AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5004239-34.2023.4.03.0000
RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO
AGRAVANTE: S. X. N.
REPRESENTANTE: VIVIANE CRISTINA XAVIER
Advogados do(a) AGRAVANTE: TAINA GALVANI BUZO - SP406416-A,
AGRAVADO: INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, CAMPUS AVANÇADO TUPÃ, REITOR DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, INSTITUTO FEDERAL DE EDUCACAO, CIENCIA E TECNOLOGIA DE SAO PAULO
OUTROS PARTICIPANTES:
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5004239-34.2023.4.03.0000 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO AGRAVANTE: S. X. N. Advogados do(a) AGRAVANTE: TAINA GALVANI BUZO - SP406416-A, AGRAVADO: INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, CAMPUS AVANÇADO TUPÃ, REITOR DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, INSTITUTO FEDERAL DE EDUCACAO, CIENCIA E TECNOLOGIA DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): Trata-se de agravo de instrumento interposto por S.X.N, representada por VIVIANE CRISTINA XAVIER NOGUEIRA, contra decisão do MM. Juízo da 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Tupã que, no bojo de mandado de segurança por elas impetrado contra o REITOR DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO e o DIRETOR GERAL DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, CAMPUS AVANÇADO TUPÃ - objetivando o reconhecimento de seu direito líquido e certo à inclusão na lista de ampla concorrência de processo seletivo e, consequentemente, à reserva de vaga para sua matrícula -, indeferiu a liminar (ID 270251941 - p. 234-236). Em suas razões recursais, a agravante alega terem sido satisfeitos os pressupostos para o deferimento da liminar, pois a demora no julgamento do writ pode comprometer seu ano escolar. No mais, afirma que o ato praticado pelas autoridades coatoras está eivado de ilegalidade, já que o item 8.2 do edital a autoriza a disputar as vagas de ampla concorrência. Além disso, alega que sua desclassificação do certame viola seu direito fundamental à educação, bem como os princípios da boa-fé e da razoabilidade. Por fim, ante a lacuna do edital, pede que seja autorizada sua disputa às vagas de ampla concorrência, por aplicação analógica do artigo 3º da Lei n. 12.990/2014 e, consequentemente, seja reservada uma das vagas para sua matrícula no IFSP - Campus Tupã, para o presente ano letivo. A tutela recursal foi indeferida (ID 270705700 - p. 1-6). As autoridades coatoras ofertaram contrarrazões (ID 271581755 - p. 1-7). O DD. Órgão do Ministério Público Federal, em seu parecer, sugere o desprovimento do recurso. É o relatório.
REPRESENTANTE: VIVIANE CRISTINA XAVIER
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5004239-34.2023.4.03.0000 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO AGRAVANTE: S. X. N. Advogados do(a) AGRAVANTE: TAINA GALVANI BUZO - SP406416-A, AGRAVADO: INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, CAMPUS AVANÇADO TUPÃ, REITOR DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO, INSTITUTO FEDERAL DE EDUCACAO, CIENCIA E TECNOLOGIA DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): A controvérsia cinge-se ao exame dos pressupostos para a concessão de liminar em mandado de segurança. O poder constituinte originário estabeleceu que, sem o devido processual legal, ninguém seria privado de seus bens ou de sua liberdade, conferindo ao Poder Judiciário a tarefa de atuar, quando provocado, para reparar lesão ou repelir ameaça a direitos, a fim de promover a paz social e zelar pela observância das regras de convivência estabelecidas no ordenamento jurídico. O exercício da atividade jurisdicional nas sociedades democráticas, contudo, pressupõe a garantia dos litigantes ao contraditório e à ampla defesa, de modo que lhes sejam assegurados os meios adequados à participação na formação do convencimento do Juízo, mediante a apresentação de suas razões, a produção provas e, eventualmente, o oferecimento de recursos. O provimento jurisdicional que resulta desta análise aprofundada da controvérsia promove maior justiça, pois prestigia a segurança jurídica em seu mais elevado grau, uma vez que se baseia em um juízo de certeza acerca dos fatos relevantes e normas aplicáveis ao caso concreto. Não é outra a razão pela qual constitui garantia constitucional fundamental a proteção da coisa julgada material de modificações legislativas supervenientes, bem como é vedada sua rediscussão pelo Poder Judiciário e pela Administração Pública (artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal). Todavia, a produção desta tutela definitiva demanda tempo que, por vezes, é incompatível com o tipo de direito afirmado em Juízo. Realmente, há situações em que a não fruição imediata do direito pode acarretar no seu perecimento ou gerar dano de difícil reparação ao seu titular, o que coloca em risco a própria efetividade da tutela definitiva. Para estas circunstâncias excepcionais, a legislação processual previu o instituto das tutelas provisórias, das quais são espécies as liminares, a tutela de urgência, a tutela de evidência e o poder geral de cautela. Tais medidas visam possibilitar ao Poder Judiciário a intervenção imediata em situações concretas, a fim de garantir a efetividade do processo, afastando qualquer embaraço ao desenvolvimento regular da relação processual ou até mesmo concedendo total ou parcialmente o bem da vida almejado. No entanto, por