APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001380-29.2019.4.03.6000
RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR
APELANTE: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
APELADO: ALEXIA DE MELO FERREIRA
Advogado do(a) APELADO: JULLY HEYDER DA CUNHA SOUZA - MS8626-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001380-29.2019.4.03.6000 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL APELADO: ALEXIA DE MELO FERREIRA Advogado do(a) APELADO: JULLY HEYDER DA CUNHA SOUZA - MS8626-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação interposta pela Fundação Universidade Federal do Mato Grosso do Sul — FUFMS em ação ordinária com pedido de tutela antecipada ajuizada por ALEXIA DE MELO FERREIRA visando assegurar a regularização de sua matrícula no Curso de Medicina. Narra a autora que é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso Sul tendo ingressado no curso por meio do Sistema de Seleção Unificado SISU- 2017, na cota destinada a alunos L6 (Candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independentemente da renda - art. 14, II, Portaria Normativa 18/2012 - tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas (Lei no 12.711/2012), tendo se autodeclarado “parda”, conforme sua autodeterminação étnica, cor, e em razão de sua origem familiar, declaração esta que se constituía a única exigência do Edital, assim como da INSTRUÇÃO DE SERVIÇO PREG Nº 01, DE 06 DE JANEIRO DE 2015 da UFMS, que regula os documentos necessários à matrícula dos alunos que optaram pelas vagas reservadas de acordo com a Lei 12.711/2012. Aduz que ingressou no curso com pontuação do SISU de 765,97, tendo cursado regularmente os dois primeiros anos da faculdade, ou seja, 2017 e 2018, com aprovação em todas as disciplinas, e, conforme declaração de matrícula em anexo, encontra-se devidamente matriculada para cursar no primeiro semestre letivo de 2019, de 18/02/2019 a 29/06/2019, no curso de Medicina – Bacharelado da UFMS. Ocorre que foi surpreendida pelo Edital Conjunto PROAES/PROGRAD Nº 01/2019, 25 de janeiro de 2019, com objetivo de “Constituição de Banca de Verificação da Veracidade da Condição de Cotista no Ingresso do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina (Famed) Resultante de Denúncia e Convocação De Estudantes Autodeclarados Pretos, Pardos ou Indígenas.”, o que ofende o principio administrativo da vinculação ao ato convocatório bem como a segurança jurídica, a legalidade e a isonomia. (ID 273858095) O pedido de tutela provisória de urgência foi deferido para determinar à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul que regularize a matrícula da autora no curso de Medicina, no respectivo período letivo do ano em curso, tornando sem efeito o Edital Conjunto PROAESP/PROGRAD nº 01/2019, de 25 de janeiro de 2019, até o julgamento final dos autos.(ID 273858114) A Fundação Universidade Federal do Mato Grosso do Sul — FUFMS apresentou sua contestação. (ID 273858121) O juízo de origem extinguiu o feito com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, I do CPC, julgando procedente o pedido, confirmando a decisão de antecipação de tutela, para declarar a nulidade do ato administrativo que cancelou a matrícula da autora, determinando que a ré mantenha a parte autora definitivamente matriculada no curso de Medicina da UFMS ou, se for o caso, promova sua matrícula para o referido curso, no semestre/ano paralisado, no prazo máximo de 10 (dez) dias. Condenou a parte ré ao pagamento de honorários advocatícios aos advogados da parte autora, que deverão ser calculados com base no valor da causa (art. 85, §4º, III), na ordem de 20% (art. 85, §3º, I). A ré é isenta das custas, na forma da lei. (ID 273858185) Apelou a FUNDACAO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL-FUFMS alegando que a autora não logrou êxito em apresentar prova de sua condição de pessoa parda e que o ato de exclusão da aluna é lastreado em parecer de uma comissão de avaliação, sendo que a banca constituída avaliou todos os recursos para verificação da veracidade das condições de ingresso. Ressalta, ainda, que o ato da autarquia visa apurar fraudes nas declarações dos alunos. (ID 273858186) Com contrarrazões, vieram os autos a este Tribunal. É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001380-29.2019.4.03.6000 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL APELADO: ALEXIA DE MELO FERREIRA Advogado do(a) APELADO: JULLY HEYDER DA CUNHA SOUZA - MS8626-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Trata-se de apelação em ação ordinária interposta em face da sentença que determinou que a UFMS mantenha a autora definitivamente matriculada no curso de medicina. As regras sobre cotas em instituições de ensino superior federais foram previstas nos artigos na Lei nº 12.711/2012, artigos 1º e 3º e 14 da Portaria Normativa nº18/2012, tendo sido adotado o critério da autodeclaração para aferir se o candidato se enquadra no conceito de negro, pardo o indígena, conforme abaixo transcrito: “Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.” “Art. 14 - As vagas reservadas serão preenchidas segundo a ordem de classificação, de acordo com as notas obtidas pelos estudantes, dentro de cada um dos seguintes grupos de inscritos: I - estudantes egressos de escola pública, com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita: a) que se autodeclararam pretos, pardos