RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002674-87.2021.4.03.6181
RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA
OUTROS PARTICIPANTES:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002674-87.2021.4.03.6181 RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão que rejeitou a denúncia oferecida contra Carlos Setembrino da Silveira e Audir Santos Maciel, como incursos nas penas dos crimes previstos no artigo 121, § 2º, incisos I, e III, c.c. artigo 211, c.c. 29, todos do Código Penal. Em suas razões recursais (ID 274705839), o Ministério Público Federal sustenta que não há que se cogitar da aplicação da anistia ao presente caso, em razão (i) do caráter de crime de lesa-humanidade de que se reveste o conjunto de ações e omissões penalmente relevantes executadas pelos denunciados; (ii) as decisões da Corte Interamericana especificamente referentes ao caso brasileiro, na qual se afirmou expressamente impossível invocar a Lei de Anistia, (iii) o caráter vinculante das decisões da Corte Interamericana e a impossibilidade de seu descumprimento; (iv) a não incompatibilidade entre referidas decisões da Corte e a APDF 153. Caso superada a questão da anistia, pleiteia o reconhecimento da imprescritibilidade das condutas. Desta feita, o Parquet pugna pelo recebimento da denúncia. As contrarrazões foram apresentadas nos ID's 274705944 e 274705971. A decisão restou mantida no ID 274705978. Em parecer, a Procuradoria Regional da República da 3ª Região opinou pelo provimento do recurso (ID 274812878). É o relatório. Dispensada a revisão nos termos regimentais.
DECLARAÇÃO DE VOTO Desembargador Federal Ali Mazloum: Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão que rejeitou a denúncia oferecida contra Carlos Setembrino da Silveira e Audir Santos Maciel, como incursos nas penas dos crimes previstos no artigo 121, § 2º, incisos I, e III, c.c. artigo 211, c.c. 29, todos do Código Penal, com esteio nos incisos II e III do artigo 395 do CPP, combinado com o artigo 1º, e § 1º, da Lei n. 6.683/79, § 1º do artigo 4º da Emenda Constitucional n. 26/85, e ainda o § 3º do artigo 10 da Lei n. 9.882/99, tendo em conta a decisão proferida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 153. Em razões recursais (ID 274705839), o órgão ministerial sustenta que não há que se cogitar da aplicação da anistia ao presente caso, em razão (i) do caráter de crime de lesa-humanidade de que se reveste o conjunto de ações e omissões penalmente relevantes executadas pelos denunciados; (ii) as decisões da Corte Interamericana especificamente referentes ao caso brasileiro, na qual se afirmou expressamente impossível invocar a Lei de Anistia, (iii) o caráter vinculante das decisões da Corte Interamericana e a impossibilidade de seu descumprimento; (iv) a não incompatibilidade entre referidas decisões da Corte e a APDF 153. Caso superada a questão da anistia, pleiteia o reconhecimento da imprescritibilidade das condutas. Desta feita, o Parquet pugna pelo recebimento da denúncia. Apresentadas contrarrazões (Ids 274705944 e 274705971). Em juízo de retratação previsto no recurso em sentido estrito, a decisão restou mantida pela d. Juíza Federal (ID 274705978). A Procuradoria Regional da República manifestou-se pelo provimento do recurso em sentido estrito (ID 274812878). O e. Relator deu provimento ao recurso ministerial, a fim de receber a denúncia oferecida em desfavor de Audir Santos Maciel e Carlos Setembrino da Silveira, determinando o retorno dos autos ao Juízo a quo para o prosseguimento da ação penal em relação a todos os fatos delitivos apontados na exordial acusatória. Com a devida vênia, divirjo em parte da e. relatoria, pelos motivos, a seguir expostos: A questão controvertida refere-se à aplicabilidade da Lei da Anistia a delitos praticados durante o período da ditadura militar (02.01.1964 a 15.08.1979). Segundo consta da denúncia pelo Ministério Público Federal (MPF) em face de AUDIR SANTOS MACIEL e CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA, no tocante ao crime de homicídio qualificado, “entre os meses de janeiro e fevereiro de 1975, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, no centro clandestino de repressão chamado Casa de Itapevi, situada na Estrada da Granja, n. 20, em Itapevi/SP, local então sob responsabilidade do Destacamento de Informações do II Exército (DOI) e do Centro de Informações do Exército (CIE), agentes da repressão não identificados, sob ordem do denunciado AUDIR SANTOS MACIEL, então comandante do DOI CODI/SP, com o auxílio de CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA, então integrante da equipe de busca do DOI CODI, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios, mataram a vítima ELSON COSTA. O homicídio teria sido cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver; o crime teria sido praticado, também, com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos à vítima”. É certo que, a anistia caracteriza-se pelo esquecimento jurídico do ilícito, tendo como objeto fatos (e não pessoas) definidos como crime, em regra, políticos, militares ou eleitorais e independe da aceitação do anistiado e, uma vez concedida, é insuscetível de revogação. É forma de extinção da punibilidade, que pode ser concedida antes ou depois da condenação. Na hipótese de sentença condenatória, extingue todos os efeitos penais da condenação e o próprio crime, permanecendo, entretanto, eventuais obrigações de natureza cível, como a obrigação de indenizar. Sobre o tema, a Lei nº 6.683/79 concedeu anistia aos crimes políticos e conexos praticados durante o período da ditadura militar: “Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. § 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.” Destaque-se que a Lei da Anistia foi expressamente reafirmada no ato convocatório da Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988, nos termos da Emenda Constitucional nº 26, de 27/11/1985: “Art. 1º Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembleia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente. Art. 3º A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembleia Nacional Constituinte. Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares. § 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais. § 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no "caput" deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. § 3º Aos servidores civis e militares serão concedidas as promoções, na aposentadoria ou na reserva, ao cargo, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade, previstos nas leis e regulamentos vigentes. § 4º A Administração Pública, à sua exclusiva iniciativa, competência e critério, poderá readmitir ou reverter ao serviço ativo o servidor público anistiado. § 5º O disposto no "caput" deste artigo somente gera efeitos financeiros a partir da promulgação da presente Emenda, vedada a remuneração de qualquer espécie, em caráter retroativo. § 6º Excluem-se das presentes disposições os servidores civis ou militares que já se encontravam aposentados, na reserva ou reformados, quando atingidos pelas medidas constantes do "caput" deste artigo. § 7º Os dependentes dos servidores civis e militares abrangidos pelas disposições deste artigo já falecidos farão jus ás vantagens pecuniárias da pensão correspondente ao cargo, função, emprego, posto ou graduação que teria sido assegurado a cada beneficiário da anistia, até a data de sua morte, observada a legislação específica. § 8º A Administração Pública aplicará as disposições deste artigo, respeitadas as características e peculiaridades próprias das carreiras dos servidores públicos civis e militares, e observados os respectivos regimes jurídicos.” Não obstante, o C. Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº 153/DF, de relatoria do Exmo. Ministro Eros Grau, decidiu que a Lei de Anistia é compatível com a Constituição Federal de 1988 e que a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os crimes de qualquer natureza praticados pelos agentes da repressão no período do regime militar (02.01.1964 a 15.08.1979). E o Pretório Excelso reafirmou, também, a autoridade da decisão proferida na ADPF º 153 ao deferir liminares nas Reclamações nº 18.686/RJ (Rel. Min. Teori Zavascki) e 19.760/SP (Rel. Min. Rosa Weber), suspendendo as ações penais que tramitavam no primeiro grau de jurisdição. Do mesmo modo, outras ações propostas pelo MPF com idêntica causa de pedir não foram acolhidas pelas Turmas Criminais deste Tribunal, inclusive em feito julgado no âmbito da Quarta Seção- TRF3 (EIfNu 0004823-25.2013.4.03.6181, Quarta Seção, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 21.03.2019, e-DJF3 Judicial 1 01.04.2019; RSE 0001147-74.2010.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 05.02.2019; RSE 0016351-22.2014.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal Mauricio Kato, j. 07.08.2017, e-DJF3 Judicial 1 18.08.2017). Por fim, destaco que a Constituição Federal prevê apenas dois casos de crimes imprescritíveis: racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Portanto, a imprescritibilidade não é aplicável ao crime de homicídio qualificado. No caso sub judice, foram imputadas aos recorridos a prática de homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, e III), além do delito tipificado no artigo 211, c.c. 29, todos do Código Penal, sendo que a pena máxima do crime mais grave (homicídio qualificado) é de 30 (trinta) anos de reclusão e, portanto, prescritível em 20 (vinte) anos, nos termos do art. 109, I, do Código Penal. Todavia, os recorridos são maiores de 70 (setenta) anos, sendo esse prazo prescricional reduzido de metade (CP, art. 115), ou seja, a prescrição ocorre em 10 (dez) anos. O crime de homicído teria ocorrido entre janeiro e fevereiro de 1975 e a denúncia ainda não foi recebida, tendo decorrido período muito superior a esse prazo, sem qualquer suspensão ou interrupção da prescrição. Portanto, a punibilidade dos recorridos, no tocante ao delito de homicídio qualificado, encontra-se extinta seja pela anistia (CP, art. 107, II), seja pela prescrição da pretensão punitiva estatal, tendo por base as penas em abstrato (CP, art. 107, IV, c.c. art. 109, III, e art. 115). NO QUE SE REFERE AO CRIME DE OCULTAÇÃO DE CADÁVER A denúncia descreve que dentro do mesmo contexto e em data próxima, os denunciados contribuíram para a ocultação do cadáver da vítima, vez que, após sua morte, seu corpo foi esquartejado e jogado no Rio Avaré. As condutas acima imputadas ocorreram no contexto de um ataque à população civil, consistente, conforme detalhado na cota introdutória que acompanha esta inicial, na organização e operação centralizada de um sistema semiclandestino de repressão política, baseado em ameaças, invasões de domicílio, sequestro, tortura, morte e desaparecimento dos inimigos do regime. A investida foi particularmente dirigida contra os opositores do regime, matando oficialmente1 219 pessoas e desaparecendo com outras 152, dentre estas ELSON COSTA. A denúncia expressamente menciona que os restos mortais da vítima do homicídio não foram encontrados: “Em resumo, pelos elementos de prova coligidos, resta inequívoca a ocorrência do crime de homicídio duplamente qualificado em face de ELSON COSTA, que, sequestrado, foi vítima de intensas sessões de tortura por cerca de 20 dias, as quais deram causa à sua morte, por motivo torpe, entre os meses de janeiro e fevereiro de 1975. Em seguida, seu corpo foi esquartejado e jogado em um Rio, para impedir sua localização, sendo seu certo que seus restos mortais nunca foram encontrados”. Como dito