se basear em um juízo de probabilidade do direito, formado a partir da cognição sumária dos fatos e provas até então produzidos, tal provimento jurisdicional ostenta os atributos da precariedade e da temporariedade. Assim, a tutela provisória pode não só ser revista a qualquer tempo pelo Juízo, bem como seus efeitos concretos perduram apenas até a formação da coisa julgada material. No que tange ao mandado de segurança, os requisitos para o deferimento de liminar estão previstos no artigo 7, III, da Lei n. 12.016/2009, in verbis: "Art. 7o Ao despachar a inicial, o juiz ordenará: I - que se notifique o coator do conteúdo da petição inicial, enviando-lhe a segunda via apresentada com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 10 (dez) dias, preste as informações; II - que se dê ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, enviando-lhe cópia da inicial sem documentos, para que, querendo, ingresse no feito; III - que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica." (Vide ADIN 4296) § 1o Da decisão do juiz de primeiro grau que conceder ou denegar a liminar caberá agravo de instrumento, observado o disposto na Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. § 2o Não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza. (Vide ADIN 4296) § 3o Os efeitos da medida liminar, salvo se revogada ou cassada, persistirão até a prolação da sentença. § 4o Deferida a medida liminar, o processo terá prioridade para julgamento. § 5o As vedações relacionadas com a concessão de liminares previstas neste artigo se estendem à tutela antecipada a que se referem os arts. 273 e 461 da Lei no 5.869, de 11 janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. " (g. n.) Do caso concreto. Depreende-se da petição inicial que a impetrante efetuou inscrição para participar de processo seletivo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - Campus Avançado Tupã, a fim de disputar vaga destinada a cotistas no curso técnico em eletrônica integrado ao ensino médio, em período integral. Com relação à oferta de vagas para cotistas em instituições de ensino técnico e superior, no âmbito federal, é necessário tecer algumas considerações. O artigo 3º da Constituição Federal estabeleceu como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); e a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III). A fim de viabilizar o alcance desses nobres propósitos, o poder constituinte originário elegeu a educação como direito social fundamental e conferiu ao Estado e à família o dever de promovê-la e incentivá-la, nos termos dos artigos 6º, caput, e 205 da Constituição Federal. Isso se justifica pelo fato de a atividade de ensino buscar o pleno desenvolvimento do potencial dos indivíduos, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Diante do caráter universalista deste direito, estabeleceu-se como um dos seus princípios basilares a igualdade de acesso e permanência nas instituições de ensino, nos termos do artigo 206, I, da Constituição Federal. O alcance do princípio da igualdade sempre foi objeto de profundas discussões na seara jurídica e remonta ao surgimento do movimento constitucionalista que levou à instauração dos primeiros Estados Liberais. Durante o Antigo Regime, berço desta discussão, as sociedades européias eram marcantemente estratificadas e os direitos e deveres dos indivíduos não derivavam de sua natureza humana, mas sim dependiam do grupo social ao qual pertenciam. As revoluções liberais colocaram fim aos privilégios estamentais da nobreza e promulgaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que, em seu artigo 1º, estabelece que "os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum". Desse modo, do ponto de vista estritamente jurídico, nas atividades de elaboração e aplicação da lei, caberia ao Estado dispensar tratamento igual a todos que estivessem na mesma situação, independentemente do conteúdo do preceito normativo ou mesmo das condições e circunstâncias particulares dos indivíduos. Eis a acepção formal da igualdade, sintetizada na expressão "todos são iguais perante a lei", contemplada no artigo 5, caput, da nossa Carta Magna. Todavia, a adoção de tratamento idêntico a todos os indivíduos, desconsiderando suas diferenças sociais, econômicas e culturais no plano fático, pode produzir resultados injustos. Tal constatação levou a uma reformulação do conteúdo do princípio jurídico da igualdade, da qual é exemplo a síntese formulada pelo saudoso jurista Rui Barbosa, em sua famosa Oração aos moços, em clara referência à formula do filósofo Aristóteles: "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam [pois] tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". Assim, o princípio jurídico da igualdade passou a ter uma dimensão material. Ao invés de adotar uma postura inerte em relação às desigualdades fáticas entre os sujeitos de direito, o Estado passa a considerá-las no seu ofício de elaboração e aplicação das leis, adotando tratamentos diferenciados quando necessário, sempre baseados em critérios justos, razoáveis e fundamentados de acordo com os valores e objetivos constitucionais. Caso o Estado não cumpra a contento esse dever ao justificar o discrímen, a política pública pode resultar em verdadeira ofensa à Constituição. Um exemplo de medida institucional visando dar efetividade ao princípio da igualdade material são as ações afirmativas, que constituem justamente políticas públicas ou programas