e indígenas;” No caso em exame, a autora foi aprovada no curso de medicina dentro do número de vagas previstas como cotista L2 (Candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas), com renda familiar bruta per capta igualou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, entregando todos os documentos necessários para sua matrícula bem como atendendo todos os requisitos exigidos, na época, pela Universidade. Posteriormente, a Universidade houve por bem cancelar a matrícula da autora entendendo que a aluna não apresentava fenótipo negro ou pardo. A decisão administrativa da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul em apurar a veracidade das informações declaradas pelos candidatos a fim de afastar fraudes revela-se correta, em princípio. Entretanto, no caso em tela, não é razoável que a autora tenha ingressado na Universidade em 2017, e, somente em 2019, decorrido o período de 2 anos, tenha decidido a instituição verificar a validade da autodeclaração racial. Tal medida deveria ter sido prevista e fixada anteriormente, no momento da publicação do Edital nº 10, de 24 de janeiro de 2017 (ID 273858099). A conduta da Universidade fere, flagrantemente, o princípio da razoabilidade e o princípio da vinculação ao edital, contrariando o preceito constitucional, previsto no art. 205 da CFRB/1988, de que a educação deverá ser incentivada. Neste sentido, trago à colação o seguinte entendimento jurisprudencial: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ENSINO SUPERIOR. VESTIBULAR. AÇÃO AFIRMATIVA. COTA RACIAL. AUTODECLARAÇÃO. PREVISÃO NO EDITAL. SUPERVENIENTE MUDANÇA PARA O CRITÉRIO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA RAZOABILIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO PROVIDO. 1. Hipótese em que os editais que regeram o ingresso da aluna na Faculdade de Medicina da UFMS, em 2017, trouxeram apenas a "autodeclaração" como requisito para matrícula na condição de cotista étnico, sem prever avaliação ulterior para ratificação da matrícula tampouco sem estabelecer o fenótipo como critério norteador para aferir a condição de negro, pardo ou indígena. 2. Compulsando os autos da ação subjacente e do presente recurso, à vista do conjunto fático-probatório e da plausibilidade da tese exposta na exordial do feito de origem, diante da existência de fundamento relevante e de dano irreparável na hipótese de não se determinar a imediata regularização da matrícula da autora, ora agravada, no curso de Medicina, ante o início e continuidade das atividades acadêmicas, em sede de cognição sumária, entende-se que estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência pretendida. 3. Foram acostados aos autos, dentre outros documentos: i) fotografias da agravada; ii) declaração subscrita pela Dra. Rubenilda dos S. Barbosa, CRM/MS 2163, médica dermatologista, atestando que a agravada apresenta cor da pele parda. 4. Com efeito, até a publicação do Edital Conjunto PROAES/PROGRAD Nº 03/2019, de 15 de fevereiro de 2019, que tornou pública o resultado final da banca de verificação, determinando o cancelamento da matrícula, a agravada já havia cursado dois anos, ou seja, um terço do curso de Medicina, de modo que impedi-la de prosseguir em seus estudos, na pendência da ação, acarretará evidente prejuízo à sua formação acadêmica, contrariando o preceito constitucional de que a educação será incentivada, previsto no art. 205 da CFRB/1988. 5. Registre-se a ausência de perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, diante do fato de que a vaga em questão na IES já está sendo usufruída pela agravada. 6. No Brasil, foi implementada a política pública denominada de “ações afirmativas”, para favorecer o ingresso de afrodescendentes nas universidades e no serviço público, com o escopo de reparar e compensar, no presente, de um passado repulsivo de discriminação racial, promovendo, assim, o resgate de uma dívida histórica. 7. Do exame das normas de regência sobre as cotas em instituições de ensino superior federais (Lei nº 12.711/2012, Decreto nº 7.824/2012 e Portaria Normativa nº 18/2012, do Ministério da Educação) constata-se que foi adotado pela legislação brasileira o critério da autodeclaração para a caracterização do candidato como negro, pardo ou indígena. 8. Importa destacar que não foram estabelecidos critérios objetivos para confirmar a autodeclaração, de modo que inexiste qualquer regulamentação legal em nosso ordenamento jurídico que estabeleça os critérios para aferição da classificação étnico-racial daquele candidato que se autodeclara como preto, pardo ou indígena, para fins de ingresso no ensino superior em universidades públicas federais. 9. O C. Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a constitucionalidade do sistema de cotas para o ingresso nas universidades públicas federais, no julgamento da ADPF 186/DF. 10. O e. Ministro Relator da ADPF 186/DF, Ricardo Lewandowski, em seu voto, ao examinar se os mecanismos utilizados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em consonância com a ordem jurídica constitucional brasileira, reconheceu que há duas maneiras distintas de identificação: a autoidentificação, que decorre da autodeclaração realizada pelo candidato, e a heteroidentificação, efetuada pela administração universitária, asseverando que ambas são aceitáveis sob o enfoque constitucional. 