acima, é preciso salientar que a constitucionalidade da Lei de Anistia, Lei 6.683/1979, é indiscutível, tendo a mais alta Corte de Justiça do País afirmado sua recepção pela Carta Política de 1988 na ADPF 153/DF ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil. O caso concreto aqui tratado, porém, quanto a um dos delitos, não prescreveu, e está fora do alcance da anistia ou “esquecimento” estatal dos crimes. O crime de ocultação de cadáver, cujo tipo penal está descrito no artigo 211 do Código Penal nos seguintes termos: “Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”. A prescrição, segundo o disposto no artigo 109, inciso IV, do mesmo codex, ocorre em 08 anos, prazo ainda não decorrido desde a consumação do crime (cessação da permanência). Com efeito, no crime de ocultação de cadáver a tutela do bem jurídico incide sobre o sentimento de respeito aos mortos. Trata-se de crime vago que tem como sujeito passivo a coletividade e, secundariamente, a família do morto (MIRABETE, Julio Fabbrini, in “Código Penal Interpretado”, São Paulo: Ed. Atlas, 1999, pág. 1237). O núcleo do tipo penal consiste no verbo “ocultar”, que denota a ideia de permanência, significando “esconder, fazer desaparecer o cadáver” (op. cit.). Ressalte-se esta característica diferida do delito, porquanto, sendo permanente, sua consumação se protrai no tempo. Na abalizada lição de ANÍBAL BRUNO, nestes casos, a consumação continua indefinidamente até que algum ato interrompa o estado de permanência: “Nos crimes permanentes, o momento da consumação não se esgota num só instante, prolonga-se por um período mais ou menos dilatado. Em todo esse período o crime se encontra em estado de consumação. Diferem dos crimes instantâneos de efeito permanente, porque nestes é o efeito que persiste, naqueles é o próprio momento consumativo. É o caráter que nos apresentam, por exemplo, o seqüestro e cárcere privado, a redução à condição análoga à de escravo, o fato de manter casa de prostituição ou de exercer o curandeirismo. A consumação continua indefinidamente até que um ato do agente ou qualquer outra circunstância a faça cessar” (in “Direito Penal – Parte Geral, Tomo II”, Rio de Janeiro: Forense, 1959, pág. 220/221). A jurisprudência é firme no sentido de que “o delito de ocultação de cadáver figura entre aqueles em que a permanência do proceder criminoso do agente vai até o momento em que a infração se torna conhecida, com a exumação e trasladação do corpo da vítima para o jazigo público” (RT 610:338). E, segundo o escólio de DAMÁSIO DE JESUS, quanto à ocultação, “somente ocorre antes do sepultamento do cadáver, ou seja, quando este ainda não estiver em seu lugar definitivo, após o que o crime previsto só pode ser cometido por destruição ou subtração” (in “Código Penal Anotado”, São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 733). Por conseguinte, não viceja nem mesmo possível argumento de que eventual confecção de certidão de óbito ou mesmo retificação do assento de óbito tenham o condão de fazer cessar a permanência do crime de ocultação de cadáver, pois o corpo da vítima, conforme a peça acusatória, sem dúvida nenhuma continua oculto. Assim, o bem jurídico tutelado pela norma penal permanece sob afronta direta da ação delitiva iniciada em 1975. Neste ponto, observe-se que a Lei de Anistia concedeu clemência “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes...”. E é inquestionável a permanência do crime de ocultação de cadáver, descrito na denúncia, após a data limite da anistia. O crime continuava sendo praticado, pois, como dito acima, não houve a localização e a identificação do corpo. Ressalto que no crime de ocultação de cadáver a questão primordial não é o óbito da pessoa, mas o local onde o corpo está escondido. A descoberta do óbito não se confunde com a descoberta do cadáver, única hipótese apta a fazer cessar a permanência do crime de ocultação. Conforme os elementos constantes dos autos, não há menor margem de dúvida de que se desconhece, com exatidão, o lugar onde estariam os restos mortais da vítima. Vale dizer que o corpo da vítima continua em local ignorado, desconhecido, revelando tal fato o firme propósito (dolo) de se manter oculto o cadáver. Deveras, os restos mortais da vítima teriam sido lançados em rio em 1975, mas nada foi encontrado desde então. Deduz-se que a mera indicação de onde os restos mortais da vítima foram jogados não é suficiente para afirmar que o cadáver fora descoberto. Assim, sob hipótese nenhuma se pode dizer que, neste momento (agosto de 2023), foram encontrados os restos mortais da vítima. A ocultação do cadáver descrita na denúncia permanece, e a prescrição ainda não começou a correr, pois não cessou essa permanência. Diante deste quadro, torna-se imperioso concluir que o crime de ocultação de cadáver narrado na denúncia, por sua natureza permanente, teve início em 1975; eclodiu por motivos político-ideológicos; foi praticado por grupos armados, civis e militares, que agiram em afronta à ordem constitucional então em vigor; está fora do alcance da Lei de Anistia, pois o crime continuou sendo praticado a partir de 1979; ainda em curso o referido delito, já sob a égide da Constituição de 1988. No mais, em relação ao crime de ocultação de cadáver, acompanho o eminente Relator, pois entendo que estão presentes a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria delitiva. A denúncia, ainda, contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal. Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal para, quanto ao delito de ocultação de cadáver, receber a denúncia, acompanhando a douta Relatoria, entretanto, por fundamento diverso acima exposto; e, em relação ao crime de homicídio qualificado, mantenho a rejeição da denúncia (divirjo), nos termos da fundamentação supra.
