Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5009897-39.2023.4.03.0000

RELATOR: Gab. 40 - DES. FED. NINO TOLDO

IMPETRANTE: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
PACIENTE: ARGEMIRO DOS SANTOS, SANCHES DE SOUZA, CLEDEIUDO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, MAGNO DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, VALDEMAR VIEIRA, ADELIO DE SOUZA, ADELINO DE SOUZA PORTILHO

IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE DOURADOS/MS - 2ª VARA FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5009897-39.2023.4.03.0000

RELATOR: Gab. 40 - DES. FED. NINO TOLDO

IMPETRANTE: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO, FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
PACIENTE: ARGEMIRO DOS SANTOS, SANCHES DE SOUZA, CLEDEIUDO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, MAGNO DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, VALDEMAR VIEIRA, ADELIO DE SOUZA, ADELINO DE SOUZA PORTILHO

 

IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE DOURADOS/MS - 2ª VARA FEDERAL

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): 

Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU), pela Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e pelo Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas, em favor de ARGEMIRO DOS SANTOS, SANCHES DE SOUZA, CLEDEILDO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, MAGNO DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, VALDEMAR VIEIRA, ADELIO DE SOUZA e ADELINO DE SOUZA PORTILHO, contra a decisão da 2ª Vara Federal de Dourados (MS) que decretou a prisão preventiva dos pacientes após eles terem sido presos em flagrante pela prática, em tese, dos crimes tipificados nos arts. 161, II; 163 e 288 do Código Penal e no art. 16, § 1º, IV, da Lei nº 10.826/2003. 

Os impetrantes alegam:

Os pacientes acima nominados são indígenas das etnias Terena, Guarani e Kaiowá e foram presos na data de 08 de abril de 2023, pela Polícia Militar de Mato Grosso do Sul (PMMS), durante operação policial que culminou em despejo da comunidade indígena da retomada Yvu Vera, localizada em área vizinha à Reserva Indígena de Dourados (RID).

[...]

Verifica-se que o Juízo de 1º grau, sem requerimento do Ministério Público Federal (MPF) e sem qualquer manifestação nesse sentido por parte da autoridade policial no Auto de Prisão em Flagrante (APF), de ofício, decretou a prisão preventiva, conforme ID nº 281599909.

O MPF na ID n.º 281552143 pediu a aplicação de cautelares diversas da prisão, consistentes no monitoramento eletrônico e na proibição de retornarem ao local dos fatos.

A circunstância de o Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul (MPE/MS) ter se manifestado de forma escrita pela prisão - antes da audiência de custódia realizada pela Justiça Estadual, na qual esse mesmo Órgão Ministerial não ratificou o pedido escrito e concordou com o declínio de competência - não tem o condão de substituir a manifestação do MPF, esse sim ramo do MP com atribuição legal e constitucional para oficiar perante a Justiça Federal que é a absolutamente competente para o caso.

[...]

O que se tem, portanto, é a decretação de ofício de prisão preventiva, o que configura o constrangimento ilegal pela violação ao sistema acusatório.

Argumentam que a decisão impugnada está fundamentada apenas na gravidade abstrata dos delitos e aduzem: 

Os argumentos utilizados pela autoridade coatora sequer encontram fundamentos no que consta no APF. A apreensão de uma única arma de fogo próxima às barracas de lona dos indígenas não pode ser utilizada para manter indistintamente nove pessoas na prisão, ainda mais quando todas essas pessoas negaram expressamente a propriedade do objeto. Não há elemento sobre quem seria o “responsável” pela arma, sendo teratológico utilizar a falta de provas para imputar a todos a prática criminosa correspondente ao porte.

Durante a instrução, aliás, será possível apurar não só a falta de autoria relativamente ao porte de arma, mas também a total ausência de dolo em relação às surpreendentes imputações de associação criminosa e de esbulho possessório quando praticado por integrantes de comunidade indígena que há anos reside no local e, por dezenas de vezes, apresentou ao Poder Público argumentos sobre a tradicionalidade desse território.

