AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5013298-46.2023.4.03.0000
RELATOR: Gab. 10 - DES. FED. CONSUELO YOSHIDA
AGRAVANTE: CALERBE PREVEAU
Advogado do(a) AGRAVANTE: DANILO DA SILVA - SP263846-A
AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL
OUTROS PARTICIPANTES:
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5013298-46.2023.4.03.0000 RELATOR: Gab. 10 - DES. FED. CONSUELO YOSHIDA AGRAVANTE: CALERBE PREVEAU Advogado do(a) AGRAVANTE: DANILO DA SILVA - SP263846-A AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de agravo de instrumento interposto por CALERBE PREVEAU contra a decisão proferida pelo R. Juízo da 1ª Vara Federal de Três Lagoas que, em ação de rito ordinário, determinou à parte demandante a juntada aos autos da comprovação de protocolo do pedido de autorização de residência, no prazo de 15 dias, a partir da entrada em vigor da portaria MJSO/MRE Nº 38/2023, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito. Pretende a reforma da decisão agravada, alegando, em síntese, a) o chamante/agravante, conforme documento anexo, ainda tentou cumprir a referida decisão, mas a página da internet referente a portaria MJSO/MRE nº 38/2023, ainda nem foi criada pela agravada; b) não deve se exigir prévio requerimento administrativo no caso em tela, pois, como demonstrado na inicial são inúmeras as dificuldades em se cadastrar nas páginas haitianas e da ONU, e, como agora demonstrado, a inexistência da página oficial do governo brasileiro. Processado o recurso, sem a concessão do efeito suspensivo pleiteado. Intimada a parte agravada, apresentou contraminuta. Após, vieram-me os autos conclusos. É o relatório.
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5013298-46.2023.4.03.0000 RELATOR: Gab. 10 - DES. FED. CONSUELO YOSHIDA AGRAVANTE: CALERBE PREVEAU Advogado do(a) AGRAVANTE: DANILO DA SILVA - SP263846-A AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: V O T O A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA (RELATORA): Não assiste razão ao agravante. Do que consta dos autos originários, recebida a petição inicial na ação originária, o juízo a quo, antes da citação, reputou necessária, para atendimento do interesse de agir (necessidade de intervenção judicial), a comprovação de tentativa de se apresentar o requerimento de visto por meio de todos os canais disponibilizados pela União, inclusive mediante envio do formulário e documentos pelo correio eletrônico. Assim, conferiu à parte autora o prazo de 15 (quinze) dias para a comprovação da inclusão do requerimento de visto temporário pelos canais disponíveis, inclusive por meio do endereço de correio eletrônico informado pela União, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito (ID 279808601). Ato contínuo, chamou o feito à ordem por força da edição da recentíssima portaria interministerial, que disponibilizou novo procedimento de obtenção de autorização de residência prévia e emissão de visto temporário em favor dos haitianos, a parte demandante deverá apresentar requerimento administrativo na forma regulamentada pela Portaria Interministerial MJSO/MRE Nº 38 de 10 de abril de 2023, e aguardar decisão administrativa por 90 (noventa) dias, prazo que se revela razoável para a apreciação do pedido pelo órgão responsável, considerando a numerosa quantidade de solicitações pendentes de apreciação e a grande e contínua demanda por vistos para reunião familiar. Desta forma, em complementação à decisão anterior, determino à parte demandante que se qualifique como “chamante” para fins de reunião familiar a comprovação de protocolo de pedido administrativo de autorização de residência na forma regulamentada pela Portaria Interministerial MJSO/MRE Nº 38 de 10 de abril de 2023. A parte “chamante” deverá juntar aos autos comprovação de protocolo do pedido de autorização de residência, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo prazo será considerado a partir da entrada em vigor da portaria MJSO/MRE Nº 38/2023, ou seja, a partir de 11/05/2023, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito (ID 282355753). A Portaria Interministerial MJSO/MRE Nº 38 de 10 de abril de 2023, dispõe sobre a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil, tendo sido editada com o propósito de criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar, conforme previsto no art. 3º da Lei 13445/2017. Nos termos do § 3º, art. 6º da portaria, aprovada a autorização de residência prévia mencionada no caput, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia. Assim, como bem entendeu o juízo a quo, para que se faça indispensável a intervenção judicial no caso em questão, a caracterizar o interesse de agir, necessária a comprovação da tentativa de solução na via administrativa, mediante procedimento de obtenção de autorização de residência prévia e emissão de visto temporário, nos termos da Portaria Interministerial MJSP/MRE Nº 38/2023 e da Lei nº 13.445/2017. Por fim, no que se refere à alegação do agravante de que a página da internet referente a portaria MJSO/MRE nº 38/2023 não foi criada, cumpre observar a juntada de ato ordinatório nos autos originários, com o link de acesso ao pedido administrativo e o passo a passo para o acesso ao migrante web (ID´s 289546612 e 289547814). Mantida, portanto, a decisão agravada. Em face do exposto, nego provimento ao agravo de instrumento. É como voto.