privados, de caráter temporário, que objetivam reduzir desigualdades sociais, étnicas, econômicas ou físicas, mediante a concessão de certas vantagens compensatórias a determinados grupos sociais. Ao se analisar a evolução legislativa e jurisprudencial contemporânea, verifica-se que o princípio da igualdade no que tange ao acesso e à permanência nas instituições públicas de ensino, constante no artigo 206, I, da Constituição Federal, tem sido tomado exatamente nesta dimensão material. Quanto a esta questão, a Lei n. 12.711/2012 instituiu sistema de cotas para ingresso nas instituições públicas federais de ensino superior e de ensino técnico, reservando metade das vagas aos candidatos que, formados exclusivamente em escolas públicas, pertencessem, ou não, aos seguintes grupos sociais: advindos de famílias de baixa renda - assim entendidas como aquelas cuja renda per capita não ultrapassasse 1,5 (um e meio) salário mínimo; pretos, pardos, indígenas ou, ainda, portadores de necessidades especiais. A fixação da quantidade de vagas destinadas a cada um desses grupos sociais obedeceria a sua respectiva representatividade dentro da população da unidade da Federação em que se localizasse a instituição de ensino, de acordo com os dados colhidos pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. A adoção de tal tratamento diferenciado pelo Poder Público ao estabelecer reserva de vagas para ingresso no ensino superior, não caracteriza ofensa a preceito fundamental, conforme restou consignado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADPF n. 186/DF, sob a relatoria do Eminente Ministro Ricardo Lewandowski, nos termos da ementa que trago à colação: "ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente." (ADPF 186, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009) Na oportunidade, os requerentes alegaram que o sistema de cotas no ensino superior violava o disposto no artigo 208, V, da Constituição Federal, que dispõe ser dever do Estado garantir "acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um". O Eminente Ministro Relator, contudo, teceu relevantes considerações sobre o tema que, pela sua pertinência, merecem destaque: "(…) As políticas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros. Elas devem, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro, desconsiderando-se os interesses contingentes e efêmeros que envolvem o debate. Não raro a discussão que aqui se trava é reduzida à defesa de critérios objetivos de seleção - pretensamente isonômicos e imparciais -, desprezando-se completamente as distorções que eles podem acarretar quando aplicados sem os necessários temperamentos. De fato, critérios ditos objetivos de seleção, empregados de forma linear em sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades interpessoais profundas, como é a nossa, acabam por consolidar ou, até mesmo, acirrar as distorções existentes. Os principais espaços de poder político e social mantém-se, então, inacessíveis aos grupos marginalizados, ensejando a reprodução e perpetuação de uma mesma elite dirigente. Essa situação afigura-se ainda mais grave quando tal concentração de privilégios afeta a distribuição de recursos públicos. Como é evidente, toda a seleção, em qualquer que seja a atividade humana, baseia-se em algum tipo de discriminação. A legitimidade dos critérios empregados, todavia, guarda estreita correspondência com os objetivos sociais que se busca atingir com eles. (…) O critério de acesso às universidades públicas, entre nós, deve levar em conta, antes de tudo, os objetivos gerais buscados pelo Estado Democrático de Direito (…) " Por derradeiro, conquanto a questão tratada na ADPF n. 186/DF tenha se limitado a discutir o estabelecimento de sistema de cotas para acesso ao ensino superior no âmbito federal, nada impede que suas conclusões sejam extensíveis, por analogia, aos casos que cuidam da mesma questão no âmbito do ensino técnico federal, em razão de suas evidentes semelhanças fáticas e jurídicas. Em decorrência, as regras estabelecidas pela Lei n. 12.711/2012 não configuram violação ao princípio meritocrático, mas antes conformam importante política pública que visa dar efetividade ao princípio da igualdade material. In casu, a agravante reconhece que se inscreveu para disputar as vagas reservadas aos estudantes que fizeram o ensino fundamental exclusivamente em escola pública e que fossem integrantes (Lista 1), ou não (Lista 3), de famílias de baixa renda, assim entendidas como aquelas com renda per capita inferior a um salário mínimo e meio. Embora tenha sido aprovada na 9ª colocação na Lista 1 - reservada aos estudantes de baixa renda egressos de escola pública -, ao comparecer para a realização da matrícula, a impetrante não conseguiu comprovar que satisfazia os requisitos para usufruir da política pública compensatória, uma vez que tinha frequentado parcialmente o ensino fundamental em instituição de ensino privada. Assim, as autoridades apontadas como coatoras homologaram sua desclassificação do certame. Inconformada, a agravante sustenta que a decisão administrativa padece de ilegalidade, pois faz jus a disputar as vagas destinadas à ampla concorrência. O pleito, contudo, não merece prosperar. Ao se examinar detidamente o instrumento editalício (ID 270251941 - Pág. 20-39), sobretudo o item 8 que trata da reserva de 50% (cinquenta por cento) das vagas a estudantes que frequentaram o ensino fundamental exclusivamente em escola pública, verifica-se que o referido critério de seleção reproduz integralmente o disposto nos artigos 4º e 5º da 12.711/2012, que instituíram o sistema de cotas em escolas técnicas no âmbito federal, in verbis: "Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita . Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o art. 4º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016) Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser preenchidas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino fundamental em escola pública" As autoridades tidas por coatoras, portanto, não exorbitaram de sua competência, mas sim estabeleceram tratamento diferenciado nos exatos termos em que autorizado pela legislação federal, dando plena efetividade ao princípio da igualdade material que ensejou a instituição da referida política pública. No entanto, a agravante afirma que a regra prevista no item 8.2 do edital autorizaria sua habilitação para disputar as vagas de ampla concorrência. Eis o preceito normativo controverso: "8.2. A concorrência às vagas reservadas é feita de acordo com as respostas fornecidas pelo candidato no ato da inscrição. Candidatos que atendam às exigências para essa forma de ingresso, cujas respostas fornecidas não os identificarem às vagas reservadas, concorrerão apenas às vagas destinadas à ampla concorrência." Ao invés de viabilizar a migração das listas, a referida regra reforça que a disputa será realizada de acordo com a vontade manifestada pelo candidato por ocasião do preenchimento do formulário de inscrição. Desse modo, após a conclusão das provas do processo seletivo, não pode o candidato que optou pela lista de ampla concorrência, alegar que satisfazia os requisitos para usufruir da política publica compensatória, a fim de "furar a fila" em outras listas. A regra supramencionada, portanto, constitui uma garantia aos cotistas de que não haverá migração superveniente de lista, em razão de mera manifestação de vontade unilateral de candidato que não logrou êxito na disputa das vagas da ampla concorrência. O único critério para aproveitamento de vagas remanescentes do sistema de cotas é aquele previsto no item 13.4 do edital, que mantém a prioridade de destinação das vagas de acordo com o maior grau de vulnerabilidade do grupo social. A vaga do sistema de cotas, portanto, apenas será preenchida por candidato da ampla concorrência em casos extremos, em razão da absoluta inexistência de outros cotistas inscritos no certame. Também não pode ser acolhida a tese de que teria ocorrido erro escusável no preenchimento do formulário de inscrição e, portanto, a desclassificação da agravante ofenderia aos princípios da boa-fé e da razoabilidade. Neste sentido, é importante destacar que o período de inscrição durou aproximadamente um mês, de 10/11/2022 a 07/12/2022, durante o qual as pessoas poderiam alterar o preenchimento do formulário diversas vezes, de forma eletrônica, sem qualquer ônus, de acordo com os itens 4.11 e 4.12.1 do edital, sendo considerada válida a última ficha preenchida. Ora, levando-se em consideração a advertência contida no item 1.2, que abre o edital - "É obrigatório ao candidato, ao seu responsável (pai, mãe, curador ou tutor) ou representante legal, tomar conhecimento de todas as normas e procedimentos indicados neste Edital e nas demais publicações pertinentes, sendo que a inscrição implicará a aceitação das normas definidas, sobre as quais não poderá alegar desconhecimento" (g. n.) - não parece razoável supor que, durante esse período de tempo relativamente longo, a candidata não tenha feito a leitura detida do instrumento editalício e procurado a instituição para tirar eventuais dúvidas com a comissão do concurso. Ademais, a dicção do item 8.6 do edital é clara e não necessita de qualquer exercício interpretativo rebuscado para a compreensão de seu alcance: "8.6. Candidatos que tenham cursado, ainda que parcialmente, o ensino fundamental em instituições privadas de ensino (particulares, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, conforme art. 20, da lei 9.394/1996), mesmo com bolsa integral, não têm direito às vagas reservadas pela Lei nº 12.711/2012." (g. n.). Longe de ser uma arbitrariedade, repise-se, a norma apenas reproduz o critério previsto no artigo 4º da Lei n. 12.711/2012. Trata-se, portanto, de estrita observância da legalidade. Por outro lado, não se compatibiliza com a boa-fé objetiva declarar que é egresso exclusivamente do ensino público e, na época da realização da matrícula, apresentar documentos que comprovam exatamente o oposto e esperar que a Administração Pública releve a situação de "fato consumado"(ID 270251941 - p. 228). Aliás, a agravante sequer contesta o fato de que realmente fez o ensino fundamental parcialmente em instituição de ensino privado. Igualmente não merece prosperar a alegação de violação ao direito fundamental à educação, uma vez que a desclassificação da candidata do certame, por óbvio, não configura impeditivo absoluto do seu acesso ao ensino neste ano, tampouco a impede de, caso queira, concorrer novamente no ano seguinte. A propósito, não se pode confundir direito à educação com direito a estudar exclusivamente em instituição pública específica. O sistema educacional público e gratuito é constituído por uma rede ampla de estabelecimentos de ensino, que também oferecem acesso à educação, em respeito ao disposto nos artigos 205 e 206, I, da Constituição