Parece-nos que se alguém vinha sendo esbulhado ou turbado em sua posse, eram justamente os indígenas que residem naquele espaço há anos e cuja existência era de conhecimento de todas as autoridades da região. Aliás, o temor dos indígenas em relação ao que estava sendo construído indevidamente em seu território foi comunicado à Procuradoria da República em Dourados/MS (no PA1.21.001.000066/2013-37).

Sustentam que os pacientes são civilmente identificados e não há indícios de que a liberdade deles possa causar riscos à instrução criminal ou à aplicação da lei penal. E asseveram:

São indígenas que vivem na Reserva de Dourados (RID) e nos territórios indígenas vizinhos (lindeiros à RID), que são locais que representam disputas não só geográficas,mas também políticas, dentro de uma perspectiva histórica e local. Esses territórios são denominados como retomadas indígenas, que são espaços nos quais residem famílias e comunidades inteiras, que são forçados a se deslocarem da RID por questões de conflitos internos e externos, consequência do processo histórico e da violência perpetuada em decorrência da ausência de demarcação de terras.

Pugnam pela observação da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), cujo art. 56 dispõe que, no caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e, na sua aplicação, seja atendido o grau de integração do silvícola. Além disso, o parágrafo único desse artigo dispõe que as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.

Isso porque, dizem os impetrantes, "é preciso respeitar as disposições da Lei n.º 6.001/73 que deve ser interpretada à luz do disposto na CF/88, com foco no direito à alteridade – direito de ser culturalmente diferente – vez que reconhecido na CF que o Brasil é um país multicultural".

Mencionam a Resolução nº 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê a aplicação de medidas cautelares de acordo com os costumes e tradições indígenas, alegando que basta a condição de indígena para a concessão de medidas cautelares mais adequadas à sua condição cultural, tendo o Supremo Tribunal Federal se pronunciado no mesmo sentido (HC 85.198, Primeira Turma, Rel. Ministro Eros Grau, DJ 09.12.2005).

E concluem:

É importante que esse e. Tribunal analise o presente pedido de habeas corpus à luz da grave situação dos indígenas em Mato Grosso do Sul e da constante utilização das forças policiais nesse Estado para desocupações não autorizadas pelos juízes federais.

[...]

No caso telado, a retomada Yvu Vera existe pelo menos desde 2016 e a reivindicação da tradicionalidade da área já vinha sendo objeto de procedimento administrativo instaurado perante a Procuradoria da República de Dourados/MS (procedimento n.º 1.21.001.000066/2013-37).

O Tekoha Yvu Vera, de quem Nova Iwu Vera é vizinho, conforme informações da Funai/CGID/DPT, está abarcado pelos estudos do Grupo Técnico intitulado Douradopeguá, autorizado por meio da Portaria nº1567/PRES, de 07/12/2012, constituído a partir do Compromisso de Ajustamento de Conduta firmado entre a Funai e o Ministério Público Federal no ano de 2007. No entanto, o CAC foi temporariamente suspenso, por meio da Portaria n° 1826/PRES, de 24 de dezembro de 2013 (0288921) e aguarda recomposição.

[...]

O Estado na verdade tem promovido despejo das comunidades indígenas de áreas de sabido conflito fundiário sem mandados judiciais mediante a tática da criminalização dos indígenas, os quais na verdade, a seu modo estariam no exercício regular de seu direito de resistência diante das graves violações a seus direitos fundamentais.

No caso em apreço o que se tem é um movimento de um grupo indígena em protesto pela construção de um condomínio em área sob a qual pesam duas hipóteses: 1- estaria sob os 85 hectares que faltam para completar os 3.600 ha da reserva indígena de Dourados; 2- ou estaria sob o estudo instituído para análise da tradicionalidade conforme a Portaria nº 1567/PRES/Funai, de 07 de dezembro, de 2012, do GT Douradopeguá, a qual posteriormente foi tornada sem efeito.

