APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002516-13.2023.4.03.6100
RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR
APELANTE: RENATO DO CARMO SAMPAIO
Advogado do(a) APELANTE: LEANDRO DO CARMO SAMPAIO - SP318427-A
APELADO: PRESIDENTE DA COMISSÃO AVALIADORA E JULGADORA DO "SISTEMA DE COTAS PARA PESSOAS NEGRAS " - CEBRASPE, CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIACAO E SELECAO E DE PROMOCAO DE EVENTOS - CEBRASPE
Advogado do(a) APELADO: DANIEL BARBOSA SANTOS - DF13147-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002516-13.2023.4.03.6100 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: RENATO DO CARMO SAMPAIO Advogado do(a) APELANTE: LEANDRO DO CARMO SAMPAIO - SP318427-A APELADO: PRESIDENTE DA COMISSÃO AVALIADORA E JULGADORA DO "SISTEMA DE COTAS PARA PESSOAS NEGRAS " - CEBRASPE, CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIACAO E SELECAO E DE PROMOCAO DE EVENTOS - CEBRASPE Advogado do(a) APELADO: DANIEL BARBOSA SANTOS - DF13147-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Cuida-se de apelação em mandado de segurança que julgou improcedente pedido de anulação de ato administrativo que não confirmou a autodeclaração de candidato cotista em concurso público para o cargo de engenheiro mecânico da PETROBRAS. Em 19 de agosto de 2022, RENATO DO CARMO SAMPAIO ajuizou o presente mandado de segurança contra ato praticado pelo PRESIDENTE DA COMISSÃO AVALIADORA E JULGADORA DO “SISTEMA DE COTAS PARA PESSOAS NEGRAS”, autoridade vinculada ao CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIAÇÃO E SELEÇÃO E DE PROMOÇÃO DE EVENTOS (CEBRASPE), sustentando, em síntese, que se submeteu a certame público para o cargo de engenheiro mecânico da PETROBRAS, ocasião em que realizou vários exames de natureza objetiva e subjetiva (classificatórios e eliminatórios), tendo logrado êxito até então. Na sequência, foi convocado para submeter-se a exame perante a comissão de heteroidentificação, haja vista a sua autodeclaração inicial quanto a ser candidato concorrente às cotas reservadas a candidatos negros e pardos, ocasião em que veio a ser eliminado do certame por não ter confirmada, por ambas as comissões de heteroidentificação (inicial e recursal), a sua autodeclaração inicial, decisão que foi publicada em 10 de maio de 2022. Sustentou a manifesta ilegalidade do ato administrativo da comissão recursal, pois dispõe de ampla documentação comprobatória da sua condição de candidato “pardo”, tais como (1) declaração da médica dermatologista, Dra. Elaine Guerra, (2) classificação científica trazida na inicial (“escala de Fitzpatrick”), (3) o resultado de procedimento de heteroidentificação ao qual se submeteu em certame anterior, (4) registro do impetrante e de sua filha em cadastro de atendimento junto ao SUS (Sistema Único de Saúde), (5) cópias de documentos e fotos do impetrante e membros de sua família. Aduziu, ainda, falta de motivação da decisão administrativa, notadamente em se considerando que tem ascendência genética, tal como preconiza o IBGE, havendo jurisprudência – que cita – amparando a sua pretensão. Requereu a concessão de medida liminar para a sua reinclusão no certame, bem como a sua confirmação em sede de provimento final, anulando-se, por fim, o ato administrativo questionado (fls. 04/20-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. 21/107-PJe (ID Num. 276641687 - Pág. 18). O requerimento de concessão de medida liminar foi indeferido (fls. 127/130-PJe – ID Num. 276641694 - Pág. 1). A autoridade administrativa ofertou informações, nas quais aduziu, em síntese, preliminares de necessidade de citação da PETROBRAS e dos demais candidatos cotistas, haja vista a possibilidade de a decisão final, a ser aqui proferida, influir na esfera de direitos daqueles interessados. No mérito, sustentou que os critérios questionados (autodeclaração + heteroidentificação) pelo impetrante foram reconhecidos como constitucionais pelo STF, além de estabelecidos em edital aos quais ele livremente aderiu ao participar do certame, não cabendo ao Judiciário substituir a decisão da comissão, notadamente em caso no qual não houve qualquer dúvida, em ambas as comissões de heteroidentificação, acerca do fenótipo (aparência) do impetrante. Requereu, por fim, o acolhimento das preliminares e, no mérito, a denegação da segurança (fls. 140/174-PJe – ID Num. 276641701 - Pág. 1). Juntou os documentos de fls. 175/201-PJe (ID Num. 276641702 - Pág. 1). O representante do Ministério Público local entendeu não haver interesse público a justificar a sua atuação no feito (fls. 206/209-PJe – ID Num. 276641711 - Pág. 1). Sobreveio, então, sentença rejeitando as preliminares e julgando improcedente o pedido, sob fundamento, em síntese, de que o impetrante, ao se inscrever no concurso, teve conhecimento das exigências previstas no edital para a sua participação e eventual aprovação, ficando a ele vinculado, não cabendo ao Juízo substituir-se à banca para afirmar que o impetrante é pardo (fls. 210/216-PJe – ID Num. 276641712 - Pág. 1). Apela o impetrante renovando, basicamente, os mesmos fundamentos articulados na inicial, aduzindo, ainda, argumentos acerca da falta de fundamentação da sentença, quanto à documentação apresentada, bem como contrariedade à jurisprudência dos tribunais superiores (fls. 224/246-PJe – ID Num. 276641714 - Pág. 1) Com contrarrazões (fls. 249/289-PJe – ID Num. 276641717 - Pág. 1), vieram os autos a esta Corte. O representante do Ministério Público Federal atuante nesta Corte ofertou parecer opinando pelo não provimento do recurso (fls. 293/297-PJe – ID Num. 277848049 - Pág. 1). É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002516-13.2023.4.03.6100 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: RENATO DO CARMO SAMPAIO Advogado do(a) APELANTE: LEANDRO DO CARMO SAMPAIO - SP318427-A APELADO: PRESIDENTE DA COMISSÃO AVALIADORA E JULGADORA DO "SISTEMA DE COTAS PARA PESSOAS NEGRAS " - CEBRASPE, CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM AVALIACAO E SELECAO E DE PROMOCAO DE EVENTOS - CEBRASPE Advogado do(a) APELADO: DANIEL BARBOSA SANTOS - DF13147-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Cumpre fazer alguns esclarecimentos iniciais. Em 27/06/2022, o impetrante ingressou com mandado de segurança perante a Subseção Judiciária de São Paulo, distribuído à 26ª Vara Federal (autos nº 5015335-16.2022.4.03.6100), pleiteando a mesma providência buscada nestes autos de mandado de segurança, qual seja, a anulação do ato administrativo da comissão de heteroidentificação (em grau de recurso) que manteve decisão administrativa anterior que “não confirmou” a sua autodeclaração de candidato “pardo”. Em 28/06/2022, a medida liminar foi indeferida, sob fundamento de não competir ao Judiciário substituir a decisão da comissão constituída em edital para tal finalidade. Em 29/06/2022, o impetrante requereu a desistência daquele mandado de segurança, o que foi homologado por sentença proferida em 30/06/2022, cujo trânsito em julgado ocorreu em 28/07/2022. Ingressou, então, com este mandado de segurança (autos nº 5002516-13.2023.4.03.6100), em 19/08/2022, perante o Foro Regional de Santo Amaro – Comarca de São Paulo (SP), sede na qual, em 24/08/2022, foi proferida decisão determinando a remessa dos autos para uma das Varas da Fazenda Pública da Capital (SP), sob fundamento de versar matéria de Direito Administrativo. Em 30/08/2022, o magistrado da 9ª Vara da Fazenda Pública determinou a remessa dos autos a uma das Varas Cíveis da Subseção Judiciária de São Paulo por ser a empresa Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás sociedade de economia mista pertencente à Administração Pública Indireta da União. Distribuídos os autos à 5ª Vara Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, em 06/02/2023 foi determinada a remessa dos autos à 26ª Vara Federal da mesma subseção, por onde tramitou os autos acima mencionados (nº 5015335-16.2022.4.03.6100), no qual se pleiteava a mesma providência buscada nestes autos de mandado de segurança, o qual, como já assinalado, foi extinto sem exame do mérito. Instado a esclarecer o ocorrido, o impetrante justificou que, nestes autos, traz prova de sua etnia, o que seria suficiente provar o seu “direito líquido e certo” de ser mantido na lista de aprovados no certame. Sem razão, contudo. O procedimento de heteroidentificação é relativamente simples, se resumindo ao exame das características físicas do candidato e das respostas dadas por ele às perguntas efetuadas pela comissão e, no caso destes autos (o procedimento dura aproximadamente um minuto), pode ser consultado no link disponibilizado às fls. 196-PJe (ID Num. 276641706 - Pág. 1 – documentos que acompanham as informações). Ao clicar sobre o link, ou digitar o texto abaixo descrito, abrirá os campos de preenchimento abaixo identificados. No campo “Nome do usuário”, o consulente deve digitar “jurídico.7” e, no campo “Senha”, deve digitar “123456@A”, tal como abaixo descrito. LINK TESTE https://extranet.cebraspe.org.br/Compartilhamento_Juridico/7/RenatoCarmoSampaio.mp4 LOGIN: juridico.7 Senha: 123456@A Seu objetivo, como resulta claro do diminuto tempo dedicado ao procedimento, é “confirmar” ou “não confirmar” a autodeclaração que o candidato fez no início do certame. Muito longe está de ser uma comissão destinada a proceder ao enquadramento de candidatos segundo critérios “cientificamente” estabelecidos, mesmo porque o resultado da avaliação só vale para o certame em questão. Por isso, é de pouquíssima utilidade para a resolução da lide a documentação trazida pelo impetrante, tais como a declaração da médica dermatologista, Dra. Elaine Guerra (v. fls. 35/38-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 32), a classificação científica trazida na inicial (v. fls. 6-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 3 – “escala de