DECLARAÇÃO DE VOTO
O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO:
Cuida-se, aqui, de demanda ajuizada tendo como objetivo a autorização de ingresso no território nacional de cidadão haitiano, independentemente da concessão de visto, com o objetivo de reunião familiar.
A i. Relatora, em seu voto, nega provimento ao agravo de instrumento da parte autora, pelo que peço vênia para dela divergir, pelas razões ora apresentadas.
Inicialmente, cumpre registrar que o visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.
Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III).
Tal possibilidade de ingresso no país, a fim de viabilizar a reunião familiar, possui previsão no art. 37 da norma referenciada, in verbis:
“Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:
I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma;
II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência;
III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou
IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda”.
É dizer que, conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos.
Dito isso, consigno que a controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade.
A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto.
Daí que a Embaixada passou a não mais receber pedidos diretamente, por conta da criação desse canal facilitador, cujo atendimento – pessoal e intransferível – é obtido por meio de agendamento eletrônico.
Ocorre que há inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. No ponto, consigno que, consulta deste Gabinete junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”).
A esse respeito, pondero, por oportuno, que a indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição.
Confira-se, a propósito, recente precedente desta Corte:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ESTRANGEIRO. HAITI. INGRESSO NO TERRITÓRIO NACIONAL SEM VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. IMPOSSIBILIDADE. SEPARAÇÃO DOS PODERES. PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.
(...)
5. O único órgão com competência para a concessão do visto é a Embaixada brasileira na capital do Haiti, mesmo porque trata-se de atribuição do Poder Executivo, de forma que a interferência do Judiciário configuraria uma violação ao Princípio da Separação dos Poderes, do devido processo legal e da isonomia com os outros estrangeiros que corretamente aguardam o desenrolar dos procedimentos administrativos, sem solicitar a interferência do Poder Judiciário.
6. A judicialização do processo de imigração realizado pela comunidade haitiana, ou por representações, acaba por interferir na fila de atendimento e também, como forma mais grave, possibilita a entrada no País de estrangeiros sem que se realize um mínimo processo de verificação de antecedentes e confirmação de cidadania, o que gera risco sistêmico na política pública de imigração.
7. Observância aos princípios da legalidade, da isonomia e do devido processo legal, resguardando a separação dos poderes como um pilar das nações democráticas.
8. Agravo de instrumento desprovido”.
(AI nº 5002754-96.2023.4.03.0000, Rel. Des. Federal Marli Ferreira, 4ª Turma, DJEN 10/07/2023).
Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar.
Refiro-me à Suspensão de Liminar e Sentença nº 3092, em que restou decidido:
“AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ESTRANGEIROS MENORES DE IDADE AFASTADOS DOS GENITORES. ACOLHIDA HUMANITÁRIA DE HAITIANOS. EFEITO MULTIPLICADOR. SUSPENSÃO GENÉRICA DE TODAS E QUALQUER MEDIDA LIMINAR SOBRE O TEMA, PRESENTE OU FUTURA. PONDERAÇÃO DE VALORES E RAZOABILIDADE. EXAME INDIVIDUALIZADO DE CADA SITUAÇÃO.