Assim, os indígenas não se associaram para cometer crime algum, mas se trata de coletividade indígena protestando contra uma obra em terra que consideram sua, pois uma vez materializada no local, seria de difícil reconstituição, de forma que a imputação viola o direito a alteridade insculpido no art. 231, caput, da CF, e não resiste a uma mera consulta ao povo indígena ou perícia antropológica, nos termos da Resolução 287 do CNJ.

[...]

O Conselho Nacional de Direitos Humanos, portanto, com base nos elementos extraídos da Missão técnica realizada, editou recomendações endereçadas a diversos órgãos, a fim de garantir a observância do respeito aos direitos humanos dos povos indígenas, especialmente no que tange ao direito à vida, integridade física e proteção territorial, bem como, exigindo a rígida investigação das condutas dos policiais militares e a responsabilização das autoridades omissas no processo de demarcação dos territórios indígenas.

No que tange a Mato Grosso do Sul, o CNDH recomendou a não repetição de atos de violência e ação abusiva contra povos indígenas, a não utilização da Polícia Militar e de seus equipamentos públicos, desprovida de ordem judicial para tanto, como instrumento de força para a realização de despejos ou reintegrações de posse de Comunidades Indígenas, bem como, que promova diálogo com as Comunidades para o estabelecimento administrativo de medidas compensatórias e indenizatórias relativa à atuação das forças policiais em despejos sem ordem judicial.

A defesa da posse/propriedade está fora do campo de atuação da polícia militar, a teor do que já fora decidido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de modo que se entende ilegítima a defesa sponte propria, ou seja, sem ordem judicial de reintegração obtida em ação possessória.

Portanto, resta claro que a manifestação do CNDH foi no sentido de condenar as ações violentas por parte da Polícia Militar, tendo, também, expedido recomendação ao Estado de Mato Grosso do Sul para que se abstenha de usar força policial para promover despejos e reintegração de posse em áreas de retomada indígena, principalmente quando não houver autorização judicial para tanto.

Por isso, pediram a concessão liminar da ordem para que fosse revogada a prisão preventiva dos pacientes, sem prejuízo da fixação de medidas cautelares diversas da prisão, e, subsidiariamente, a semiliberdade dos pacientes, com a concessão da ordem ao final, confirmando-se a liminar.

Tendo em vista que o writ foi impetrado sem cópia do ato coator e sem informação sobre a a vida pregressa dos pacientes, determinei a intimação da DPU para que apresentasse cópia da decisão impugnada, bem como a folha de antecedentes criminais dos pacientes (ID 272654639), o que foi atendido (ID 272684375).

O pedido de liminar foi deferido, determinando-se a revogação da prisão preventiva dos pacientes VALDEMAR VIEIRA, SANCHES DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, ADELINO DE SOUZA PORTILHO, ARGEMIRO DOS SANTOS, CLEDEILDO DE SOUZA, ADELIO DE SOUZA e MAGNO DE SOUZA, mediante submissão às medidas cautelares impostas na decisão (ID 273152287).

A autoridade impetrada prestou informações (ID 273542096).

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) manifestou ciência (ID 273552149).

A Procuradoria Regional da República opinou pela concessão da ordem (ID 273679999).

Na sequência, a Defensoria Pública da União atravessou petição pedindo a revogação da medida de monitoração eletrônica imposta ao paciente MAGNO DE SOUZA e, subsidiariamente, a sua substituição por medida cautelar diversa (ID 274585625). O pedido foi deferido e a monitoração eletrônica do paciente foi revogada (ID 275144951), cientes as partes e o juízo.

É o relatório.

 

 


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V O T O

 

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): 

A prisão preventiva é espécie de prisão cautelar que pode ser decretada pelo juiz em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial, como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado (CPP, artigos 311 e 312, na redação dada pela Lei nº 13.964/2019), somente sendo determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (CPP, artigos 282, § 6º, e 319). É a ultima ratio do sistema de medidas cautelares previsto no Código de Processo Penal, especialmente depois da Lei nº 13.964/2019.