Fitzpatrick”), o resultado de procedimento de heteroidentificação ao qual se submeteu em certame anterior (fls. 41-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 38), “print” de tela de consulta ao cadastro do impetrante e sua filha junto ao banco de dados do SUS (Sistema Único de Saúde – v. fls. 9/10-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 6), cópias de documentos e fotos do impetrante e membros de sua família (fls. 22/24-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 19; fls. 43/47-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 40), mesmo porque tratam-se de documentos expressamente excluídos pelo edital (3.2.2.5.2 Não serão considerados, para fins do disposto no subitem 3.2.2.5.1 deste edital, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais). Portanto, o objetivo do procedimento de heteroidentificação muito longe está de classificar os candidatos entre as cinco etnias que o IBGE considera em seus formulários de pesquisa – branca, preta, amarela, parda e indígena (v. https://censo2022.ibge.gov.br/np_download/censo2022/questionario_basico_completo_CD2022_atualizado_20220906.pdf), tal como sustenta o impetrante. Tal procedimento resulta de uma exigência do edital, qual seja, a de confirmar, ou não, a autodeclaração feita pelos candidatos ao se inscreverem no certame, regras às quais o impetrante expressamente aderiu ao participar do certame, que são as seguintes: 3.2 Das vagas destinadas aos(as) candidatos(as) negros(as) 3.2.1 Das vagas destinadas a cada ênfase e das que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do processo seletivo, 20% serão providas na forma da Lei n.º 12.990, de 9 de junho de 2014, e da Orientação Normativa n.º 3, de 1.º de agosto de 2016. 3.2.1.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 3.2.1 deste edital resulte em número fracionado, este será elevado até o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5, ou diminuído para o número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5, nos termos do § 2º do art. 1º da Lei n.º 12.990/2014. 3.2.1.2 Somente haverá reserva imediata de vagas para os(as) candidatos(as) que se autodeclararem negros(as) nas ênfases com número de vagas igual ou superior a três. 3.2.1.3 Para concorrer às vagas reservadas, o(a) candidato(a) deverá, no ato da inscrição, optar por concorrer às vagas reservadas aos(às) negros(as) e autodeclarar-se negro(a), conforme quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 3.2.1.3.1 Até o final do período de inscrição no processo seletivo público, será facultado ao(à) candidato(a) desistir de concorrer pelo sistema de reserva de vagas para candidatos(as) negros(as), por meio do aplicativo de inscrição, conforme subitem 5.4.1.1 deste edital. 3.2.1.4 A autodeclaração do(a) candidato(a) goza da presunção relativa de veracidade e terá validade somente para este processo seletivo público. 3.2.1.4.1 A autodeclaração do(a) candidato(a) será confirmada mediante procedimento de heteroidentificação. 3.2.1.5 As informações prestadas no momento de inscrição são de inteira responsabilidade do(a) candidato(a), na forma da Orientação Normativa n.º 3/ 2016. 3.2.2 Do procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos(as) candidatos(as) negros(as) 3.2.2.1 Os(As) candidatos(as) que se autodeclararam negros(as), se não eliminados(as) no processo seletivo, serão convocados(as) antes da homologação do resultado final no processo seletivo, para o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos(as) candidatos(as) negros(as), por meio de edital específico para essa fase. 3.2.2.2 Considera-se procedimento de heteroidentificação a identificação por terceiros da condição autodeclarada. 3.2.2.3 Para o procedimento de heteroidentificação, na forma da Orientação Normativa n.º 3/2016, o(a) candidato(a) que se autodeclarou negro(a) deverá se apresentar à comissão de heteroidentificação. 3.2.2.3.1 A comissão de heteroidentificação será composta por cinco integrantes e seus suplentes, que não terão seus nomes divulgados, e deverá ter seus integrantes distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade. 3.2.2.3.2 Os currículos dos integrantes da comissão de heteroidentificação serão disponibilizados no endereço eletrônico http://www.cebraspe.org.br/concursos/petrobras_21_ns, no dia de divulgação do edital de convocação para essa fase. 3.2.2.4 O procedimento de heteroidentificação será filmado pelo Cebraspe para fins de registro de avaliação para uso da comissão de heteroidentificação. 3.2.2.4.1 O(A) candidato(a) que se recusar a realizar a filmagem do procedimento de heteroidentificação será eliminado(a) do processo seletivo público, dispensada a convocação suplementar de candidatos(as) não habilitados(as). 3.2.2.5 A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo(a) candidato(a). 3.2.2.5.1 Serão consideradas as características fenotípicas do(a) candidato(a) ao tempo de realização do procedimento de heteroidentificação. 3.2.2.5.2 Não serão considerados, para fins do disposto no subitem 3.2.2.5.1 deste edital, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais. 3.2.2.6 Será considerado(a) como preto(a) ou pardo(a) o(a) candidato(a) que assim for reconhecido(a) por, pelo menos, 2 (dois) membros da comissão de heteroidentificação. 3.2.2.6.1 As deliberações da comissão de heteroidentificação terão validade apenas para este processo seletivo. 3.2.2.6.2 É vedado à comissão de heteroidentificação deliberar na presença dos(as) candidatos(as). 3.2.2.6.3 O teor do parecer motivado será de acesso restrito, nos termos do art. 31 da Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011. 3.2.2.7 Será eliminado(a) do processo seletivo o(a) candidato(a) que: a) não for considerado(a) negro(a) pela comissão de heteroidentificação, conforme previsto no art. 2º, parágrafo único, da Lei n.º 12.990/2014 e ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independente de alegação de boa-fé; b) se recusar a ser filmado; c) prestar declaração falsa; d) não comparecer ao procedimento de heteroidentificação. 3.2.2.7.1 A eliminação de candidato(a) por não confirmação da autodeclaração não enseja o dever de convocar suplementarmente candidatos(as) não convocados(as) para o procedimento de heteroidentificação. 3.2.2.7.2 Na hipótese de constatação de declaração falsa, o(a) candidato(a) será eliminado(a) do processo seletivo e, se houver sido nomeado(a), ficará sujeito(a) à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. 3.2.8 O enquadramento ou não do(a) candidato(a) na condição de pessoa negra não configura ato discriminatório de qualquer natureza. 3.2.9 Os(As) candidatos(as) negros(as) concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no processo seletivo. 3.2.10 Os(As) candidatos(as) negros(as) concorrerão concomitantemente às vagas reservadas a pessoas com deficiência, se atenderem a essa condição, e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no processo seletivo. 3.2.11 Em cada uma das fases do processo seletivo, não serão computados, para efeito de preenchimento do percentual de vagas reservadas aos(às) candidatos(as) negros(as), nos termos da Lei n.º 12.990/2014, os(as) candidatos(as) autodeclarados(as) negros(as) classificados(as) ou aprovados(as) dentro do número de vagas oferecido à ampla concorrência, sendo que esses(as) candidatos(as) constarão tanto da lista dos(as) aprovados(as) dentro do número de vagas da ampla concorrência como também da lista dos(as) aprovados(as) para as vagas reservadas aos(às) candidatos(as) negros(as), em todas as fases do processo seletivo. 3.2.12 Em caso de desistência ou eliminação de candidato(a) negro(a) aprovado(a) em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo(a) candidato(a) negro(a) posteriormente classificado(a). 3.2.13 Na hipótese de não haver candidatos(as) negros(as) aprovados(as) em número suficiente para que sejam ocupadas as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para ampla concorrência e serão preenchidas pelos(as) demais candidatos(as) aprovados(as), observada a ordem de classificação geral por ênfase. 3.2.14 A nomeação dos(as) candidatos(as) aprovados(as) respeitará os critérios de alternância e de proporcionalidade, que consideram a relação entre o número total de vagas e o número de vagas reservadas a candidatos(as) com deficiência e a candidatos(as) negros(as). 3.2.15 O edital de resultado provisório no procedimento de heteroidentificação será publicado no endereço eletrônico http://www.cebraspe.org.br/concursos/petrobras_21_ns e terá a previsão de comissão recursal, que será composta de três integrantes distintos dos membros da comissão de heteroidentificação, nos termos do respectivo edital. 3.2.15.1 Os currículos dos integrantes da comissão recursal serão disponibilizados no endereço eletrônico http://www.cebraspe.org.br/concursos/petrobras_21_ns, durante o prazo de interposição de recurso contra o resultado provisório no procedimento de heteroidentificação. 3.2.15.2 O(A) candidato(a) que não tiver a autodeclaração confirmada no procedimento de heteroidentificação poderá interpor recurso administrativo contra a referida decisão. 3.2.15.2.1 Para interposição de recursos contra o resultado provisório no procedimento de heteroidentificação, o(a) candidato(a) deverá observar os procedimentos descritos no respectivo edital. 3.2.15.3 Em suas decisões, a comissão recursal deverá considerar a filmagem do procedimento para fins de heteroidentificação, o parecer emitido pela comissão e o conteúdo do recurso elaborado pelo(a) candidato(a). 3.2.15.4 Das decisões da comissão recursal não caberá recurso. 