a Junta Especial de Saúde, tendo o Relatório Médico concluído no sentido de sua reprovação para o Curso Preparatório de Cadetes do Ar, por apresentar escoliose com 15 (quinze) graus Coob, acima, portanto, do limite de 12 (doze) graus Cobb previsto no Edital e na legislação correlata (f. 78/79). 7. O perito judicial atestou não possuir o autor incapacidade física de qualquer natureza, porém, frisou ser inapto para o ingresso na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, considerando as exigências específicas para tanto. 8. Conquanto o autor não detenha incapacidade física para atividades cotidianas, o fato é que, para ingressar no Curso Preparatório de Cadetes do Ar, deve cumprir requisitos pré-determinados nas normas, considerando a especificidade das atividades exercidas. O óbice ao ingresso de candidato com escoliose com grau acima de 12 (doze) graus Cobb não é despropositada, pois é cediço que o cadete será submetido a condições físicas excepcionais e extremas, seja no treinamento de solo ou aéreo. 9. Deve ser ressaltado que, atualmente, com superveniência da Portaria DIRSA nº 19/SECSDTEC, de 26 de março de 2014, a qual aprovou a reedição da Instrução que trata das Inspeções de Saúde, a restrição foi ampliada, dispondo que os candidatos ao Curso Preparatório de Cadetes do Ar da EPCAR poderão ter desvio somente de até 10 (dez) graus Cobb, o que demonstra a importância do requisito para a carreira de Cadete do Ar. A patologia que acomete o autor não impede que concorra a outros cursos na Aeronáutica, a exemplo dos Oficiais Aviadores, Oficiais Infantes, Oficiais Intendentes da AFA, dentre outros, para os quais a escoliose com 15 (quinze) graus Cobb de que é portador não consubstancia óbice. Porém, para Cadete do Ar, a restrição é legítima e deve ser observada, nos termos do Edital, o qual vincula as partes, bem como da legislação que rege a matéria supra citada. 10. Consigno não ter o autor logrado abalar a presunção de legitimidade que permeia o ato administrativo, máxime considerando-se ter o juízo oportunizado a juntada de mais exames, além daqueles já analisados pelo perito judicial (f. 102), porém, o autor quedou-se inerte quanto à prova de seu direito, deixando de demonstrar, inclusive, eventual equívoco na avaliação médica da Aeronáutica ou do perito judicial, no que tange à margem de erro suscitada na inicial. 11. Apelação improvida. (TRF 3ª Região, TERCEIRA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1626488 - 0014118-86.2009.4.03.6000, Rel. JUÍZA CONVOCADA ELIANA MARCELO, julgado em 21/08/2014, e-DJF3 Judicial 1 DATA:26/08/2014) TRIBUTÁRIO E PROCESSO CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE DA CDA. COMPROVAÇÃO DE INEXATIDÕES E ILEGALIDADES. ÔNUS DO EMBARGANTE. AUSÊNCIA DE PROVA DAS ALEGADAS COBRANÇAS ILEGAIS. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Com relação às Certidões de Dívida Ativa, consigne-se que alegações genéricas não são aptas a afastar a presunção de veracidade e legalidade de que gozam os títulos executivos. Sendo ato administrativo enunciativo promanado de autoridade adstrita ao princípio da legalidade (art. 37, CF), goza a CDA de presunção de legitimidade, de tal sorte que cabe ao executado demonstrar a iliquidez da mesma. 2. A dívida regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez e tem o efeito de prova pré-constituída (Art. 204, CTN), eis que precedida de apuração em regular processo administrativo, no qual é assegurada ampla defesa ao sujeito passivo da obrigação tributária, de maneira que cabe ao devedor fornecer provas inequívocas que demonstrem a invalidade do título. 3. No caso dos autos, a parte embargante formulou alegações genéricas de ilegalidade da cobrança de contribuição previdenciária sobre verbas indenizatórias integrantes do salário de seus empregados, porém não trouxe qualquer indício de que tenham sido lançados nas CDAs débitos decorrentes da incidência desta contribuição sobre tais verbas. 4. À mingua de comprovação da alegada cobrança ilegal, não é possível o provimento do recurso para que se afaste eventual cobrança, sob pena de configuração de decisão condicional. 5. Apelação desprovida. (TRF 3ª Região, 1ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0029566-62.2014.4.03.6182, Rel. Desembargador Federal HELIO EGYDIO DE MATOS NOGUEIRA, julgado em 11/03/2020, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 18/03/2020) DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CONCORRÊNCIA. PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS. EXCLUSÃO. AVALIAÇÃO BIOPSICOSSOCIAL. LAUDO PARTICULAR. CONFRONTO PROBATÓRIO. NECESSIDADE DE PRODUÇÃO PROBATÓRIA. INVIABILIDADE. PROCESSO MANDAMENTAL. INEXISTÊNCIA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. LIMINAR INDFERIDA. APELO IMPROVIDO. 1. Inicialmente, cumpre ressaltar que o edital é a lei do certame, constituindo ato normativo elaborado no exercício de competência legalmente atribuída, e vincula, reciprocamente, a Administração Pública e os candidatos, em observância aos princípios da legalidade, da isonomia e da vinculação ao instrumento convocatório. 2. Com efeito, não é dado ao Poder Judiciário interferir na esfera de discricionariedade do administrador no que tange à escolha dos critérios de avaliação dos candidatos. No presente caso, o edital previa que o candidato que lograsse a classificação dentro do quantitativo de vagas previsto nos subitens 9.11.6 e 10.7.1, se submeteria à avalição biopsicossocial para fins de enquadramento ou não na condição de deficiente. 3. Na hipótese, a apelada concluiu que o recorrente não se enquadra na condição de pessoa com deficiência, nos termos do Decreto nº 3.298/99. Entender de forma diversa, resultaria em violação aos princípios da separação dos poderes e da isonomia. 4. Pacífica a jurisprudência da Corte Superior no sentido de que "o Mandado de Segurança detém entre seus requisitos a demonstração inequívoca de direito líquido e certo pela parte impetrante, por meio da chamada prova pré-constituída, inexistindo espaço para dilação probatória na célere via do mandamus" (RMS 45.989/PB, Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 6/4/2015). 5. Inviável o afastamento da conclusão da junta médica oficial nesta via mandamental, pela confrontação, tão somente, com a juntada de laudo médico particular, porquanto, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade, do que reclama a necessária e indispensável prova pré-constituída. 6. Isto porque o mandado de segurança tem rito sumário e não comporta dilação probatória, sendo exigida a prova prévia dos fatos alegados no momento da impetração do mandamus, inocorrente na espécie 7. Liminar indeferida. 8. Apelo improvido. (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000198-96.2019.4.03.6100, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 23/06/2020, Intimação via sistema DATA: 25/06/2020) PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. INDEFERIMENTO DE PERÍCIA. NULIDADE DA SENTENÇA POR CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. MULTA ADMINISTRATIVA. INMETRO. DIVERGÊNCIA ENTRE PESO REAL E PESO NOMINAL. REPROVAÇÃO DO PRODUTO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADES NA PERÍCIA ADMINISTRATIVA. VALOR DA MULTA APLICADA DENTRO DOS LIMITES DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. Caso em que a empresa-embargante sofreu a autuação administrativa em decorrência da divergência do peso constante na embalagem do produto e o apurado pela fiscalização. 2. Alegação de nulidade da sentença por cerceamento de defesa afastada. A realização de perícia sobre produtos semelhantes coletados na fábrica é irrelevante para o deslinde da controvérsia. Isso porque a perícia recairia sobre lotes de épocas diferentes, os quais não poderiam servir como parâmetro para invalidar a perícia do INMETRO sobre os produtos recolhidos nos pontos de venda em data pretérita. 3. A apelante não logrou bom êxito em comprovar qualquer mácula na perícia administrativa que concluiu pela divergência de peso nos produtos indicados no laudo, bem como não apontou concretamente qualquer erro no procedimento adotado pelo INMETRO que pudesse enfraquecer as conclusões dos laudos produzidos pela autoridade administrativa, conclusivos no sentido de reprovar os produtos. 4. O ato administrativo é revestido pela presunção de veracidade e legitimidade. Referida presunção não é absoluta, uma vez que pode ser afastada caso sejam trazidos elementos probatórios suficientes para comprovar eventual ilegalidade. No caso dos autos, não se trata de atribuir à perícia administrativa valor absoluto, mas, de outro modo, de constatar que a autuada não trouxe elementos robustos capazes de infirmar tal presunção. 5. De acordo com o que restou apurado pela fiscalização, a autora é fabricante de produto reprovado no critério média e no critério individual por divergência entre o peso encontrado e o que consta na embalagem, violando, pois, a legislação metrológica acerca da matéria. 6. A violação aos direitos consumeristas atrai a responsabilidade objetiva e solidária do fabricante por vícios de quantidade dos produtos, nos termos do art. 18 do CDC. 7. Tratando-se de responsabilidade objetiva, descabe fazer incursão no elemento subjetivo do fabricante, ou seja, se teve culpa ou dolo no tocante ao vício do produto verificado pela autoridade. Mesmo porque a responsabilização marcada por sua natureza solidária inviabiliza que sejam acolhidas as alegações da fabricante no sentido de existir a possibilidade de o vício ter se originado no transporte ou acondicionamento do produto. 8. É dever do fabricante adotar as medidas adequadas para assegurar que o produto chegue ao consumidor com o peso indicado na embalagem. Por esse motivo, é possível que as amostras sejam colhidas fora do estabelecimento do fabricante, pois a fiscalização deve, de fato, recair sobre todas as fases da comercialização. 9. O produto está sujeito a perdas previsíveis inerentes ao transporte e acondicionamento, a infração se configura diante da omissão do fabricante em diligenciar que ao curso da cadeia de fornecimento seja preservada a fidelidade quantitativa da mercadoria em que apõe sua marca. 10. Quanto à fixação e quantificação da penalidade a ser aplicada, se advertência ou multa, encontram-se no campo de discricionariedade da Administração Pública, competindo ao Poder Judiciário, tão somente, verificar se foram obedecidos os parâmetros legais. 11. Além do caráter punitivo e repressivo no caso da ocorrência da infração, a multa também possui viés preventivo no que se refere à coerção sobre o comportamento do fabricante dos produtos para que observe a legislação protetiva ao consumidor. 12. Apelação não provida. (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5001210-98.2018.4.03.6127, Rel. Desembargador Federal NELTON AGNALDO MORAES DOS SANTOS, julgado em 02/04/2020, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 06/04/2020) DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO CONSTITUCIONAL. CANDIDATO AUTODECLARADO PARDO. ELIMINADO POR COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. ADPF 186 E ADC 41. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. 1. O Supremo Tribunal Federal declarou em diversas ocasiões a constitucionalidade de políticas afirmativas e a possibilidade de reserva de vagas em concursos públicos para determinadas categorias. No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, a Corte Suprema expôs o entendimento de que “o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares”. Especificamente em relação à Lei 12.990/2014, afastou-se qualquer alegação de violação à Constituição por meio do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41. 2. Verifica-se, assim, que o ato impugnado observou normas e disposições legais e editalícias, tendo sido observado, além da Lei 12.990/2014 e o Edital de Abertura CCS 23/2019, a Portaria Normativa 4, de 06/04/2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/Secretaria de Gestão de Pessoas, que trata do procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros. 3. Conforme extraído dos autos, não apenas foram constituídas regulamente a comissão de heteroidentificação e a comissão recursal, como foi devidamente motivada a conclusão firmada em relação ao impetrante, mediante aplicação de critérios objetivos enunciados nas regras do concurso, com amparo legal e previsão editalícia, a impedir o reconhecimento de ilegalidade ou abuso de poder na decisão colegiada, em que se assentou não ter sido comprovada a condição autodeclarada pelo candidato para fins de provimento do cargo disputado. 4. Não existe, pois, direito líquido e certo a ser objeto de tutela judicial, valendo destacar que a via mandamental não se presta a discutir controvérsia sem comprovação documental inconteste, até porque existe a presunção de legitimidade e veracidade do ato administrativo, cuja desconstituição exige cabal demonstração da ilegalidade praticada pela autoridade coatora, tendo a atuação da comissão de heteroidentificação obedecido as disposições legais aplicáveis, segundo aclarado e depreendido dos autos. 5. Apelação desprovida. (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5001897-28.2019.4.03.6002, Rel. Desembargador Federal LUIS CARLOS HIROKI MUTA, julgado em 04/03/2021, Intimação via sistema DATA: 08/03/2021) De modo que não é da Administração o ônus de provar a lisura dos atos que pratica, pois que ela é presumida, sendo do administrado o ônus de fazer prova em sentido contrário, merecendo destacar, no ponto, que a queixa exposta na inicial se volta contra o fato de a autodeclaração não ter sido aceita, por si só, invocando-se contrariedade às Leis 12.711/2012 e 12.990/2014, a subjetividade do critério adotado pela Administração e a falta de motivação – pontos que serão enfrentados adiante. Observa-se, ainda, que intimado a se manifestar sobre a produção de outras provas no feito (fls. 236-PJe – ID Num. 261618349 - Pág. 1; fls. 239/241-PJe – ID Num. 261618352 - Pág. 1), o autor não manifestou qualquer interesse, o que bem denota que a sua tese principal – pelos argumentos expostos nos autos – é a de que a autodeclaração, por si só, é suficiente a demonstrar que faz jus ao critério diferenciado de seleção a um cargo público. Afasta-se, portanto, o fundamento de que a Administração não teria comprovado que seguiu as regras que ela mesma estabeleceu. Quanto à exigência de confirmação da autodeclaração por uma comissão de heteroidentificação, a norma editalícia é clara: “1.8. A fase de heteroidentificação dos candidatos que se declararem negros será realizada em momento oportuno, a ser divulgado no sítio eletrônico. ... 