No caso, a prisão preventiva dos pacientes foi decretada pelos seguintes fundamentos (ID 272684378):

Trata-se de comunicado de prisão em flagrante de ROGERIO DE SOUZA, SANCHES DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, MAGNO DE SOUZA, VALDEMAR VIEIRA, ADELINO DE SOUZA, ADELIO DE SOUZA, ARGEMIRO DOS SANTOS e CLEDEIUDO DE SOUZA pela prática, em tese, dos crimes de esbulho possessório (art. 61, §2º, CP), dano (art. 63, CP), associação criminosa (art. 288, CP) e posse ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16, §1º, IV, da Lei 10.826/03).

Segundo consta, em 07/04/2023, por volta das 19h, um grupo de aproximadamente 20 pessoas, armadas com facas, facões e armas de fogo, tentariam adentrar uma propriedade privada localizada às margens do anel viário norte, próximo a Empresa Cardoso Mármore, em Dourados/MS, sendo que teriam ameaçado e lesionado DINHO ARCE, indígena que é caseiro na propriedade vizinha.

Diante da recusa do grupo em dialogar com os policiais integrantes do 3º Batalhão de Polícia Militar, foram acionadas equipes do Batalhão de Choque, que chegaram ao local por volta das 6h, e encontraram cerca de 15 pessoas sentadas perto de blocos de cimento e cercas danificadas.

Foram encontradas, sob um barraco de lona, diversas facas, facões, 01 pistola adaptada para calibre 22 e munição do mesmo calibre. Ato contínuo, foi localizado e conduzido à Delegacia MAGNO DE SOUZA, suposto líder do grupo, que teria acirrado os ânimos contra a guarnição do 3º BPM no dia anterior.  

O Auto de Prisão em Flagrante foi encaminhado ao Plantão Judiciário da Comarca de Dourados e foi distribuído sob o n. 0003627-27.2023.8.12.0800, tendo sido devidamente homologado (ID 281475528, p. 96).

Em 09/04/2023, foi realizada audiência de custódia, ocasião em que foram adotadas providências em relação à alegação de alguns presos de violações no momento da abordagem (ID 281475528, p. 109/110).

Os autos foram distribuídos neste Juízo em 10/04/2023.

A Defensoria Pública da União pugnou pelo relaxamento das prisões em flagrante, concessão de liberdade provisória sem fiança, e, subsidiariamente, a aplicação de medidas cautelares (ID 281536902).

Intimado, o Ministério Público Federal manifestou-se pela concessão de liberdade provisória com medidas cautelares (ID 281585302).

É a síntese do necessário.

DECIDO

Primeiramente, na esteira da decisão proferida pela Justiça Estadual e do parecer do Ministério Público Federal, para o processo reconheço a competência da Justiça Federal e julgamento deste feito, tendo em vista se tratar, a princípio, de crimes envolvendo disputa sobre direitos indígenas.

Ademais, reforço que a prisão em flagrante foi devidamente homologada pelo Juízo Estadual Plantonista (ID 281475528, p. 96). De fato, os presos foram levados no prazo de 24h à presença de um juiz, que homologou o flagrante e determinou providências em relação à alegação de violações no momento da abordagem relatadas pelos presos SANCHES DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, MAGNO DE SOUZA, VALDEMAR VIEIRA, ADELIO SOUZA e CLEDEIUDO DE SOUZA (ofício ao Comando da PM, ao GACEP e a Funai), pelo que rejeito o pedido de relaxamento de prisão formulado pela DPU.

Passo a análise da decretação da prisão preventiva ou concessão de liberdade provisória.

O art. 310, I, II e III do CPP estabelece que o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, antes do início da ação penal, portanto, poderá relaxar a prisão, convertê-la em preventiva, quando presentes os requisitos da prisão e insuficientes outras medidas cautelares, ou conceder liberdade provisória.