QUANTO AO CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002674-87.2021.4.03.6181
RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão que rejeitou a denúncia oferecida contra Carlos Setembrino da Silveira e Audir Santos Maciel, como incursos nas penas dos crimes previstos no arts. 121, § 2º, I e III, c. c. 211, c. c. 29, todos do Código Penal (Id n. 274705823).
Segundo narra a denúncia:
1. Entre os meses de janeiro e fevereiro de 1975, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, no centro clandestino de repressão chamado Casa de Itapevi, situada na Estrada da Granja, n. 20, em Itapevi/SP, local então sob responsabilidade do Destacamento de Informações do II Exército (DOI) e do Centro de Informações do Exército (CIE), agentes da repressão não identificados, sob ordem do denunciado AUDIR SANTOS MACIEL, então comandante do DOI CODI/SP, com o auxílio de CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA, então integrante da equipe de busca do DOI CODI, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios, mataram a vítima ELSON COSTA.
2. O homicídio de ELSON COSTA foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver. O homicídio praticado pelos denunciados foi cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos à vítima.
3. Dentro do mesmo contexto e em data próxima, os denunciados contribuíram para a ocultação do cadáver da vítima, vez que, após sua morte, seu corpo foi esquartejado e jogado no Rio Avaré.
4. As condutas acima imputadas ocorreram no contexto de um ataque à população civil, consistente, conforme detalhado na cota introdutória que acompanha esta inicial, na organização e operação centralizada de um sistema semiclandestino de repressão política, baseado em ameaças, invasões de domicílio, sequestro, tortura, morte e desaparecimento dos inimigos do regime.
5. A investida foi particularmente dirigida contra os opositores do regime, matando oficialmente 219 pessoas e desaparecendo com outras 152, dentre estas ELSON COSTA.
(...)
6. ELSON COSTA 2 era membro do Partido Comunista Brasileiro - PCB.
7. Em 1973, ELSON passou a viver na clandestinidade, fazendo uso do nome “MANOEL DE SOUZA GOMES”3, atuando no Setor de Agitação e Propagando do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Trabalhava na produção e distribuição do jornal “Voz Operária”4 e integrava o Comitê Central do PCB.
(...)
12.Após ser sequestrado, por determinação do denunciado AUDIR DOS SANTOS MACIEL, ELSON COSTA foi levado diretamente ao centro clandestino do DOI-CODI e do CIE, em Itapevi, São Paulo. Participou também das torturas o denunciado CARLOS SETEMBRINO, que tinha ligação direta com referido centro clandestino.
(...)
16.Foi exatamente isto que ocorreu com ELSON COSTA. Privado ilegalmente da liberdade, foi interrogado e torturado por cerca de 20 dias na Casa de Itapevi, tudo a mando de AUDIR e com participação de CARLOS SETEMBRINO. Inclusive, nesse período, os relatórios sobre os interrogatórios da vítima eram enviados ao DOI CODI, tendo sido analisados, dentre outros, pelo ex-agente do DOI CODI Marival Dias Chaves do Canto.17 Após ser brutalmente torturado por mais de vinte dias, jogaram-lhe álcool sobre o corpo e teve seu corpo queimado. Finalmente, injetaramlhe uma substância para matar cavalos. O corpo foi então esquartejado e lançado no Rio Novo em Avaré/SP.
(Id n 274639620, destaques do original)
O Juízo a quo discorreu acerca da Lei n. 6.683/79 e da ADPF n. 153, bem como sobre a irretroatividade da lei penal e a imprescritibilidade dos crimes contra os direitos humanos, terminando por rejeitar a denúncia, tendo em vista a extinção da punibilidade, em face da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, discutir a validade da Lei n. 6.683, de 28.08.79, conhecida como Lei da Anistia, não é tarefa profícua, considerando que o Supremo Tribunal Federal já proclamou não somente essa validade, mas também sua abrangência bilateral:
EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. 1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida. 2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura.