5. DAS VAGAS DESTINADAS AOS CANDIDATOS NEGROS 5.1. Conforme previsto na Lei n. 12.990, de 9 de junho de 2014, serão reservados 20% (vinte por cento) do total de vagas disponibilizadas neste edital, distribuídas de acordo com o item 2.1 deste Edital, e das que vierem a ser criadas durante a validade do concurso, aos candidatos que se autodeclararem pretos ou pardos (Negros). 5.1.1. Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em número fracionado, este será elevado até o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para o número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos), conforme previsto no § 2º do artigo 1º da Lei n. 12.990/2014. 5.1.2. Somente haverá reserva imediata de vagas destinadas a candidatos negros para as áreas de atuação, com número de vagas ofertadas em número igual ou superior a 3 (três). 5.1.3. As vagas destinadas a Negros estão definidas no quadro do item 2.1 deste edital. 5.2. O candidato negro participará do concurso público em igualdade de condições com os demais candidatos no que se refere ao conteúdo das provas, à avaliação e aos critérios de aprovação, ao horário e local de aplicação das provas e à nota mínima exigida para todos os demais candidatos. 5.3. Para concorrer às vagas reservadas a candidatos negros, o interessado deverá autodeclarar-se negro, conforme quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assinalando essa opção no ato da inscrição, sendo as informações prestadas no momento da inscrição de inteira responsabilidade do candidato. 5.3.1. É de exclusiva responsabilidade do candidato selecionar a opção, no ato da inscrição, para concorrer às vagas reservadas para pessoa preta ou parda. 5.3.2. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido admitido, ficará sujeito à anulação da sua nomeação ao cargo público, após procedimento administrativo em que lhe seja assegurado o direito ao contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. 5.4. Os candidatos autodeclarados negros que fizerem a opção pela reserva de vagas concorrerão, concomitantemente, às vagas reservadas pela Lei n. 12.990/2014 e às vagas destinadas à ampla concorrência, podendo, ainda, se for o caso, concorrer às vagas reservadas a pessoas com deficiência (Lei n. 8.112/90, art. 5º, §2º), de acordo com a sua classificação no concurso, desde que atendidas as demais regras deste edital. 5.4.1. Em caso de desistência de candidato aprovado em vaga reservada a negros, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado. 5.4.2. Na hipótese de não haver candidatos aprovados em número suficiente para que sejam ocupadas as vagas reservadas a negros, as vagas remanescentes serão revertidas para ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação no concurso. 5.5. A nomeação dos candidatos aprovados respeitará a relação entre o número total de vagas e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros, conforme previsão legal. 5.6. Os candidatos inscritos em vagas reservadas a negros e aprovados nas etapas do concurso público serão convocados a comparecer no IFSP, anteriormente à homologação do resultado final do concurso, para o procedimento de heteroidentificação, conforme previsto na Lei n. 12.990/2014 e na Portaria Normativa n. 04 de 06 de abril de 2018. 5.6.1. O IFSP constituirá uma Comissão de heteroidentificação, conforme o determinado pela Portaria Normativa n. 04 de 06 de abril de 2018, a qual será responsável pela emissão de um parecer conclusivo favorável ou não à autodeclaração, considerando os aspectos fenotípicos do candidato. 5.6.2. O Comunicado de convocação para heteroidentificação, com horário e local, será publicado oportunamente no sítio eletrônico. 5.6.2.1. O não comparecimento ou o indeferimento da autodeclaração acarretará a perda do direito às vagas reservadas aos candidatos negros e a eliminação do concurso, caso não tenha atingido os critérios classificatórios da ampla concorrência. 5.7. Quanto ao indeferimento da autodeclaração do candidato caberá pedido de recurso, conforme o disposto no item 9 deste edital. 5.7.1. Não cabe a análise de pedido de recurso, para reserva de vaga para negros, ao candidato que não declarar sua condição no ato da inscrição.” (fls. 135/151-PJe – ID Num. 261618332 - Pág. 1) (destaquei) Como resulta claro das normas transcritas, o candidato que desejar concorrer pelo sistema de cotas, deverá autodeclarar a sua condição de afrodescendente no momento da inscrição e essa autodeclaração deverá ser confirmada por uma comissão de heteroidentificação, que utilizará o critério da fenotipia (aparência). Embora esse tema seja polêmico, pois ambos os critérios (autodeclaração e heteroidentificação) são subjetivos, o que, para muitos, não se coaduna com um regime constitucional de amplo acesso aos cargos/postos públicos onde o que impera é o postulado da isonomia, o tema não é novo e, em razão das agudíssimas controvérsias estabelecidas na sociedade, foi objeto de diversas manifestações do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a constitucionalidade dessa forma de seleção de parte dos candidatos aos cargos públicos. Segundo a sentença, “Se, no presente caso, a ascendência do candidato não pode ser levada em consideração para aferição de seu fenótipo, é evidente que, com mais razão, deverão ser expressos, claros e objetivos os elementos que foram considerados para o delineamento do fenótipo do autor”. Com a devida venia ao magistrado de primeiro grau, não é essa a visão do Supremo Tribunal Federal que, de há muito, entendeu que seria impossível estabelecer “critérios científicos de classificação racial” para a seleção de candidatos a postos/cargos públicos, notadamente porque, em função do alto grau de miscigenação da população brasileira, tal classificação iria impossibilitar a aplicação das políticas de ação afirmativa que vinham se desenhando no seio da sociedade. Foi o que ocorreu, por exemplo, no julgamento da ADPF 186, no qual se discutia a constitucionalidade de atos administrativos expedidos pela Universidade de Brasília (UnB), que instituíram (no vestibular de julho de 2009) um sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (20% de cotas) no seu processo de seleção de ingresso de estudantes. Sustentava-se, naquela ocasião, que a realidade multirracial brasileira, caracterizada por intensa miscigenação, não justificava a criação de um sistema “birracial” que, na prática, só admitiria a existência de “duas raças”, pois o corte a ser estabelecido acabaria por criar um “tribunal racial” com o poder de dizer quem é negro e quem não é. Pediu-se, naquela ocasião (2009), a suspensão da aplicação desse sistema no meio universitário e o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. Pela riqueza das discussões, e para demonstrar a antiguidade do tema, permito-me fazer a transcrição de parte dos debates e manifestações ocorridas naquele julgamento. O ministro Ricardo Lewandowski, de pronto, afastou o argumento de que o sistema estaria inaugurando uma espécie de “tribunal racial”, ressaltando o fato de que o objetivo da política então instituída não era o de classificar as pessoas em raças, mas instituir um sistema de ação afirmativa que buscava uma reparação histórica aos afrodescendentes, evitando, por outro lado, possíveis fraudes ao sistema na identificação dos verdadeiros beneficiários. Chamo a atenção para o destaque que se dá aos elementos fenotípicos (aparência) na seleção dos candidatos, em detrimento do genótipo. Destaco trechos de sua manifestação: “Além de examinar a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, é preciso verificar também se os instrumentos utilizados para a sua efetivação enquadram-se nos ditames da Carta Magna. Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional. Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros). Essa questão foi estudada pela mencionada Daniela Ikawa, nos seguintes termos: “A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença. Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato. A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (...). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos”. Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional. A seguir, após analisar a constitucionalidade das ações afirmativas, dos critérios étnico-raciais e dos distintos métodos de identificação dos candidatos para o acesso diferenciado ao ensino superior público, passo ao exame das políticas de reserva de vagas ou estabelecimento de cotas. ... A discriminação e o preconceito existentes na sociedade não têm origem em supostas diferenças no genótipo humano. Baseiam-se, ao revés, em elementos fenotípicos de indivíduos e grupos sociais. São esses traços objetivamente identificáveis que informam e alimentam as práticas insidiosas de hierarquização racial ainda existentes no Brasil. Nesse cenário, o critério adotado pela UnB busca simplesmente incluir aqueles que, pelo seu fenótipo, acabam marginalizados. Diante disso, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade na utilização de caracteres físicos e visíveis para definição dos indivíduos afrodescendentes. Também não acolho a impugnação de que a existência de uma comissão responsável por avaliar a idoneidade da declaração do candidato cotista configure um “Tribunal Racial”. O tom pejorativo e ofensivo empregado pelo partido requerente não condiz com a seriedade e cautela dos instrumentos utilizados pela UnB para evitar fraudes à sua política de ação afirmativa. A referida banca não tem por propósito definir quem é ou não negro no Brasil. Trata-se, antes de tudo, de um esforço da universidade para que o respectivo programa inclusivo cumpra efetivamente seus desideratos, beneficiando seus reais destinatários, e não indivíduos oportunistas que, sem qualquer identificação étnica com a causa racial, pretendem ter acesso privilegiado ao ensino público superior. Aliás, devo ressaltar que compreendo como louvável a iniciativa da Universidade de Brasília ao zelar pela supervisão e fiscalização das declarações dos candidatos postulantes a vagas reservadas. A medida é indispensável para que as políticas de ação afirmativa não deixem de atender as finalidades que justificam a sua existência. Não se pretende acabar com a autodefinição ou negar seu elevado valor antropológico para afirmação de identidades. Pretende-se, ao contrário, evitar fraudes e abusos, que subvertem a função social das cotas raciais. Deve, portanto, servir de modelo para tantos outros sistemas inclusivos já adotados pelo território nacional. De qualquer modo, a atuação das universidades públicas no controle a [da] verossimilhança das declarações não dispensa o acompanhamento da questão pelo Ministério Público, a quem compete zelar pela defesa da ordem jurídica (CRFB, art. 127, caput).” (pg. 82 de 233) Como se vê, na visão do ministro, a iniciativa de criação de comissões de heteroidentificação não teve por propósito a instituição de um “tribunal racial” de classificação étnica das pessoas, mas foi uma forma de exercer algum controle sobre a autodeclaração e dar alguma credibilidade à política então instituída, visão que também pode ser verificada no posicionamento dos demais ministros durante os debates que se desenvolveram no âmbito daquele julgamento, merecendo destaque o afastamento do “critério “científico”, que, em tese, seria o único apto a fornecer a motivação aqui reclamada pelo autor da demanda. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Se Vossa Excelência me permite, esclareço que até ia considerar esse aspecto no meu voto, mas me passou. Eu também preferiria que o critério racial fosse aliado ao critério socioeconômico como objetivo ideal da política de inclusão. Mas não posso também deixar de assinalar, já que estamos em terreno de discussão que pode gerar previsões benéficas ao próprio processo, certa contradição - não conheço exatamente quais são os critérios adotados por essa comissão encarregada da apuração dos destinatários das cotas -, se o fato é verdadeiro, em se levarem em conta elementos genotípicos para permitir a entrada, na universidade, de quem, pelas características fenotípicas, nunca foi por estas discriminado. Ninguém discrimina alguém porque terá recorrido a exame genético e aí descoberto que a pessoa tenha gota de sangue negro. Isso não faz sentido. O candidato que sempre se apresentou na sociedade, por suas características externas, como não pertencente, do ponto de vista fenotípico, à etnia negra, mas que genotipicamente a ela pertença, a mim me parece que não deva nem possa ser escolhido e incluído na cota, pois nunca foi, na verdade, discriminado. Essa é situação que, a meu juízo, deveria ser considerada na reavaliação dos critérios de escolha. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Esse é um ponto que realmente me incomoda. Eu anotei isso aqui, chamando a atenção para esses aspectos. Fatos que são publicados na Imprensa: "Em 2004, o irmão da candidata Fernanda Souza de Oliveira, filho do mesmo pai e da mesma mãe, foi considerado 'negro', mas ela não" - (por esse, assim chamado, tribunal racial). "Em 2007, os gêmeos idênticos Alex e Alan Teixeira da Cunha (assunto que já foi referido) foram considerados de 'cores diferentes' pela comissão da UnB. Em 2008, Joel Carvalho de Aguiar foi considerado 'branco' pela comissão, enquanto sua filha Luá Resende de Aguiar foi considerada 'negra', mesmo, segundo Joel, a mãe de Luá sendo 'branca'." Quer dizer, veja as dificuldades que esse modelo prepara. E isso decorre do próprio sistema de miscigenação e da dificuldade que nós temos - e é bom até que não queiramos ter um critério tão científico de identificação. Então, este é um ponto delicado, por isso que - e acredito que há um certo consenso entre os críticos desse modelo – diferentemente do sistema adotado no ProUni, aqui falta esse referencial de índole social. E se a gente olhar o que ocorre, por exemplo: quem são os moradores de favela ou dos bairros pobres? Pode ter a maioria de pessoas de cor negra, mas nós temos brancos e negros. Agora, porque contemplar apenas os negros neste caso? Claro, nós temos a discussão sobre o modelo da escola pública, que é um referencial, que talvez seja até uma forma de, por figura de linguagem, entender que as pessoas que hoje frequentam, tendo em vista essa distorção brasileira, as escolas públicas são, em princípio, pessoas pobres. Por isso, acabou-se adotando aqui um critério racial - matéria que será objeto, inclusive, do debate que vai se seguir naquele recurso extraordinário. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – São pessoas, se me permite, pobres e negras. É uma desigualdade na própria desigualdade a desfavorecer os negros. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - É, mas no caso da escola pública, o que se está pensando aqui não é numa cota racial, mas num critério de dimensão social, porque o que se entende, em princípio - a não ser que se faça por filosofia, haverá casos excepcionais -, hoje, tendo em vista esta perversidade do sistema, vai para a escola pública porque não se consegue pagar uma escola privada que poderia permitir um adequado modelo de concorrência perante a universidade pública. Então, essa distorção precisa ser realmente enfocada. E é preciso dizer: o modelo da UnB padece desse vício, podendo gerar distorções e perversões a ponto de pessoas negras que estudaram em escolas privadas, que tiveram todas as mais adequadas condições, agora, no final, optam pelo vestibular e vão se submeter a esse tribunal racial, gerando essa distorção. Então, parece-me que esse é um ponto que precisa ficar gravado, que precisa ficar enfatizado, para que esse modelo não prossiga, para que ele seja devidamente aperfeiçoado. Se eu fosse me basear apenas no aspecto formal, eu diria que esse déficit, não ter levado em conta o referencial social, deveria me levar, também, a julgar procedente esta ação, tendo em vista este fundamento, mas eu reconheço, como já o fiz, que esse é um modelo que está sendo experimentado, cujas distorções vão se revelando no seu fazimento e que reclama aperfeiçoamento. Não é razoável que alguém se invista na universidade neste tipo de poder de dizer quem é branco e quem é negro para essa finalidade. Seria muito mais razoável adotar-se um critério objetivo de referência, de índole sócio-econômica. Porque todos podemos imaginar as distorções eventualmente involuntárias, como esses casos estão a demonstrar, mas também eventuais distorções de caráter voluntário, a partir desse tribunal que, segundo se diz, pelo menos na mídia, opera com quase nenhuma transparência. Então, veja que se conferiu, aí, a um grupo de iluminados esse poder que ninguém quer ter, de dizer quem é branco, quem é negro, numa sociedade altamente miscigenada. Então, temos, Presidente, realmente, um sério problema a despeito da correção do discurso. Ninguém está aqui a negar a constitucionalidade das ações afirmativas, nós temos um número muito razoável de decisões do Supremo Tribunal Federal, em variada ordem, que ressalta a possibilidade de se adotarem critérios diversos. Isso faz parte, inclusive, da velha fórmula que era decantada já por Rui Barbosa: de tratar igualmente a iguais e desigualmente a desiguais. Ou, na crítica de Anatole France, que dizia: a igualdade formal assegurava a pobres e ricos. Mas a referência, aqui, era a pobres e ricos, o direito inclusive de dormir sobre as pontes. Então, é preciso ter atenção para esse aspecto. Este ponto me parece um ponto crítico do modelo. Eu poderia, também, eu não estranharia a possibilidade, Presidente, de se falar, em princípio, da necessidade de alguma baliza ou parâmetro legal, mas, tendo em vista inclusive essas singularidades, não me parece inconveniente que instituições com essa dose de autonomia possam fazer a modelagem de seus tipos a fim de buscar uma maior efetividade. Mas a mim me parece - e acredito que há um esforço nesse sentido quando nós vemos, será debatido no caso do ProUni, inclusive a questão da lei complementar para fins de isenção ou imunidade, ou também das regras do Estatuto da Igualdade Racial -, mas, a mim me parece que, num país com tantas diversidades, e com tantas instituições dotadas de autonomia, aí as próprias universidades estaduais, federais e, também, as particulares, que estão submetidas a regras básicas, não seria estranho que houvesse pelo menos aquele tipo de lei moldura, de lei quadro, que permitisse balizar os critérios. Mas vamos de novo destacar: o modelo da UnB nas universidades federais tem a virtude e obviamente os eventuais defeitos de um modelo pioneiro feito sem paradigmas anteriores. Então, esse é um ponto importante, não se pode negar a importância de ações que levem a combater essa crônica desigualdade. Quando nós vemos os números espelhados, quando se fala na presença dos negros nas universidades públicas, e vemos quão diminuta é essa presença, certamente nós não podemos dizer que a fórmula eficaz é melhorar a escola pública. Mas para quando? Porque certamente, se nós fizermos esse discurso, obviamente nós estamos comprometendo gerações que estão nesse passo, já na transição da escola pública, já se candidatando ao vestibular. Claro que devemos melhorar as escolas públicas, claro que devemos trabalhar no que diz respeito - e há ações nesse sentido - a preparatórios vestibulares para determinados grupos, em suma, a ações singulares nesse sentido. Mas é óbvio que esse discurso também acaba sendo farisaico, porque ele não atende à questão imediata que está colocada. O que eu faço com o concluinte do segundo grau na escola pública que pretende ir para uma escola pública no nível universitário? Será que não é razoável, pelo menos, fazer esse teste ou desenvolver algum modelo institucional alternativo? Eu imagino que sim. Por isso, Presidente, ressaltando o cuidadoso voto do Ministro Lewandowski, mais uma vez, eu gostaria apenas de pontuar essas ressalvas quanto à fundamentação, tendo em vista que eu entendo realmente necessária a revisão desse modelo. Quer dizer, as próprias críticas que hoje se fazem indicam a necessidade de que esse modelo seja revisto. Nesse sentido, eu não chancelaria a fórmula como totalmente constitucional. Mas eu diria, na linha do que temos sustentado aqui, as chamadas sentenças intermédias, quer dizer: é uma lei ainda constitucional; é um modelo que pode tender, se for mantido, se não for revisto, para um quadro de inconstitucionalidade. Quando se apontam as distorções, e elas são sérias, tanto a possibilidade de cooptação, ricos que se aproveitam da cota, pervertendo, portanto, o sistema; ou decisões discricionárias ou até arbitrárias de servidores das universidades nesse órgão de seleção racial; já a ideia do tribunal racial evoca a memória de coisas estranhas, Presidente, não é? Enfim, não é um bom modelo, especialmente numa sociedade miscigenada; quer dizer, há uma dificuldade muito grande em relação a isso. Portanto, eu gostaria de fazer essas observações para que fique assente, pelo menos, a minha dúvida quanto à possibilidade de que esse modelo eventualmente seja estendido, vencido o seu prazo. Creio que, como eu disse, é um programa de dez anos que já está no seu oitavo ano de desenvolvimento e eu tenho dúvida de que esse modelo possa prosseguir e não ter questionamento se não houver os necessários aprimoramentos.” (pg. 166 de 233) Em seu voto escrito, o Ministro Gilmar Mendes, fazendo muitas ressalvas ao voto do relator – mas acompanhando-o no resultado –, esmiuçou ainda mais o problema do sistema instituído, destacando os aspectos relacionados à miscigenação do brasileiro e seus reflexos na autodeclaração, as razões pelas quais se adota o critério do fenótipo (da aparência) – pois essa seria a característica que leva à discriminação ou preconceito dos afrodescendentes –, a dúvida surgida quando se tem de classificar “os pardos mais claros” e, por fim, a razão pela qual sistemas de confirmação da autodeclaração são estabelecidos. “3. AÇÕES AFIRMATIVAS BASEADAS EXCLUSIVAMENTE NO CRITÉRIO DA “RAÇA”. A noção de “raça”, que insiste em dividir e classificar os seres humanos em “categorias”, resulta de um processo político-social que, ao longo da história, originou o racismo, a discriminação e o preconceito segregacionista. Como explica Joaze Bernardino, “a categoria raça é uma construção sociológica, que por esse motivo sofrerá variações de acordo com a realidade histórica em que ela for utilizada”. Em razão disso, uma pessoa pode ser considerada branca num contexto social e negra em outro, como ocorre com “alguns brasileiros brancos que são tratados como negros nos Estados Unidos” (BERNARDINO, Joaze. Levando a raça a sério: ação afirmativa e correto reconhecimento. In: Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 19-20). De toda forma, é preciso enfatizar que, enquanto em muitos países o preconceito sempre foi uma questão étnica, no Brasil o problema vem associado a outros vários fatores, dentre os quais sobressai a posição ou o status cultural, social e econômico do indivíduo. Como já escrevia nos idos da década de 40 do século passado Caio Prado Júnior, célebre historiador brasileiro, “a classificação étnica do indivíduo se faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas classes superiores, é mais função daquela posição que dos caracteres somáticos” (PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; 2006, p. 109). Isso não quer dizer que não haja problemas “raciais” no Brasil. O preconceito está em toda parte. Como dizia Bobbio, “não existe preconceito pior do que o acreditar não ter preconceitos” (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Unesp; 2002, p. 122). No debate sobre o tema, somos também levados a analisar a diferença existente entre a discriminação promovida pelo Estado e a discriminação praticada pelos particulares. Desde a abolição da escravatura – um dos fatos mais importantes da história de afirmação e efetivação dos direitos fundamentais no Brasil –, não há notícia de que o Estado brasileiro tenha se utilizado do critério racial para realizar diferenciação legal entre seus cidadãos. Esse é um fator de relevo que distingue o debate sobre o tema no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, existiu um sistema institucionalizado de discriminação racial estimulado pela sociedade e pelo próprio Estado, por seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em seus diferentes níveis. A segregação entre negros e brancos foi amplamente implementada pelo denominado sistema Jim Crow e legitimada durante várias décadas pela doutrina do “separados mas iguais” (separate but equal), criada pela famosa decisão da Suprema Corte no caso Plessy vs. Ferguson (163 U.S 537 1896). Com base nesse sistema legal segregacionista, os negros foram proibidos de frequentar as mesmas escolas que os brancos, comer nos mesmos restaurantes e lanchonetes, morar em determinados bairros, serem proprietários ou locatários de imóveis pertencentes a brancos, utilizar os mesmos transportes públicos, teatros, banheiros etc., casar com brancos, votar e serem votados e, enfim, de serem cidadãos dos Estados Unidos da América. Foi nesse específico contexto de cruel discriminação contra os negros que surgiram as ações afirmativas como uma espécie de mecanismo emergencial de inclusão e integração social dos grupos minoritários e de solução para os conflitos sociais que se alastravam por todo o país na década de 60. Assim, não se pode deixar de considerar que o preconceito racial existente no Brasil nunca chegou a se transformar numa espécie de ódio racial coletivo, tampouco ensejou o surgimento de organizações contrárias aos negros, como a Ku Klux Klan e os Conselhos de Cidadãos Brancos, tal como ocorrido nos Estados Unidos. Na República Brasileira, nunca houve formas de segregação racial legitimadas pelo próprio Estado. No Brasil, a análise do tema das ações afirmativas deve basear-se, sobretudo, em estudos históricos, sociológicos e antropológicos sobre as relações raciais em nosso país. Durante muito tempo, os sociólogos, antropólogos e historiadores identificaram, no processo de miscigenação que formou a sociedade brasileira, uma forma de democracia racial. O apogeu da tese da “democracia racial brasileira” se deu na década de 30, com o trabalho de Gilberto Freyre (Casa grande & Senzala). Na década de 50, a crença na democracia racial levou os representantes brasileiros na UNESCO (Artur Ramos e Luiz Aguiar Costa Pinto), após a 2ª Guerra Mundial, a propor o Brasil como exemplo de uma experiência bem-sucedida de relações raciais. A partir da década de 60, pesquisas financiadas pela UNESCO, e desenvolvidas por sociólogos brasileiros (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Oracy Nogueira, por exemplo), começaram a questionar a existência dessa dita democracia. Concluíram que, no fundo, o Brasil desenvolvera uma forma de discriminação “racial” escondida atrás do mito da “democracia racial”. Apontaram que, enquanto nos Estados Unidos desenvolveu-se o preconceito com base na origem do indivíduo (ancestralidade), no Brasil existia o preconceito com base na cor da pele da pessoa (fenótipo). Na década de 70, pesquisadores como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva afirmaram que o preconceito e a discriminação não estavam apenas fundados nas sequelas da escravatura, mas assumiram novas formas e significados a partir da abolição, estando relacionadas aos “benefícios simbólicos adquiridos pelos brancos no processo de competição e desqualificação dos negros”. Simultaneamente, os movimentos negros passaram a questionar a visão integracionista das lideranças negras brasileiras das décadas de 30, 40, 50 e 60. Foi na década de 90, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que o tema das ações afirmativas entrou na agenda do governo brasileiro, com a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra em 1995, com as propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) em 1996 e a participação do Brasil na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001, na África do Sul. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva aprofundou esse processo. Criou a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial, modificou o Sistema de Financiamento ao Estudante e criou o Programa Universidade para Todos, prevendo bolsas e vagas específicas para “negros”. Em 2003, o Conselho Nacional de Educação exarou as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Em 2010, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), destinado a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos da população negra, bem como o combate à intolerância étnica, nos termos do seu artigo 1º. A análise dessas considerações históricas e do que se produziu no âmbito da sociologia e da antropologia no Brasil nos leva até mesmo a questionar se o Estado brasileiro não estaria passando por um processo de abandono da ideia, muito difundida, de um país miscigenado e, aos poucos, adotando uma nova concepção de nação bicolor. Em 2005, o jogador de futebol Ronaldo – “O Fenômeno” –, presenciando as agressões racistas que jogadores negros estavam sofrendo nos gramados espanhóis, deu a seguinte declaração: “Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância. A solução é educar as pessoas”. Tal declaração gerou grande repercussão no Brasil e obrigou Ronaldo a explicar o que ele quis dizer: “Eu quis dizer que tenho pele mais clara, só isso, e mesmo assim sou vítima de racismo. Meu pai é negro. Não sou branco, não sou negro, sou humano. Sou contra qualquer tipo de discriminação”. Ali Kamel utiliza esse acontecimento como exemplo das mudanças que estariam ocorrendo na mentalidade brasileira. Alerta, dessa forma, que a crise gerada pela declaração do jogador é a prova de que estamos aceitando a tese da “nação bicolor”; que antes o discurso predominante era favorável à autodeclaração e que agora achamos que temos o direito de classificar as pessoas (KAMEL, Ali. Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 139-140). Utilizando outro exemplo do mundo futebolístico, Yvonne Maggie menciona história do clube Portuguesa Santista que, em excursão à África do Sul, em 1959, foi informado de que seus jogadores negros não poderiam participar de partida contra equipe local, de acordo com as leis do país. O time brasileiro, em uníssono, respondeu que não jogaria sob essas condições, situação que fez com que o cônsul do Brasil precisasse anunciar oficialmente a posição do Governo brasileiro no sentido de não admitir racismo e de não concordar com o regime do apartheid. O presidente Juscelino Kubitscheck enviou telegrama à África do Sul, manifestando desacordo com o regime, e o Brasil tornou-se o primeiro país fora da África a protestar contra o apartheid (fl. 1960). Para demonstrar a involução pela qual o sistema de miscigenação brasileira tem passado nos últimos tempos, Yvonne Maggie indica os perigos de, paulatinamente, criarem-se divisões entre “brancos” e “negros” em um país em que o povo já se vê misturado (p. 1957). O primeiro passo nesse sentido teria sido a Lei 10.639/2003 que instituiu o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira em todas as escolas do Brasil, públicas e privadas. Parecer do Ministério da Educação, que regulamenta as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e serve para orientar professores. O documento menciona em vários trechos que a “ideologia do branqueamento da população” deve ser combatida e que o “equívoco quanto a uma identidade humana universal” deve ser demonstrado aos alunos (Parecer CNE/CP 003/2004 - Conselho Nacional de Educação). Por mais que se questione a existência de uma “Democracia Racial” no Brasil, é fato que a sociedade brasileira vivenciou um processo de miscigenação singular. Nesse sentido, elucida Carlos Lessa que “O Brasil não tem cor. Tem todo um mosaico de combinações possíveis” (LESSA, Carlos. "O Brasil não é bicolor", In: FRY, Peter e outros (org.) Divisões Perigosas: Políticas raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 123). Na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), em 1976, os brasileiros se autoatribuíram 135 cores distintas. Tal fato demonstra cabalmente a dificuldade dos brasileiros de identificarem a sua cor de pele. Para Fátima Oliveira, “ser negro é, essencialmente, um posicionamento político, onde se assume a identidade racial negra. Identidade racial-étnica é o sentimento de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política” (OLIVEIRA, Fátima. Ser negro no Brasil: alcances e limites, In: Revista de Estudos Avançados, vol. 18, n.º 50. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. São Paulo: IEA. Janeiro/abril de 2004, p. 57-58.) As preocupações com as consequências da adoção de cotas raciais para o acesso à Universidade levaram cento e treze intelectuais brasileiros (antropólogos, sociólogos, historiadores, juristas, jornalistas, escritores, dramaturgos, artistas, ativistas e políticos) a redigir uma carta contra as leis raciais no Brasil. No documento, os subscritores alertam que “o racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça”. Sustentam que “as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada”. Defendem que existem outras formas de superar as desigualdades brasileiras, proporcionando um verdadeiro acesso universal ao Ensino Superior, menos gravosas para a identidade nacional, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares (“Cento e Treze cidadãos antiracistas contra as leis raciais”, assinado por cento e treze intelectuais brasileiros, entre eles, Ana Maria Machado, Caetano Veloso, Demétrio Magnoli, Ferreira Gullar, José Ubaldo Ribeiro, Lya Luft e Ruth Cardoso). 4. AS COTAS RACIAIS NA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA A Universidade de Brasília foi a primeira instituição de Ensino Superior federal a adotar um sistema de cotas raciais para ingresso por meio do vestibular. A iniciativa, baseada na autonomia universitária optou – segundo as informações prestadas pela UnB – pelo critério da análise do fenótipo do candidato: “os critérios utilizados são os do fenótipo, ou seja, se a pessoa é negra (preto ou pardo), uma vez que, como já suscitado na presente peça, é essa característica que leva à discriminação ou ao preconceito” (fl. 664). O programa de cotas da Universidade de Brasília decorre do “Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da UnB”, de 2004, que prevê ações para intensificar “um processo de integração racial, étnica e social no seio da sua população discente, atualmente extremamente elitizada” (item 2). O documento não especificou o modo como tais ações deveriam ser implementadas, mas propôs que, “para fins de acompanhamento do processo de integração racial, será introduzido o quesito cor, tanto por auto-classificação como segundo as categorias do IBGE, nas fichas de inscrição ao vestibular e nas fichas de registro dos candidatos aprovados” (item 3). Note-se, aí, uma sinalização do Plano de Metas para que o processo de seleção de cotistas a ser desenvolvido pela UnB levasse em consideração o critério da autoclassificação. Todavia, o projeto, ao ser executado, sob a direção da Fundação Centro de Seleção e de Promoção de Eventos, órgão da Universidade de Brasília responsável pela seleção para o vestibular, em parceria com a Comissão de Implementação de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da UnB, resolveu estabelecer critérios próprios para evitar “fraudadores raciais” (fl. 216). Para tanto, no primeiro concurso vestibular com cotas da UnB, em 2004, o procedimento adotado indicava que, no momento da inscrição, o candidato seria fotografado e deveria assinar uma declaração relativa aos requisitos para concorrer pelo sistema de cotas aos negros. A foto era então anexada ao pedido e avaliada por uma comissão, que decidia pela homologação ou não de sua inscrição como cotista. Após homologação do resultado, caso houvesse recurso, o candidato era submetido a entrevista pessoal (fl. 69). Já na inscrição para o primeiro concurso vestibular com cotas da UnB, a exigência de que candidatos que optaram por concorrer às vagas disponíveis aos negros fossem fotografados, gerou, por si só, situação segregacionista incomum na realidade brasileira e claramente simbólica de consequências que podem resultar de tal sistema: a existência de filas distintas para negros e não negros. Sobre isso: “A vestibulanda Vanderlúcia Fonseca declarou: ‘As cotas já são um bom começo. Só acho constrangedor ter que ser fotografada para provar minha cor. Já tenho isso registrado em meus documentos.’ (...) Já Ana Maria Negrêdo frisou diretamente as diferenças de procedimentos: ‘Acho que os brancos também deveriam tirar foto. Tinha que ser igual para todo mundo. Por que só a gente tem de meter a cara na câmera?’ (...) O estabelecimento de filas separadas para inscrição dos ‘negros’ chamou a atenção. De modo defensivo, declarou o coordenador das inscrições, Neivion Lopes, quanto aos guichês apartados segundo raça: ‘É separado porque precisamos de espaço reservado para fazer as fotos’. Uma senhora teria resmungado baixinho: ‘Isso é constrangedor’. (fl. 218). De fato, tal situação acabou por ser constrangedora, já que, no Brasil, inexistiu política semelhante à de outros países, como os Estados Unidos. Não houve, por aqui, legislação segregacionista que determinasse, por exemplo, a separação entre brancos e negros em ambientes do convívio societário. De qualquer forma, parece ser agressivo que não baste o candidato se considerar e se autodeclarar negro, mas ter sua condição submetida à avaliação de uma comissão sobre a qual pouco se sabe, com base em uma foto. Atualmente, de acordo com edital do último concurso vestibular realizado pela UnB, em 2012, o processo inclui submissão dos candidatos declarados negros a entrevista pessoal que deverá ocorrer após a aplicação das provas, na qual o candidato deverá apresentar documento original de identidade. Sua declaração como “negro” ou “pardo” continua a ser analisada por uma banca composta por docentes, representantes de órgãos de direitos humanos e de promoção da igualdade racial e militantes do movimento negro do Brasil. O critério utilizado para deferir ou não ao candidato o direito a concorrer dentro da reserva de cotas raciais gera alguns questionamentos importantes. Afinal, qual é o fenótipo dos “negros” (“pretos” e “pardos”) brasileiros? Quem está técnica e legitimamente capacitado a definir o fenótipo de um cidadão brasileiro? Essas indagações não são despropositadas se considerarmos alguns incidentes ocorridos na história da política de cotas raciais da UnB. Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos relatam que o procedimento adotado pela UnB gerou constrangimentos e dilemas de identidade entre os candidatos: “Os responsáveis pelo vestibular da UnB por diversas ocasiões reiteram que a meta da comissão era o de analisar as características físicas, visando identificar traços da raça negra. Esse objetivo gerou constrangimentos diversos e dilemas identitários de não pouca monta entre os candidatos ao vestibular, devido às dúvidas de se os critérios seriam mesmo o de aparência física (negra) ou de (afro-)descendência. A candidata Ana Paula Leão Paim, a princípio na dúvida sobre se se declararia “negra”, foi convencida pelo argumento da mãe, que lhe disse que sua ‘tataravó era escrava’. Contudo, ainda assim, Ana Paula estava preocupada pois, segundo ela, ‘pela fotografia não dá para analisar a descendência’. Outra candidata, Elizabete Braga, que ‘não se intimidou com a fotografia’, comentou: ‘Minha irmã não seria considerada negra, por exemplo. Ela é filha de outro pai, tem a pele mais clara e o cabelo mais liso’ (Borges, 2004). Ricardo Zanchet, um candidato que se declarou ‘negro’, ainda que ‘com a pele clara, cabelo liso e castanho... nem de longe lembra[ndo] um negro’, e cuja classificação não foi aceita pela comissão, afirmou: ‘Vou levar a certidão de nascimento de meu avô e mostrar a eles... Se meu avô e minha bisavó eram negros, eu sou fruto de miscigenação e tenho direito’ (Paraguassú, 2004). (...) Se a primeira etapa do trabalho de identificação racial da UnB foi conduzida pela equipe da ‘anatomia racial’, a segunda foi conduzida por um comitê de ‘psicologia racial’. Trinta e quatro dos 212 candidatos com inscrições negadas na primeira etapa entraram com recurso junto à UnB. Uma nova comissão foi formada ‘por professores da UnB e membros de ONGs’, que exigiu dos candidatos um documento oficial para comprovar a cor. Foram ainda submetidos à entrevista (gravada, transcrita e registrada em ata) na qual, entre outros tópicos, foram questionados acerca de seus valores e percepções: ‘Você tem ou já teve alguma ligação com o movimento negro? Já se sentiu discriminado por causa da sua cor? Antes de se inscrever no vestibular, já tinha pensado em você como um negro?’ (Cruz, 2004). O candidato Alex Fabiany José Muniz, de 23 anos, um dos beneficiários da nova rodada da seleção das cotas, conseguiu um certificado comprovando que era pardo ao levar a certidão de nascimento e uma foto dos pais. Conforme seu depoimento, ‘a entrevista tem um cunho altamente político... perguntaram se eu havia participado de algum movimento negro ou se tinha namorado alguma vez com alguma mulata’ (Darse Júnior, 2004).” (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 219-221 dos autos) Em 2004, o irmão da candidata Fernanda Souza de Oliveira, filho do mesmo pai e da mesma mãe, foi considerado “negro”, mas ela não. Em 2007, os gêmeos idênticos Alex e Alan Teixeira da Cunha foram considerados de “cores diferentes” pela comissão da UnB. Em 2008, Joel Carvalho de Aguiar foi considerado “branco” pela Comissão, enquanto sua filha Luá Resende Aguiar foi considerada “negra”, mesmo, segundo Joel, a mãe de Luá sendo “branca”. A adoção do critério de análise do fenótipo para a confirmação da veracidade da informação prestada pelo vestibulando suscita problemas graves. De fato, a maioria das universidades brasileiras que adotaram o sistema de cotas ‘raciais’ seguiram o critério da autodeclaração associado ao critério de renda. A Comissão de Relações Étnicas e Raciais da Associação Brasileira de Antropologia (Crer-ABA), em junho de 2004, manifestou-se contrária ao critério adotado pela UnB, nos seguintes termos: “A pretensa objetividade dos mecanismos adotados pela UnB constitui, de fato, um constrangimento ao direito individual, notadamente ao da livre autoidentificação. Além disso, desconsidera o arcabouço conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social e antropologia biológica. A Crer-ABA entende que a adoção do sistema de cotas raciais nas Universidades públicas é uma medida de caráter político que não deve se submeter, tampouco submeter aqueles aos quais visa beneficiar, a critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas modalidades de exceção atentatória à livre manifestação das pessoas.” (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 228 dos autos) Defendendo a adoção do critério da autodeclaração no lugar da análise do fenótipo, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos concluem que: “A comissão de identificação racial da UnB operou uma ruptura com uma espécie de ‘acordo tácito’ que vinha vigorando no processo de implantação do sistema de cotas no país, qual seja, o respeito à auto-atribuição de raça no plano das relações sociais. A valorização desse critério, próprio das sociedades modernas e imprescindível em face da fluidez racial existente no Brasil, cai por terra a partir das normas estabelecidas pela UnB.” (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 231 dos autos.) Ademais, é de causar estranheza que detalhes sobre o procedimento adotado pela comissão não cheguem a ser divulgados. Sabe-se que, no primeiro vestibular com cotas, seus integrantes tiveram como tarefa analisar mais de 4 mil fotografias (fl. 208) em um curto prazo. Dos 4.385 candidatos autodeclarados negros, 212 não tiveram suas inscrições homologadas. O baixo número de alunos que não tiveram seu pedido aprovado deve-se à “perspectiva inclusiva da banca examinadora”, de acordo [com] o então diretor acadêmico do Cespe, Mauro Luiz Rabelo (fl. 216). Ao revelar um pouco do procedimento adotado, indicou que bastava um membro do grupo considerar o candidato negro ou pardo para que este tivesse sua inscrição deferida. Ainda comentou o que considerou uma das maiores dificuldades enfrentadas pela comissão: “O grupo observou traços e tom da pele... A dúvida surgiu entre os pardos mais claros. Tais casos foram discutidos em conjunto.” (fl. 216) Tal declaração serve para ilustrar que essa espécie de avaliação é complexa e sutil e não pode ser designada a uma comissão sigilosa e sem critérios objetivos. Inclusive porque, do modo como a sociedade brasileira encontra-se hoje estruturada, buscar associar determinadas características genéticas a ancestrais de uma raça específica e, com isso, estabelecer quem é ou não beneficiário de uma ação afirmativa que leve em consideração esse critério, é praticamente impossível. Em estudo sobre o tema, o Prof. Sérgio D.J. Pena indica que “A cor corresponde no Brasil ao termo em inglês race é buscada em uma avaliação fenotípica complexa, que leva em conta a pigmentação da pele e dos olhos, o tipo de cabelo e a forma do nariz e dos lábios. (p.161) Todavia, a correlação entre cor e ancestralidade é pobre. O genoma brasileiro é um verdadeiro mosaico, altamente variável e individual, formado pela contribuição de três raízes ancestrais – ameríndia, europeia e africana. E conclui que, atualmente, a maioria dos brasileiros possui simultaneamente grau significativo de influência genética dessas três raízes, de modo que passa não fazer sentido falar em “populações” de brasileiros brancos ou de brasileiros negros (Da inexistência das Raças e suas consequências para a sociedade brasileira. Prof. Dr. Sérgio D. J. Pena, nos autos p. 166). Ademais, causa perplexidade cogitar que espécie de deliberação é feita entre os integrantes da Comissão de Seleção da UnB para avaliar se uma pessoa é ou não negra. Qual seria a distinção entre um pardo mais escuro e um mais claro, já que, de acordo com declarações trazidas aos autos, os pardos claros seriam os mais difíceis de serem identificados. Quais os critérios de tão tênue questão? Não se duvida a respeito da premente necessidade de um programa de ação afirmativa para a reserva de vagas que beneficie grupos sociais específicos. Um programa como esses, não obstante, deve ser criteriosamente elaborado, estabelecendo um sistema de normas e procedimentos que permitam a aplicação da política de forma adequada para os fins a que ela se propõe. Enfim, a política de ação afirmativa deve ser proporcional ao objetivo almejado. No caso da UnB, fica difícil vislumbrar a adequação da política. Criou-se uma comissão de avaliação com poderes para desqualificar e assim revogar a manifestação de vontade do candidato autodeclarado negro. Não se pode negar, portanto, que a existência desse tipo de comissão avaliadora acaba por anular a autodeclaração alçada a critério base desse modelo. Assim como o critério da autodeclaração é demasiado subjetivo se adotado de forma exclusiva – tal como reconhecido pelos próprios defensores da política de cotas da UnB –, a sua conjugação com uma comissão avaliadora torna o modelo incongruente. Ao fim e ao cabo, a existência de tal comissão acaba por inserir o critério da hetero-identificação como a base do modelo de cotas da UnB; isto é, no final das contas, quem terá o poder de dar a palavra final sobre a condição racial do indivíduo será uma comissão e não o próprio indivíduo afetado. Um critério de autodeclaração que se transmuda em hetero-identificação. O modelo é, inegavelmente, incongruente e ineficaz nesse sentido. Ademais, há certo consenso quanto à necessidade de que os programas de ações afirmativas sejam limitados no tempo. Trata-se de situação denominada pela doutrina americana de sunset clauses, ou seja, a necessidade de que determinações sobre algumas matérias, como política pública, contenham regra que preveja que a medida adotada deixará de existir quando seus objetivos sejam atingidos. Não se espera, assim, que um sistema de ação afirmativa tenha validade por tempo indeterminado, mas apenas enquanto for necessário para atingir a finalidade pretendida. Nesse sentido, o “Plano de Metas para a integração social, étnica e racial da Universidade de Brasília” prevê a disponibilidade da reserva de vagas pelo período de 10 anos apenas (fl. 98). Cabe questionar seriamente, no entanto, se esse prazo será observado ou se será estendido indefinidamente no tempo. Estamos hoje com 8 anos de implementação do programa e, portanto, faltam apenas 2 anos para o seu encerramento, conforme o plano inicial. Em estudo sobre o tema, Thomas Sowell indica que os próprios autores de programas de ação afirmativa dificilmente têm coragem de defender que sistemas de cotas devem ser adotados como princípio ou aspecto permanente da sociedade e frisa que se faz “um grande esforço para chamá-las de “provisórias”, mesmo quando, de fato, tais preferências acabem não só permanentes, mas ampliadas.” (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 2, 2004). É o que aconteceu, por exemplo, na Índia, em que foram os próprios líderes da casta dos intocáveis que propuseram o prazo de dez anos para o recebimento dos benefícios, com a finalidade de evitar conflito social. Este programa foi instituído em 1949 e a reserva continua até hoje em vigor. (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 3, 2004). Um programa de ação afirmativa que dê preferência a determinado segmento da sociedade tende a se perpetuar, caso não se tenha bem claro seu objetivo. “Um programa temporário para eliminar uma condição secular é quase uma contradição em termos. A igualdade de oportunidade pode ser conseguida em um tempo plausível, mas isso é totalmente diferente de eliminar a desigualdade de resultados. (...) As pessoas são diferentes, e isto é assim há séculos (...). Qualquer política “temporária” cuja duração é definida pelo objetivo de se conseguir alguma coisa que jamais foi antes alcançada em lugar nenhum do mundo, seria melhor caracterizada como eterna”, no entendimento de Sowell. (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 7, 2004). Desse modo, o programa de ação afirmativa não objetiva a eliminação completa de desigualdades, mas o aumento da igualdade de oportunidades em um segmento específico. Exatamente por isso tem condições e deve ser estabelecido por um período que pareça razoável, de acordo com os dados disponíveis, para contrabalançar situações entendidas como desfavoráveis. Para tanto, tão importante quanto definir prazos e metas é submeter o programa a avaliações empíricas rigorosas e constantes. As instituições que adotam o sistema de cotas devem realizar avaliações periódicas sobre o desempenho dos seus alunos cotistas, não apenas em relação a notas, mas a eventuais dificuldades por eles enfrentadas. Também deve ser ouvido o corpo docente, inclusive para verificar como os professores avaliam os cotistas e evitar possíveis tratamentos diferenciados que visem evitar reprovação excessiva de alunos cotistas – a denominada “nota afirmativa”, em programas da União Soviética ou os “pontos a favor”, no sistema adotado na Índia (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 4, 2004). De qualquer forma, é evidente que essas avaliações devem ser realizadas de acordo com métodos transparentes e apresentadas de forma clara a toda sociedade. Não se trata, aqui, de não respeitar o sigilo das notas de alguns alunos, mas de apresentar relatórios do desempenho geral dos cotistas, inclusive para que eventuais falhas detectadas no processo sejam corrigidas e para que se possa acompanhar se o programa de ação afirmativa tem logrado – e em que velocidade – atingir sua finalidade. Na qualidade de medidas de emergência ante a premência de solução dos problemas de discriminação racial, as ações afirmativas não constituem subterfúgio e, portanto, não excluem a adoção de medidas de longo prazo, como a necessária melhora das condições do Ensino Fundamental no Brasil.” (pg. 179 de 233) Cabe repisar esse ponto da manifestação do ministro, pois é a dúvida que o autor coloca nos autos: “Ademais, causa perplexidade cogitar que espécie de deliberação é feita entre os integrantes da Comissão de Seleção da UnB para avaliar se uma pessoa é ou não negra. Qual seria a distinção entre um pardo mais escuro e um mais claro, já que, de acordo com declarações trazidas aos autos, os pardos claros seriam os mais difíceis de serem identificados. Quais os critérios de tão tênue questão?” Observa-se, portanto, que já no distante ano de 2009 a discussão causava perplexidade e, mesmo assim, apesar dos problemas apontados, o ministro acabou por acompanhar o relator, restando o julgado ementado nos seguintes termos: “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.” (ADPF 186, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009) Em 09 de junho de 2014, sobreveio, então, a Lei 12.990, cujo art. 2º, parágrafo único estabeleceu a possibilidade de controle sobre a autodeclaração: “Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.” Em razão da polêmica antes mencionada, muitas decisões judiciais passaram a afastar a aplicabilidade da lei, resultando daí no ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, que reconheceu não somente a constitucionalidade da lei, mas do próprio critério de seleção aqui questionado (heteroidentificação), conforme se vê da sua ementa: “Direito Constitucional. Ação Direta de Constitucionalidade. Reserva de vagas para negros em concursos públicos. Constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Procedência do pedido. 1. É constitucional a Lei n° 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. 1.1. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente. 1.2. Em segundo lugar, não há violação aos princípios do concurso público e da eficiência. A reserva de vagas para negros não os isenta da aprovação no concurso público. Como qualquer outro candidato, o beneficiário da política deve alcançar a nota necessária para que seja considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o cargo em questão. Além disso, a incorporação do fator “raça” como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da eficiência, contribui para sua realização em maior extensão, criando uma “burocracia representativa”, capaz de garantir que os pontos de vista e interesses de toda a população sejam considerados na tomada de decisões estatais. 1.3. Em terceiro lugar, a medida observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão. A existência de uma política de cotas para o acesso de negros à educação superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. Isso porque: (i) nem todos os cargos e empregos públicos exigem curso superior; (ii) ainda quando haja essa exigência, os beneficiários da ação afirmativa no serviço público podem não ter sido beneficiários das cotas nas universidades públicas; e (iii) mesmo que o concorrente tenha ingressado em curso de ensino superior por meio de cotas, há outros fatores que impedem os negros de competir em pé de igualdade nos concursos públicos, justificando a política de ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014. 