A prisão cautelar só será mantida quando for demonstrada, objetivamente, a indispensabilidade da segregação do investigado. Para tanto, além da prova da materialidade do crime e indícios de autoria (fumus comissi delicti), deve coexistir um dos fundamentos que autorizam a decretação (periculum libertatis): para garantir a ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Depreende-se que os crimes imputados aos custodiados são dolosos e as penas privativas de liberdade somadas superam a 4 (quatro) anos (art. 313, I, CPP).

A existência dos delitos (materialidade) restou provada pelo auto de prisão em flagrante. Por sua vez, os indícios suficientes de autoria decorrem do próprio auto de prisão em flagrante, da confissão dos flagrados, além de detalhado e uniforme depoimento policial (art.312, CPP). Com isso, presente o denominado fumus comissi delicti.

Resta analisar, assim, se presente o requisito do periculum libertatis, isto é, se o caso concreto evidencia ao menos um dos pressupostos autorizadores da prisão preventiva (CPP, 312).

No presente caso, verifico motivos concretos e suficientes para decretação da medida extrema consistente na prisão preventiva. Conforme apontado pelo Ministério Público Federal, “a situação conturbada em que a ocupação ocorreu demanda atuação jurisdicional para garantia da ordem pública (art. 282, I, do Código de Processo Penal) e para que novos conflitos não venham ocorrer novamente”.

Com efeito, entendo devidamente demonstrado, pela autoridade policial, o risco à ordem pública, o que fora ratificado pelo membro do Parquet estadual, órgão apto a proferir o parecer quando da audiência de custódia realizada no plantão da Justiça Estadual. O próprio MPF, a despeito de não pugnar pela prisão preventiva, reconheceu que há risco à ordem pública, tanto que requereu a aplicação da mais gravosa das medidas cautelares diversas da prisão, a monitoração eletrônica.

Vale dizer, a agressividade na conduta dos presos, a necessidade de reforço policial para que se efetuasse as prisões em flagrante, o uso de armas (facas e facões, além do porte da arma de fogo apreendida, que era compartilhado, sendo clara a presença de unidade desígnios para a prática delitiva, conforme descrito no tópico “Da delimitação das condutas” – ID 281475528, p. 16), ameaças diversas, lesão corporal dolosa e a associação de diversas pessoas para cometer crimes, evidenciam que a colocação dos presos em liberdade representa risco à ordem pública.

Ademais, pelo que consta dos autos, resta claro que medidas cautelares diversas da prisão são insuficientes para resguardar a ordem pública e a paz social. As medidas cautelares de comparecimento em Juízo (pleiteada pela DPU – ID 281536902) e proibição de os flagrados retornarem ao local dos fatos (indicada pelo MPF – ID 281585302) afiguram-se inócuas e não tem o condão de impedir a reiteração delitiva.

Inclusive, nos termos do quanto registrado pelo MPE (ID 281585302, p. 98/103) e do quanto relatado pela autoridade policial (ID 281585302, p. 05/18), no presente caso, vislumbro que nem sequer a medida de monitoração eletrônica seria apta a evitar novos conflitos, pois não impede o deslocamento dos custodiados e não garante que não voltarão a praticar eventuais delitos da mesma natureza.

Destaque-se, muito embora seja inadmissível a decretação de prisão preventiva de ofício pelo juiz, este, ao ser provocado como in casu para decidir acerca da medida cautelar pessoal adequada, pode, à luz das circunstâncias do caso, determinar medida mais gravosa – prisão preventiva, inclusive - , ainda que tenha sido pleiteada cautelar pessoal diversa, sem que isso configure atuação de ofício por parte do magistrado (Precendete: STJ, AgRg no HC n.626.529, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 26.04.22; STJ, RHC n. 145.225, Rel. Min. Rogério.Schietti Cruz, j. 15.02.22)

Sem prejuízo, vale registrar que o Ministério Público Estadual requereu a decretação da medida extrema (ID 281585302, p. 98/103), o qual, aliado ao relatório da autoridade policial e descrição das condutas supostamente praticadas, também respaldam a presente decisão.

