Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5013632-50.2022.4.03.6100

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: FEDNET CONCIUS, FILENE OZIAS, J. C.
REPRESENTANTE: FEDNET CONCIUS, FILENE OZIAS

Advogado do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A
Advogados do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A,
Advogado do(a) REPRESENTANTE: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5013632-50.2022.4.03.6100

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR 

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: FEDNET CONCIUS, FILENE OZIAS, J. C.
REPRESENTANTE: FEDNET CONCIUS, FILENE OZIAS

Advogado do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A
Advogados do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A,
Advogado do(a) REPRESENTANTE: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de remessa necessária e apelação em ação ordinária em que a ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO se insurge em face da sentença que julgou procedente a demanda inicial para permitir o ingresso em território nacional, sem a necessidade de visto, de JACELINE CONCIUS,  menor, residente no Haiti, para fins de reunião familiar.  

Na peça inicial (ID 270494196), com pedido de antecipação de tutela, é relatado que os autores são naturais do Haiti, sendo que FILENE OZIAS e FEDNET CONCIUS residem no Brasil há vários anos, conforme documentação anexada, e pretendem o ingresso no território brasileiro da filha de ambos, JACELINE CONCIUS, menor,  ainda residente no Haiti, sem a apresentação do visto, tendo em consideração o contexto de grave crise social e institucional que assola aquele país. Relatam que a emissão do visto, consoante informações expressas no site da embaixada brasileira no Haiti, depende de agendamento feito exclusivamente por meio do sistema eletrônico BVAC/OIM, que, todavia, se revela inoperante. Argumentam, em suma, que a indisponibilidade do sistema de agendamento de visto está obstando o seu direito à reunião familiar, razão pela qual socorre-se do Poder Judiciário para assecurá-lo. Como antecipação de tutela, requerem: a autorização para que a menor possa ingressar no território brasileiro, por via aérea, sem que lhes seja exigida a apresentação de visto de qualquer categoria;  que haja prévia comunicação à companhia aérea de quem as passagens serão adquiridas e à Embaixada do Haiti localizada no Distrito Federal de que os autores estarão dispensados da apresentação de visto brasileiro para a viagem com destino ao Aeroporto Internacional da Comarca de propositura da ação e que o Departamento de Polícia Federal Aeroportuário se abstenha de exigir dos autores que estão vindo para o Brasil a apresentação de visto brasileiro de qualquer categoria. Ao final, pugna pela confirmação da tutela, pelo deferimento dos benefícios da gratuidade da justiça e condenação da ré no que tange às custas judiciais e demais encargos sucumbenciais. Valor da causa fixado em R$ 1.000,00 (mil reais).

Contestação da UNIÃO em ID 270494219. 

A apreciação do pedido de antecipação de tutela foi prejudicada, conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida no pedido de suspensão de liminar e sentença nº 3092-SC, determinando a suspensão de todas as decisões judiciais que autorizam a entrada de haitianos no território nacional sem o devido visto.

Os autores apresentaram réplica à contestação (ID 270494225), reiterando os argumentos da inicial.

Sobreveio sentença (ID 270494286) que concedeu a tutela antecipada de urgência e julgou procedente o pedido da parte autora, extinguindo o feito com resolução de mérito, nos termos do art. 487, I, do Código de Processo Civil/15. Reiterando a decisão no pedido liminar, consignou o Juízo a quo que o caso em questão revela peculiaridades fáticas que atraem a incidência de regras e princípios firmados internacionalmente pelo país que clamam revisão judicial da omissão do Executivo. Destacou como fundamento para assegurar o direito de reunião familiar nos moldes pretendidos a dignidade da pessoa humana; a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como princípios regentes das relações internacionais do Estado Brasileiro e a proteção à criança consagrada em compromissos internacionais e na legislação pátria. Destacou, ademais, que tal entendimento alinha-se com julgado recente proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 216.917 e com a decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo Interno na Suspensão Liminar de Sentença nº 3092-SC. A União foi condenada ao pagamento de honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor atualizado da causa. 

A Advocacia Geral da União insurgiu-se em recurso de apelação (ID 270494287), pugnando pela reforma da sentença, julgando-se totalmente improcedente a pretensão autoral. Em suma, sustenta que o pedido de dispensa de visto não tem respaldo legal; que o procedimento realizado pela Embaixada no Haiti para processamento do pedido de vistos é regular, apresentando, inclusive, desempenho superior ao de outras embaixadas e que a procedência do pleito autoral resvalaria em violação ao princípio da isonomia em relação aos demais consulentes interessados no visto brasileiro. 

Em ID 278416133, a UNIÃO comunica a publicação da Portaria Interministerial nº 38, de 10 de abril de 2023, destacando a implementação de mudanças expressivas no regramento sobre concessão de autorização de residência prévia e concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil. 

A parte autora apresentou contrarrazões de apelação em ID 270494315.

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


DECLARAÇÃO DE VOTO 

  

O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO:  

  

Cuida-se, aqui, de demanda ajuizada tendo como objetivo a autorização de ingresso no território nacional de cidadão haitiano, independentemente da concessão de visto, com o objetivo de reunião familiar.  

  

O i. Relator, em seu voto, nega provimento à apelação da União e à remessa necessária, pelo que peço vênia para dele divergir, pelas razões ora apresentadas. 

  

Inicialmente, cumpre registrar que o visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.  

  

Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III).  

  

Tal possibilidade de ingresso no país, a fim de viabilizar a reunião familiar, possui previsão no art. 37 da norma referenciada, in verbis:  

  

“Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:  

I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma;  

II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência;  

III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou  

IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda”.  

  

É dizer que, conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos.  

  

Dito isso, consigno que a controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade.  

  

A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto.  

  

Daí que a Embaixada passou a não mais receber pedidos diretamente, por conta da criação desse canal facilitador, cujo atendimento – pessoal e intransferível – é obtido por meio de agendamento eletrônico.  

  

Ocorre que há inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. No ponto, consigno que, consulta deste Gabinete junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”).  

  

A esse respeito, pondero, por oportuno, que a indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição.  

  

Confira-se, a propósito, recente precedente desta Corte:  

  

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ESTRANGEIRO. HAITI. INGRESSO NO TERRITÓRIO NACIONAL SEM VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. IMPOSSIBILIDADE. SEPARAÇÃO DOS PODERES. PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.   

(...)  

5. O único órgão com competência para a concessão do visto é a Embaixada brasileira na capital do Haiti, mesmo porque trata-se de atribuição do Poder Executivo, de forma que a interferência do Judiciário configuraria uma violação ao Princípio da Separação dos Poderes, do devido processo legal e da isonomia com os outros estrangeiros que corretamente aguardam o desenrolar dos procedimentos administrativos, sem solicitar a interferência do Poder Judiciário.  