(STF, ADPF n. 153, Rel. Min. Eros Grau, j. 29.04.10)
A título de prequestionamento, o Ministério Público Federal invoca diversos dispositivos constitucionais, mas não esclarece em que medida seria possível conciliar a pretendida declaração de inconstitucionalidade com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
Os princípios que regem a cidadania e a dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, II e III), a harmonia entre os Poderes, ou melhor, a legalidade (CR, art. 2º), o objetivo da República Federativa do Brasil no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária (CR, art. 3º, I), a prevalência dos direitos humanos (CR, art. 4º, II), a igualdade entre homens e mulheres (ou talvez o princípio da legalidade) (CR, art. 5º, II), o devido processo legal (CR, art. 5º, LIV), conforme se percebe, são referidos na medida em que seu caráter principiológico e geral faculta, com efeito, que sob eles sejam incluídos diversos argumentos - não destituídos de algum significado político - reveladores de um certo inconformismo em relação ao reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal que, em uma palavra, a lei é válida e aplicável igualmente aos integrantes dos organismos do Estado e aos que agiam contra este.
Propugna o Ministério Público Federal, contudo, que se exerça um controle de "convencionalidade".
A primeira alegação quanto a esse ponto consiste no fato de o Brasil ter sido condenado por decisão cogente e vinculante pela Corte Interamericana de Direitos Humanos de 24 de novembro de 2010, no caso Gomes Lund:
E, como visto, em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund ("Guerrilha do Araguaia"), ocasião em que a Corte afastou os efeitos da Lei da Anistia brasileira e condenou o Brasil a não mais invocá-la como óbice à investigação de casos de graves violações de direitos humanos. (Id n. 274705842, pág. 59)
Decisão essa que dá ensejo ao recorrente invocar os arts. 4º, II, 5º, §§ 2º e 3º, da Constituição da República e o art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
(...)
II - prevalência dos direitos humanos (...)
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º. Os tratados e as convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
O Ministério Público Federal menciona também os arts. 1.1, 2 e 68.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica):
Art. 1.1
Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
Art. 2
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com outras disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
Art. 68
Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.
Desse conjunto de dispositivos, extrai a acusação a seguinte conclusão:
Até que o STF venha a se posicionar sobre a decisão da Corte no caso em tela - o que, se ocorrer em sentido contrário, pode abrir uma crise internacional para o país - todos os magistrados devem cumprir a decisão mais recente, proferida pelo Tribunal competente. (destaques no original, Id. n 274705842, pág. 61)
Os fatos objetos da denúncia ocorreram entre os meses de janeiro e fevereiro de 1975. Entretanto, a pretensão punitiva foi extinta em razão da anistia prevista no art. 1º da Lei n. 6.683/79:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.
No que concerne à prescrição (com a ressalva da não aceitação da imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade), o órgão ministerial sustenta a aplicação da tese que o prazo somente começa a correr a partir do momento em que as investigações se tornaram possíveis, no caso, a partir da data que o país foi notificado da decisão da COIDH, em 14.12.10:
Em verdade, o prazo prescricional transcorre na hipótese de ausência de atuação estatal frente a uma conduta punível, a fim de que se evite, em situações comuns, a perpetuação ad eternum da ameaça de punição. Tal circunstância, por outro lado, não se faz presente em casos nos quais o próprio Estado, responsável pela persecução penal, não investiga os crimes nem permite sua investigação. Nesta situação, a aplicação do instituto da prescrição perde claramente a razão de ser.
No Brasil, isso se deu em razão de a Lei da Anistia haver representado uma verdadeira supressão institucional do que o citado autor chama de "contingência de punição". E, antes do surgimento dessa lei, o processamento dos crimes era impedido, claro, pela autoproteção concedida pelo Estado a seus agentes
(...)
Portanto, não seria possível tratar, da mesma maneira, a prescrição para os crimes comuns, que afrontam a ordem jurídica detentora do poder sancionador, e para os crimes cometidos com o apoio do Estado. Isso porque, nesse último caso, utiliza-se justamente o poder estatal para cometer crimes, bem como para permanecerem impunes (inicialmente, por sua própria inércia e, em seguida, com base na autoanistia, medidas essas que, somadas, fazem com que o prazo normal de prescrição transcorra sem nenhum risco de sanção). (Id n. 274705842, págs. 71/72)
Em última análise, pretende o Ministério Público Federal que seja "cumprida" a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 24 de novembro de 2010, sob o fundamento de que esta, de certo modo, prevalece sobre a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153, afastando a declaração de sua validade e abrangência.
Não consta, porém, que a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha obliterado a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nestes autos, aquela é meramente citada sem que se identifiquem efetivamente seus efeitos para a economia deste processo, isto é, em que medida seus efeitos criam, extinguem ou modificam direitos de caráter processual ou de direito material no que respeita ao regular andamento da ação penal. Em princípio, o juiz goza de independência no âmbito de sua função jurisdicional, cumprindo-lhe aplicar a lei ao caso concreto mediante o exercício de seu entendimento, segundo o Direito. Essa atividade somente é obstruída em decorrência de decisão que tenha a propriedade de substituir ou, de qualquer modo, reformar sua decisão. Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil não afetam esse pressuposto, que de resto é facilmente compreensível. Nem é preciso maiores digressões, pois o fenômeno é, na sua natureza, idêntico ao que ocorre no âmbito das obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito interno. Daí que não há razão, de caráter processual, para não guardar a tradicional reverência ao julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal.