2. Ademais, a fim de garantir a efetividade da política em questão, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação (e.g., a exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso), desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa. 3. Por fim, a administração pública deve atentar para os seguintes parâmetros: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas. 4. Procedência do pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. (ADC 41, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 16-08-2017 PUBLIC 17-08-2017) Observa-se, portanto, que a opção escolhida, ainda que imperfeita, foi reconhecida como constitucional, valendo o destaque das manifestações dos ministros acerca da constitucionalidade do critério escolhido (autodeclaração + heteroidentificação) pelo legislador, embora muitos problemas quanto à aplicabilidade da lei tenham sido levantados, principalmente no que toca ao controle das fraudes, motivação das decisões e de como seria feita essa classificação. O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – “... Quanto à questão da autodeclaração, essa é uma das questões mais complexas e intrincadas em uma política de ação afirmativa, porque, evidentemente, você deve respeitar as pessoas tal como elas se autopercebem. Assim, pode ser que alguém que eu não perceba como negro se perceba como negro, ou vice-versa. Essa é uma questão semelhante à que enfrentamos aqui na discussão sobre transgêneros e de acesso a banheiro público. Às vezes, a pessoa tem fisiologia masculina, mas um psiquismo feminino ou vice-versa. E, nesse caso, obrigar alguém que se perceba como mulher a frequentar um banheiro masculino é altamente lesivo à sua dignidade, ao seu direito fundamental. Assim, como regra geral, deve-se respeitar a autodeclaração, como a pessoa se percebe. Porém, no mundo real, nem sempre as pessoas se comportam exemplarmente, e há casos - e, às vezes, eles se multiplicam - de fraude. Portanto, o que a Lei 12.990 faz? Ela estabelece, como critério principal, a autodeclaração, mas permite que, no caso de uso irregular, inveraz, desonesto da autodeclaração, haja algum tipo de controle. É o que diz o parágrafo único do artigo 2º: "Art. 2º, Parágrafo único - Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis." Assim, a meu ver, não é incompatível com a Constituição, respeitadas algumas cautelas, que se faça um controle heterônomo, sobretudo, nos casos em que haja fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração. A hipótese de controle de fraudes é para evitar, de um lado, que o candidato tente fraudar a reserva de vagas e, de outro lado, para evitar que a Administração tente fraudar a política, por exemplo, abrindo concursos sem reservar as vagas. (Pg. 24 de 186) No desenvolvimento do seu voto escrito, o ministro traz fundamentos que vão ao encontro daqueles já expostos no julgamento da ADPF 186: “Parte III O CONTROLE DE FRAUDES 63. A fim de garantir a efetividade da política de ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes. As burlas à reserva de vagas para negros nos concursos públicos podem se dar, basicamente, de duas formas. De um lado, por candidatos que, apesar de não serem beneficiários da medida, venham a se autodeclarar pretos ou pardos apenas para obter vantagens no certame. De outro lado, a política também pode ser fraudada pela própria Administração Pública, caso a política seja implementada de modo a restringir o seu alcance ou a desvirtuar os seus objetivos. VII. FRAUDES PELOS CONCORRENTES: CRITÉRIOS DE DEFINIÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS 64. Não existem raças humanas sob o ponto de vista genético. As diferenças que separam brancos e negros no aspecto do genótipo são insignificantes e puramente superficiais. Como é natural, essa descoberta significativa da ciência não acabou com o racismo enquanto fenômeno social; apenas serviu para deixar ainda mais claro o quanto essa forma de menosprezo ao outro é cruel, arbitrária e autointeressada. Essa questão já foi objeto de manifestação por parte do STF, que rejeitou a ideia de que a inexistência biológica de raças humanas teria tornado insubsistente o racismo e as demais formas de preconceito baseado no fenótipo ou em fatores correlatos (61). Feita a observação, é preciso reconhecer que a definição de critérios objetivos para identificar os beneficiários de eventuais programas de cotas de viés racial esbarra em dificuldades variadas. (61) STF, HC 82.424, Rel. Min. Moreira Alves, Rel. p/ o acórdão Min. Maurício Corrêa: “(...) Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.” 65. Dentre todas as opções, a que parece menos defensável é o exame do genótipo, uma vez que o preconceito no Brasil parece resultar, precipuamente, da percepção social, muito mais do que da origem genética. A partir desse ponto, porém, a eleição de determinado critério parece envolver avaliações de conveniência e oportunidade, sendo razoável que sejam levados em conta fatores inerentes à composição social e às percepções dominantes em cada localidade. O sistema da autodeclaração, que tem sido adotado com maior frequência no país, apresenta algumas vantagens, sobretudo no que diz respeito à simplificação dos procedimentos e ao fato de se privilegiar a autopercepção, a partir do fenótipo – das características exteriores do organismo. Ela encoraja, ainda, os indivíduos a assumirem a sua raça, contribuindo para o reconhecimento dos negros na sociedade brasileira. Há, todavia, problemas associados a esse modelo. Em especial, o risco de oportunismo e idiossincrasia, que poderia levar ao parcial desvirtuamento da política pública. Esse fato foi apontado pelo Professor Daniel Sarmento, que afirmou que “é evidente que a inexistência de mecanismos de controle abre espaço para autodeclarações oportunistas, da parte de pessoas que não se consideram efetivamente pertencentes a grupos raciais historicamente discriminados”. 66. Atenta aos méritos e deficiências do sistema de autodeclaração, a Lei nº 12.990/2014 definiu-o como critério principal para a definição dos beneficiários da política. Nos termos de seu artigo 2º, determinou que “[p]oderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. Porém, instituiu norma capaz de desestimular fraudes e punir aqueles que fizerem declarações falsas a respeito de sua cor. Nesse sentido, no parágrafo único do mesmo artigo 2º, estabeleceu que “[n]a hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis”. 67. Para dar concretude a esse dispositivo, entendo que é legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação para fins de concorrência pelas vagas reservadas, para combater condutas fraudulentas e garantir que os objetivos da política de cotas sejam efetivamente alcançados. São exemplos desses mecanismos: a exigência de autodeclaração presencial, perante a comissão do concurso; a exigência de fotos; e a formação de comissões, com composição plural, para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração. A grande dificuldade, porém, é a instituição de um método de definição dos beneficiários da política e de identificação dos casos de declaração falsa, especialmente levando em consideração o elevado grau de miscigenação da população brasileira. 68. É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos Lei nº 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial. ... (pg. 61 de 186) O Ministro Alexandre de Moraes também levantou os mesmos problemas destacados pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADPF 186, sugeriu a interposição de uma fase de análise documental, posterior à fase de autodeclaração, para, só então, se necessário, chegar-se à fase de heteroidentificação. No entanto, concluiu pela constitucionalidade da política tal como estabelecida, acompanhando, junto com os demais ministros, o relator. O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: “... A grande variedade combinatória de elementos étnico-raciais é refletida nas variações observadas em pesquisas que utilizam padrões classificatórios diferentes, conforme dividam o universo avaliado em negros e brancos; pretos, pardos e brancos; ou outras classificações. Esse tipo de inconsistência foi detectada pela literatura científica produzida a respeito do tema, como no seguinte estudo: Ao sistematizar os argumentos de eminentes cientistas sociais contra as cotas raciais, contidos na segunda parte da antologia Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo (Fry et al., 2007), Feres Júnior (2008, p. 58) constatou que cerca de um terço dos 50 textos publicados no livro manifestavam contra as cotas o argumento de “não ser possível separar as pessoas com base na raça no Brasil”. A dificuldade de se adotar procedimentos classificatórios objetivos foi o sétimo argumento mais prevalente entre os vinte e dois motivos mobilizados pelos autores contra as cotas raciais. A dificuldade de identificação dos beneficiários também se torna evidente ao examinarmos a literatura relacionada. Por um lado, pode-se utilizar o argumento de que os sujeitos de direitos, geneticamente falando, corresponderiam a 87% das pessoas que são descendentes de africanos (Pena; Bortolini, 2004). Isso corresponderia a 166 milhões de pessoas pelo censo de 2010. Por outro lado, o percentual de pessoas que se autodeclaram como pretas (7,6%) ou pardas (43,1%) corresponde a 50,7%. Além disso, há evidências demonstrando a ambiguidade das medidas de raça ou cor no Brasil quando se utilizam diferentes estratégias de coleta da informação racial (Bailey; Loveman; Muniz, 2013; Bailey; Telles, 2006; IBGE, 2011; Loveman; Muniz; Bailey, 2012; Simões; Jeronymo, 2007; Telles; Lim, 1998). Muniz (2012), por exemplo, demonstra que somente metade dos entrevistados em uma pesquisa de representatividade nacional se classifica ou é classificada dentro da mesma categoria racial quando se adota quatro metodologias distintas de coleta da informação racial. A inconsistência classificatória racial, a dificuldade de se identificar beneficiários legítimos das cotas, seria assim uma das barreiras técnicas à implantação de tais ações afirmativas. Mesmo que esta barreira esteja superada desde 2012, a partir da lei de cotas federal, as polêmicas em torno de fraudes classificatórias ainda continuam. Além disso, seria possível argumentar que, diante da incerteza de cor – em função de “fraudes” de declaração ou diferentes métodos de classificação –, a desigualdade racial também poderia ser variável. Como medidas de desigualdade dependem de como os recursos são distribuídos entre pessoas pertencentes a diferentes grupos raciais, elas podem se alterar: 1) diante de uma redistribuição de recursos entre grupos fixos; 2) diante de uma redistribuição de grupos (ex. reclassificação racial) entre recursos; ou 3) ambos. No caso brasileiro, como a raça é uma variável volátil, o segundo tipo de dinâmica entra em vigor, fazendo com que a desigualdade racial seja causa, mas não necessariamente consequência exclusiva, das políticas de ação afirmativa. (MUNIZ, Jerônimo. Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades. Civitas, 16(2), e62-e86. 2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2016.2.23097) Todavia, o mesmo trabalho conclui que as variações nas classificações não elidem a validade do modelo de recorte racial, pois em todos os cenários avaliados as políticas ainda beneficiariam pessoas em situação de vulnerabilidade: De fato, ao se utilizarem quatro metodologias de classificação racial empregadas pela PESB 2002, cerca de metade dos pardos não se classificam (ou são classificados) como tais em todas elas. São os autodenominados pretos, entretanto, os que têm as maiores chances de serem racialmente inconsistentes. Esta inconsistência classificatória teria então alguma consequência sobre a desigualdade? A distribuição de anos de estudo e o consumo de bens e serviços seria afetada por esta inconsistência? (…) por um lado os inconsistentemente classificados são responsáveis por uma parcela significativa das desigualdades totais e interraciais de escolaridade e consumo, mas, por outro, se os mesmos fossem desconsiderados do computo das desigualdades totais estas pouco se alterariam, apesar do aparente aumento relativo das desigualdades inter-raciais (Gráfico 5). A variabilidade da desigualdade diante da incerteza classificatória racial não deve, portanto, continuar a fazer parte da “postura obscurantista” (Feres Júnior, 2008, p. 72) daqueles que costumam utilizá-la como parte do argumento especulativo contra ações afirmativas baseadas em cotas raciais. Este artigo esclarece que em pelo menos duas dimensões da estratificação social entre as raças, educação e consumo, há evidência para se rechaçar a relevância da taxonomia para o nosso entendimento ou mensuração das desigualdades populacionais, ainda que, paradoxalmente, uma parcela considerável destas mesmas desigualdades seja devida àqueles cuja a cor é incerta. (MUNIZ, Jerônimo. Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades. Civitas, 16(2), e62-e86. 2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289. 2016.2. 23097) A passagem que se vem de referir é prova de que, embora as dificuldades inerentes à aferição do componente étnico-racial existam, dada a ampla zona de incerteza envolvida, elas por certo não invalidam a alternativa por ações afirmativas de recorte racial. Todavia, elas abrem margem para fraudes, realidade documentada nos precedentes trazidos pela requerente. Trata-se de problema alarmante, que, se não combatido adequadamente, pode vir a significar o sacrifício da própria finalidade das ações afirmativas, privilegiando oportunistas que não deveriam ser abrangidos pela reserva de vagas, em detrimento daqueles que fazem jus a concorrer a ela. Surge, assim, a necessidade de encontrar a melhor abordagem para garantir que os processos seletivos alcançados pela Lei 12.990/14 sejam aplicados de modo a preservar a dignidade pessoal dos candidatos, isto é, permitindo que eles expressem sua convicção identitária livremente, mas sem estimular declarações infundadas na realidade, a ponto de comprometer os fundamentos dessa relevante espécie de ação estatal. Para equilibrar essas perspectivas, o ato normativo impugnado adota um ponto de largada absolutamente razoável, ao determinar que a concorrência às vagas reservadas obedecerá, de início, ao critério da autodeclaração (seguindo classificação adotada pelo IBGE), que é acolhido pela comunidade jurídica internacional como modelo preferencial. Mas a própria Lei 12.990/14, no seu art. 2º, § único, prevê etapa complementar de classificação, a se instaurar em caso de constatação da falsidade da declaração, prescrevendo que ela pode resultar na eliminação do concurso, bem como na aplicação de outras penalidades cabíveis. Trata-se de sábia abertura a um procedimento corretivo, indispensável para viabilizar a aplicação legítima das ações afirmativas. No julgamento da ADPF 186, o voto-condutor proferido pelo Min. RICARDO LEWANDOWSKI apontava para possíveis soluções, considerando aceitáveis tanto aquelas que se bastassem com a autodeclaração, quanto a previsão de modelos mistos, caracterizados por fases de checagem, por heterodeclaração: ... Sua Excelência reputou viável, inclusive, a formação de um comitê de avaliação, encarregado de proceder à veracidade das declarações dos candidatos. A meu ver, ao determinar que “Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis” (art. 2º, § único) a Lei 12.990/14 foi categórica ao exigir uma cautela para além da mera autodeclaração, impondo a realização de um procedimento de verificação da idoneidade das afirmações dos candidatos. O que a lei não estabelece – e que pode ensejar alguma disceptação – é como o Poder Público deverá se organizar para constatar e remediar eventuais falsidades. Durante os últimos anos, as universidades que aplicam sistemas de cotas com segmentação racial em seus vestibulares têm adotado as mais diversas fórmulas para evitar fraudes, experiências que certamente poderão ser utilizadas para subsidiar a formação de um padrão a ser aplicado nacionalmente. De qualquer modo, parece fora de dúvida que, para preservar da melhor maneira possível a dignidade dos candidatos, evitando maiores constrangimentos, o ideal é que o processo de verificação da autenticidade da declaração privilegie, inicialmente, registros documentais capazes de corroborar a afirmação dos candidatos. Isso pode ser providenciado pela apresentação de fotografias ou até mesmo por documentos públicos que assinalem sinais étnico-raciais referentes aos candidatos e, também, a seus respectivos genitores. Segundo Hédio Silva Júnior, especialista no tema, há uma série de documentos públicos que ostentam informações relevantes para solver dúvidas sobre a realidade étnico-racial: (…) em pelo menos sete documentos públicos os brasileiros são classificados racialmente com base na cor da pele, são eles: 1. Cadastro do alistamento militar; 2. Certidão de nascimento (cor era assinalada até 1975); 3. Certidão de óbito; 4. Cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário (incluindo boletins de ocorrência e inquéritos policiais); 5. Cadastro geral de empregados e desempregados. 