11. É cediço que as regras editalícias são vinculantes tanto para a Universidade quanto para os candidatos. 12. Do exame dos editais que disciplinaram o ingresso da agravada na UFMS, em juízo de cognição perfuntória, verifica-se que o critério adotado para caracterizar a condição racial da aluna pela IES foi o genotípico ou de ascendência étnica, não havendo qualquer dispositivo em tais normas indicando a possibilidade de utilização de outro critério, no momento da matrícula (ingresso) ou posteriormente (durante o curso), mediante validação da autodeclaração étnico-racial, realizada após a matrícula, por comissão especificamente constituída para esse fim. 13. A falta de previsão em edital do critério fenotípico para aferição da condição étnico-racial e sua posterior regulação como critério estrito, durante o curso, não pode prejudicar a candidata que ingressou na universidade mediante autodeclaração, pelo critério genotípico ou de ascendência, também legítimo, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica e da razoabilidade. 14. Nesse contexto, após o decurso de quase dois anos do ingresso da estudante na UFMS, não se mostra razoável nem em conformidade com a garantia constitucional do devido processo legal que, mediante o Edital Conjunto PROAES/PROGRAD nº 01/2019, de 25 de janeiro de 2019, que constituiu banca de verificação da veracidade da condição de cotista no ingresso do curso da Faculdade de Medicina (FAMED), a IES agravante condicione a regularidade da matrícula bem como a continuidade do curso superior da agravada ao resultado da avaliação, com esteio em critério fenotípico. 15. Verifica-se que a mudança superveniente para o critério estritamente fenotípico, mediante observância dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, há de ser aplicada aos alunos ingressantes posteriormente, de modo a possibilitar o controle e a aferição das informações prestadas pelo candidato, a fim de preservar o processo seletivo e o propósito das cotas étnico-raciais, bem como evitar a ocorrência de fraudes. 16. O que não se afigura legítima é a adoção do critério fenotípico, perante uma comissão avaliadora, de modo retroativo, a fim de desconstituir atos anteriores, praticados sob a égide de outra vertente interpretativa da legislação de regência sobre a política pública de cotas raciais. Precedentes do E. TRF da 4ª Região. 17. Destarte, em sede de cognição sumária, própria deste momento processual, tem-se por ilegal o cancelamento da matrícula da aluna com base apenas na conclusão da comissão avaliadora, constituída em 2019, de que a discente não apresenta as características fenotípicas exigidas para ser considerada parda, na medida em que o critério utilizado pela IES, na época do ingresso, era somente a exigência de autodeclaração, sem nenhuma previsão de avaliação posterior para fins de ratificação da matrícula. 18. Portanto, por ora, a decisão agravada deve ser mantida, para garantir à discente a sua reintegração no curso de Medicina até ulterior decisão de mérito. 19. Agravo de instrumento não provido. (TRF-3. AI MS 5006874-27.2019.4.03.0000 – órgão julgador: Terceira Turma. Re. Des. Fed. Cecilia Marcondes. Data de julgamento: 24/06/2019 - e - DJF3 Judicial 1 DATA: 28/06/2019) Portanto, deve ser garantido o direito da autora de concluir o curso de medicina na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Ante o exposto, nego provimento à apelação, nos termos da fundamentação. É o voto.
E M E N T A
ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. AÇÃO AFIRMATIVA. COTA RACIAL. AUTODECLARAÇÃO. VERIFICAÇÃO. NÃO PREVISÃO NO EDITAL. APELO NÃO PROVIDO.
1-As regras sobre cotas em instituições de ensino superior federais foram previstas nos artigos na Lei nº 12.711/2012, artigos 1º e 3º e 14 da Portaria Normativa nº18/2012, tendo sido adotado o critério da autodeclaração para aferir se o candidato se enquadra no conceito de negro, pardo o indígena.
2-No caso em exame, a autora foi aprovada no curso de medicina dentro do número de vagas previstas como cotista L2 (Candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas), com renda familiar bruta per capta igualou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, entregando todos os documentos necessários para sua matrícula bem como atendendo todos os requisitos exigidos, na época, pela Universidade.
3-Posteriormente, a Universidade houve por bem cancelar a matrícula da autora entendendo que a aluna não apresentava fenótipo negro ou pardo.
4-A decisão administrativa da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul em apurar a veracidade das informações declaradas pelos candidatos a fim de afastar fraudes revela-se correta, em princípio. Entretanto, no caso em tela, não é razoável que a autora tenha ingressado na Universidade em 2017, e, somente em 2019, decorrido o período de 2 anos, tenha decidido a instituição verificar a validade da autodeclaração racial. Tal medida deveria ter sido prevista e fixada anteriormente, no momento da publicação do Edital nº 10, de 24 de janeiro de 2017.
5-A conduta da Universidade fere, flagrantemente, o princípio da razoabilidade e o princípio da vinculação ao edital, contrariando o preceito constitucional, previsto no art. 205 da CFRB/1988, de que a educação deverá ser incentivada.
6-Deve ser garantido o direito da autora de concluir o curso de medicina na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
7-Apelação não provida.