Para além de uma eventual propriedade jurídica da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto ao efetivo andamento desta ação penal, a ordem de problemas propostos pelo Ministério Público Federal evoca a consideração dessa mesma decisão - ou de outras de caráter análogo - da perspectiva hermenêutica, singelamente, não desconsiderando os tratados, em si mesmos, e sua aplicabilidade pelo juiz, não mais para simples "cumprimento", mas sim por entender ser correta em seu conteúdo.
A dificuldade aí surgida, porém, deve ser apreciada com alguma cautela. Pois nada indica que o entendimento segundo o qual os pactos posteriores tenham, nos limites de sua compreensão tradicional no País, a propriedade de gerar efeitos retroativos, ressalvadas as exceções conhecidas, dentre as quais a própria anistia: prescrever efeitos jurídicos para fatos ocorridos anteriormente à sua vigência é medida que, usualmente, não se admite.
Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso (divirjo do Relator).
É o voto.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002674-87.2021.4.03.6181
RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: AUDIR SANTOS MACIEL, CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
Do caso dos autos. Audir Santos Maciel e Carlos Setembrino da Silveira foram denunciados como incursos nas penas do artigo 121, § 2º, incisos I e III, c.c. artigo 211, c.c. artigo 29, todos do Código Penal.
Segundo narra a denúncia:
"(...)
1. Entre os meses de janeiro e fevereiro de 1975, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, no centro clandestino de repressão chamado Casa de Itapevi, situada na Estrada da Granja, n. 20, em Itapevi/SP, local então sob responsabilidade do Destacamento de Informações do II Exército (DOI) e do Centro de Informações do Exército (CIE), agentes da repressão não identificados, sob ordem do denunciado AUDIR SANTOS MACIEL, então comandante do DOI CODI/SP, com o auxílio de CARLOS SETEMBRINO DA SILVEIRA, então integrante da equipe de busca do DOI CODI, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios, mataram a vítima ELSON COSTA.
2. O homicídio de ELSON COSTA foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver. O homicídio praticado pelos denunciados foi cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos à vítima.
3. Dentro do mesmo contexto e em data próxima, os denunciados contribuíram para a ocultação do cadáver da vítima, vez que, após sua morte, seu corpo foi esquartejado e jogado no Rio Avaré.
4. As condutas acima imputadas ocorreram no contexto de um ataque à população civil, consistente, conforme detalhado na cota introdutória que acompanha esta inicial, na organização e operação centralizada de um sistema semiclandestino de repressão política, baseado em ameaças, invasões de domicílio, sequestro, tortura, morte e desaparecimento dos inimigos do regime.
5. A investida foi particularmente dirigida contra os opositores do regime, matando oficialmente 219 pessoas e desaparecendo com outras 152, dentre estas ELSON COSTA.
(...)
6. ELSON COSTA 2 era membro do Partido Comunista Brasileiro - PCB.
7. Em 1973, ELSON passou a viver na clandestinidade, fazendo uso do nome “MANOEL DE SOUZA GOMES”3, atuando no Setor de Agitação e Propagando do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Trabalhava na produção e distribuição do jornal “Voz Operária”4 e integrava o Comitê Central do PCB.
(...)
12.Após ser sequestrado, por determinação do denunciado AUDIR DOS SANTOS MACIEL, ELSON COSTA foi levado diretamente ao centro clandestino do DOI-CODI e do CIE, em Itapevi, São Paulo. Participou também das torturas o denunciado CARLOS SETEMBRINO, que tinha ligação direta com referido centro clandestino.
(...)
16.Foi exatamente isto que ocorreu com ELSON COSTA. Privado ilegalmente da liberdade, foi interrogado e torturado por cerca de 20 dias na Casa de Itapevi, tudo a mando de AUDIR e com participação de CARLOS SETEMBRINO. Inclusive, nesse período, os relatórios sobre os interrogatórios da vítima eram enviados ao DOI CODI, tendo sido analisados, dentre outros, pelo ex-agente do DOI CODI Marival Dias Chaves do Canto.17 Após ser brutalmente torturado por mais de vinte dias, jogaram-lhe álcool sobre o corpo e teve seu corpo queimado. Finalmente, injetaramlhe uma substância para matar cavalos. O corpo foi então esquartejado e lançado no Rio Novo em Avaré/SP.
(...)" - Grifos originais.
O juízo a quo rejeitou a denúncia (ID 52148394), por entender que os fatos estariam abrangidos pela anistia.
Do mérito. O recurso ministerial comporta provimento em decorrência dos motivos que passo a expor a seguir.
Primeiramente, penso não haver dúvidas de que o Brasil está sujeito à jurisdição da Corte Interamericana, pelos atos de ratificação e reconhecimento da competência da Corte acima mencionados.
Por outro lado, entendo que a decisão do STF na ADPF 153, que considerou ter sido a lei de anistia recepcionada pela Constituição de 1988, não representa óbice ao cumprimento da decisão da Corte Interamericana.