Federal. Por derradeiro, pede a agravante que seja autorizada sua participação na lista de ampla concorrência, por aplicação analógica do artigo 3º da Lei n. 12.990/2014. O pleito, contudo, também não pode prosperar. As políticas públicas compensatórias fundadas em ações afirmativas estabelecem tratamento diferenciado de determinados grupos sociais, conferindo vantagens temporárias a estes, visando à efetividade do princípio da igualdade material. Ao elaborá-las, o legislador se baseou não só nas disponibilidades orçamentárias, como também nas condições políticas e sociais para a implementação de tal diferenciação. A Lei n. 12.990/2014 disciplina a reserva de vagas em concursos públicos para negros. Ora, aplicar de forma analógica as disposições do referido diploma normativo a caso que não guarda similaridade fática ou jurídica, ainda que remota, configuraria interpretação extensível inadmissível. Neste sentido, é importante relembrar que o estabelecimento de critérios de diferenciação arbitrários, ainda que na aplicação analógica de políticas públicas compensatórias, pode produzir resultados manifestamente inconstitucionais e levar ao desprestígio deste importante instrumento de redução das desigualdades fáticas. Ademais, não cabe ao Poder Judiciário substituir os critérios de seleção previstos em edital elaborado pela Administração Pública, quando estes estão em consonância com a lei, sob pena de violar a repartição de poderes. O mérito administrativo, portanto, é matéria afeita exclusivamente à apreciação da Administração Pública, cabendo a ela exercê-lo dentro do seu juízo de discricionariedade. Neste sentido, reporto-me aos seguintes precedentes desta Corte Regional : "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO. SELEÇÃO PARA INGRESSANTES EM PROGRAMA DE DOUTORADO. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC - UFABC. RECURSO DESPROVIDO. 1- A prova documental acostada não evidenciou a existência do ato coator narrado pelo recorrente no mandado de segurança impetrado. 2. A Coordenação de Seleção, ao não computar a pontuação relativa ao exercício de magistério superior na nota final da recorrente, candidata na seleção para o programa de doutorado em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC - UFBC, por ausência de comprovação quando da inscrição, agiu em estrita conformidade com o disposto no edital. 3. O edital é a lei que rege o concurso público. O rigor da observância de suas disposições, afora hipóteses de demonstração de flagrante ilegalidade ou abuso, é necessário como forma de se realizar os princípios da isonomia e do melhor interesse público, estes de observância imperativa pela Administração. 3. A exigência aludida não se reveste de desarrazoabilidade ou excesso de formalismo, situando-se no âmbito de legítima discricionariedade da comissão organizadora para, de forma eficiente e isonômica, reger e coordenar o processo seletivo em questão. 4. Não verificada ilegalidade no ato praticado pela parte impetrada, não cabe ao Poder Judiciário modificá-lo, sob pena de imiscuir-se indevidamente no mérito administrativo. 5. A r. sentença deve ser mantida por seus fundamentos." (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5006310-03.2019.4.03.6126, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 18/03/2022, Intimação via sistema DATA: 26/04/2022) "PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. SISTEMA DE COTAS. CRITÉRIO DE AVALIAÇÃO FENOTÍPICA. LEGALIDADE. NÃO ENQUADRAMENTO DO CANDIDATO NOS REQUISITOS PARA INCLUSÃO NA LISTA DE COTAS RACIAIS. PREVISÃO NO EDITAL. (…) 6. Em cada situação, deve ser verificado o cumprimento ou não dos requisitos de cada edital para a avaliação da adequação do procedimento para avaliação do candidato. Na avaliação fenotípica do candidato, não é avaliada sua origem genética, até porque, o preconceito e a discriminação existentes na sociedade não têm origem em diferenças de genótipo humano, mas sim em elementos fenotípicos (de aparência) de indivíduos e grupos sociais. 7. Tendo o edital adotado o critério do fenótipo, com aplicação estrita e de acordo com as regras do próprio edital do concurso, não cabe ao Poder Judiciário se imiscuir no mérito administrativo da decisão proferida pela banca julgadora. 8. O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre o não cabimento de revisão judicial de critério subjetivo de resultado de prova, que originariamente cabe à banca (AI 80.5328 AgR, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 25/09/2012, Acórdão Eletrônico DJe-199 Divulg 09/10/2012, publicado 10/10/2012. 9. Assinale-se que não se pode fazer prevalecer em favor de um candidato regra distinta da aplicada a todos os demais, em conformidade do edital do concurso, a violar os princípios da segurança jurídica, legalidade e isonomia, que orientam o acesso a cargos públicos. (…) 12. Respeitadas as previsões editalícias e ser o procedimento de heteroidentificação constitucional não se verifica afronta alguma à dignidade da pessoa humana, à garantia ao contraditório e à ampla defesa do apelante, estando ausente suposta ilegalidade capaz de macular o ato administrativo, porquanto a comissão responsável, afastou o enquadramento do candidato na cor parda, para os fins da lei nº 12.711/12. (…) 15. Apelação improvida e recurso adesivo provido." (TRF 3ª Região, 6ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5001638-30.2019.4.03.6100, Rel. Desembargador Federal MAIRAN GONCALVES MAIA JUNIOR, julgado em 29/08/2022, Intimação via sistema DATA: 30/08/2022) "ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. COTAS. PREVISÃO NO EDITAL. RECURSO PROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal já analisou a constitucionalidade da Lei de Cotas n. 12.990/2014, por ocasião do julgamento da ADC no 41/DF, dispondo, inclusive, ser legítima a utilização de critérios subsidiários de heteroidentificação, dentre eles, a criação de comissão de concurso para avaliação da autodeclaração, desde que previstos no edital de convocação e respeitados, obviamente, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do contraditório e da ampla defesa. 