1. A intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes.
2. O indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento das estipulações constitucionais e com a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos.
3. Primazia da proteção da criança e do adolescente, da tutela da família como base da sociedade e do direito ao convívio familiar.
4. Salvaguarda da possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação, inclusive a obtenção de medidas liminares. Direito fundamental da pessoa que tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional.
5. A Segunda Turma do E. STF, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida, com base em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na proteção de direitos fundamentais.
6. Permissão às instâncias inferiores para o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência e com cautela, diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil, deliberem sobre a concessão ou não das medidas liminares.
7. Agravos Internos providos para reformar a decisão objurgada e reestabelecer as liminares de origem”.
(AgInt na SLS nº 3092/SC, Rel. Ministra Presidente, Corte Especial, DJe 15/12/2022).
Depreende-se do judicioso voto da e. Ministra Relatora, o entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais. Trago o excerto:
“É certo, como bem se acentuou no decisum atacado, que "não se pode permitir que seja retirada dos atos administrativos do Poder Executivo a presunção da legitimidade ou veracidade, sob pena de se desordenar a lógica de funcionamento regular do Estado na prestação dos serviços públicos de forma geral, cabendo a judicialização em casos extremos de inobservância dos preceitos legais", como também é certo que a multiplicação desenfreada e sem critério de liminares da espécie pode provocar lesão à ordem pública, notadamente quando as medidas são concedidas de forma açodada.
Sem dúvida, a intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. Disso não se discorda”.
Em análise a posteriores Embargos de Declaração opostos contra referido julgamento, a Corte Especial reafirmou, uma vez mais, a necessidade do exaurimento da via administrativa, junto aos órgãos consulares, como condição ao acionamento do Poder Judiciário. Confira-se, com destaques meus:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE INTEGRAÇÃO DA EMENTA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO.
(...)
2. Comando contido na parte dispositiva do Voto que foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes do eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.
3. Descumprimento dessas prescrições que poderá ensejar a propositura de Reclamação para a preservação da autoridade da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e, eventualmente, de Reclamação Disciplinar perante os órgãos correcionais contra os recalcitrantes, mas não de Embargos de Declaração que objetivem dar destaque, na ementa, a aspectos que a parte considera relevantes.
4. A ementa é simples extrato dos pontos essenciais do Voto e não pode e nem deve conter todos os seus fundamentos e estipulações. Inviabilidade do manejo de Embargos de Declaração que objetivem a sua complementação.
5. Inexistindo omissão, obscuridade ou contradição a ser suprida, inviável o acolhimento dos Embargos de Declaração.
6. Embargos de Declaração rejeitados”.
(DJen 28/04/2023).
Não se olvide, como já referenciado no corpo deste voto, a vulnerável situação política e econômica do Haiti, que ainda recomenda a adoção de providências, por parte do governo brasileiro, quanto à permissão de ingresso de cidadãos haitianos no Brasil, com fins humanitários. Prova disso é a recente edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30 de março de 2023, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção, por desastre ambiental ou pela situação de instabilidade institucional na República do Haiti, ratificando, no particular, os objetivos norteadores da política migratória.
Na mesma seara – e para o que aqui interessa -, editou-se a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil.
Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º).
Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º, assim transcritos:
“Art. 3º Poderão ser familiares chamantes, nos termos desta Portaria Interministerial, os nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti que obtiveram autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária, por prazo determinado ou indeterminado.
Art. 4º Poderão ser chamados, nos termos desta Portaria Interministerial, os seguintes nacionais haitianos ou apátridas residentes na república do Haiti:
I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro;
II - filho de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência”.
Normatizou-se, ainda, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º).
Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos.
Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados.