6. A judicialização do processo de imigração realizado pela comunidade haitiana, ou por representações, acaba por interferir na fila de atendimento e também, como forma mais grave, possibilita a entrada no País de estrangeiros sem que se realize um mínimo processo de verificação de antecedentes e confirmação de cidadania, o que gera risco sistêmico na política pública de imigração.  

7. Observância aos princípios da legalidade, da isonomia e do devido processo legal, resguardando a separação dos poderes como um pilar das nações democráticas.   

8. Agravo de instrumento desprovido”.  

(AI nº 5002754-96.2023.4.03.0000, Rel. Des. Federal Marli Ferreira, 4ª Turma, DJEN 10/07/2023).  

  

Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar.  

  

Refiro-me à Suspensão de Liminar e Sentença nº 3092, em que restou decidido:  

  

“AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ESTRANGEIROS MENORES DE IDADE AFASTADOS DOS GENITORES. ACOLHIDA HUMANITÁRIA DE HAITIANOS. EFEITO MULTIPLICADOR. SUSPENSÃO GENÉRICA DE TODAS E QUALQUER MEDIDA LIMINAR SOBRE O TEMA, PRESENTE OU FUTURA. PONDERAÇÃO DE VALORES E RAZOABILIDADE. EXAME INDIVIDUALIZADO DE CADA SITUAÇÃO.  

1. A intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes.  

2. O indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento das estipulações constitucionais e com a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos.  

3. Primazia da proteção da criança e do adolescente, da tutela da família como base da sociedade e do direito ao convívio familiar.  

4. Salvaguarda da possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação, inclusive a obtenção de medidas liminares. Direito fundamental da pessoa que tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional.  

5. A Segunda Turma do E. STF, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida, com base em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na proteção de direitos fundamentais.  

6. Permissão às instâncias inferiores para o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência e com cautela, diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil, deliberem sobre a concessão ou não das medidas liminares.  

7. Agravos Internos providos para reformar a decisão objurgada e reestabelecer as liminares de origem”.  

(AgInt na SLS nº 3092/SC, Rel. Ministra Presidente, Corte Especial, DJe 15/12/2022).  

  

Depreende-se do judicioso voto da e. Ministra Relatora, o entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais. Trago o excerto:  

  

“É certo, como bem se acentuou no decisum atacado, que "não se pode permitir que seja retirada dos atos administrativos do Poder Executivo a presunção da legitimidade ou veracidade, sob pena de se desordenar a lógica de funcionamento regular do Estado na prestação dos serviços públicos de forma geral, cabendo a judicialização em casos extremos de inobservância dos preceitos legais", como também é certo que a multiplicação desenfreada e sem critério de liminares da espécie pode provocar lesão à ordem pública, notadamente quando as medidas são concedidas de forma açodada.  

Sem dúvida, a intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. Disso não se discorda”.  

  

Em análise a posteriores Embargos de Declaração opostos contra referido julgamento, a Corte Especial reafirmou, uma vez mais, a necessidade do exaurimento da via administrativa, junto aos órgãos consulares, como condição ao acionamento do Poder Judiciário. Confira-se, com destaques meus:  

  

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE INTEGRAÇÃO DA EMENTA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO.  

(...)  

2. Comando contido na parte dispositiva do Voto que foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes do eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.  

3. Descumprimento dessas prescrições que poderá ensejar a propositura de Reclamação para a preservação da autoridade da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e, eventualmente, de Reclamação Disciplinar perante os órgãos correcionais contra os recalcitrantes, mas não de Embargos de Declaração que objetivem dar destaque, na ementa, a aspectos que a parte considera relevantes.  

4. A ementa é simples extrato dos pontos essenciais do Voto e não pode e nem deve conter todos os seus fundamentos e estipulações. Inviabilidade do manejo de Embargos de Declaração que objetivem a sua complementação.  

5. Inexistindo omissão, obscuridade ou contradição a ser suprida, inviável o acolhimento dos Embargos de Declaração.  

6. Embargos de Declaração rejeitados”.  

(DJen 28/04/2023).  

  

Não se olvide, como já referenciado no corpo deste voto, a vulnerável situação política e econômica do Haiti, que ainda recomenda a adoção de providências, por parte do governo brasileiro, quanto à permissão de ingresso de cidadãos haitianos no Brasil, com fins humanitários. Prova disso é a recente edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30 de março de 2023, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção, por desastre ambiental ou pela situação de instabilidade institucional na República do Haiti, ratificando, no particular, os objetivos norteadores da política migratória.  

  

Na mesma seara – e para o que aqui interessa -, editou-se a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil.   

  

Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º).  

  

Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º, assim transcritos:  

  

“Art. 3º Poderão ser familiares chamantes, nos termos desta Portaria Interministerial, os nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti que obtiveram autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária, por prazo determinado ou indeterminado.  

  

Art. 4º Poderão ser chamados, nos termos desta Portaria Interministerial, os seguintes nacionais haitianos ou apátridas residentes na república do Haiti:  

I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro;  

II - filho de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência”.  

  

Normatizou-se, ainda, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º).  

  

Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos.  

  

Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados.  

 

Nesse particular, registro que o canal eletrônico criado pela chancelaria brasileira (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br), para além de não disponibilizar, de imediato, datas para agendamento, impõe a condição de prévio encaminhamento de todos os documentos devidamente legalizados (reconhecimento da assinatura no original em seu original, pela autoridade consular, tradução para o português por tradutor juramentado no Brasil e, por fim, registro em cartório de títulos e documentos sediado no Brasil, ao custo de vinte dólares norte-americanos cada um), para, só então, uma vez validados, viabilizar o atendimento. Não bastasse, ilustrações retiradas de “prints” do endereço eletrônico mencionado, constantes de outros feitos desse jaez, revelam que, dentre as espécies de visto passíveis de requerimento através do “e-consular”, não está incluída aquela referente ao “Visto temporário para reunião familiar – espécie XI”, a demonstrar, também aqui, a significativa dificuldade de solicitação da permissão de ingresso e permanência em território nacional, pelos meios oficiais então disponibilizados.

  

Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entendo que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer.  

  

Confira-se entendimento análogo da 4ª Turma deste Tribunal:  

  

“ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. ESTRANGEIRO. HAITI. AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM. VISTO HUMANITÁRIO PARA REUNIÃO FAMILIAR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.   

- A questão do ingresso dos haitianos com vista à reunião familiar, consoante decisão proferida pelo STJ, no SLS 3092-SC não está suspensa, tendo sido autorizada às instâncias inferiores a análise das liminares e tutelas com critério e cautela, desde que se observem se houve exaurimento das possibilidades administrativas de e medidas instrutórias de informação viáveis. A análise do pleito, em sede de apelação, é possível.   

- O autor busca o ingresso em território nacional da esposa e do filho menor, provenientes do Haiti, por via aérea, para reunião com o pai. Requer a acolhida humanitária, tendo em vista a grave crise que acomete o Haiti, relatando, inclusive a impossibilidade de obtenção de visto perante a embaixada do Brasil em Porto Príncipe.   