Por fim, impende consignar que, nos termos apontados pelas Cortes Superiores, eventuais condições pessoais favoráveis não constituem por si sós circunstâncias garantidoras da liberdade provisória, quando demonstrada a presença de outros elementos que justificam a medida constritiva excepcional, como in casu.

Dito isso, observando-se o binômio, proporcionalidade e adequação, nenhuma das medidas cautelares arroladas no art. 319 do CPP seriam suficientes para resguardar a ordem pública. Por tais razões, afigura-se necessária a manutenção da prisão cautelar para garantia da ordem pública.

Portanto, converte-se a prisão em flagrante de ROGERIO DE SOUZA, SANCHES DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, MAGNO DE SOUZA, VALDEMAR VIEIRA, ADELINO DE SOUZA, ADELIO DE SOUZA, ARGEMIRO DOS SANTOS e CLEDEIUDO DE SOUZA em PRISÃO PREVENTIVA, com fulcro nos artigos 282, §6º, 312, 313 e 319, todos do CPP.

Pois bem. 

A prisão preventiva, como ultima ratio do sistema processual penal cautelar, só deve ser mantida, nos termos do art. 282 do Código de Processo Penal, se necessária para a aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (inciso I), bem como deve ser adequada e proporcional à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (inciso II).

Embora não se possa ignorar a gravidade do contexto fático em que os pacientes foram flagrados, nem a consistente fundamentação adotada pela autoridade impetrada, também é certo que as razões aduzidas pelos impetrantes ganham relevo no caso. 

Os pacientes são indígenas e, ao que tudo indica, em vias de integração (Lei nº 6.001/73, art. 3º, I, e art. 4º, II). As terras tradicionalmente por eles ocupadas constituem parte integrante de sua identidade e a sua proteção tem status constitucional, sendo inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis, cabendo-lhes a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (CF, art. 231).

Os pacientes integram a comunidade indígena da retomada Yvu Vera, na busca dos territórios localizados na Reserva Dourados (RID), os quais alegam historicamente pertencer-lhes. Tais processos fundiários invariavelmente envolvem um contexto de graves conflitos pela posse da terra (ID 272613876, p. 3, nota de rodapé, e ID 272614188), que demandam dos poderes públicos pronta atuação e medidas pacificadoras.

Segundo consta do auto de prisão (ID 272684376, pp. 06/19), os pacientes foram flagrados dentro de uma propriedade privada, a qual alegam ser terra indígena. Quando os policiais chegaram ao local, por volta das 6h, "foi visualizado um grupo de aproximadamente 15 pessoas que estavam sentadas no local dos fatos próximos aos blocos de cimento e cercas danificadas".

A situação foi, então, explicada a essas pessoas pelos policiais, que lhes disseram que seriam conduzidas à delegacia, não tendo havido resistência.

Também consta do auto de prisão que, após isso, permaneceram no local duas equipes da Força Tática do 3º BPM e, pouco depois, na tentativa de retomada da propriedade, "dois indígenas armados com facão" (ID 272684376, p. 10) teriam agredido com socos e golpes de facão um caseiro da propriedade lindeira.

No local dos fatos ainda "[f]oram encontradas diversas facas e facões, bem como uma pistola adaptada para calibre .22, sob um barraco de lona, juntamente com uma munição de mesmo calibre, que indagados sobre a procedência e autoria, nenhum assumiu a responsabilidade" (ID 272684376, p.9). E dos aproximadamente quinze indígenas que estavam no local, dez foram presos, tendo o restante se evadido, sendo que os que lá permaneceram não ofereceram resistência e foram conduzidos à delegacia. Um deles, por falta de indícios de participação, foi em seguida liberado.

O caseiro que sofreu as lesões corporais não conseguiu identificar os autores, tendo afirmado acreditar "que os índios que o agrediram não pertencem às Aldeias de Dourados" (ID 272684376, pp. 09/10). A vizinha do imóvel em que se deu o esbulho e que interveio em socorro do caseiro afirmou não ser capaz de identificar os indígenas agressores (ID 272684376, p. 10). Ademais, não há informação dos responsáveis pelos danos na propriedade.