Nesse particular, registro que o canal eletrônico criado pela chancelaria brasileira (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br), para além de não disponibilizar, de imediato, datas para agendamento, impõe a condição de prévio encaminhamento de todos os documentos devidamente legalizados (reconhecimento da assinatura no original em seu original, pela autoridade consular, tradução para o português por tradutor juramentado no Brasil e, por fim, registro em cartório de títulos e documentos sediado no Brasil, ao custo de vinte dólares norte-americanos cada um), para, só então, uma vez validados, viabilizar o atendimento. Não bastasse, ilustrações retiradas de “prints” do endereço eletrônico mencionado, constantes de outros feitos desse jaez, revelam que, dentre as espécies de visto passíveis de requerimento através do “e-consular”, não está incluída aquela referente ao “Visto temporário para reunião familiar – espécie XI”, a demonstrar, também aqui, a significativa dificuldade de solicitação da permissão de ingresso e permanência em território nacional, pelos meios oficiais então disponibilizados.
Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entendo que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer.
Confira-se entendimento análogo da 4ª Turma deste Tribunal:
“ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. ESTRANGEIRO. HAITI. AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM. VISTO HUMANITÁRIO PARA REUNIÃO FAMILIAR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
- A questão do ingresso dos haitianos com vista à reunião familiar, consoante decisão proferida pelo STJ, no SLS 3092-SC não está suspensa, tendo sido autorizada às instâncias inferiores a análise das liminares e tutelas com critério e cautela, desde que se observem se houve exaurimento das possibilidades administrativas de e medidas instrutórias de informação viáveis. A análise do pleito, em sede de apelação, é possível.
- O autor busca o ingresso em território nacional da esposa e do filho menor, provenientes do Haiti, por via aérea, para reunião com o pai. Requer a acolhida humanitária, tendo em vista a grave crise que acomete o Haiti, relatando, inclusive a impossibilidade de obtenção de visto perante a embaixada do Brasil em Porto Príncipe.
- Ademais, em 14 de agosto de 2021, o Haiti foi atingido por um terremoto de grandes proporções, causando destruição extrema, várias vítimas fatais e centenas de feridos. O agravamento da crise no Haiti ocasionou a suspensão de serviços como energia, água potável, transporte, telefone e internet, atingindo inclusive o funcionamento da própria embaixada do Brasil, segundo relatos. Desta forma, a crise no país atinge patamares exorbitantes, motivo pelo qual a única saída para os haitianos que desejam ingressar no Brasil é a judicial.
- SANTCHESSE CHARLES tem CPF (ID 260496924, páginas 9/10), carteira de registro nacional migratório com validade até 27/02/2029 (ID 260496924, páginas 11/12), endereço fixo na cidade de Várzea Paulista/SP (ID 260496924, páginas 1 e 13) e carteira de trabalho com anotação de emprego (ID 260496924, páginas 14/16), o que demonstra que está inserida na vida nacional.
- O vínculo de companheira de CHRISTELA JOSEPH, qualificada por meio de seu passaporte haitiano anexado aos autos (ID 260496924, página 2), para com o residente no Brasil está descrito no documento ID 260496924, página 7. A comprovação de que STEEVEN CHARLES (S. C.), menor de idade, é filho de ambos está no passaporte haitiano da criança (ID 260496924, página 3) e em sua certidão de nascimento (ID 260496924, página 6).
- Não se afigura razoável, nem proporcional, o não recebimento do pedido dos vistos, mormente quando a parte se propuser a regularizar os documentos, nos termos do art. 37, da Lei de Imigração nº 13.445/2017. Precedente jurisprudencial.
- Por outro lado, a União não está inerte quanto à situação dos haitianos que objetivam acolhida humanitária, tanto que foi editada a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 33, de 29 de dezembro de 2022, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti, ratificando os objetivos norteadores da política migratória.
- Cabe destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no precedente supracitado (SLS Nº 3092-SC) ponderou que a intervenção do Poder Judiciário deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas e reforçou a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis inclusive perícia social no Brasil, para que sejam deferidas as liminares e tutelas nos casos de ingresso sem visto dos haitianos.