- Ademais, em 14 de agosto de 2021, o Haiti foi atingido por um terremoto de grandes proporções, causando destruição extrema, várias vítimas fatais e centenas de feridos. O agravamento da crise no Haiti ocasionou a suspensão de serviços como energia, água potável, transporte, telefone e internet, atingindo inclusive o funcionamento da própria embaixada do Brasil, segundo relatos. Desta forma, a crise no país atinge patamares exorbitantes, motivo pelo qual a única saída para os haitianos que desejam ingressar no Brasil é a judicial.   

- SANTCHESSE CHARLES tem CPF (ID 260496924, páginas 9/10), carteira de registro nacional migratório com validade até 27/02/2029 (ID 260496924, páginas 11/12), endereço fixo na cidade de Várzea Paulista/SP (ID 260496924, páginas 1 e 13) e carteira de trabalho com anotação de emprego (ID 260496924, páginas 14/16), o que demonstra que está inserida na vida nacional.   

- O vínculo de companheira de CHRISTELA JOSEPH, qualificada por meio de seu passaporte haitiano anexado aos autos (ID 260496924, página 2), para com o residente no Brasil está descrito no documento ID 260496924, página 7. A comprovação de que STEEVEN CHARLES (S. C.), menor de idade, é filho de ambos está no passaporte haitiano da criança (ID 260496924, página 3) e em sua certidão de nascimento (ID 260496924, página 6).   

- Não se afigura razoável, nem proporcional, o não recebimento do pedido dos vistos, mormente quando a parte se propuser a regularizar os documentos, nos termos do art. 37, da Lei de Imigração nº 13.445/2017. Precedente jurisprudencial.  

- Por outro lado, a União não está inerte quanto à situação dos haitianos que objetivam acolhida humanitária, tanto que foi editada a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 33, de 29 de dezembro de 2022, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti, ratificando os objetivos norteadores da política migratória.   

- Cabe destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no precedente supracitado (SLS Nº 3092-SC) ponderou que a intervenção do Poder Judiciário deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas e reforçou a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis inclusive perícia social no Brasil, para que sejam deferidas as liminares e tutelas nos casos de ingresso sem visto dos haitianos.   

- Desta forma, levando-se em conta todas estas considerações, bem como o acervo probatório constante nos autos, que não traz elementos que comprovem o exaurimento da via administrativa, a melhor solução é o deferimento parcial do pedido, para determinar à União que receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar.   

- Apelação parcialmente provida para determinar que a União Federal receba a documentação necessária à concessão dos vistos humanitários com base na reunião familiar e providencie, com celeridade, a expedição dos mesmos”.  

(AC nº 5033337-68.2021.4.03.6100, Rel. para o acórdão Des. Federal Mônica Nobre, 4ª Turma, p. 04/07/2023).  

  

Sucumbente a parte autora no pedido de autorização de ingresso no país, sem visto, mas exitosa na determinação de apreciação do pedido pelo Poder Executivo, de rigor a condenação de ambas as partes no pagamento de honorários advocatícios à parte adversa (art. 86/CPC), no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, suspensa a exigibilidade da cobrança em relação à parte autora, ante a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça.  

 

Ante o exposto, dou parcial provimento à remessa necessária e à apelação da União Federal, para reformar, em parte, a sentença de primeiro grau de jurisdição, a fim de julgar parcialmente procedente o pedido inicial, condenando-a, por meio dos órgãos competentes, no recebimento e processamento – seja por meio físico ou eletrônico – da documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando-lhe o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer. Arbitro os honorários advocatícios em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, a serem suportados por ambas as partes, na medida da sucumbência experimentada, com suspensão dos efeitos em relação à parte autora, dada a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça.  

 

É como voto.  

 


EXMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA:

Com a devida vênia, divirjo do senhora Relator para dar provimento à apelação e à remessa oficial.

O debate concentra-se na possibilidade de ingresso de cidadão haitiano em território nacional, independente da apresentação de visto.

Uma breve análise da situação vivenciada no Haiti aponta que o país já enfrentava diversas crises internas devido à instabilidade política e econômica, porém o quadro foi agravado após grandes terremotos. A falta de alimentos, saúde e saneamento básico e a crise socioeconômica foram intensificadas pela situação de calamidade pública que assolou a região.

Neste contexto, um fluxo considerável de Haitianos buscou como saída a tentativa de iniciar uma nova vida em outro País, tendo como um dos destinos principais o Brasil.

Diante do alto volume de interessados em ingressar em território brasileiro, foi permitida a concessão de visto humanitário aos haitinaos, em caráter especial, concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, nos moldes das Resoluções Normativas do Conselho Nacional de Imigração  97/ 2012 e 102/2013, sem prejuízo das demais modalidades de ingresso previstas na legislação brasileira.

Soma-se o fato de que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar, nos termos dos arts. 3º, VI e VIII e 4º, III, da Lei 13.445/17 (Lei de Migração).

Neste sentido, o art. 37 da Lei de Migração, em concretização aos direitos e garantias do migrante, prevê a concessão de visto e autoriza a residência no Brasil com a finalidade de reunião familiar, aos descendentes até o segundo grau, cônjuge ou companheiro, dentre outros, in verbis:

Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:

I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma;

II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência;

III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou

IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda.

Mesmo com estes instrumentos legais à disposição, a grave crise securitária e institucional no Haiti não foi superada e vem impedindo, por razões de força maior, a regular realização de serviços diplomáticos, incluindo a concessão dos vistos de acolhida humanitária e de reunião familiar aos cidadãos haitianos.

Assim, algumas situações evidenciam a necessidade de mitigação do rito diplomático, mediante a permissão de ingresso de estrangeiro em território nacional sem a concessão de visto. Trata-se da necessidade de priorizar os princípios migratórios reconhecidos internacionalmente e constitucionalmente pela República Federativa do Brasil, em especial, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e o princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF).

Porém, a referida mitigação não pode ser feita de maneira indiscriminada. No julgamento da Suspensão de Liminar e de Sentença 3.092/SC, o STJ determinou que a análise deve ser feita de forma concreta e individualizada, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado.

Tal posicionamento foi reafirmado na análise dos embargos de declaração opostos naquele processo, ocasião em que a Corte Superior apontou que o voto proferido anteriormente foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes o eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o  esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.

Inclusive, o STJ aponta que, para preservar a autoridade desta decisão, o não cumprimento das referidas prescrições poderá ensejar a propositura de reclamação, até mesmo em âmbito disciplinar:

 

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE INTEGRAÇÃO DA EMENTA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO. 