2. No caso, o Edital UFMS/PROGRAD nº 83/2017 dispôs no item 11 o seguinte: 11. Compete ao candidato certificar-se de que cumpre os requisitos estabelecidos pela instituição para concorrer às vagas reservadas em decorrência do disposto na Lei de nº 12.711/2012. Caso seja selecionado, o candidato poderá ser convocado a qualquer momento para comprovação dos requisitos junto à uma comissão verificadora específica da UFMS. Assim, não há qualquer ilegalidade na conduta da impetrada. 3. Ademais, não restou caracterizado nenhum cerceamento de defesa, pois a impetrante teve a oportunidade de interpor recurso da decisão de indeferimento da autodeclaração, o qual foi devidamente analisado. (…) 5. Ainda, ao Judiciário cabe apenas analisar eventual ilegalidade praticada pelas autoridades administrativas, não devendo adentrar no mérito administrativo. 6. Portanto, de rigor a reforma da sentença. 7. Apelação provida." (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000328-66.2017.4.03.6000, Rel. Desembargador Federal ANTONIO CARLOS CEDENHO, julgado em 23/04/2021, Intimação via sistema DATA: 27/04/2021) Em decorrência, não demonstrada a violação de direito líquido e certo titularizado pela agravante, a manutenção da decisão agravada é de rigor. Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento. É como voto.
REPRESENTANTE: VIVIANE CRISTINA XAVIER
E M E N T A
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. DIREITO À EDUCAÇÃO. PROCESSO SELETIVO. VAGAS RESERVADAS A DESTINATÁRIOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMPENSATÓRIAS. NÃO ATENDIMENTO DOS CRITÉRIOS DO EDITAL PARA FRUIÇÃO DO BENEFÍCIO. ERRO ESCUSÁVEL NO PREENCHIMENTO DA FICHA DE INSCRIÇÃO. NÃO VERIFICADO. INCLUSÃO EM LISTA DE AMPLA CONCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA EFICÁCIA VINCULANTE DO EDITAL. MUDANÇA JUDICIAL DO CRITÉRIO DE SELEÇÃO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI 12.990/2014. IMPOSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. PROBABILIDADE DE VIOLAÇÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO DA IMPETRANTE. NÃO DEMONSTRADO. LIMINAR INDEFERIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1 - No que tange ao mandado de segurança, os requisitos para o deferimento de liminar estão previsto no artigo 7, III, da Lei n. 12.016/2009.
2 - Depreende-se da petição inicial que a impetrante efetuou inscrição para participar de processo seletivo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - Campus Avançado Tupã, a fim de disputar vaga destinada a cotistas no curso técnico em eletrônica integrado ao ensino médio, em período integral.
3 - Com relação à oferta de vagas para cotistas em instituições de ensino técnico e superior, no âmbito federal, é necessário tecer algumas considerações.
4 - O artigo 3º da Constituição Federal estabeleceu como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); e a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III).
5 - A fim de viabilizar o alcance desses nobres propósitos, o poder constituinte originário elegeu a educação como direito social fundamental e conferiu ao Estado e à família o dever de promovê-la e incentivá-la, nos termos dos artigos 6º, caput, e 205 da Constituição Federal. Isso se justifica pelo fato de a atividade de ensino buscar o pleno desenvolvimento do potencial dos indivíduos, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
6 - Diante do caráter universalista deste direito, estabeleceu-se como um dos seus princípios basilares a igualdade de acesso e permanência nas instituições de ensino, nos termos do artigo 206, I, da Constituição Federal.
7 - O alcance do princípio da igualdade sempre foi objeto de profundas discussões na seara jurídica e remonta ao surgimento do movimento constitucionalista que levou à instauração dos primeiros Estados Liberais.
8 - Durante o Antigo Regime, berço desta discussão, as sociedades européias eram marcantemente estratificadas e os direitos e deveres dos indivíduos não derivavam de sua natureza humana, mas sim dependiam do grupo social ao qual pertenciam. As revoluções liberais colocaram fim aos privilégios estamentais da nobreza e promulgaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que, em seu artigo 1º, estabelece que "os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum".
9 - Desse modo, do ponto de vista estritamente jurídico, nas atividades de elaboração e aplicação da lei, caberia ao Estado dispensar tratamento igual a todos que estivessem na mesma situação, independentemente do conteúdo do preceito normativo ou mesmo das condições e circunstâncias particulares dos indivíduos. Eis a acepção formal da igualdade, sintetizada na expressão "todos são iguais perante a lei", contemplada no artigo 5, caput, da nossa Carta Magna.