- Desta forma, levando-se em conta todas estas considerações, bem como o acervo probatório constante nos autos, que não traz elementos que comprovem o exaurimento da via administrativa, a melhor solução é o deferimento parcial do pedido, para determinar à União que receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar.
- Apelação parcialmente provida para determinar que a União Federal receba a documentação necessária à concessão dos vistos humanitários com base na reunião familiar e providencie, com celeridade, a expedição dos mesmos”.
(AC nº 5033337-68.2021.4.03.6100, Rel. para o acórdão Des. Federal Mônica Nobre, 4ª Turma, p. 04/07/2023).
Ante o exposto, dou parcial provimento ao agravo de instrumento da parte autora, a fim de determinar que a União Federal, por meio dos órgãos competentes, receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico – a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando-lhe o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento.
É como voto.
E M E N T A
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INGRESSO EM TERRITÓRIO NACIONAL SEM VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. INTERESSE DE AGIR NÃO DEMONSTRADO. AUSÊNCIA DE REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. PORTARIA INTERMINISTERIAL MJSO/MRE 38/2023. Lei nº 13.445/2017.
1. Do que consta dos autos originários, recebida a petição inicial na ação originária, o juízo a quo, antes da citação, reputou necessária, para atendimento do interesse de agir (necessidade de intervenção judicial), a comprovação de tentativa de se apresentar o requerimento de visto por meio de todos os canais disponibilizados pela União, inclusive mediante envio do formulário e documentos pelo correio eletrônico. Assim, conferiu à parte autora o prazo de 15 (quinze) dias para a comprovação da inclusão do requerimento de visto temporário pelos canais disponíveis, inclusive por meio do endereço de correio eletrônico informado pela União, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito (ID 279808601).
2. Ato contínuo, chamou o feito à ordem por força da edição da recentíssima portaria interministerial, que disponibilizou novo procedimento de obtenção de autorização de residência prévia e emissão de visto temporário em favor dos haitianos, a parte demandante deverá apresentar requerimento administrativo na forma regulamentada pela Portaria Interministerial MJSO/MRE Nº 38 de 10 de abril de 2023, e aguardar decisão administrativa por 90 (noventa) dias, prazo que se revela razoável para a apreciação do pedido pelo órgão responsável, considerando a numerosa quantidade de solicitações pendentes de apreciação e a grande e contínua demanda por vistos para reunião familiar.
3. Em complementação à decisão anterior, determino à parte demandante que se qualifique como “chamante” para fins de reunião familiar a comprovação de protocolo de pedido administrativo de autorização de residência na forma regulamentada pela Portaria Interministerial MJSO/MRE Nº 38 de 10 de abril de 2023. A parte “chamante” deverá juntar aos autos comprovação de protocolo do pedido de autorização de residência, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo prazo será considerado a partir da entrada em vigor da portaria MJSO/MRE Nº 38/2023, ou seja, a partir de 11/05/2023, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito (ID 282355753).
4. A Portaria Interministerial MJSO/MRE Nº 38 de 10 de abril de 2023, dispõe sobre a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil, tendo sido editada com o propósito de criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar, conforme previsto no art. 3º da Lei 13445/2017.
5. Nos termos do § 3º, art. 6º da portaria, aprovada a autorização de residência prévia mencionada no caput, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia.
6. Como bem entendeu o juízo a quo, para que se faça indispensável a intervenção judicial no caso em questão, a caracterizar o interesse de agir, necessária a comprovação da tentativa de solução na via administrativa, mediante procedimento de obtenção de autorização de residência prévia e emissão de visto temporário, nos termos da Portaria Interministerial MJSP/MRE Nº 38/2023 e da Lei nº 13.445/2017.
7. No que se refere à alegação do agravante de que a página da internet referente a portaria MJSO/MRE nº 38/2023 não foi criada, cumpre observar a juntada de ato ordinatório nos autos originários, com o link de acesso ao pedido administrativo e o passo a passo para o acesso ao migrante web (ID´s 289546612 e 289547814).
8. Agravo de instrumento improvido.