1. Consoante a literalidade do artigo 1.022 do Código de Processo Civil, os Embargos de Declaração são cabíveis para esclarecer obscuridade, eliminar contradição, suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o Tribunal de ofício ou a requerimento, e/ou corrigir eventual erro material.
2. Comando contido na parte dispositiva do Voto que foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes do eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.
3. Descumprimento dessas prescrições que poderá ensejar a propositura de Reclamação para a preservação da autoridade da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e, eventualmente, de Reclamação Disciplinar perante os órgãos correcionais contra os recalcitrantes, mas não de Embargos de Declaração que objetivem dar destaque, na ementa, a aspectos que a parte considera relevantes.
4. A ementa é simples extrato dos pontos essenciais do Voto e não pode e nem deve conter todos os seus fundamentos e estipulações. Inviabilidade do manejo de Embargos de Declaração que objetivem a sua complementação.
5. Inexistindo omissão, obscuridade ou contradição a ser suprida, inviável o acolhimento dos Embargos de Declaração.
6. Embargos de Declaração rejeitados.

(STJ, EDcl no AgInt na SLS 3092, Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 25/04/2023 – grifo nosso).

Em atendimento ao disposto pelo STJ, a análise do caso concreto revela que a parte autora traz argumentos genéricos, reforçando, por meio de notícias jornalísticas, as já conhecidas dificuldades sociais, econômicas e humanitárias enfrentadas pela população do Haiti. Porém, não há nos autos qualquer descrição individualizada da realidade fática da parte autora. Além do que, não foram atendidas as medidas instrutórias de informação exigidas pelo STJ (como, por exemplo, a perícia social).

Nos autos originários inexiste comprovação de que a parte esgotou as possibilidades administrativas. Há apenas um print screen de tela de computador mostrando a indisponibilidade de agendamento pelo sistema e-consular. No entanto, o extrato de tela não faz referência à data, ao horário ou ao número de tentativas de uso do sistema.

E em consulta ao sítio eletrônico do e-consular (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br/) é possível verificar que o sistema está em pleno funcionamento.

Além disso, por meio da criação de vias mais ágeis e simplificadas para concessão administrativa dos vistos, é notório o esforço da Administração em solucionar as dificuldades geradas pela alta demanda de requerimentos realizados pelos haitianos. Como exemplo, a edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE 38/2023, que facilitou a tramitação dos pedidos de reunião familiar, possibilitando a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário aos nacionais haitianos com vínculos familiares no Brasil, sem necessidade de pagamento de taxas e com a redução dos encaminhamentos à embaixada de Porto Príncipe.

Logo, embora reconhecida a possibilidade de mitigação dos procedimentos diplomáticos em respeito aos princípios dignidade da pessoa humana, da acolhida humanitária, dos direitos da criança e do adolescente e do direito à reunião familiar, no caso concreto não foram enfrentados de maneira pormenorizada e individualizada os motivos que permitiriam a concessão de entrada de imigrante em território brasileiro sem a apresentação de visto. 

Invertidos os ônus sucumbenciais, observados os benefícios da justiça gratuita.

Em face do exposto, dou provimento à apelação e à remessa necessária.

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5013632-50.2022.4.03.6100

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: FEDNET CONCIUS, FILENE OZIAS, J. C.
REPRESENTANTE: FEDNET CONCIUS, FILENE OZIAS

Advogado do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A
Advogados do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A,
Advogado do(a) REPRESENTANTE: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

Trata-se de remessa necessária e apelação em ação ordinária em que a Advocacia Geral da União pretende a reversão da sentença que concedeu provimento jurisdicional autorizando o ingresso da autora JACELINE CONCIUS, menor e residente no Haiti, por via aérea, sem a necessidade de apresentação do visto de entrada. 

Em suma, a apelante sustenta que o pedido de dispensa de visto não tem respaldo legal; que o procedimento realizado pela Embaixada no Haiti para processamento do pedido de vistos é regular, apresentando, inclusive, desempenho superior ao de outras embaixadas e que a procedência do pleito autoral resvalaria em violação ao princípio da isonomia em relação aos demais consulentes interessados no visto brasileiro. 

O apelo não comporta provimento. 

Ab initio, cumpre destacar a regra a que o Poder Judiciário se submete de não intervir no mérito dos atos administrativos, em respeito à separação dos poderes. 

Não obstante, a margem de liberdade de atuação da Administração não é irrestrita, podendo o Judiciário adentrar a seara administrativa para aferir a legalidade do ato, controle este que abrange a observância dos princípios constitucionais e legais.

O caso trazido à apreciação impõe precisamente a interferência do Poder Judiciário em ato do executivo, em caráter excepcional, para dar efetividade a princípios que informam a ordem jurídica vigente.

Vejamos. 

A República Federativa do Brasil é signatária da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, além de ratificar os principais instrumentos internacionais de direitos humanos.

A ratificação de tais normas e o status supralegal que ostentam frente à legislação doméstica evidenciam o compromisso do Estado brasileiro em erigir um amplo espectro jurídico de proteção e assistência ao refugiado, concebendo sua política migratória a partir dos princípios de direitos humanos, solidariedade e de cooperação internacional. 

Neste contexto, há que se destacar também que o ordenamento pátrio reconhece a importância do direito de reunião familiar, sem distinção entre nacionais e estrangeiros, conforme a especial proteção conferida à família expressa no art. 226 da Constituição Federal. 

Outrossim, a presença de menor no polo ativo da ação atrai também a aplicação da doutrina de proteção integral à infância, consagrada no art. 227 da Constituição Federal de 1988, e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, conforme previsto na na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (incorporada pelo Decreto Legislativo 99.710/90), de sorte que não cabe desconsiderar as consequências deletérias da privação do convívio familiar para o desenvolvimento do menor. 

Tais fundamentos, portanto, permitem a flexibilização dos procedimentos para obtenção de visto em face de razões humanitárias, garantindo-se aos refugiados o direito de entrada e permanência no território brasileiro, ainda que sem a documentação adequada. 

Nesse sentido, no plano dos instrumentos internacionais, os principais marcos relativos à proteção conferida à família estão apresentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 16); no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 23); na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Convenção sobre Direitos da Criança e na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951.

Confira-se:

Declaração Universal dos Direitos Humanos:

“Artigo 16. 

(...)

3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.”

 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos: 

artigo 23."A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado."

Convenção sobre os Direitos da Criança: 

“Artigo 9 

1. Os Estados Partes garantirão que a criança não seja separada dos seus pais contra a sua vontade, exceto quando as autoridades competentes sujeitas a revisão judicial determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos aplicáveis, que tal separação é necessária ao interesse superior da criança. Tal determinação pode ser necessária em um caso específico, como por exemplo, um dos pais estar sujeito a medidas privativas de liberdade, devido a condenação por um delito. 

2. Em qualquer procedimento enunciado no parágrafo 1 do presente artigo, todas as partes interessadas deverão ter a oportunidade de participar nele e de dar a conhecer as suas opiniões. 

3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança de manter contato com ambos os pais, caso um ou ambos tenham sido separados da criança, salvo se for contrário ao interesse superior da criança.

(...)