10 - Todavia, adoção de tratamento idêntico a todos os indivíduos, desconsiderando suas diferenças sociais, econômicas e culturais no plano fático, pode produzir resultados injustos. Tal constatação levou a uma reformulação do conteúdo do princípio jurídico da igualdade, da qual é exemplo a síntese formulada pelo saudoso jurista Rui Barbosa, em sua famosa Oração aos moços, em clara referência à formula do filósofo Aristóteles: "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam [pois] tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real".
11 - Assim, o princípio jurídico da igualdade passou a ter uma dimensão material. Ao invés de adotar uma postura inerte em relação às desigualdades fáticas entre os sujeitos de direito, o Estado passa a considerá-las no seu ofício de elaboração e aplicação das leis, adotando tratamentos diferenciados quando necessário, sempre baseados em critérios justos, razoáveis e fundamentados de acordo com os valores e objetivos constitucionais. Caso o Estado não cumpra a contento esse dever ao justificar o discrímen, a política pública pode resultar em verdadeira ofensa à Constituição.
12 - Um exemplo de medida institucional visando dar efetividade ao princípio da igualdade material são as ações afirmativas, que constituem justamente políticas públicas ou programas privados, de caráter temporário, que objetivam reduzir desigualdades sociais, étnicas, econômicas ou físicas, mediante a concessão de certas vantagens compensatórias a determinados grupos sociais.
13 - Ao se analisar a evolução legislativa e jurisprudencial contemporânea, verifica-se que o princípio da igualdade no que tange ao acesso e à permanência nas instituições públicas de ensino, constante no artigo 206, I, da Constituição Federal, tem sido tomado exatamente nesta dimensão material.
14 - Quanto a esta questão, a Lei n. 12.711/2012 instituiu sistema de cotas para ingresso nas instituições públicas federais de ensino superior e de ensino técnico, reservando metade das vagas aos candidatos que, formados exclusivamente em escolas públicas, pertencessem, ou não, aos seguintes grupos sociais: advindos de famílias de baixa renda - assim entendidas como aquelas cuja renda per capita não ultrapassasse 1,5 (um e meio) salário mínimo; pretos, pardos, indígenas ou, ainda, portadores de necessidades especiais.
15 - A fixação da quantidade de vagas destinadas a cada um desses grupos sociais obedeceria a sua respectiva representatividade dentro da população da unidade da Federação em que se localizasse a instituição de ensino, de acordo com os dados colhidos pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
16 - A adoção de tal tratamento diferenciado pelo Poder Público ao estabelecer reserva de vagas para ingresso no ensino superior, não caracteriza ofensa a preceito fundamental, conforme restou consignado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADPF n. 186/DF, sob a relatoria do Eminente Min. Ricardo Lewandowski.
17 - Conquanto a questão tratada na ADPF n. 186/DF tenha se limitado a discutir o estabelecimento de sistema de cotas para acesso ao ensino superior no âmbito federal, nada impede que suas conclusões sejam extensíveis, por analogia, aos casos que cuidam da mesma questão no âmbito do ensino técnico federal, em razão de suas evidentes semelhanças fáticas e jurídicas.
18 - Em decorrência, as regras estabelecidas pela Lei n. 12.711/2012 não configuram violação ao princípio meritocrático, mas antes conformam importante política pública que visa dar efetividade ao princípio da igualdade material.
19 - Ao se examinar detidamente o instrumento editalício (ID 270251941 - Pág. 20-39), sobretudo o item 8 que trata da reserva de 50% (cinquenta por cento) das vagas a estudantes que frequentaram o ensino fundamental exclusivamente em escola pública, verifica-se que o referido critério de seleção reproduz integralmente o disposto nos artigos 4º e 5º da 12.711/2012, que instituíram o sistema de cotas em escolas técnicas no âmbito federal.
20 - As autoridades tidas por coatoras, portanto, não exorbitaram de sua competência, mas sim estabeleceram tratamento diferenciado nos exatos termos em que autorizado pela legislação federal, dando plena efetividade ao princípio da igualdade material que ensejou a instituição da referida política pública.
21 - No entanto, a agravante afirma que a regra prevista no item 8.2 do edital autorizaria sua habilitação para disputar as vagas de ampla concorrência. Eis o preceito normativo controverso: "8.2. A concorrência às vagas reservadas é feita de acordo com as respostas fornecidas pelo candidato no ato da inscrição. Candidatos que atendam às exigências para essa forma de ingresso, cujas respostas fornecidas não os identificarem às vagas reservadas, concorrerão apenas às vagas destinadas à ampla concorrência".
22 - Ao invés de viabilizar a migração das listas, a referida regra reforça que a disputa será realizada de acordo com a vontade manifestada pelo candidato por ocasião do preenchimento do formulário de inscrição.
23 - Desse modo, após a conclusão das provas do processo seletivo, não pode o candidato que optou pela lista de ampla concorrência, alegar que satisfazia os requisitos para usufruir da política publica compensatória, a fim de "furar a fila" em outras listas.
24 - A regra supramencionada, portanto, constitui uma garantia aos cotistas de que não haverá migração superveniente de lista, em razão de mera manifestação de vontade unilateral de candidato que não logrou êxito na disputa das vagas da ampla concorrência.