3.2.16 Demais informações a respeito do procedimento de heteroidentificação constarão de edital específico de convocação para essa fase. (fls. 55/57-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 52) (Destaquei) Como resulta claro das normas transcritas, o candidato que desejar concorrer pelo sistema de cotas, deverá autodeclarar a sua condição de afrodescendente no momento da inscrição e essa autodeclaração deverá ser confirmada por uma comissão de heteroidentificação, que utilizará o critério da fenotipia (aparência). Embora esse tema seja polêmico, pois ambos os critérios (autodeclaração e heteroidentificação) são subjetivos, o que, para muitos, não se coaduna com um regime constitucional de amplo acesso aos cargos/postos públicos onde o que impera é o postulado da isonomia, o tema não é novo e, em razão das agudíssimas controvérsias estabelecidas na sociedade, foi objeto de diversas manifestações do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a constitucionalidade dessa forma de seleção de parte dos candidatos aos cargos públicos. O impetrante destaca precedentes jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca do tema (v. fls. 14/15-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 11) que seriam favoráveis à sua tese. Com a devida venia aos magistrados que comungam da tese, não é essa a visão do Supremo Tribunal Federal que, de há muito, entendeu que seria impossível estabelecer “critérios científicos de classificação racial” para a seleção de candidatos a postos/cargos públicos, notadamente porque, em função do alto grau de miscigenação da população brasileira, tal classificação iria impossibilitar a aplicação das políticas de ação afirmativa que vinham se desenhando no seio da sociedade. Foi o que ocorreu, por exemplo, no julgamento da ADPF 186, no qual se discutia a constitucionalidade de atos administrativos expedidos pela Universidade de Brasília (UnB), que instituíram (no vestibular de julho de 2009) um sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (20% de cotas) no seu processo de seleção de ingresso de estudantes. Sustentava-se, naquela ocasião, que a realidade multirracial brasileira, caracterizada por intensa miscigenação, não justificava a criação de um sistema “birracial” que, na prática, só admitiria a existência de “duas raças”, pois o corte a ser estabelecido acabaria por criar um “tribunal racial” com o poder de dizer quem é negro e quem não é. Pediu-se, naquela ocasião (2009), a suspensão da aplicação desse sistema no meio universitário e o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. O pedido foi julgado improcedente, mas, pela riqueza das discussões, e para demonstrar a antiguidade do tema, permito-me fazer a transcrição de parte dos debates e manifestações ocorridas naquele julgamento. O ministro Ricardo Lewandowski, de pronto, afastou o argumento de que o sistema estaria inaugurando uma espécie de “tribunal racial”, ressaltando o fato de que o objetivo da política então instituída não era o de classificar as pessoas em raças, mas instituir um sistema de ação afirmativa que buscava uma reparação histórica aos afrodescendentes, evitando, por outro lado, possíveis fraudes ao sistema na identificação dos verdadeiros beneficiários. Chamo a atenção para o destaque que se dá aos elementos fenotípicos (aparência) na seleção dos candidatos, em detrimento do genótipo. Destaco trechos de sua manifestação: “Além de examinar a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, é preciso verificar também se os instrumentos utilizados para a sua efetivação enquadram-se nos ditames da Carta Magna. Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional. Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros). Essa questão foi estudada pela mencionada Daniela Ikawa, nos seguintes termos: “A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença. Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato. A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (...). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos”. Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional. A seguir, após analisar a constitucionalidade das ações afirmativas, dos critérios étnico-raciais e dos distintos métodos de identificação dos candidatos para o acesso diferenciado ao ensino superior público, passo ao exame das políticas de reserva de vagas ou estabelecimento de cotas. ... A discriminação e o preconceito existentes na sociedade não têm origem em supostas diferenças no genótipo humano. Baseiam-se, ao revés, em elementos fenotípicos de indivíduos e grupos sociais. São esses traços objetivamente identificáveis que informam e alimentam as práticas insidiosas de hierarquização racial ainda existentes no Brasil. Nesse cenário, o critério adotado pela UnB busca simplesmente incluir aqueles que, pelo seu fenótipo, acabam marginalizados. Diante disso, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade na utilização de caracteres físicos e visíveis para definição dos indivíduos afrodescendentes. Também não acolho a impugnação de que a existência de uma comissão responsável por avaliar a idoneidade da declaração do candidato cotista configure um “Tribunal Racial”. O tom pejorativo e ofensivo empregado pelo partido requerente não condiz com a seriedade e cautela dos instrumentos utilizados pela UnB para evitar fraudes à sua política de ação afirmativa. A referida banca não tem por propósito definir quem é ou não negro no Brasil. Trata-se, antes de tudo, de um esforço da universidade para que o respectivo programa inclusivo cumpra efetivamente seus desideratos, beneficiando seus reais destinatários, e não indivíduos oportunistas que, sem qualquer identificação étnica com a causa racial, pretendem ter acesso privilegiado ao ensino público superior. Aliás, devo ressaltar que compreendo como louvável a iniciativa da Universidade de Brasília ao zelar pela supervisão e fiscalização das declarações dos candidatos postulantes a vagas reservadas. A medida é indispensável para que as políticas de ação afirmativa não deixem de atender as finalidades que justificam a sua existência. Não se pretende acabar com a autodefinição ou negar seu elevado valor antropológico para afirmação de identidades. Pretende-se, ao contrário, evitar fraudes e abusos, que subvertem a função social das cotas raciais. Deve, portanto, servir de modelo para tantos outros sistemas inclusivos já adotados pelo território nacional. De qualquer modo, a atuação das universidades públicas no controle a [da] verossimilhança das declarações não dispensa o acompanhamento da questão pelo Ministério Público, a quem compete zelar pela defesa da ordem jurídica (CRFB, art. 127, caput).” (pg. 82 de 233) Como se vê, na visão do ministro, a iniciativa de criação de comissões de heteroidentificação não teve por propósito a instituição de um “tribunal racial” de classificação étnica das pessoas, mas foi uma forma de exercer algum controle sobre a autodeclaração e dar alguma credibilidade à política então instituída, visão que também pode ser verificada no posicionamento dos demais ministros durante os debates que se desenvolveram no âmbito daquele julgamento, merecendo destaque o afastamento do “critério “científico”, que, em tese, seria o único apto a fornecer a motivação aqui reclamada pelo autor da demanda. “O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Se Vossa Excelência me permite, esclareço que até ia considerar esse aspecto no meu voto, mas me passou. Eu também preferiria que o critério racial fosse aliado ao critério socioeconômico como objetivo ideal da política de inclusão. Mas não posso também deixar de assinalar, já que estamos em terreno de discussão que pode gerar previsões benéficas ao próprio processo, certa contradição - não conheço exatamente quais são os critérios adotados por essa comissão encarregada da apuração dos destinatários das cotas -, se o fato é verdadeiro, em se levarem em conta elementos genotípicos para permitir a entrada, na universidade, de quem, pelas características fenotípicas, nunca foi por estas discriminado. Ninguém discrimina alguém porque terá recorrido a exame genético e aí descoberto que a pessoa tenha gota de sangue negro. Isso não faz sentido. O candidato que sempre se apresentou na sociedade, por suas características externas, como não pertencente, do ponto de vista fenotípico, à etnia negra, mas que genotipicamente a ela pertença, a mim me parece que não deva nem possa ser escolhido e incluído na cota, pois nunca foi, na verdade, discriminado. Essa é situação que, a meu juízo, deveria ser considerada na reavaliação dos critérios de escolha. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Esse é um ponto que realmente me incomoda. Eu anotei isso aqui, chamando a atenção para esses aspectos. Fatos que são publicados na Imprensa: "Em 2004, o irmão da candidata Fernanda Souza de Oliveira, filho do mesmo pai e da mesma mãe, foi considerado 'negro', mas ela não" - (por esse, assim chamado, tribunal racial). "Em 2007, os gêmeos idênticos Alex e Alan Teixeira da Cunha (assunto que já foi referido) foram considerados de 'cores diferentes' pela comissão da UnB. Em 2008, Joel Carvalho de Aguiar foi considerado 'branco' pela comissão, enquanto sua filha Luá Resende de Aguiar foi considerada 'negra', mesmo, segundo Joel, a mãe de Luá sendo 'branca'." Quer dizer, veja as dificuldades que esse modelo prepara. E isso decorre do próprio sistema de miscigenação e da dificuldade que nós temos - e é bom até que não queiramos ter um critério tão científico de identificação. Então, este é um ponto delicado, por isso que - e acredito que há um certo consenso entre os críticos desse modelo – diferentemente do sistema adotado no ProUni, aqui falta esse referencial de índole social. E se a gente olhar o que ocorre, por exemplo: quem são os moradores de favela ou dos bairros pobres? Pode ter a maioria de pessoas de cor negra, mas nós temos brancos e negros. Agora, por que contemplar apenas os negros neste caso? Claro, nós temos a discussão sobre o modelo da escola pública, que é um referencial, que talvez seja até uma forma de, por figura de linguagem, entender que as pessoas que hoje frequentam, tendo em vista essa distorção brasileira, as escolas públicas são, em princípio, pessoas pobres. Por isso, acabou-se adotando aqui um critério racial - matéria que será objeto, inclusive, do debate que vai se seguir naquele recurso extraordinário. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – São pessoas, se me permite, pobres e negras. É uma desigualdade na própria desigualdade a desfavorecer os negros. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - É, mas no caso da escola pública, o que se está pensando aqui não é numa cota racial, mas num critério de dimensão social, porque o que se entende, em princípio - a não ser que se faça por filosofia, haverá casos excepcionais -, hoje, tendo em vista esta perversidade do sistema, vai para a escola pública porque não se consegue pagar uma escola privada que poderia permitir um adequado modelo de concorrência perante a universidade pública. Então, essa distorção precisa ser realmente enfocada. E é preciso dizer: o modelo da UnB padece desse vício, podendo gerar distorções e perversões a ponto de pessoas negras que estudaram em escolas privadas, que tiveram todas as mais adequadas condições, agora, no final, optam pelo vestibular e vão se submeter a esse tribunal racial, gerando essa distorção. Então, parece-me que esse é um ponto que precisa ficar gravado, que precisa ficar enfatizado, para que esse modelo não prossiga, para que ele seja devidamente aperfeiçoado. Se eu fosse me basear apenas no aspecto formal, eu diria que esse déficit, não ter levado em conta o referencial social, deveria me levar, também, a julgar procedente esta ação, tendo em vista este fundamento, mas eu reconheço, como já o fiz, que esse é um modelo que está sendo experimentado, cujas distorções vão se revelando no seu fazimento e que reclama aperfeiçoamento. Não é razoável que alguém se invista na universidade neste tipo de poder de dizer quem é branco e quem é negro para essa finalidade. Seria muito mais razoável adotar-se um critério objetivo de referência, de índole sócio-econômica. Porque todos podemos imaginar as distorções eventualmente involuntárias, como esses casos estão a demonstrar, mas também eventuais distorções de caráter voluntário, a partir desse tribunal que, segundo se diz, pelo menos na mídia, opera com quase nenhuma transparência. Então, veja que se conferiu, aí, a um grupo de iluminados esse poder que ninguém quer ter, de dizer quem é branco, quem é negro, numa sociedade altamente miscigenada. Então, temos, Presidente, realmente, um sério problema a despeito da correção do discurso. Ninguém está aqui a negar a constitucionalidade das ações afirmativas, nós temos um número muito razoável de decisões do Supremo Tribunal Federal, em variada ordem, que ressalta a possibilidade de se adotarem critérios diversos. Isso faz parte, inclusive, da velha fórmula que era decantada já por Rui Barbosa: de tratar igualmente a iguais e desigualmente a desiguais. Ou, na crítica de Anatole France, que dizia: a igualdade formal assegurava a pobres e ricos. Mas a referência, aqui, era a pobres e ricos, o direito inclusive de dormir sobre as pontes. Então, é preciso ter atenção para esse aspecto. Este ponto me parece um ponto crítico do modelo. Eu poderia, também, eu não estranharia a possibilidade, Presidente, de se falar, em princípio, da necessidade de alguma baliza ou parâmetro legal, mas, tendo em vista inclusive essas singularidades, não me parece inconveniente que instituições com essa dose de autonomia possam fazer a modelagem de seus tipos a fim de buscar uma maior efetividade. Mas a mim me parece - e acredito que há um esforço nesse sentido quando nós vemos, será debatido no caso do ProUni, inclusive a questão da lei complementar para fins de isenção ou imunidade, ou também das regras do Estatuto da Igualdade Racial -, mas, a mim me parece que, num país com tantas diversidades, e com tantas instituições dotadas de autonomia, aí as próprias universidades estaduais, federais e, também, as particulares, que estão submetidas a regras básicas, não seria estranho que houvesse pelo menos aquele tipo de lei moldura, de lei quadro, que permitisse balizar os critérios. Mas vamos de novo destacar: o modelo da UnB nas universidades federais tem a virtude e obviamente os eventuais defeitos de um modelo pioneiro feito sem paradigmas anteriores. Então, esse é um ponto importante, não se pode negar a importância de ações que levem a combater essa crônica desigualdade. Quando nós vemos os números espelhados, quando se fala na presença dos negros nas universidades públicas, e vemos quão diminuta é essa presença, certamente nós não podemos dizer que a fórmula eficaz é melhorar a escola pública. Mas para quando? Porque certamente, se nós fizermos esse discurso, obviamente nós estamos comprometendo gerações que estão nesse passo, já na transição da escola pública, já se candidatando ao vestibular. Claro que devemos melhorar as escolas públicas, claro que devemos trabalhar no que diz respeito - e há ações nesse sentido - a preparatórios vestibulares para determinados grupos, em suma, a ações singulares nesse sentido. Mas é óbvio que esse discurso também acaba sendo farisaico, porque ele não atende à questão imediata que está colocada. O que eu faço com o concluinte do segundo grau na escola pública que pretende ir para uma escola pública no nível universitário? Será que não é razoável, pelo menos, fazer esse teste ou desenvolver algum modelo institucional alternativo? Eu imagino que sim. Por isso, Presidente, ressaltando o cuidadoso voto do Ministro Lewandowski, mais uma vez, eu gostaria apenas de pontuar essas ressalvas quanto à fundamentação, tendo em vista que eu entendo realmente necessária a revisão desse modelo. Quer dizer, as próprias críticas que hoje se fazem indicam a necessidade de que esse modelo seja revisto. Nesse sentido, eu não chancelaria a fórmula como totalmente constitucional. Mas eu diria, na linha do que temos sustentado aqui, as chamadas sentenças intermédias, quer dizer: é uma lei ainda constitucional; é um modelo que pode tender, se for mantido, se não for revisto, para um quadro de inconstitucionalidade. Quando se apontam as distorções, e elas são sérias, tanto a possibilidade de cooptação, ricos que se aproveitam da cota, pervertendo, portanto, o sistema; ou decisões discricionárias ou até arbitrárias de servidores das universidades nesse órgão de seleção racial; já a ideia do tribunal racial evoca a memória de coisas estranhas, Presidente, não é? Enfim, não é um bom modelo, especialmente numa sociedade miscigenada; quer dizer, há uma dificuldade muito grande em relação a isso. Portanto, eu gostaria de fazer essas observações para que fique assente, pelo menos, a minha dúvida quanto à possibilidade de que esse modelo eventualmente seja estendido, vencido o seu prazo. Creio que, como eu disse, é um programa de dez anos que já está no seu oitavo ano de desenvolvimento e eu tenho dúvida de que esse modelo possa prosseguir e não ter questionamento se não houver os necessários aprimoramentos.” (pg. 166 de 233) Em seu voto escrito, o Ministro Gilmar Mendes, fazendo muitas ressalvas ao voto do relator – mas acompanhando-o no resultado –, esmiuçou ainda mais o problema do sistema instituído, destacando os aspectos relacionados à miscigenação do brasileiro e seus reflexos na autodeclaração, as razões pelas quais se adota o critério do fenótipo (da aparência) – pois essa seria a característica que leva à discriminação ou preconceito com os afrodescendentes –, a dúvida surgida quando se tem de classificar “os pardos mais claros” (tal como ocorre nestes autos) e, por fim, a razão pela qual sistemas de confirmação da autodeclaração são estabelecidos. “3. AÇÕES AFIRMATIVAS BASEADAS EXCLUSIVAMENTE NO CRITÉRIO DA “RAÇA”. A noção de “raça”, que insiste em dividir e classificar os seres humanos em “categorias”, resulta de um processo político-social que, ao longo da história, originou o racismo, a discriminação e o preconceito segregacionista. Como explica Joaze Bernardino, “a categoria raça é uma construção sociológica, que por esse motivo sofrerá variações de acordo com a realidade histórica em que ela for utilizada”. Em razão disso, uma pessoa pode ser considerada branca num contexto social e negra em outro, como ocorre com “alguns brasileiros brancos que são tratados como negros nos Estados Unidos” (BERNARDINO, Joaze. Levando a raça a sério: ação afirmativa e correto reconhecimento. In: Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 19-20). De toda forma, é preciso enfatizar que, enquanto em muitos países o preconceito sempre foi uma questão étnica, no Brasil o problema vem associado a outros vários fatores, dentre os quais sobressai a posição ou o status cultural, social e econômico do indivíduo. Como já escrevia nos idos da década de 40 do século passado Caio Prado Júnior, célebre historiador brasileiro, “a classificação étnica do indivíduo se faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas classes superiores, é mais função daquela posição que dos caracteres somáticos” (PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; 2006, p. 109). Isso não quer dizer que não haja problemas “raciais” no Brasil. O preconceito está em toda parte. Como dizia Bobbio, “não existe preconceito pior do que o acreditar não ter preconceitos” (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Unesp; 2002, p. 122). No debate sobre o tema, somos também levados a analisar a diferença existente entre a discriminação promovida pelo Estado e a discriminação praticada pelos particulares. Desde a abolição da escravatura – um dos fatos mais importantes da história de afirmação e efetivação dos direitos fundamentais no Brasil –, não há notícia de que o Estado brasileiro tenha se utilizado do critério racial para