Isso porque cabe precipuamente à Corte Interamericana o chamado "controle de convencionalidade" das leis e atos normativos que se mostrem incompatíveis com a Convenção Americana, controle este que também pode e deve ser exercido pela jurisdição nacional.
A necessidade de compatibilidade normativa tanto com a Constituição Federal quanto com a Convenção Interamericana fica muito clara com a decisão do STF no HC 90172/SP, que culminou na Súmula Vinculante nº 25, que veda a prisão civil do depositário infiel. Tal modalidade de prisão foi considerada incompatível com o Pacto de São José da Costa Rica, embora seja permitida pela Constituição brasileira. Assim sendo, a lei de anistia pode igualmente mostrar-se compatível com a Constituição e incompatível com a Convenção.
Ademais, a adesão à Convenção levou ao reconhecimento de uma regra de competência - a da Corte Interamericana de Direitos Humanos - para apreciar soberanamente casos em que se alegue o descumprimento da Convenção.
Ainda nessa linha de raciocínio, é mister salientar que o Supremo Tribunal Federal reconhece aos tratados sobre direitos humanos, mesmo àqueles previstos no artigo 5º, § 2º, da Constituição, hierarquia supralegal.
Por fim, os autores mais abalizados do Direito Internacional afirmam que a obrigatoriedade de observância pelo Brasil ocorre tanto diante da coisa julgada quanto da "coisa interpretada", ou seja, o país deve aplicar o entendimento consagrado pela Corte a outros casos que envolvam a mesma matéria.
Desta feita, restam afastadas, de acordo com o entendimento da Corte Interamericana, tanto a prescrição dos delitos quanto a eventual aplicação ao caso da lei de anistia.
Por fim, em termos especificamente processuais, deve-se sublinhar que a denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal.
Segundo narra a denúncia que, na data da morte da vítima, o denunciado Audir ocupava o cargo de Comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército, tendo pleno domínio dos fatos e controlando a estrutura de poder do DOI CODI, além de estar sob seu comando a Operação Radar, que resultou em prisões, tortura, mortes e desaparecimentos de dirigentes e militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de Elson Costa.
Consta também que Carlos Setembrino da Silveira, conhecido como "CARLÃO" ou "TIÃO DA ALN", trabalhava na Equipe de Busca, porém realizava os "interrogatórios", ou seja, participava das torturas dos militares na sede do DOI CODI e também na Boate Querosene, em Itapevi, que era de propriedade de seu irmão. Carlos Setembrino era o "homem da boate" e o "homem de confiança" do então chefe de buscas, Dalmo Cirillo.
A ligação de Carlos Setembrino da Silveira com os fatos tem relação com o fato de que a vítima foi levada para a casa em Itapevi ("Boate Querosene"), que era de responsabilidade de seu irmão, e participava ativamente dos interrogatórios e torturas.
Ademais, verifica-se que a materialidade dos delitos e os indícios de autoria estão demonstrados por meio do Relatório da CNV, depoimento dos familiares da vítima, depoimentos de José de Albuquereque Salles, Marival Chaves Dias do Canto, Walter Lang, José Airton da Costa e Sargento Massayuki Gushiken.
Vale ressaltar que aqui não se trata de um juízo de mérito, o qual só pode advir ao final do curso da ação penal.
Por tais fundamentos é que se determina, nesta primeira etapa, de mero juízo de delibação, a observância do princípio in dubio pro societate, não se impondo a mesma certeza necessária para eventual condenação, quando então vige o princípio in dubio pro reo.
Nesse sentido é o entendimento deste E. Tribunal, em consonância com a Jurisprudência pátria. Senão, vejamos:
PENAL. PROCESSO PENAL. DENÚNCIA. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. INSUFICIÊNCIA DE LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DESPROVIDO. 1. O juízo realizado no recebimento da denúncia é de cognição sumária e requer a verificação da existência de suporte probatório mínimo da materialidade do crime e de indícios suficientes da autoria. A denúncia deve atender aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal e não incidir em nenhuma das hipóteses do art. 395 do Código de Processo Penal. 2. Atenderá aos requisitos legais a denúncia que contiver a exposição do fato criminoso com todas as circunstâncias necessárias à configuração do delito, os indícios de autoria, a classificação jurídica do delito e, se necessário, o rol de testemunhas, possibilitando ao acusado compreender a acusação que sobre ele recai e sua atuação na prática delitiva para assegurar o exercício do contraditório e da ampla defesa. 3. A rejeição da denúncia ocorrerá apenas quando, de plano, não se verificarem os requisitos formais a evidenciar sua inépcia, faltar pressuposto processual para seu exercício ou não houver justa causa, incidindo, em casos duvidosos, o princípio in dubio pro societate, a determinar a instauração da ação penal para esclarecimento dos fatos durante a instrução processual penal. 4. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF, Inq n. 2589, Rel. Min. Luiz Fux, j. 16.09.14; Inq n. 3537, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 09.09.14 e HC n. 100908, Rel. Min. Carlos Britto, j. 24.11.09). 5. As acusadas foram denunciadas por prática do crime previsto no art. 342, caput, e §1º, do Código Penal, porque em 25.10.12, em audiência perante o Juizado Especial Federal de São Vicente (SP), na condição de testemunhas do Processo n. 0001646-55.2012.403.6321 (pedido de pensão por morte ao INSS), prestaram declaração falsa consistente em afirmar que Verônica de Oliveira Souza, autora da ação, mantinha união estável com Manuel Afonso Rodrigues, segurado da Previdência Social falecido em 09.11.08. 6. Impõe-se reconhecer, quanto à presente denúncia, que não há lastro probatório mínimo (justa causa) para o início da ação penal por crime de falso testemunho, haja vista que nenhum dos depoimentos prestados pelas denunciadas foi categórico a respeito do conhecimento que tinham sobre a união estável entre a autora da ação previdenciária e o segurado falecido. 7. Recurso em sentido estrito desprovido.