25 - O único critério para aproveitamento de vagas remanescentes do sistema de cotas é aquele previsto no item 13.4 do edital, que mantém a prioridade de destinação das vagas de acordo com o maior grau de vulnerabilidade do grupo social. A vaga do sistema de cotas, portanto, apenas será preenchida por candidato da ampla concorrência em casos extremos, em razão da absoluta inexistência de outros cotistas inscritos no certame.
26 - Também não pode ser acolhida a tese de que teria ocorrido erro escusável no preenchimento do formulário de inscrição e, portanto, a desclassificação da agravante ofenderia aos princípios da boa-fé e da razoabilidade.
27 - Neste sentido, é importante destacar que o período de inscrição durou aproximadamente um mês, de 10/11/2022 a 07/12/2022, durante o qual as pessoas poderiam alterar o preenchimento do formulário diversas vezes, de forma eletrônica, sem qualquer ônus, de acordo com o item 4.11 e 4.12.1 do edital, sendo considerada válida a última ficha preenchida.
28 - Ora, levando-se em consideração a advertência contida no item 1.2, que abre o edital - "É obrigatório ao candidato, ao seu responsável (pai, mãe, curador ou tutor) ou representante legal, tomar conhecimento de todas as normas e procedimentos indicados neste Edital e nas demais publicações pertinentes, sendo que a inscrição implicará a aceitação das normas definidas, sobre as quais não poderá alegar desconhecimento" - não parece razoável supor que, durante esse período de tempo relativamente longo, a candidata não tenha feito a leitura detida do instrumento editalício e procurado a instituição para tirar eventuais dúvidas com a comissão do concurso.
29 - Ademais, a dicção do item 8.6 do edital é clara e não necessita de qualquer exercício interpretativo rebuscado para a compreensão de seu alcance: "8.6. Candidatos que tenham cursado, ainda que parcialmente, o ensino fundamental em instituições privadas de ensino (particulares, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, conforme art. 20, da lei 9.394/1996), mesmo com bolsa integral, não têm direito às vagas reservadas pela Lei nº 12.711/2012.".
30 - Longe de ser uma arbitrariedade, repise-se, a norma apenas reproduz o critério previsto no artigo 4º da Lei n. 12.711/2012. Trata-se, portanto, de estrita observância da legalidade.
31 - Por outro lado, não se compatibiliza com a boa-fé objetiva declarar que é egresso exclusivamente do ensino público e, na época da realização da matrícula, apresentar documentos que comprovam exatamente o oposto e esperar que a Administração Pública releve a situação de "fato consumado"(ID 270251941 - p. 228). Aliás, a agravante sequer contesta o fato de que realmente fez o ensino fundamental parcialmente em instituição de ensino privado.
32 - Igualmente não merece prosperar a alegação de violação ao direito fundamental à educação, uma vez que a desclassificação da candidata do certame, por óbvio, não configura impeditivo absoluto do seu acesso ao ensino neste ano, tampouco a impede de, caso queira, concorrer novamente no ano seguinte. A propósito, não se pode confundir direito à educação com direito a estudar exclusivamente em instituição pública específica.
33 - O sistema educacional público e gratuito é constituído por uma rede ampla de estabelecimentos de ensino, que também oferecem acesso à educação, em respeito ao disposto nos artigos 205 e 206, I, da Constituição Federal.
34 - Por derradeiro, pede a agravante que seja autorizada sua participação na lista de ampla concorrência, por aplicação analógica do artigo 3º da Lei n. 12.990/2014. O pleito, contudo, também não pode prosperar.
35 - As políticas públicas compensatórias fundadas em ações afirmativas estabelecem tratamento diferenciado de determinados grupos sociais, conferindo vantagens temporárias a estes, visando à efetividade do princípio da igualdade material. Ao elaborá-las, o legislador se baseou não só nas disponibilidades orçamentárias, como também nas condições políticas e sociais para a implementação de tal diferenciação.
36 - A Lei n. 12.990/2014 disciplina a reserva de vagas em concursos públicos para negros. Ora, aplicar de forma analógica as disposições do referido diploma normativo a caso que não guarda similaridade fática ou jurídica, ainda que remota, configuraria interpretação extensível inadmissível.
37 - Neste sentido, é importante relembrar que o estabelecimento de critérios de diferenciação arbitrários, ainda que na aplicação analógica de políticas públicas compensatórias, pode produzir resultados manifestamente inconstitucionais e levar ao desprestígio deste importante instrumento de redução das desigualdades fáticas.
38 - Ademais, não cabe ao Poder Judiciário substituir os critérios de seleção previstos em edital elaborado pela Administração Pública, quando estes estão em consonância com a lei, sob pena de violar a repartição de poderes.
39 - O mérito administrativo, portanto, é matéria afeita exclusivamente à apreciação da Administração Pública, cabendo a ela exercê-lo dentro do seu juízo de discricionariedade. Precedentes.
40 - Recurso desprovido.