realizar diferenciação legal entre seus cidadãos. Esse é um fator de relevo que distingue o debate sobre o tema no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, existiu um sistema institucionalizado de discriminação racial estimulado pela sociedade e pelo próprio Estado, por seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em seus diferentes níveis. A segregação entre negros e brancos foi amplamente implementada pelo denominado sistema Jim Crow e legitimada durante várias décadas pela doutrina do “separados mas iguais” (separate but equal), criada pela famosa decisão da Suprema Corte no caso Plessy vs. Ferguson (163 U.S 537 1896). Com base nesse sistema legal segregacionista, os negros foram proibidos de frequentar as mesmas escolas que os brancos, comer nos mesmos restaurantes e lanchonetes, morar em determinados bairros, serem proprietários ou locatários de imóveis pertencentes a brancos, utilizar os mesmos transportes públicos, teatros, banheiros etc., casar com brancos, votar e serem votados e, enfim, de serem cidadãos dos Estados Unidos da América. Foi nesse específico contexto de cruel discriminação contra os negros que surgiram as ações afirmativas como uma espécie de mecanismo emergencial de inclusão e integração social dos grupos minoritários e de solução para os conflitos sociais que se alastravam por todo o país na década de 60. Assim, não se pode deixar de considerar que o preconceito racial existente no Brasil nunca chegou a se transformar numa espécie de ódio racial coletivo, tampouco ensejou o surgimento de organizações contrárias aos negros, como a Ku Klux Klan e os Conselhos de Cidadãos Brancos, tal como ocorrido nos Estados Unidos. Na República Brasileira, nunca houve formas de segregação racial legitimadas pelo próprio Estado. No Brasil, a análise do tema das ações afirmativas deve basear-se, sobretudo, em estudos históricos, sociológicos e antropológicos sobre as relações raciais em nosso país. Durante muito tempo, os sociólogos, antropólogos e historiadores identificaram, no processo de miscigenação que formou a sociedade brasileira, uma forma de democracia racial. O apogeu da tese da “democracia racial brasileira” se deu na década de 30, com o trabalho de Gilberto Freyre (Casa grande & Senzala). Na década de 50, a crença na democracia racial levou os representantes brasileiros na UNESCO (Artur Ramos e Luiz Aguiar Costa Pinto), após a 2ª Guerra Mundial, a propor o Brasil como exemplo de uma experiência bem-sucedida de relações raciais. A partir da década de 60, pesquisas financiadas pela UNESCO, e desenvolvidas por sociólogos brasileiros (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Oracy Nogueira, por exemplo), começaram a questionar a existência dessa dita democracia. Concluíram que, no fundo, o Brasil desenvolvera uma forma de discriminação “racial” escondida atrás do mito da “democracia racial”. Apontaram que, enquanto nos Estados Unidos desenvolveu-se o preconceito com base na origem do indivíduo (ancestralidade), no Brasil existia o preconceito com base na cor da pele da pessoa (fenótipo). Na década de 70, pesquisadores como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva afirmaram que o preconceito e a discriminação não estavam apenas fundados nas sequelas da escravatura, mas assumiram novas formas e significados a partir da abolição, estando relacionadas aos “benefícios simbólicos adquiridos pelos brancos no processo de competição e desqualificação dos negros”. Simultaneamente, os movimentos negros passaram a questionar a visão integracionista das lideranças negras brasileiras das décadas de 30, 40, 50 e 60. Foi na década de 90, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que o tema das ações afirmativas entrou na agenda do governo brasileiro, com a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra em 1995, com as propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) em 1996 e a participação do Brasil na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001, na África do Sul. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva aprofundou esse processo. Criou a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial, modificou o Sistema de Financiamento ao Estudante e criou o Programa Universidade para Todos, prevendo bolsas e vagas específicas para “negros”. Em 2003, o Conselho Nacional de Educação exarou as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Em 2010, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), destinado a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos da população negra, bem como o combate à intolerância étnica, nos termos do seu artigo 1º. A análise dessas considerações históricas e do que se produziu no âmbito da sociologia e da antropologia no Brasil nos leva até mesmo a questionar se o Estado brasileiro não estaria passando por um processo de abandono da ideia, muito difundida, de um país miscigenado e, aos poucos, adotando uma nova concepção de nação bicolor. Em 2005, o jogador de futebol Ronaldo – “O Fenômeno” –, presenciando as agressões racistas que jogadores negros estavam sofrendo nos gramados espanhóis, deu a seguinte declaração: “Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância. A solução é educar as pessoas”. Tal declaração gerou grande repercussão no Brasil e obrigou Ronaldo a explicar o que ele quis dizer: “Eu quis dizer que tenho pele mais clara, só isso, e mesmo assim sou vítima de racismo. Meu pai é negro. Não sou branco, não sou negro, sou humano. Sou contra qualquer tipo de discriminação”. Ali Kamel utiliza esse acontecimento como exemplo das mudanças que estariam ocorrendo na mentalidade brasileira. Alerta, dessa forma, que a crise gerada pela declaração do jogador é a prova de que estamos aceitando a tese da “nação bicolor”; que antes o discurso predominante era favorável à autodeclaração e que agora achamos que temos o direito de classificar as pessoas (KAMEL, Ali. Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 139-140). Utilizando outro exemplo do mundo futebolístico, Yvonne Maggie menciona história do clube Portuguesa Santista que, em excursão à África do Sul, em 1959, foi informado de que seus jogadores negros não poderiam participar de partida contra equipe local, de acordo com as leis do país. O time brasileiro, em uníssono, respondeu que não jogaria sob essas condições, situação que fez com que o cônsul do Brasil precisasse anunciar oficialmente a posição do Governo brasileiro no sentido de não admitir racismo e de não concordar com o regime do apartheid. O presidente Juscelino Kubitscheck enviou telegrama à África do Sul, manifestando desacordo com o regime, e o Brasil tornou-se o primeiro país fora da África a protestar contra o apartheid (fl. 1960). Para demonstrar a involução pela qual o sistema de miscigenação brasileira tem passado nos últimos tempos, Yvonne Maggie indica os perigos de, paulatinamente, criarem-se divisões entre “brancos” e “negros” em um país em que o povo já se vê misturado (p. 1957). O primeiro passo nesse sentido teria sido a Lei 10.639/2003 que instituiu o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira em todas as escolas do Brasil, públicas e privadas. Parecer do Ministério da Educação, que regulamenta as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e serve para orientar professores. O documento menciona em vários trechos que a “ideologia do branqueamento da população” deve ser combatida e que o “equívoco quanto a uma identidade humana universal” deve ser demonstrado aos alunos (Parecer CNE/CP 003/2004 - Conselho Nacional de Educação). Por mais que se questione a existência de uma “Democracia Racial” no Brasil, é fato que a sociedade brasileira vivenciou um processo de miscigenação singular. Nesse sentido, elucida Carlos Lessa que “O Brasil não tem cor. Tem todo um mosaico de combinações possíveis” (LESSA, Carlos. "O Brasil não é bicolor", In: FRY, Peter e outros (org.) Divisões Perigosas: Políticas raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 123). Na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), em 1976, os brasileiros se autoatribuíram 135 cores distintas. Tal fato demonstra cabalmente a dificuldade dos brasileiros de identificarem a sua cor de pele. Para Fátima Oliveira, “ser negro é, essencialmente, um posicionamento político, onde se assume a identidade racial negra. Identidade racial-étnica é o sentimento de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política” (OLIVEIRA, Fátima. Ser negro no Brasil: alcances e limites, In: Revista de Estudos Avançados, vol. 18, n.º 50. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. São Paulo: IEA. Janeiro/abril de 2004, p. 57-58.) As preocupações com as consequências da adoção de cotas raciais para o acesso à Universidade levaram cento e treze intelectuais brasileiros (antropólogos, sociólogos, historiadores, juristas, jornalistas, escritores, dramaturgos, artistas, ativistas e políticos) a redigir uma carta contra as leis raciais no Brasil. No documento, os subscritores alertam que “o racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça”. Sustentam que “as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada”. Defendem que existem outras formas de superar as desigualdades brasileiras, proporcionando um verdadeiro acesso universal ao Ensino Superior, menos gravosas para a identidade nacional, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares (“Cento e Treze cidadãos antiracistas contra as leis raciais”, assinado por cento e treze intelectuais brasileiros, entre eles, Ana Maria Machado, Caetano Veloso, Demétrio Magnoli, Ferreira Gullar, José Ubaldo Ribeiro, Lya Luft e Ruth Cardoso). 