Toda essa narrativa é relevante pois indica não ser possível, ao menos neste momento, delimitar a atuação de cada um dos envolvidos, que pode, inclusive, ter se limitado à mera invasão da propriedade alheia. Assim, havendo dúvidas sobre a titularidade das armas apreendidas, bem como quanto a autoria da prática ou adesão aos atos de vandalismo e de violência física, a prisão preventiva dos pacientes é, em princípio, desproporcional, dada a  sua natureza de ultima ratio.

A propósito, a manifestação do representante do Ministério Público Federal em 1º grau (ID 272684377, p. 2):

ARGEMIRO DOS SANTOS, ADELIO DE SOUZA, MAGNO DE SOUZA e CLEDEILDO DE SOUZA possuem antecedentes criminais, não havendo registros criminais em desfavor dos demais. Ainda, não restou esclarecida a autoria do porte ilegal da arma de fogo encontrada na posse dos autuados (uma pistola adaptada para uso de munição calibre.22). Não há elementos nos autos que permitam concluir que todos os autuados tivessem conhecimento da arma de fogo encontrada no local.

Entretanto, a situação conturbada em que a ocupação ocorreu demanda atuação jurisdicional para garantia da ordem pública (art. 282, I, do Código de Processo Penal) e para que novos conflitos não venham ocorrer novamente, razão pela qual se faz necessária a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão [...]

Nesse contexto, ao examinar o pedido de liminar, reconheci que a fixação de medidas cautelares diversas da prisão seria mais adequada, capaz de garantir a persecução penal, tendo em vista o inquérito em curso. Partindo da premissa que tais medidas alternativas devem ser adequadas à gravidade do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado, segundo o critério da razoabilidade, observei que sua fixação deveria levar em consideração a vida pregressa dos pacientes, de modo a serem hábeis a neutralizar eventual risco de reiteração delitiva, à investigação ou a eventual e futura ação penal.

Dito isso, analisando as certidões juntadas aos autos, foi possível aferir que: 

i) os pacientes VALDEMAR VIEIRA (ID 272684380), SANCHES DE SOUZA (ID 272684379), ROGERIO DE SOUZA (ID 272684381), ENIVALDO REGINALDO (ID 272685132), ADELINO DE SOUZA PORTILHO (ID 272685133) e ARGEMIRO DOS SANTOS (ID 272685134) não possuíam passagens criminais;

ii) os pacientes CLEDEILDO DE SOUZA (ID 272685137 e ADELIO DE SOUZA (ID 272685136) ostentavam apontamentos criminais; e

iii) o paciente MAGNO DE SOUZA, além dos diversos apontamentos que ostentava (ID 272685135), seria, segundo os policiais, "a liderança do grupo, que havia acirrado os ânimos no dia anterior contra a guarnição do 3º BPM" (ID 272684376, p. 9).

Por tais motivos, revoguei a prisão preventiva dos pacientes VALDEMAR VIEIRA, SANCHES DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, ADELINO DE SOUZA PORTILHO, ARGEMIRO DOS SANTOS, CLEDEILDO DE SOUZA e ADELIO DE SOUZA, fixando, em substituição, as seguintes medidas cautelares: i) comparecimento bimestral ao juízo de origem, para informar e justificar suas atividades (CPP, art. 319, I); ii) proibição de retorno ao local dos fatos investigados (art. 319, II, do CPP); e iii) proibição de ausentar-se do seu domicílio, por mais de 7 (sete) dias, sem prévia e expressa autorização do juízo impetrado (CPP, art. 319, IV); bem como do paciente MAGNO DE SOUZA, fixando, em substituição, além das medidas cautelares já impostas aos coinvestigados, a monitoração eletrônica (CPP, art. 319, IX).