Artigo 10 - Em conformidade com a obrigação dos Estados Partes, enunciada no artigo 9, parágrafo 1, os pedidos feitos por um filho ou por seus pais para entrar ou sair de um Estado Parte, com o objetivo de reunir-se à sua família, serão tratados pelos Estados Partes de forma positiva, humanitária e expedita. Os Estados Partes assegurarão ainda que a apresentação de tal pedido não implicará em conseqüências prejudiciais para os pedintes e para os membros de sua família."
 

Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967:

“Art. 12 - Estatuto pessoal 

1. O estatuto pessoal de um refugiado será regido pela lei do país de seu domicílio, ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência. 

2. Os direitos adquiridos anteriormente pelo refugiado e decorrentes do estatuto pessoal, e notadamente os que resultam do casamento, serão respeitados por um Estado Contratante, ressalvado, sendo o caso, o cumprimento das formalidades previstas pela legislação do referido Estado, entendendo-se, todavia, que o direito em causa deve ser dos que seriam reconhecidos pela legislação do referido Estado se o interessado não se houvesse tornado refugiado.” - g.n.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):

“artigo 17. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.”

Na legislação pátria, o direito de reunião familiar tem seu conteúdo previsto na Constituição Federal, quando esta garante a proteção familiar, sem distinção entre nacionais e estrangeiros (arts. 226 e 227 da Constituição), na Lei de Migração (Lei n.º 13.445/2017); e na Resolução n.º 108/2012 do CNIg.

Adiante, transcrição das normas previamente citadas: 

Constituição Federal:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
 

Lei n.º 13.445/2017 (Lei de Migração):

"Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

(...)

VIII - garantia do direito à reunião familiar;

(...)

Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados: 

(...)

III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes;

(...)

Da Reunião Familiar 

Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante: 

(...)

III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência;"
 

Resolução n.º 108/2012 do CNIg:

"O Conselho Nacional de Imigração, instituído pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 e organizado pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, no uso das atribuições que lhe confere o Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993,

Resolve:

Art. 1º O Ministério das Relações Exteriores poderá conceder visto temporário ou permanente, a título de reunião familiar, aos dependentes de cidadão brasileiro ou de estrangeiro temporário ou permanente no Brasil.”

Portanto, há robusto embasamento normativo garantindo o direito de reunião familiar pelo Estado brasileiro.

Demais disso, no caso concreto, resta caracterizada evidente situação emergencial a que os apelantes residentes no Haiti estão sujeitos, diante da grave crise humanitária e institucional que assola o país e dos inúmeros óbices relatados na exordial do feito e nas razões recursais à obtenção do visto perante a embaixada do Brasil lá instalada.

Importante destacar que o Estado brasileiro vem reiterando o compromisso em estabelecer relações de cooperação humanitária com o Haiti, conforme se denota da edição da Portaria Interministerial nº 29, de 16 de dezembro de 2020, aplicável à hipótese, e suas subsequentes edições. 

De fato, extrai-se da referida Portaria a seguinte disposição: 

Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 29, de 25 de abril de 2022

“Art. 1º Esta Portaria Interministerial dispõe sobre a concessão do visto temporário e da autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, para nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti.

§ 1º Para o fim do disposto no caput, observar-se-á o disposto no § 3º do art. 14, e na alínea "c" do inciso I do art. 30 da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, e no § 1º do art. 36 e § 1º do art. 145 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017.

§ 2º O disposto nesta Portaria vigorará até 31 de dezembro de 2022, e não afasta a possibilidade de que outras medidas possam ser adotadas pelo Estado brasileiro para proteção dos nacionais haitianos e apátridas residentes no Haiti.

Art. 2º O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental.”

Oportuno ressaltar que a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, referida pela AGU em ID  278439109, não se aplica ao caso concreto. A presente ação foi ajuizada sob a vigência da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 29, de 25 de abril de 2022, sendo este o ato normativo regulador dos fatos e relações sob sua égide.

Em que pese a recente Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023 implementar tratamento mais detalhado e específico acerca da matéria de concessão de autorização de residência e visto para nacionais haitianos, a sua vigência é posterior à propositura da presente demanda, não havendo ainda qualquer previsão no sentido de autorizar que alcance situações pretéritas, de sorte que suas disposições não se aplicam ao caso em tela.  

A título de informação, comparativamente aos regramentos anteriores, a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023 introduziu modificações no tratamento da matéria que podem ser sintetizadas: no estabelecimento de um procedimento alternativo àquele já previsto junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe para a concessão de visto temporário (art. 6º, §§ 3º, 4º e 5º); na expressa especificação de quem seriam os familiares elegíveis para a obtenção de visto de reunião familiar (art. 4º) e na previsão de dispensa excepcional da versão original de alguns dos documentos listados, desde que possível a comprovação do vínculo familiar mediante realização de entrevista ou apresentação de autodeclaração (art. 6º, §1º).

Reitera-se, a novel regulamentação disposta na Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, com destaque para a previsão de procedimento alternativo à solicitação de visto e à delimitação do conceito de familiar para os fins da norma, não incide na hipótese em apreço. 

Dessarte, de se concluir haver robusto embasamento normativo assegurando o direito de reunião familiar pelo Estado brasileiro a familiares de estrangeiro residente  no país.

 

Outrossim, os documentos anexados aos autos (ID 270494205) comprovam com verossimilhança o estatuto pessoal dos apelados conforme descrito na inicial, comprovando de modo suficiente os vínculos familiares relatados.

Nesse sentido, destaco:

a) Em nome de JACELINE CONCIUS: tradução juramentada para o idioma português da Certidão de Nascimento (ID 270494205) emitida pela República do Haiti e  seu passaporte, constando como filiação FEDNET CONCIUS e FILÈNE OZIAS;

b) Em nome de FEDNET CONCIUS: Cédula de Identidade de Estrangeiro emitida pelo Governo do Brasile; cópia de seu CPF; carteira  trabalho (CNTPS) e comprovante de endereço (fatura de cartão de crédito)

c) Em nome de  FILÈNE OZIAS: Carteira de Registro Nacional Migragório, emitida pelo Governo do Brasil. 

Diante de tal contexto, com fundamento em razões humanitárias, na proteção à família e no superior interesse da criança, é caso de se garantir o direito de reunião familiar, mitigando-se - como medida necessária e razoável - o rigor da exigência de exibição do visto para a entrada de refugiados no país. 

Cumpre mencionar que a  Lei nº 9.474/97, em seu art. 8º, prevê a possibilidade de de refúgio ainda que a entrada do estrangeiro no país se dê ilegalmente, sem a apresentação do visto, portanto. Confira-se, in verbis

"Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes."

Por derradeiro, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a se pronunciar, no agravo interno em Suspensão Liminar de Sentença nº 3092-SC, acerca da concessão de liminares que permitiam o ingresso de haitianos no país sem a necessidade de visto. 

Por ocasião do julgamento, a Corte Especial ressaltou os princípios adotados em favor da criança e do adolescente, a importância nuclear da família, a proteção aos direitos fundamentais e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como fundamentos para a concessão de liminar permitindo o ingresso de haitianos no Brasil.