4. AS COTAS RACIAIS NA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA A Universidade de Brasília foi a primeira instituição de Ensino Superior federal a adotar um sistema de cotas raciais para ingresso por meio do vestibular. A iniciativa, baseada na autonomia universitária optou – segundo as informações prestadas pela UnB – pelo critério da análise do fenótipo do candidato: “os critérios utilizados são os do fenótipo, ou seja, se a pessoa é negra (preto ou pardo), uma vez que, como já suscitado na presente peça, é essa característica que leva à discriminação ou ao preconceito” (fl. 664). O programa de cotas da Universidade de Brasília decorre do “Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da UnB”, de 2004, que prevê ações para intensificar “um processo de integração racial, étnica e social no seio da sua população discente, atualmente extremamente elitizada” (item 2). O documento não especificou o modo como tais ações deveriam ser implementadas, mas propôs que, “para fins de acompanhamento do processo de integração racial, será introduzido o quesito cor, tanto por auto-classificação como segundo as categorias do IBGE, nas fichas de inscrição ao vestibular e nas fichas de registro dos candidatos aprovados” (item 3). Note-se, aí, uma sinalização do Plano de Metas para que o processo de seleção de cotistas a ser desenvolvido pela UnB levasse em consideração o critério da autoclassificação. Todavia, o projeto, ao ser executado, sob a direção da Fundação Centro de Seleção e de Promoção de Eventos, órgão da Universidade de Brasília responsável pela seleção para o vestibular, em parceria com a Comissão de Implementação de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da UnB, resolveu estabelecer critérios próprios para evitar “fraudadores raciais” (fl. 216). Para tanto, no primeiro concurso vestibular com cotas da UnB, em 2004, o procedimento adotado indicava que, no momento da inscrição, o candidato seria fotografado e deveria assinar uma declaração relativa aos requisitos para concorrer pelo sistema de cotas aos negros. A foto era então anexada ao pedido e avaliada por uma comissão, que decidia pela homologação ou não de sua inscrição como cotista. Após homologação do resultado, caso houvesse recurso, o candidato era submetido a entrevista pessoal (fl. 69). Já na inscrição para o primeiro concurso vestibular com cotas da UnB, a exigência de que candidatos que optaram por concorrer às vagas disponíveis aos negros fossem fotografados, gerou, por si só, situação segregacionista incomum na realidade brasileira e claramente simbólica de consequências que podem resultar de tal sistema: a existência de filas distintas para negros e não negros. Sobre isso: “A vestibulanda Vanderlúcia Fonseca declarou: ‘As cotas já são um bom começo. Só acho constrangedor ter que ser fotografada para provar minha cor. Já tenho isso registrado em meus documentos.’ (...) Já Ana Maria Negrêdo frisou diretamente as diferenças de procedimentos: ‘Acho que os brancos também deveriam tirar foto. Tinha que ser igual para todo mundo. Por que só a gente tem de meter a cara na câmera?’ (...) O estabelecimento de filas separadas para inscrição dos ‘negros’ chamou a atenção. De modo defensivo, declarou o coordenador das inscrições, Neivion Lopes, quanto aos guichês apartados segundo raça: ‘É separado porque precisamos de espaço reservado para fazer as fotos’. Uma senhora teria resmungado baixinho: ‘Isso é constrangedor’. (fl. 218). De fato, tal situação acabou por ser constrangedora, já que, no Brasil, inexistiu política semelhante à de outros países, como os Estados Unidos. Não houve, por aqui, legislação segregacionista que determinasse, por exemplo, a separação entre brancos e negros em ambientes do convívio societário. De qualquer forma, parece ser agressivo que não baste o candidato se considerar e se autodeclarar negro, mas ter sua condição submetida à avaliação de uma comissão sobre a qual pouco se sabe, com base em uma foto. Atualmente, de acordo com edital do último concurso vestibular realizado pela UnB, em 2012, o processo inclui submissão dos candidatos declarados negros a entrevista pessoal que deverá ocorrer após a aplicação das provas, na qual o candidato deverá apresentar documento original de identidade. Sua declaração como “negro” ou “pardo” continua a ser analisada por uma banca composta por docentes, representantes de órgãos de direitos humanos e de promoção da igualdade racial e militantes do movimento negro do Brasil. O critério utilizado para deferir ou não ao candidato o direito a concorrer dentro da reserva de cotas raciais gera alguns questionamentos importantes. Afinal, qual é o fenótipo dos “negros” (“pretos” e “pardos”) brasileiros? Quem está técnica e legitimamente capacitado a definir o fenótipo de um cidadão brasileiro? Essas indagações não são despropositadas se considerarmos alguns incidentes ocorridos na história da política de cotas raciais da UnB. Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos relatam que o procedimento adotado pela UnB gerou constrangimentos e dilemas de identidade entre os candidatos: “Os responsáveis pelo vestibular da UnB por diversas ocasiões reiteram que a meta da comissão era o de analisar as características físicas, visando identificar traços da raça negra. Esse objetivo gerou constrangimentos diversos e dilemas identitários de não pouca monta entre os candidatos ao vestibular, devido às dúvidas de se os critérios seriam mesmo o de aparência física (negra) ou de (afro-)descendência. A candidata Ana Paula Leão Paim, a princípio na dúvida sobre se se declararia “negra”, foi convencida pelo argumento da mãe, que lhe disse que sua ‘tataravó era escrava’. Contudo, ainda assim, Ana Paula estava preocupada pois, segundo ela, ‘pela fotografia não dá para analisar a descendência’. Outra candidata, Elizabete Braga, que ‘não se intimidou com a fotografia’, comentou: ‘Minha irmã não seria considerada negra, por exemplo. Ela é filha de outro pai, tem a pele mais clara e o cabelo mais liso’ (Borges, 2004). Ricardo Zanchet, um candidato que se declarou ‘negro’, ainda que ‘com a pele clara, cabelo liso e castanho... nem de longe lembra[ndo] um negro’, e cuja classificação não foi aceita pela comissão, afirmou: ‘Vou levar a certidão de nascimento de meu avô e mostrar a eles... Se meu avô e minha bisavó eram negros, eu sou fruto de miscigenação e tenho direito’ (Paraguassú, 2004). (...) Se a primeira etapa do trabalho de identificação racial da UnB foi conduzida pela equipe da ‘anatomia racial’, a segunda foi conduzida por um comitê de ‘psicologia racial’. Trinta e quatro dos 212 candidatos com inscrições negadas na primeira etapa entraram com recurso junto à UnB. Uma nova comissão foi formada ‘por professores da UnB e membros de ONGs’, que exigiu dos candidatos um documento oficial para comprovar a cor. Foram ainda submetidos à entrevista (gravada, transcrita e registrada em ata) na qual, entre outros tópicos, foram questionados acerca de seus valores e percepções: ‘Você tem ou já teve alguma ligação com o movimento negro? Já se sentiu discriminado por causa da sua cor? Antes de se inscrever no vestibular, já tinha pensado em você como um negro?’ (Cruz, 2004). O candidato Alex Fabiany José Muniz, de 23 anos, um dos beneficiários da nova rodada da seleção das cotas, conseguiu um certificado comprovando que era pardo ao levar a certidão de nascimento e uma foto dos pais. Conforme seu depoimento, ‘a entrevista tem um cunho altamente político... perguntaram se eu havia participado de algum movimento negro ou se tinha namorado alguma vez com alguma mulata’ (Darse Júnior, 2004).” (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 219-221 dos autos) Em 2004, o irmão da candidata Fernanda Souza de Oliveira, filho do mesmo pai e da mesma mãe, foi considerado “negro”, mas ela não. Em 2007, os gêmeos idênticos Alex e Alan Teixeira da Cunha foram considerados de “cores diferentes” pela comissão da UnB. Em 2008, Joel Carvalho de Aguiar foi considerado “branco” pela Comissão, enquanto sua filha Luá Resende Aguiar foi considerada “negra”, mesmo, segundo Joel, a mãe de Luá sendo “branca”. A adoção do critério de análise do fenótipo para a confirmação da veracidade da informação prestada pelo vestibulando suscita problemas graves. De fato, a maioria das universidades brasileiras que adotaram o sistema de cotas ‘raciais’ seguiram o critério da autodeclaração associado ao critério de renda. A Comissão de Relações Étnicas e Raciais da Associação Brasileira de Antropologia (Crer-ABA), em junho de 2004, manifestou-se contrária ao critério adotado pela UnB, nos seguintes termos: “A pretensa objetividade dos mecanismos adotados pela UnB constitui, de fato, um constrangimento ao direito individual, notadamente ao da livre autoidentificação. Além disso, desconsidera o arcabouço conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social e antropologia biológica. A Crer-ABA entende que a adoção do sistema de cotas raciais nas Universidades públicas é uma medida de caráter político que não deve se submeter, tampouco submeter aqueles aos quais visa beneficiar, a critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas modalidades de exceção atentatória à livre manifestação das pessoas.” (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 228 dos autos) Defendendo a adoção do critério da autodeclaração no lugar da análise do fenótipo, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos concluem que: “A comissão de identificação racial da UnB operou uma ruptura com uma espécie de ‘acordo tácito’ que vinha vigorando no processo de implantação do sistema de cotas no país, qual seja, o respeito à auto-atribuição de raça no plano das relações sociais. A valorização desse critério, próprio das sociedades modernas e imprescindível em face da fluidez racial existente no Brasil, cai por terra a partir das normas estabelecidas pela UnB.” (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 231 dos autos.) Ademais, é de causar estranheza que detalhes sobre o procedimento adotado pela comissão não cheguem