6. Cadastros de identificação civil – RG (SP, DF, etc.); 7. Formulário de adoção de varas da infância e adolescência. (SILVA JR., HÉDIO. Documentos públicos como prova de pertencimento racial, 2013. Disponível em http://www.afropress.com/post.asp?id=15523. Acesso em 8/5/2017) Portanto, deve ser oportunizado aos candidatos optantes por concorrer no sistema de vagas reservadas a apresentação de documentos capazes de comprovar a declaração por eles subscritas. Apenas se a análise desses documentos se revelar insuficiente é que deverá ser acionada a alternativa mais invasiva, consistente em convocação para entrevista presencial, em que o candidato poderá ser indagado sobre os elementos que materializam a sua concepção de pertencimento. Diante da necessidade de manter a fidelidade teleológica das ações afirmativas de recorte racial, entendo ser relevante que a Corte estabeleça interpretação conforme à Constituição do art. 2º, § único da Lei 12.990/14, para fixar que (a) é mandatória a realização de fase apuratória da veracidade das declarações dos candidatos interessados em concorrer às vagas reservadas aos negros; e (b) nesse procedimento, deve ser priorizada a avaliação de natureza documental, fundada em fotografias e documentos públicos, figurando a entrevista como opção residual. Ante o exposto, o voto é pela procedência do pedido, declarando a constitucionalidade da Lei 12.990/14, fixando interpretação conforme do seu art. 2º, § único, nos termos acima enunciados. (pg. 79 de 186) O Ministro Edson Fachin, ao citar doutrina sobre o assunto, discorreu sobre o problema da motivação (ponto aqui trazido à discussão), mas acabou, também, concluindo no mesmo sentido do relator, acompanhando-o, inclusive assentando a necessidade de estabelecimento de mecanismos de controle de fraudes. O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: ... A questão, então, passa a ser a forma pela qual se poderia fazer o heterorreconhecimento. Em recente obra sobre o tema, Edilson Vitorelli bem discorreu sobre o problema: “A pior parte da experiência do heterorreconhecimento é que, embora tenha criado juízes para avaliar a raça, ela não respondeu à pergunta que havia ficado aberta, acerca do critério que essas pessoas devem aplicar. Todos os editais com previsão de heterorreconhecimento trouxeram previsão genérica do que faria alguém ser considerado negro, aludindo, por exemplo, a “traços fenotípicos”, sem dizer quais, ou não trouxeram critério algum. A teoria do Direito Administrativo não permitiria sequer atribuir a tais atos o adjetivo de discricionários, dada a ausência de limites legais. A avaliação racial foi estabelecida nos editais como ato completamente arbitrário da comissão encarregada. Os absurdos foram, em curto prazo, descobertos pela imprensa: gêmeos univitelinos, um considerado negro e outro não, a filha de um pai negro e mãe branca foi aceita como cotista e o pai, recusado, dentre outros. É evidente que, no Brasil, a zona de incerteza para se definir quem é negro e quem não é, com base na observação da cor da pele, será consideravelmente maior que a certeza. Todas as leis relativas à igualdade racial, no Brasil, adotaram o parâmetro da autodeclaração. O candidato se declara negro, ou, dependendo da situação, se declara preto ou se declara pardo e isso basta para lhe atribuir essa condição. O problema, mais uma vez, é o critério. Nenhuma lei, federal ou estadual, define quais características o candidato deve levar em conta para se declarar. Não se define sequer se a avaliação é fenotípica ou genotípica e, muito menos, quais os traços que devem ser considerados pelo interessado, ao se olhar no espelho, ou avaliar sua experiência de vida pretérita, para se declarar ou não. (…) Isso se comprova pelo modo como o próprio IBGE, expressamente referido pelo Estatuto da Igualdade Racial, conduz o questionamento racial no contexto do censo. Nele, ao cidadão apenas é perguntado “qual a sua cor?”, sem que se diga o que se entende por cor, devendo o recenseado se enquadrar em uma das cinco opções (branco, pardo, preto, indígena ou amarelo). A Lei, ao afirmar que seria considerados negros aqueles que se enquadrassem nos critérios do IBGE, estabeleceu um falso parâmetro, uma vez que, como percebeu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, “tanto a Lei 12.990/2014, quando o Estatuto da Igualdade Racial instituído pelo Lei 12.288, de 2010, dizem apenas que será aquele que preencha os requisitos do IBGE, órgão que, até o presente momento, não conseguiu definir por intermédio de qualquer ato administrativo normativo quem é negro ou pardo. (…) Eis o problema, então de volta à estaca zero. Autodeclaração e risco de fraude ou heterorreconhecimento e risco de arbitrariedade? A opção deve ser pelo mal menor. Conforme a experiência estrangeira vem demonstrando, a única forma de se operar com conceitos de raça, para viabilizar ações afirmativas ou políticas benéficas a seus destinatários, é mediante autodeclaração. É preciso assumir o risco da existência de algum grau de fraude, ainda que isso fragilize o sistema. O heterorreconhecimento exige a elaboração de critérios rigorosos para a atuação do avaliar, o que ninguém conseguiu formular até hoje.” (VITORELLI, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Salvador: Editora JusPodium, 2017, p. 76-81). Na esteira desse entendimento, a interpretação a ser dada ao dispositivo constante do art. 2º deveria necessariamente conduzir a rejeição do critério de heterorreconhecimento, não por sua inconstitucionalidade, mas porque a opção legislativa envolveria apenas um controle de fraude relativamente à autoidentificação. Nessa linha de compreensão, se a declaração é uma verdade sobre o próprio sujeito, a fraude só poderia ser apurada por má-fé, tendo em vista que é a essência da má-fé implica, como falava Jean Paul Sartre, “que o mentiroso está em posse completa da verdade que ele esconde”. (SARTRE, Jean Paul. Bad Faith. The Philosophy of Existencialism. Selected Essays. Tradução livre). Assim, o critério legal de fraude só poderia ser empregado se o autor da declaração reconhece-se não abrangido pela política afirmativa, mas ainda assim declarasse estar nela incluso. Essa seria, no entanto, uma prova impossível à Administração, a indicar que, ao estabelecer a opção pelo controle de fraude, adotou o legislador critério de heterorreconhecimento, porquanto não poderia a Administração atribuir-se uma finalidade que não pudesse atender. A corroborar tal interpretação, tampouco se poderia admitir que o fim constitucionalmente indicado, consubstanciado na promoção da igualdade, pudesse ser atendido sem quaisquer mecanismos de controle, exigência ínsita ao princípio republicano. Haveria, nesta dimensão, uma interpretação inconstitucional, na medida em que daria à norma uma proteção insuficiente do direito de igualdade: o Estado, na acepção de Dieter Grimm, estaria fazendo pouco para proteger o direito ameaçado. Não se olvida que mesmo esse critério comporta dificuldades operacionais. É preciso, contudo, afastar de plano a alegação de que a definição racial para efeitos de ação afirmativa seria ilegítima. A Convenção para Eliminação da Discriminação Racial, internalizada por meio do Decreto 65.810/69, assentou, em seu Artigo I, que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos.” Sendo legítima a adoção do critério de diferenciação, deve-se, portanto, reconhecer como necessária a atuação positiva da Administração Pública tendente a fiscalizar os processos de seleção por do critério de heterorreconhecimento. Embora a interpretação constitucional não determine o alcance, a priori, dos critérios de adequação e de proporcionalidade, é possível identificar parâmetros normativos, que defluem diretamente do texto constitucional e limitam as escolhas da Administração. Neste ponto, é preciso ter-se em conta que não deve ser o objetivo da política afirmativa definir uma forma “correta” de identidade racial: o próprio Comitê criado pela Convenção para Eliminação da Discriminação Racial rechaça, em seu Comentário n. 32 (CERD/C/GC/32/ par. 34), essa possibilidade. A justificação para adoção de um critério de escolha deve, então, decorrer da própria finalidade a que se destina a política afirmativa. Noutras palavras, a justificação deve derivar da proteção à discriminação, compreendida como a equiparação da raça a um status, como lembrou Neil Gotanda na crítica que fez à “Color-Blind Constitution”. De fato, a discriminação, nos termos do Artigo I da Convenção para Eliminação da Discriminação Racial, deriva do uso da “raça” como um instrumento de regulação social: “Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.” Há, de forma evidente, uma similitude entre as noções de “distinção”, empregada pela Convenção, e a de “barreiras”, utilizada, por exemplo, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. De fato, a discriminação racial é um obstáculo à plena igualdade de participação social, razão pela qual o próprio Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial defendeu, no recente Comentário 34 (CERD/C/GC/34/ par. 50), que os Estados são obrigados a tomar medidas efetivas para remover todos os obstáculos que impedem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais de pessoas com descendência africana, especialmente nas áreas de educação, moradia, emprego e saúde. Tal obstáculo é, sem dúvidas, culturalmente determinado. Por essa razão, correta é a definição dada por Tsemig Yang em “Choice and Fraud in Racial Identification: The Dilemma of Policing in Affirmative Action, the Census, and a Color-Blind Society” (Michigan Journal of Race and Law, Vol. 11, p. 367): “a política de ação afirmativa é menos uma função do status racial puro [embora seja dele dependente] do que uma experiência racial com discriminação”. Sendo assim definido o pressuposto da ação afirmativa, a identificação que se faz necessária para as provas de concurso público deve ser feita por comissão plural, a exemplo das equipes multidisciplinares a que se refere o Estatuto da Pessoa com Deficiência, e deve contar com a participação de ao menos um negro ou pardo. Tal diretriz é consentânea com a Declaração de Durban que, em seu parágrafo 99, fixou: “Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação.” É evidente que é possível – e legítimo, como destacou o Relator – que a Administração defina outros critérios para essas comissões. Os parâmetros aqui indicados, no entanto, porque decorrem diretamente do Texto Constitucional e dos tratados internacionais de direitos humanos, aplicáveis à hipótese por força do art. 5º, § 2º, da CRFB, exigem que eventual interpretação conformadora deles não se desvirtuem. Assim, é procedente o pedido formulado pelo amicus curiae relativamente à interpretação conforme do art. 2º da Lei 12.990. Finalmente, no que tange à aplicação da Lei aos efeitos decorrentes da nomeação em cargo público, trata-se de verificar como deve ser feito o cômputo da ordem de nomeação. O critério foi objeto de diversos debates neste Tribunal no que diz respeito às cotas para pessoas com deficiência. Esta Corte, no entanto, veio a interpretar o critério da seguinte maneira: “Mandado de segurança. 2. Direito administrativo. 3. Concurso público. MPU. Candidata portadora de deficiência. Cargo de Técnico de Saúde/Consultório Dentário. 4. Reserva de vagas. Limites estabelecidos no Decreto 3.298/99 e na Lei 8.112/90. Percentual mínimo de 5% das vagas. Número fracionado. Arredondamento para primeiro número inteiro subsequente. Observância do limite máximo de 20% das vagas oferecidas. 