Destacou, assim, que o pleito no sentido de se determinar restrição genérica, irrestrita e absoluta à análise de liminares, a pretexto de se evitar possível efeito multiplicador das decisões, não tem amparo na Constituição. 

Eis a ementa do supra citado julgado:

“AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ESTRANGEIROS MENORES DE IDADE AFASTADOS DOS GENITORES. ACOLHIDA HUMANITÁRIA DE HAITIANOS. EFEITO MULTIPLICADOR. SUSPENSÃO GENÉRICA DE TODAS E QUALQUER MEDIDA LIMINAR SOBRE O TEMA, PRESENTE OU FUTURA. PONDERAÇÃO DE VALORES E RAZOABILIDADE. EXAME INDIVIDUALIZADO DE CADA SITUAÇÃO. 1. A intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. 2. O indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento das estipulações constitucionais e com a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos. 3. Primazia da proteção da criança e do adolescente, da tutela da família como base da sociedade e do direito ao convívio familiar. 4. Salvaguarda da possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação, inclusive a obtenção de medidas liminares. Direito fundamental da pessoa que tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional. 5. A Segunda Turma do E. STF, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida, com base em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na proteção de direitos fundamentais.6. Permissão às instâncias inferiores para o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência e com cautela, diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil , deliberem sobre a concessão ou não das medidas liminares. 7. Agravos Internos providos para reformar a decisão objurgada e reestabelecer as liminares de origem”

(AgInt na SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 3.092 - SC (2022/0099380-0), Min. Rel. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, jgdo 07/12/2022). - grifei

Transcrevo  do referido julgado, os seguintes excertos:

“Como bem se percebe da judiciosa decisão da lavra do eminente ex-Presidente do STJ, a suspensão das medidas liminares foi ditada pelo fundamento primevo do risco de multiplicação de demandas da natureza idêntica à que motivou a propositura desta SLS, nas quais se objetiva a isenção de visto ou o processamento imediato de requerimentos dessa autorização de entrada no País por autoridades imigratórias.

(...)

No entanto, o indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento de estipulações constitucionais, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos. É preciso que se tenham em mente os primados da proteção da criança e do adolescente, a tutela da família como base da sociedade e o direito ao convívio familiar, rememorando-se que os postulantes, em sua imensa maioria, são menores de idade que pretendem reencontrar os genitores, que já estão no Brasil. Nesse quadrante, não parece legítima a suspensão irrestrita de toda e qualquer liminar que verse sobre o direito de ingresso de haitianos no território nacional, em ações presentes e futuras, tal como deliberado na decisão ora recorrida. 

O artigo 227 da Constituição Federal estipula ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos não só perante outros particulares, mas também perante o Estado e quaisquer entidades públicas, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação — inclusive a obtenção de medidas liminares — é direito fundamental da pessoa e, como tal, tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional.

(...)

A proibição genérica e irrestrita de obtenção de provimentos judiciais em sede de direitos fundamentais — proteção da criança e do adolescente, a tutela da família como base da sociedade e o direito ao convívio familiar — encontraria justificativa apenas na conjugação dos direitos, liberdades e garantias entre si e com outros direitos fundamentais (colisão de direitos fundamentais) ou na conjugação com princípios objetivos, institutos ou valores constitucionais de outra natureza, o que não ocorre neste caso. Decerto, o potencial efeito multiplicador das demandas judiciais nas quais se busca acelerar o exame de requerimentos administrativos de permissão de entrada no País não se enquadra em restrição que milite em favor da Administração e que esteja assegurada pelo arcabouço constitucional.

Destaco que a Segunda Turma do E. STF, na sessão virtual do dia 7/10/2022, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida pelo Juízo da 2.ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Jundiaí/SP (processo 5004055-95.2021.4.03.6128) — um dos processos afetados pela SLS concedida (embora não seja aqui agravante). 

Colhem-se daquele julgado os seguintes excertos:

12. A decisão liminar proferida em primeira instância converge com a proteção dada pela Constituição da República às crianças, adolescentes e à família, e aos direitos conferidos ao imigrante pela novel legislação de migração (Lei nº 13.445, de 2017), a qual possui inspiração constitucional, já que substitui o superado estatuto do estrangeiro. E mais, as normas internacionais subscritas e internalizadas pelo Brasil concedem idêntica guarida. Todo esse arcabouço normativo foi violado, de maneira mediata, presente a transgressão direta e imediata à liberdade de locomoção das pacientes. 13. Com efeito, o art. 226, caput, da CRFB, ao disciplinar que “[a] família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, revela a importância da família para o Constituinte. Segue-se o art. 227 dispondo ser dever “da família, da sociedade” e, também, “do Estado”, assegurar à criança e ao adolescente, “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 14. Ao utilizar o termo “prioridade”, a Constituição da República denota, consoante enfatizou o eminente Ministro Roberto Barroso, “a precedência em abstrato e ‘prima facie’ dos direitos dos menores, em caso de colisão com outras normas. E o faz por se ter entendido que, em virtude da condição de fragilidade e de vulnerabilidade das crianças, devem elas sujeitar-se a um regime especial de proteção, para que possam se estruturar concernentes às crianças devem buscar atender ao princípio do superior interesse do menor” . (RE nº 778.889/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 10/03/2016, p. 1º/08/2016). 15. Não por outra razão, o Supremo Tribunal Federal, ao vedar a expulsão de estrangeiro cujo filho brasileiro fora reconhecido ou adotado posteriormente ao ato expulsório, por unanimidade, no RE nº 608.898-RG/DF, Tema RG nº 373, assentou a proeminência dos direitos constitucionais supracitados em detrimento da “soberania nacional”. Eis a síntese do julgado:

“ESTRANGEIRO – EXPULSÃO – FILHO BRASILEIRO – SOBERANIA NACIONAL VERSUS FAMÍLIA. O § 1º do artigo 75 da Lei nº 6.815/1980 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, sendo vedada a expulsão de estrangeiro cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e deste depender economicamente.” 

(...)

18. No mesmo sentido, a proteção conferida aos imigrantes também tem guarida na Lei Fundamental, que versa, no âmbito das relações internacionais, ser o Brasil regido pelo princípio da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (CRFB, art. 4º, incs. II e IX). É imperioso, ainda, apreciar o caso concreto sob a perspectiva do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CRFB, art. 1º, inc. III), que reverbera por todo o ordenamento jurídico, assumindo a função de verdadeiro vetor interpretativo e base sustentadora do Estado Democrático de Direito.

(...)

21. À vista dessa nova legislação e da crise humanitária no Haiti, foi expedida a Portaria Interministerial nº 13, de 16 de dezembro de 2020 (dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e Relações Exteriores), a prever sobre a concessão de visto temporário e de autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais haitianos e apátridas residentes na República do Haiti. Coincidentemente, naquela oportunidade, o cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública era por mim ocupado, de modo que, desde então, estive atento aos múltiplos aspectos que envolvem a questão da migração e dos direitos fundamentais da população haitiana. 