a ser divulgados. Sabe-se que, no primeiro vestibular com cotas, seus integrantes tiveram como tarefa analisar mais de 4 mil fotografias (fl. 208) em um curto prazo. Dos 4.385 candidatos autodeclarados negros, 212 não tiveram suas inscrições homologadas. O baixo número de alunos que não tiveram seu pedido aprovado deve-se à “perspectiva inclusiva da banca examinadora”, de acordo [com] o então diretor acadêmico do Cespe, Mauro Luiz Rabelo (fl. 216). Ao revelar um pouco do procedimento adotado, indicou que bastava um membro do grupo considerar o candidato negro ou pardo para que este tivesse sua inscrição deferida. Ainda comentou o que considerou uma das maiores dificuldades enfrentadas pela comissão: “O grupo observou traços e tom da pele... A dúvida surgiu entre os pardos mais claros. Tais casos foram discutidos em conjunto.” (fl. 216) Tal declaração serve para ilustrar que essa espécie de avaliação é complexa e sutil e não pode ser designada a uma comissão sigilosa e sem critérios objetivos. Inclusive porque, do modo como a sociedade brasileira encontra-se hoje estruturada, buscar associar determinadas características genéticas a ancestrais de uma raça específica e, com isso, estabelecer quem é ou não beneficiário de uma ação afirmativa que leve em consideração esse critério, é praticamente impossível. Em estudo sobre o tema, o Prof. Sérgio D.J. Pena indica que “A cor corresponde no Brasil ao termo em inglês race é buscada em uma avaliação fenotípica complexa, que leva em conta a pigmentação da pele e dos olhos, o tipo de cabelo e a forma do nariz e dos lábios. (p.161) Todavia, a correlação entre cor e ancestralidade é pobre. O genoma brasileiro é um verdadeiro mosaico, altamente variável e individual, formado pela contribuição de três raízes ancestrais – ameríndia, europeia e africana. E conclui que, atualmente, a maioria dos brasileiros possui simultaneamente grau significativo de influência genética dessas três raízes, de modo que passa não fazer sentido falar em “populações” de brasileiros brancos ou de brasileiros negros (Da inexistência das Raças e suas consequências para a sociedade brasileira. Prof. Dr. Sérgio D. J. Pena, nos autos p. 166). Ademais, causa perplexidade cogitar que espécie de deliberação é feita entre os integrantes da Comissão de Seleção da UnB para avaliar se uma pessoa é ou não negra. Qual seria a distinção entre um pardo mais escuro e um mais claro, já que, de acordo com declarações trazidas aos autos, os pardos claros seriam os mais difíceis de serem identificados. Quais os critérios de tão tênue questão? Não se duvida a respeito da premente necessidade de um programa de ação afirmativa para a reserva de vagas que beneficie grupos sociais específicos. Um programa como esses, não obstante, deve ser criteriosamente elaborado, estabelecendo um sistema de normas e procedimentos que permitam a aplicação da política de forma adequada para os fins a que ela se propõe. Enfim, a política de ação afirmativa deve ser proporcional ao objetivo almejado. No caso da UnB, fica difícil vislumbrar a adequação da política. Criou-se uma comissão de avaliação com poderes para desqualificar e assim revogar a manifestação de vontade do candidato autodeclarado negro. Não se pode negar, portanto, que a existência desse tipo de comissão avaliadora acaba por anular a autodeclaração alçada a critério base desse modelo. Assim como o critério da autodeclaração é demasiado subjetivo se adotado de forma exclusiva – tal como reconhecido pelos próprios defensores da política de cotas da UnB –, a sua conjugação com uma comissão avaliadora torna o modelo incongruente. Ao fim e ao cabo, a existência de tal comissão acaba por inserir o critério da hetero-identificação como a base do modelo de cotas da UnB; isto é, no final das contas, quem terá o poder de dar a palavra final sobre a condição racial do indivíduo será uma comissão e não o próprio indivíduo afetado. Um critério de autodeclaração que se transmuda em hetero-identificação. O modelo é, inegavelmente, incongruente e ineficaz nesse sentido. Ademais, há certo consenso quanto à necessidade de que os programas de ações afirmativas sejam limitados no tempo. Trata-se de situação denominada pela doutrina americana de sunset clauses, ou seja, a necessidade de que determinações sobre algumas matérias, como política pública, contenham regra que preveja que a medida adotada deixará de existir quando seus objetivos sejam atingidos. Não se espera, assim, que um sistema de ação afirmativa tenha validade por tempo indeterminado, mas apenas enquanto for necessário para atingir a finalidade pretendida. Nesse sentido, o “Plano de Metas para a integração social, étnica e racial da Universidade de Brasília” prevê a disponibilidade da reserva de vagas pelo período de 10 anos apenas (fl. 98). Cabe questionar seriamente, no entanto, se esse prazo será observado ou se será estendido indefinidamente no tempo. Estamos hoje com 8 anos de implementação do programa e, portanto, faltam apenas 2 anos para o seu encerramento, conforme o plano inicial. Em estudo sobre o tema, Thomas Sowell indica que os próprios autores de programas de ação afirmativa dificilmente têm coragem de defender que sistemas de cotas devem ser adotados como princípio ou aspecto permanente da sociedade e frisa que se faz “um grande esforço para chamá-las de “provisórias”, mesmo quando, de fato, tais preferências acabem não só permanentes, mas ampliadas.” (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 2, 2004). É o que aconteceu, por exemplo, na Índia, em que foram os próprios líderes da casta dos intocáveis que propuseram o prazo de dez anos para o recebimento dos benefícios, com a finalidade de evitar conflito social. Este programa foi instituído em 1949 e a reserva continua até hoje em vigor. (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 3, 2004). Um programa de ação afirmativa que dê preferência a determinado segmento da sociedade tende a se perpetuar, caso não se tenha bem claro seu objetivo. “Um programa temporário para eliminar uma condição secular é quase uma contradição em termos. A igualdade de oportunidade pode ser conseguida em um tempo plausível, mas isso é totalmente diferente de eliminar a desigualdade de resultados. (...) As pessoas são diferentes, e isto é assim há séculos (...). Qualquer política “temporária” cuja duração é definida pelo objetivo de se conseguir alguma coisa que jamais foi antes alcançada em lugar nenhum do mundo, seria melhor caracterizada como eterna”, no entendimento de Sowell. (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 7, 2004). Desse modo, o programa de ação afirmativa não objetiva a eliminação completa de desigualdades, mas o aumento da igualdade de oportunidades em um segmento específico. Exatamente por isso tem condições e deve ser estabelecido por um período que pareça razoável, de acordo com os dados disponíveis, para contrabalançar situações entendidas como desfavoráveis. Para tanto, tão importante quanto definir prazos e metas é submeter o programa a avaliações empíricas rigorosas e constantes. As instituições que adotam o sistema de cotas devem realizar avaliações periódicas sobre o desempenho dos seus alunos cotistas, não apenas em relação a notas, mas a eventuais dificuldades por eles enfrentadas. Também deve ser ouvido o corpo docente, inclusive para verificar como os professores avaliam os cotistas e evitar possíveis tratamentos diferenciados que visem evitar reprovação excessiva de alunos cotistas – a denominada “nota afirmativa”, em programas da União Soviética ou os “pontos a favor”, no sistema adotado na Índia (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 4, 2004). De qualquer forma, é evidente que essas avaliações devem ser realizadas de acordo com métodos transparentes e apresentadas de forma clara a toda sociedade. Não se trata, aqui, de não respeitar o sigilo das notas de alguns alunos, mas de apresentar relatórios do desempenho geral dos cotistas, inclusive para que eventuais falhas detectadas no processo sejam corrigidas e para que se possa acompanhar se o programa de ação afirmativa tem logrado – e em que velocidade – atingir sua finalidade. Na qualidade de medidas de emergência ante a premência de solução dos problemas de discriminação racial, as ações afirmativas não constituem subterfúgio e, portanto, não excluem a adoção de medidas de longo prazo, como a necessária melhora das condições do Ensino Fundamental no Brasil.” (pg. 179 de 233) Cabe repisar esse ponto da manifestação do ministro, pois é a dúvida que o autor coloca nos autos: “Ademais, causa perplexidade cogitar que espécie de deliberação é feita entre os integrantes da Comissão de Seleção da UnB para avaliar se uma pessoa é ou não negra. Qual seria a distinção entre um pardo mais escuro e um mais claro, já que, de acordo com declarações trazidas aos autos, os pardos claros seriam os mais difíceis de serem identificados. Quais os critérios de tão tênue questão?” Observa-se, portanto, que já no distante ano de 2009 a discussão causava perplexidade e, mesmo assim, apesar dos problemas apontados, o ministro acabou por acompanhar o relator, restando o julgado ementado nos seguintes termos: “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.” (ADPF 186, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009) Em 09 de junho de 2014, sobreveio, então, a Lei 12.990, cujo art. 2º, parágrafo único estabeleceu a possibilidade de instauração de um procedimento de controle sobre a autodeclaração: “Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.” Em razão da polêmica antes mencionada, muitas decisões judiciais passaram a afastar a aplicabilidade da lei, resultando daí no ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, que reconheceu não somente a constitucionalidade da lei, mas do próprio critério de seleção aqui questionado (heteroidentificação), conforme se vê da sua ementa: “Direito Constitucional. Ação Direta de Constitucionalidade. Reserva de vagas para negros em concursos públicos. Constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Procedência do pedido. 