No entanto, em relação ao paciente MAGNO DE SOUZA, tendo em vista os documentos que foram apresentados (IDs 274585627, 274620683, 274963586 e 274633637) após a decisão liminar, revoguei a medida de monitoração eletrônica fixada, diante das dificuldades fáticas que o paciente vinha enfrentando para cumpri-la (ID 275144951).

O fato é que, desde então, não se tem notícia de descumprimento de qualquer das medidas cautelares fixadas, que, como tal, têm sido hábeis a acautelar a persecução penal.

A propósito, destaco o seguinte trecho do parecer subscrito pela Procuradora Regional da República Adriana da Silva Fernandes (ID 273679999):

Com efeito, mostra-se cabível a substituição da prisão preventiva por outras medidas cautelares diversas, ressaltando-se que o recolhimento poderá ser novamente decretado em caso de descumprimento.

[...]

Dessa forma, entende o Ministério Público Federal que deve ser confirmada a liminar concedida.

Posto isso, CONCEDO A ORDEM de habeas corpus, confirmando a decisão liminar que revogou a prisão preventiva dos pacientes VALDEMAR VIEIRA, SANCHES DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, ADELINO DE SOUZA PORTILHO, ARGEMIRO DOS SANTOS, CLEDEILDO DE SOUZA, ADELIO DE SOUZA e MAGNO DE SOUZA, substituindo-a pelas medidas cautelares previstas no art. 319, I, II e IV do Código de Processo Penal.

É o voto.



E M E N T A

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. ORDEM CONCEDIDA.

1. A prisão preventiva é espécie de prisão cautelar que pode ser decretada pelo juiz em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial, como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado (CPP, artigos 311 e 312, na redação dada pela Lei nº 13.964/2019), somente sendo determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (CPP, artigos 282, § 6º, e 319). É a ultima ratio do sistema de medidas cautelares previsto no Código de Processo Penal, especialmente depois da Lei nº 13.964/2019.

2. A prisão preventiva, como ultima ratio do sistema processual penal cautelar, só deve ser mantida, nos termos do art. 282 do Código de Processo Penal, se necessária para a aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (inciso I), bem como deve ser adequada e proporcional à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (inciso II).

3. Os pacientes são indígenas e, ao que tudo indica, em vias de integração (Lei nº 6.001/73, art. 3º, I, e art. 4º, II). As terras tradicionalmente por eles ocupadas constituem parte integrante de sua identidade e a sua proteção tem status constitucional, sendo inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis, cabendo-lhes a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (CF, art. 231). Processos fundiários sobre tais terras invariavelmente envolvem um contexto de graves conflitos pela posse da terra, que demandam dos poderes públicos pronta atuação e medidas pacificadoras.

4. Não sendo possível, ainda, delimitar a atuação de cada um dos envolvidos, que pode, inclusive, ter se limitado à mera invasão da propriedade alheia, e havendo dúvidas sobre a titularidade das armas apreendidas, bem como quanto a autoria da prática ou adesão aos atos de vandalismo e de violência física, a prisão preventiva dos pacientes é, em princípio, desproporcional, dada a  sua natureza de ultima ratio.

5. A fixação de medidas cautelares diversas da prisão mostra-se mais adequada e capaz de garantir a persecução penal, tanto assim que, desde que fixadas liminarmente, não se tem notícia de descumprimento de qualquer delas, que, como tal, têm sido hábeis a acautelar a persecução penal.

6. Ordem concedida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Décima Primeira Turma, por unanimidade, decidiu CONCEDER A ORDEM de habeas corpus, confirmando a decisão liminar que revogou a prisão preventiva dos pacientes VALDEMAR VIEIRA, SANCHES DE SOUZA, ROGERIO DE SOUZA, ENIVALDO REGINALDO, ADELINO DE SOUZA PORTILHO, ARGEMIRO DOS SANTOS, CLEDEILDO DE SOUZA, ADELIO DE SOUZA e MAGNO DE SOUZA, substituindo-a pelas medidas cautelares previstas no art. 319, I, II e IV do Código de Processo Penal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.