(...)

25. Com efeito, foram considerados, de um lado: a vedação a ingerências no Poder Executivo; e, de outro, o direito à liberdade de ir, vir e permanecer, a especial salvaguarda conferida à criança e ao adolescente, a tutela da família, como base da sociedade, o direito ao convívio familiar, sem olvidar, ainda, as diretrizes constitucionais e legais que devem guiar o Estado Brasileiro nas relações internacionais. 26. Surge imperioso fazer cessar, de imediato, o impedimento de entrada no País (locomoção), promovendo-se a acolhida das menores estrangeiras, que permanecem longe dos pais desde o ano de 2019, de modo a propiciar-lhes a reunião familiar e, por conseguinte, um desfecho à situação de risco a que, possivelmente, estão submetidas, longe dos genitores, em país mergulhado em caos humanitário, social, político e institucional. 27. Portanto, na espécie, configura-se, de modo excepcional, situação de ilegalidade flagrante, apta a respaldar o revigoramento da tutela de urgência implementada em primeira instância. 28. Diante do exposto, nego seguimento ao habeas corpus, porém, com base no art. 192 do RISTF, concedo, de ofício, a ordem para restabelecer a decisão liminar proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Jundiaí/SP (processo nº 5004055-95.2021.4.03.6128). 29. Determino à Secretaria Judiciária, adotadas as devidas cautelas, oficiar ao Ministério das Relações Exteriores, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à Advocacia-Geral da União, apresentando o inteiro teor desta decisão.” - grifei. 

Nesta linha de entendimento, cito precedentes esta Corte:                                          

"PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. ESTRANGEIRO. REUNIÃO FAMILIAR. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM POR CIDADÃ DO HAITI. INGRESSO DE ESTRANGEIRA NO TERRITÓRIO NACIONAL, POR VIA AÉREA, INDEPENDENTEMENTE DE VISTO. DIREITO À REUNIÃO FAMILIAR. POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA. MEDIDA HUMANITÁRIA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL DEFERIDA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO.

1. No feito subjacente, foi ajuizada ação objetivando provimento jurisdicional que permita o ingresso em território nacional da menor Jeftalie Normilus, haitiana, sem a necessidade de apresentação de visto, para fins de reunião familiar. Sustentam os autores a impossibilidade de obter o visto para ingresso no Brasil.

2. O MM. Juízo de primeiro grau indeferiu o pedido de tutela antecipada (ID 121550534 no PJe de origem).

3. O art. 300 do Código de Processo Civil dispõe que será concedida a tutela de urgência quando restarem evidenciados os seguintes pressupostos: (i) a probabilidade do direito; e (ii) o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

4. Na espécie, estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência recursal postulada pelos agravantes, diante do perigo de dano ao direito de convivência de familiar, que deve ser especialmente tutelado pelo Estado, ex vi do art. 226 da Constituição Federal.  

5. Ademais, resta caracterizada situação emergencial a que a agravante Jeftalie Normilus está sujeita, em face da grave crise social e humanitária que assola o Haiti, bem como dos óbices relatados na exordial do feito de origem e nas razões recursais, mormente diante da dificuldade de acesso à Embaixada do Brasil naquele país.

6. O direito à reunião familiar configura princípio constitucional e uma medida humanitária, possibilitando que sejam devolvidas aos refugiados e migrantes as condições mínimas de dignidade e de exercício da cidadania.

7. O art. 3º, inciso VIII, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) elenca a garantia do direito à reunião familiar no rol dos princípios e diretrizes que regem a política migratória brasileira. Nesse panorama, no caso concreto, torna-se imprescindível a atuação do Poder Judiciário para conferir efetividade ao direito à reunião familiar.

8. Assim, afigura-se cabível, na hipótese específica dos autos, autorizar, excepcionalmente, a vinda da agravante para o país, mesmo sem visto, a fim de assegurar a proteção à família e à filha menor do estrangeiro com celeridade.

9. Destarte, deve ser mantida a decisão que deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal.

10. Agravo de instrumento provido. Agravo interno prejudicado.  

(TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5027413-43.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal NELTON AGNALDO MORAES DOS SANTOS, julgado em 06/05/2022, Intimação via sistema DATA: 10/05/2022) - grifei           

“PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. ESTRANGEIRO. REUNIÃO FAMILIAR. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM POR CIDADÃO DO HAITI. INGRESSO DE FILHA MENOR NO TERRITÓRIO NACIONAL, POR VIA AÉREA, INDEPENDENTEMENTE DE VISTO. EXTREMA VULNERABILIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.

1. A questão posta nos autos diz respeito à permissão de entrada de estrangeiro no Brasil, por via aérea, sem apresentação de visto.

2. A tutela provisória de urgência, em sua modalidade antecipada, objetiva adiantar a satisfação da medida pleiteada, garantindo a efetividade do direito material discutido. Para tanto, nos termos do art. 300 do atual Código de Processo Civil, exige-se, cumulativamente, a demonstração da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora).

3. Na hipótese, verifica-se que o primeiro recorrente demonstrou sua permanência regular no Brasil, com comprovação de renda (ID 91698649), residência fixa (ID 91698856) e documentação de identificação civil (ID 91698877, 91698872, 91699302, 91698899). O parentesco entre requerentes também foi inequivocamente comprovado (ID 91699314).

4. É sabido que a máxima da proporcionalidade encontra-se implicitamente consagrada na atual Constituição Federal e costuma ser deduzida do sistema de direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, bem como da cláusula do devido processo legal substantivo.

5. A doutrina, por sua vez, opta muitas vezes por destrinchar o princípio da proporcionalidade em três subprincípios, viabilizando melhor exercício da ponderação de direitos fundamentais. Assim, surgem os vetores da adequação, que traduz a compatibilidade entre meios e fins; a necessidade enquanto exigência de utilizar-se o meio menos gravoso possível; e a proporcionalidade em sentido estrito que consiste no sopesamento entre o ônus imposto e o benefício trazido pelo ato administrativo.

6. Tendo em vista a presença de menor impúbere no polo ativo da ação, atrai-se também a aplicação da doutrina da proteção integral, inaugurada com a nova ordem constitucional, pela qual assegura-se às crianças e adolescentes o direito à convivência familiar e seu reconhecimento enquanto pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, nos termos do art. 227 da Constituição Federal de 1988.

7. Acrescenta-se que privação do convívio familiar, ainda que temporária, imposta a criança e adolescente prejudica sua formação pessoal, enfraquece os laços afetivos, e intensifica o risco de abandono paterno, hipóteses que não podem ser desconsideradas, especialmente em juízo de cognição sumária, em face do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (incorporada pelo Decreto Legislativo 99.710/90).