(RECURSO EM SENTIDO ESTRITO ..SIGLA_CLASSE: RSE 5003513-09.2019.4.03.6141 ..PROCESSO_ANTIGO: ..PROCESSO_ANTIGO_FORMATADO:, ..RELATORC:, TRF3 - 5ª Turma, Intimação via sistema DATA: 21/02/2020. FONTE_PUBLICACAO1: ..FONTE_PUBLICACAO2: ..FONTE_PUBLICACAO3:.). Grifado.
Destaque-se, ainda, o teor da Súmula nº 709 do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o provimento de recurso em sentido estrito interposto contra a decisão que rejeita a denúncia importa no seu recebimento:
"Súmula 709. Salvo quando nula a decisão de primeiro grau, o acórdão que provê o recurso contra a rejeição da denúncia vale, desde logo, pelo recebimento dela".
Diante do exposto, dou provimento ao recurso ministerial, a fim de receber a denúncia oferecida em desfavor de Audir Santos Maciel e Carlos Setembrino da Silveira determinando o retorno dos autos ao Juízo a quo para o prosseguimento da ação penal em relação a todos os fatos delitivos apontados na exordial acusatória.
É o voto.
E M E N T A
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. ARTIGO 121, § 2º, INCISOS I, E III, C.C. ARTIGO 211, C.C. 29, TODOS DO CÓDIGO PENAL. HOMICIDIO QUALIFICADO. ANISTIA. LEI 6.683/79. PRESCRIÇÃO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER.CRIME PERMANENTE. PRESCRIÇÃO AFASTADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. HOMICÍDIO QUALIFICADO: A Lei nº 6.683/79 concedeu anistia aos crimes políticos e conexos praticados durante o período da ditadura militar, reafirmada no ato convocatório da Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988, nos termos da Emenda Constitucional nº 26, de 27/11/1985.
- O C. Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº 153/DF, de relatoria do Exmo. Ministro Eros Grau, decidiu que a Lei de Anistia é compatível com a Constituição Federal de 1988 e que a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os crimes de qualquer natureza praticados pelos agentes da repressão no período do regime militar (02.01.1964 a 15.08.1979). E o Pretório Excelso reafirmou, também, a autoridade da decisão proferida na ADPF º 153 ao deferir liminares nas Reclamações nº 18.686/RJ (Rel. Min. Teori Zavascki) e 19.760/SP (Rel. Min. Rosa Weber), suspendendo as ações penais que tramitavam no primeiro grau de jurisdição.
- A pena máxima do crime mais grave (homicídio qualificado) é de 30 (trinta) anos de reclusão e, portanto, prescritível em 20 (vinte) anos, nos termos do art. 109, I, do Código Penal. Os recorridos são maiores de 70 (setenta) anos, sendo esse prazo prescricional reduzido de metade (CP, art. 115), ou seja, a prescrição ocorre em 10 (dez) anos.
- O crime de homicído teria ocorrido entre janeiro e fevereiro de 1975 e a denúncia ainda não foi recebida, tendo decorrido período muito superior a esse prazo, sem qualquer suspensão ou interrupção da prescrição. Extinta a punibilidade dos recorridos, no tocante ao delito de homicídio qualificado, seja pela anistia (CP, art. 107, II), seja pela prescrição da pretensão punitiva estatal, tendo por base as penas em abstrato (CP, art. 107, IV, c.c. art. 109, III, e art. 115).
2. OCULTAÇÃO DE CADÁVER: A prescrição, segundo o disposto no artigo 109, inciso IV, do CPP, ocorre em 08 anos, prazo ainda não decorrido desde a consumação do crime (cessação da permanência). Sendo permanente, sua consumação se protrai no tempo.
- O crime de ocultação de cadáver narrado na denúncia, por sua natureza permanente, teve início em 1975; eclodiu por motivos político-ideológicos; foi praticado por grupos armados, civis e militares, que agiram em afronta à ordem constitucional então em vigor; está fora do alcance da Lei de Anistia, pois o crime continuou sendo praticado a partir de 1979; ainda em curso o referido delito, já sob a égide da Constituição de 1988.
- Presentes a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria delitiva. A denúncia, ainda, contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal.
- Recurso em sentido estrito parcialmente provido para, quanto ao delito de ocultação de cadáver receber a denúncia, mantendo sua rejeição quanto ao crime de homicídio qualificado.