5. Segurança concedida.” (MS 30861, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 22/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 111 DIVULG 06-06-2012 PUBLIC 08-06-2012 RIP v. 14, n. 73, 2012, p. 239-241) A ordem de nomeação fixa, por consequência lógica, a ordem de antiguidade para efeitos na promoção de carreiras, caso aplicável. Assim, a interpretação que restringe os efeitos decorrentes da ordem de nomeação, substituindo-se por outros, não apenas atenta à ordem estabelecida na lei, mas contraria a própria finalidade da política por ela estabelecida e, nessa dimensão, é inconstitucional. Ante o exposto, acompanho o Relator para julgar procedente a presente ação declaratória e para: (i) dar interpretação conforme a Constituição do art. 2º, caput e parágrafo único, da Lei 12.990/2014, para assentar a necessidade de estabelecimento de mecanismos de controle de fraudes nas autodeclarações dos candidatos nos concursos públicos federais; (ii) dar interpretação conforme a Constituição do art. 1º da Lei 12.990/2014, para esclarecer que a política de cotas raciais de que trata a lei se aplica a todos os órgãos e instituições públicas federais, incluindo aquelas dotadas de autonomia em face do Poder Executivo Federal; (iii) dar interpretação conforme a Constituição do art. 4º da Lei 12.990/2014, para estabelecer que a ordem de classificação estabelecida no preceito se aplica não apenas à nomeação, mas deve também incidir sobre todas as demais dimensões da vida funcional dos servidores públicos cotistas. É como voto. (pg. 89/105 de 186) Ao que se observa, apesar de todas as ressalvas feitas quanto à subjetividade dos critérios de identificação (autodeclaração e heteroidentificação), inclusive quanto à problemática da motivação, fato é que a composição plenária do STF concluiu pela constitucionalidade do sistema, observada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa: Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, e fixou a seguinte tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. Ausentes, participando de sessão extraordinária no Tribunal Superior Eleitoral, os Ministros Rosa Weber e Luiz Fux, que proferiram voto em assentada anterior, e o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 8.6.2017. Observa-se, portanto, que, para o STF, o legislador fez expressa opção pelo sistema da autodeclaração, autorizando o sistema da heteroidentificação, que consiste na instauração de comissões (de heteroidentificação) que se limitam a confirmar, ou não confirmar, a declaração feita pelo candidato. Autodeclaração e heteroidentificação são critérios subjetivos que buscam se complementar, vale dizer, dar uma certeza maior de que a política de ação afirmativa esteja atingindo suas finalidades, sendo reconhecida a constitucionalidade de ambos os critérios. Rejeitou-se, portanto, o critério “científico” de classificação, por se reconhecer que a ampla miscigenação presente na sociedade brasileira tornaria impossível o estabelecimento de qualquer outro critério que não fosse o da aparência (fenotipia), que é o fator determinante para a discriminação. De modo que a tradicional motivação dos atos administrativos, tal como propugnado pelo autor e acolhido pela sentença, teria o condão de, na verdade, instituir os tais “critérios científicos” que fomentariam, em tese, os argumentos daqueles que sustentavam a instauração de um chamado “tribunal racial” que a lei buscou afastar, privilegiando, na verdade, o critério da aparência, pois é essa característica que, como se viu, normalmente leva à discriminação (ou preconceito) dos afrodescendentes. Disso decorre que não há qualquer inconstitucionalidade / ilegalidade no ato administrativo expedido por comissão de heteroidentificação que se limita a cumprir esse papel. Aplica-se aqui, às inteiras, o postulado da vinculação ao instrumento convocatório. Precedentes: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. CONCURSO PÚBLICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CANDIDATO APROVADO NAS VAGAS DESTINADAS AOS NEGROS E PARDOS. CRITÉRIO DA AUTODECLARAÇÃO. PREVISÃO EDITALÍCIA. VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA ESCLARECER QUE NÃO HÁ NECESSIDADE DE DESLOCAR O IMPETRANTE PARA A VAGA DE COTISTA, UMA VEZ EMPOSSADO PELA LISTA GERAL. 1. A teor do disposto no art. 1.022 do Código Fux, os Embargos de Declaração destinam-se a suprir omissão, afastar obscuridade ou eliminar contradição existente no julgado, o que não se verifica no caso dos autos, porquanto o acórdão embargado dirimiu todas as questões postas de maneira clara, suficiente e fundamentada. 2. Conforme destacado anteriormente, a questão em debate cinge-se à verificação da suposta ilegalidade no ato administrativo que determinou a nulidade da inscrição do recorrente no concurso público para o cargo de Oficial de Controle Externo, Classe II, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, conforme Edital 002/2013, em face da ausência de comprovação da afrodescendência declarada para fins de concorrência nas vagas específicas para negros e pardos. 3. Da leitura atenta das cláusulas editalícias que dispõem acerca dos critérios para que o candidato concorra nas vagas destinadas a negros e pardos, verifica-se que o único requisito exigido é a autodeclaração, não havendo qualquer outra previsão ou parâmetro a ser utilizado na fiscalização do sistema de cotas. 4. No caso, o ora embargado, apesar de ter se declarado negro, foi submetido, posteriormente, à uma comissão para aferição dos requisitos. Verificou-se que esta comissão impôs nova exigência: a de ter que comprovar ser filho de mãe ou pai negro, não podendo sua cor de pele ter advindo de seus avós ou outro parente (fls. 104). 5. Portanto, se o edital estabelece que a simples declaração habilita o candidato a concorrer nas vagas destinadas a negros e pardos e não fixa os critérios para aferição desta condição, não pode a Administração, posteriormente, sem respaldo legal ou no edital do certame, estabelecer novos critérios ou exigências adicionais, sob pena de afronta ao princípio da vinculação ao edital. 6. Assim, não há necessidade de esclarecer se a comissão pode ser considerada como responsável pela avaliação, porquanto, no caso, o que houve foi a instituição de nova exigência (aprovação pela comissão) não prevista no edital. Logo, havendo previsão editalícia, é possível a instituição de uma comissão avaliadora dos requisitos para o preenchimento das vagas destinadas a afrodescentes; no caso dos autos, porém, não há essa previsão, por isso a atuação de tal comissão pode ser admitida. 7. Quanto à advertência de que a manutenção do recorrente/impetrante no regime de cotas, apesar de já haver tomado posse no cargo em decorrência da inscrição na lista geral, inviabilizará a posse dos demais candidatos cotistas, abrindo-se a vaga para a lista geral (fls. 587), merece este esclarecimento: uma vez empossado o candidato embargado, não há necessidade de deslocá-lo para a vaga de cotista, tendo em vista que a tutela almejada já foi satisfeita. Inclusive, no item "e" da petição inicial do writ havia pedido no sentido do impetrante ser remetido à lista geral de classificação. 8. No tocante a citação dos demais candidatos aprovados no concurso para integrar a lide, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado quanto à inexistência de litisconsórcio passivo necessário entre todos os candidatos aprovados em concurso público. Neste sentido: AgInt no REsp. 1.690.488/MG, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, DJe 20.6.2018; e AREsp 1.244.080/PI, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 16.4.2018. 9. Embargos de Declaração do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL parcialmente acolhidos para esclarecer que não há necessidade de deslocar o impetrante para a vaga de cotista, uma vez empossado pela lista geral. (EDcl no AgRg no RMS 47.960/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 15/10/2019) ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ENSINO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 489, § 1º, E 1.022 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015. AUSÊNCIA. COTAS RACIAIS. ALTERAÇÃO DOS CRITÉRIOS APÓS A FINALIZAÇÃO DO CERTAME. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Não se configura a ofensa aos arts. 489, § 1º, e 1.022 do Código de Processo Civil/2015, uma vez que a Corte regional julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, em conformidade com o que lhe foi apresentado. 2. O órgão julgador não é obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. 3. Em se tratando de disputa de vagas em Universidades Públicas reservadas pelo critério da cota racial, ainda que válida a utilização de parâmetros outros que não a tão só autodeclaração do candidato, há de se garantir, no correspondente processo seletivo, a observância dos princípios da vinculação ao edital, da legítima confiança do administrado e da segurança jurídica. 4. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório impõe o respeito às regras previamente estipuladas por ambas as partes, as quais não podem ser modificadas com o certame já finalizado, como no caso dos autos, porquanto o recorrido realizou concurso vestibular em 2015 e as novas regras foram estabelecidas pela administração em 2016. 5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.794.413/RS, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 6/9/2019.) No caso, como se viu, o edital previu o controle da autodeclaração por meio de comissão de heteroidentificação, cujo critério de seleção é o da fenotipia (“5.6.1. O IFSP constituirá uma Comissão de heteroidentificação, conforme o determinado pela Portaria Normativa n. 04 de 06 de abril de 2018, a qual será responsável pela emissão de um parecer conclusivo favorável ou não à autodeclaração, considerando os aspectos fenotípicos do candidato.”). Por fim, quanto à verba honorária, sucumbente integralmente o autor, inverte-se a responsabilidade pelos encargos decorrentes da sucumbência (art. 85, caput e § 8º, do CPC-15), observados os benefícios da gratuidade da justiça, concedidos em primeiro grau (fls. 215-PJe – ID Num. 261618344 - Pág. 4). Ante o exposto, dou provimento ao recurso e à remessa oficial, tida por interposta, para o fim de julgar improcedente o pedido, com inversão da verba honorária. É o voto.
E M E N T A
CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE PROFESSOR DE MAGISTÉRIO DO ENSINO BÁSICO, TÉCNICO E TECNOLÓGICO DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO – IFSP. CANDIDATO COTISTA. AUTODECLARAÇÃO + CONFIRMAÇÃO POR COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. FENOTIPIA. CRITÉRIO SUBJETIVO QUE TEVE SUA CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MOTIVAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE O PODER JUDICIÁRIO SUBSTITUIR O JULGAMENTO DA COMISSÃO, NOTADAMENTE EM CASO EM QUE O AUTOR NÃO COMPROVOU A EXISTÊNCIA DE QUALQUER ILEGALIDADE. APLICAÇÃO DO POSTULADO DA VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO. RECURSO PROVIDO. INVERSÃO DA VERBA HONORÁRIA.
1 – Tratando-se de sentença ilíquida proferida contra o INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO - IFSP, autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, não se aplica a exceção a que se refere o art. 496, § 3º, do NCPC-2015, que pressupõe sentença condenatória "de valor certo não excedente a 1.000 (mil) salários-mínimos”. Remessa oficial tida por interposta, nos termos do art. 496, I, do NCPC-2015. Precedentes do STJ, quando em vigor o antigo CPC-73, que veiculava norma semelhante.
2 – A Administração Pública é regida pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, CF). Disso decorre que os atos praticados pelos seus agentes são revestidos de presunção de veracidade e legitimidade, que, para ser afastada, exige apresentação / produção de prova tendente a afastar aquela presunção. De modo que não é da Administração o ônus de provar a lisura dos atos que pratica, pois que ela é presumida, cabendo ao administrado o ônus de fazer prova em sentido contrário. Precedentes.
3 – Como resulta claro das normas constantes do edital, o candidato que desejar concorrer pelo sistema de cotas deverá autodeclarar a sua condição de afrodescendente no momento da inscrição e essa autodeclaração deverá ser confirmada por uma comissão de heteroidentificação (identificação por terceiros dos caracteres físicos e visíveis dos candidatos afrodescendentes), que utilizará o critério da fenotipia (aparência) para confirmar, ou não, a autodeclaração.
4 – Embora esse tema seja polêmico, pois ambos os critérios (autodeclaração e heteroidentificação) são subjetivos, o que, para muitos, não se coaduna com um regime constitucional de amplo acesso aos cargos/postos públicos, onde o que impera é o postulado da isonomia, fato é que o legislador, reconhecendo a ampla miscigenação da sociedade brasileira, preferiu, mesmo assim, instituir uma política de ação afirmativa em favor dos afrodescendentes, na qual estabeleceu a reserva de vagas para os candidatos que se autodeclararem negros / pardos, mas, também, autorizou a utilização de um critério adicional de controle pela Administração (heteroidentificação), onde o que impera é o critério da aparência (fenotipia). Com esse controle, atendendo ao princípio republicano (transparência), procurou “diluir”, por assim dizer, a responsabilidade por essa autoidentificação, visando dar maior credibilidade ao sistema de cotas, contrariando, temporariamente, a regra geral de participação igualitária de todos os candidatos no acesso aos cargos públicos.
5 – O tema não é novo e, em razão das agudíssimas controvérsias estabelecidas na sociedade, foi objeto de diversas manifestações do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a constitucionalidade dessa forma de seleção de parte dos candidatos aos cargos públicos.
6 – Apesar de todas as ressalvas feitas durante o julgamento da ADPF 186 (acesso de estudantes às universidades e instituições federais de ensino) e da ADC 41 (acesso aos cargos públicos na Administração Pública Federal) quanto à subjetividade dos critérios de identificação (autodeclaração e heteroidentificação), inclusive quanto à necessidade de motivação do ato administrativo que faria o “enquadramento” do candidato, fato é que a conclusão foi pela constitucionalidade dessa sistemática, observada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
7 – Afastou-se, portanto, a necessidade de adoção de um critério “científico” de classificação, pois entendeu-se que é a aparência (fenotipia) do indivíduo o fator determinante para a discriminação dos afrodescendentes, como resulta claro dos pronunciamentos dos senhores ministros.
8 – De modo que a tradicional motivação dos atos administrativos, tal como propugnado pelo autor, teria o condão de, na verdade, instituir os tais “critérios científicos” que fomentariam os argumentos daqueles que sustentavam a instauração de um chamado “tribunal racial” que a lei buscou afastar. Privilegiou, portanto, o critério da aparência, pois é essa característica que normalmente leva à discriminação (ou preconceito) dos afrodescendentes.
9 – Aplicação, às inteiras, do postulado da vinculação ao instrumento convocatório, pois o edital previu o controle da autodeclaração por meio de comissão de heteroidentificação, cujo critério de seleção é o da fenotipia (“5.6.1. O IFSP constituirá uma Comissão de heteroidentificação, conforme o determinado pela Portaria Normativa n. 04 de 06 de abril de 2018, a qual será responsável pela emissão de um parecer conclusivo favorável ou não à autodeclaração, considerando os aspectos fenotípicos do candidato”).
10 – Quanto à verba honorária, sucumbente integralmente o autor, inverte-se a responsabilidade pelos encargos decorrentes da sucumbência (art. 85, caput e § 8º, do CPC-15), observados os benefícios da gratuidade da justiça, concedidos em primeiro grau.
11 – Recurso e remessa oficial, tida por interposta, providos, com inversão da verba honorária.