8. Ressalta-se também que o Brasil vem tradicionalmente assumindo compromissos internacionais de solidariedade e promoção de direitos humanos junto ao povo haitiano, conforme observa-se da Nota nº 102 do Ministério das Relações Exteriores, publicada em 16.08.2021: “ao tomar conhecimento com consternação do terremoto que atingiu o Haiti na manhã deste sábado, 14 de agosto, o governo brasileiro manifesta sua solidariedade ao povo haitiano e reafirma seu firme compromisso com a continuidade da ajuda humanitária prestada àquele país.”

9. É coerente e proporcional, portanto, que se imponha, no caso concreto, a mitigação da rigidez burocrática procedimental, por razões humanitárias e em prol da reunião de integrantes do mesmo grupo familiar, em situação de extrema vulnerabilidade.

10. Em cotejo aos valores sociais em disputa, é certo que risco da irreversibilidade da demanda se instaura, de maneira muito mais severa, em desfavor dos indivíduos, do que em relação ao Poder Público.

11. Agravo de instrumento provido.”

(TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5025658-81.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal ANTONIO CARLOS CEDENHO, julgado em 04/02/2022, Intimação via sistema DATA: 08/02/2022) - grifei.

Além do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“ADMINISTRATIVO E INTERNACIONAL. ESTRANGEIRO. REUNIÃO FAMILIAR. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM POR CIDADÃO DO HAITI. INGRESSO DOS FILHOS MENORES NO TERRITÓRIO NACIONAL, POR VIA AÉREA, INDEPENDENTEMENTE DE VISTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CONCESSÃO DE VISTO DE PERMANÊNCIA POR RAZÕES HUMANITÁRIAS POSTERIORMENTE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.

1. A reunião familiar configura, além de princípio constitucional, uma medida humanitária para que os refugiados e migrantes tenham restituídas as condições mínimas de existência digna e de cidadania, alcançando ao máximo a possibilidade de levar uma vida normal, de modo que, em casos peculiares, devem tais princípios prevalecerem inclusive ao primado da soberania.

2. O pedido e a sentença estão fundamentados no direito à proteção familiar, assegurado pela Constituição Federal (art. 226) tanto aos nacionais quanto aos estrangeiros, o qual foi recentemente consagrado também pela nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017, art. 3º-VIII) como princípio norteador da política migratória brasileira. 

3. Trata-se, ainda, de assegurar a reunião familiar para proteger menores de idade, que gozam de proteção especial em face do que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente.

4. É caso de autorizar, excepcionalmente, a vinda dos familiares para o Brasil neste caso, mesmo sem visto, para assegurar a proteção à família e ao filhos menores do estrangeiro com brevidade.

5. Sentença mantida.”

(TRF4, AC 5019355-60.2018.4.04.7200, QUARTA TURMA, Relator SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, juntado aos autos em 27/09/2019) - grifei.

Portanto, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a possibilidade de autorização do ingresso de estrangeiro no Brasil, independentemente da exibição de visto, com fundamento na especial proteção conferida à criança e ao adolescente,na tutela da família e nos princípios da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e prevalência dos direitos humanos que regem o país em suas relações internacionais. 

Dessarte, deve ser mantida a sentença, a fim de se autorizar o ingresso no Brasil da autora JACELINE CONCIUS, menor e atualmente residente no Haiti, independentemente de visto, sem prejuízo de que sejam observadas demais normas de controle migratório aplicáveis ao caso.

Ressalta-se, o provimento ora deferido refere-se exclusivamente ao afastamento da exigência de exibição do visto, documento que possibilita a expectativa de ingresso e estada de estrangeiros no território nacional. O efetivo ingresso e permanência em território dos apelantes depende da satisfação das demais condições previstas na legislação vigente.

Vencida, condeno a apelante ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, os quais fixo majorando em 10 % o montante arbitrado na sentença, nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil/2015.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO à apelação e à remessa necessária.

É como voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


E M E N T A

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. HAITIANOS. INGRESSO EM TERRITÓRIO NACIONAL SEM A NECESSIDADE DE VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE. PRECEDENTE DO STJ. OBTENÇÃO DE AGENDAMENTO ELETRÔNICO PARA A CONCESSÃO DE VISTO. DIFICULDADES OPERACIONAIS. CONSTATAÇÃO. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA TRIPARTIÇÃO. POSSIBILIDADE DE REQUERIMENTO, PELA PARTE AUTORA, JUNTO AOS ÓRGÃOS COMPETENTES. GARANTIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DA UNIÃO FEDERAL PARCIALMENTE PROVIDOS. 

1 - O visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante. 

2 - Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III). 

3 - Conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos. 

4 - A controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade. 

5 - A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto. 

6 – Existência de inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. Consulta junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”). 

7 - A indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição. Precedente. 

8 - Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar (SLS nº 3092/SC, Corte Especial). Entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais. 

9 – Edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil.  

10 - Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º). Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º. 

11 - Normatizou-se, também, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º). 

12 - Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos. 

13 - Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados. 

14 - Nesse particular, impende registrar que o canal eletrônico criado pela chancelaria brasileira (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br), para além de não disponibilizar, de imediato, datas para agendamento, impõe a condição de prévio encaminhamento de todos os documentos devidamente legalizados (reconhecimento da assinatura no original em seu original, pela autoridade consular, tradução para o português por tradutor juramentado no Brasil e, por fim, registro em cartório de títulos e documentos sediado no Brasil, ao custo de vinte dólares norte-americanos cada um), para, só então, uma vez validados, viabilizar o atendimento. Não bastasse, ilustrações retiradas de “prints” do endereço eletrônico mencionado, constantes de outros feitos desse jaez, revelam que, dentre as espécies de visto passíveis de requerimento através do “e-consular”, não está incluída aquela referente ao “Visto temporário para reunião familiar – espécie XI”, a demonstrar, também aqui, a significativa dificuldade de solicitação da permissão de ingresso e permanência em território nacional, pelos meios oficiais então disponibilizados. 

15 - Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entende-se que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer. Precedente desta Corte. 

16 - Sucumbente a parte autora no pedido de autorização de ingresso no país, sem visto, mas exitosa na determinação de apreciação do pedido pelo Poder Executivo, de rigor a condenação de ambas as partes no pagamento de honorários advocatícios à parte adversa (art. 86/CPC), no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, suspensa a exigibilidade da cobrança em relação à parte autora, ante a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça.

17 – Remessa necessária e recurso da União Federal parcialmente providos.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Turma, nos termos do art. 942 CPC, por maioria, deu parcial provimento à remessa necessária e à apelação da União Federal, nos termos do voto-médio do Des. Fed. Carlos Delgado, no que foi acompanhado pelo Des. Fed. Rubens Calixto, vencido o Relator que lhes negava provimento e as Des. Fed. Consuelo Yoshida e Adriana Pileggi que lhes davam provimento. Lavrará o acórdão o Des. Fed. Carlos Delgado, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.