1. É constitucional a Lei n° 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. 1.1. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente. 1.2. Em segundo lugar, não há violação aos princípios do concurso público e da eficiência. A reserva de vagas para negros não os isenta da aprovação no concurso público. Como qualquer outro candidato, o beneficiário da política deve alcançar a nota necessária para que seja considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o cargo em questão. Além disso, a incorporação do fator “raça” como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da eficiência, contribui para sua realização em maior extensão, criando uma “burocracia representativa”, capaz de garantir que os pontos de vista e interesses de toda a população sejam considerados na tomada de decisões estatais. 1.3. Em terceiro lugar, a medida observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão. A existência de uma política de cotas para o acesso de negros à educação superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. Isso porque: (i) nem todos os cargos e empregos públicos exigem curso superior; (ii) ainda quando haja essa exigência, os beneficiários da ação afirmativa no serviço público podem não ter sido beneficiários das cotas nas universidades públicas; e (iii) mesmo que o concorrente tenha ingressado em curso de ensino superior por meio de cotas, há outros fatores que impedem os negros de competir em pé de igualdade nos concursos públicos, justificando a política de ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014. 2. Ademais, a fim de garantir a efetividade da política em questão, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação (e.g., a exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso), desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa. 3. Por fim, a administração pública deve atentar para os seguintes parâmetros: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas. 4. Procedência do pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. (ADC 41, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 16-08-2017 PUBLIC 17-08-2017) Observa-se, portanto, que a opção escolhida, ainda que imperfeita, foi reconhecida como constitucional, valendo o destaque das manifestações dos ministros acerca da constitucionalidade do critério escolhido (autodeclaração + heteroidentificação) pelo legislador, embora muitos problemas quanto à aplicabilidade da lei tenham sido levantados, principalmente no que toca ao controle das fraudes, motivação das decisões e de como seria feita essa classificação. O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – “... Quanto à questão da autodeclaração, essa é uma das questões mais complexas e intrincadas em uma política de ação afirmativa, porque, evidentemente, você deve respeitar as pessoas tal como elas se autopercebem. Assim, pode ser que alguém que eu não perceba como negro se perceba como negro, ou vice-versa. Essa é uma questão semelhante à que enfrentamos aqui na discussão sobre transgêneros e de acesso a banheiro público. Às vezes, a pessoa tem fisiologia masculina, mas um psiquismo feminino ou vice-versa. E, nesse caso, obrigar alguém que se perceba como mulher a frequentar um banheiro masculino é altamente lesivo à sua dignidade, ao seu direito fundamental. Assim, como regra geral, deve-se respeitar a autodeclaração, como a pessoa se percebe. Porém, no mundo real, nem sempre as pessoas se comportam exemplarmente, e há casos - e, às vezes, eles se multiplicam - de fraude. Portanto, o que a Lei 12.990 faz? Ela estabelece, como critério principal, a autodeclaração, mas permite que, no caso de uso irregular, inveraz, desonesto da autodeclaração, haja algum tipo de controle. É o que diz o parágrafo único do artigo 2º: "Art. 2º, Parágrafo único - Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis." Assim, a meu ver, não é incompatível com a Constituição, respeitadas algumas cautelas, que se faça um controle heterônomo, sobretudo, nos casos em que haja fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração. A hipótese de controle de fraudes é para evitar, de um lado, que o candidato tente fraudar a reserva de vagas e, de outro lado, para evitar que a Administração tente fraudar a política, por exemplo, abrindo concursos sem reservar as vagas. (Pg. 24 de 186) No desenvolvimento do seu voto escrito, o ministro traz fundamentos que vão ao encontro daqueles já expostos no julgamento da ADPF 186: “Parte III O CONTROLE DE FRAUDES 63. A fim de garantir a efetividade da política de ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes. As burlas à reserva de vagas para negros nos concursos públicos podem se dar, basicamente, de duas formas. De um lado, por candidatos que, apesar de não serem beneficiários da medida, venham a se autodeclarar pretos ou pardos apenas para obter vantagens no certame. De outro lado, a política também pode ser fraudada pela própria Administração Pública, caso a política seja implementada de modo a restringir o seu alcance ou a desvirtuar os seus objetivos. VII. FRAUDES PELOS CONCORRENTES: CRITÉRIOS DE DEFINIÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS 64. Não existem raças humanas sob o ponto de vista genético. As diferenças que separam brancos e negros no aspecto do genótipo são insignificantes e puramente superficiais. Como é natural, essa descoberta significativa da ciência não acabou com o racismo enquanto fenômeno social; apenas serviu para deixar ainda mais claro o quanto essa forma de menosprezo ao outro é cruel, arbitrária e autointeressada. Essa questão já foi objeto de manifestação por parte do STF, que rejeitou a ideia de que a inexistência biológica de raças humanas teria tornado insubsistente o racismo e as demais formas de preconceito baseado no fenótipo ou em fatores correlatos (61). Feita a observação, é preciso reconhecer que a definição de critérios objetivos para identificar os beneficiários de eventuais programas de cotas de viés racial esbarra em dificuldades variadas. (61) STF, HC 82.424, Rel. Min. Moreira Alves, Rel. p/ o acórdão Min. Maurício Corrêa: “(...) Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.” 65. Dentre todas as opções, a que parece menos defensável é o exame do genótipo, uma vez que o preconceito no Brasil parece resultar, precipuamente, da percepção social, muito mais do que da origem genética. A partir desse ponto, porém, a eleição de determinado critério parece envolver avaliações de conveniência e oportunidade, sendo razoável que sejam levados em conta fatores inerentes à composição social e às percepções dominantes em cada localidade. O sistema da autodeclaração, que tem sido adotado com maior frequência no país, apresenta algumas vantagens, sobretudo no que diz respeito à simplificação dos procedimentos e ao fato de se privilegiar a autopercepção, a partir do fenótipo – das características exteriores do organismo. Ela encoraja, ainda, os indivíduos a assumirem a sua raça, contribuindo para o reconhecimento dos negros na sociedade brasileira. Há, todavia, problemas associados a esse modelo. Em especial, o risco de oportunismo e idiossincrasia, que poderia levar ao parcial desvirtuamento da política pública. Esse fato foi apontado pelo Professor Daniel Sarmento, que afirmou que “é evidente que a inexistência de mecanismos de controle abre espaço para autodeclarações oportunistas, da parte de pessoas que não se consideram efetivamente pertencentes a grupos raciais historicamente discriminados”. 66. Atenta aos méritos e deficiências do sistema de autodeclaração, a Lei nº 12.990/2014 definiu-o como critério principal para a definição dos beneficiários da política. Nos termos de seu artigo 2º, determinou que “[p]oderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. Porém, instituiu norma capaz de desestimular fraudes e punir aqueles que fizerem declarações falsas a respeito de sua cor. Nesse sentido, no parágrafo único do mesmo artigo 2º, estabeleceu que “[n]a hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis”. 67. Para dar concretude a esse dispositivo, entendo que é legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação para fins de concorrência pelas vagas reservadas, para combater condutas fraudulentas e garantir que os objetivos da política de cotas sejam efetivamente alcançados. São exemplos desses mecanismos: a exigência de autodeclaração presencial, perante a comissão do concurso; a exigência de fotos; e a formação de comissões, com composição plural, para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração. A grande dificuldade, porém, é a instituição de um método de definição dos beneficiários da política e de identificação dos casos de declaração falsa, especialmente levando em consideração o elevado grau de miscigenação da população brasileira. 68. É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos Lei nº 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial. ... (pg. 61 de 186) O Ministro Alexandre de Moraes também levantou os mesmos problemas destacados pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADPF 186, sugeriu a interposição de uma fase de análise documental, posterior à fase de autodeclaração, para, só então, se necessário, chegar-se à fase de heteroidentificação. No entanto, concluiu pela constitucionalidade da política tal como estabelecida, acompanhando, junto com os demais ministros, o relator. O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: “... A grande variedade combinatória de elementos étnico-raciais é refletida nas variações observadas em pesquisas que utilizam padrões classificatórios diferentes, conforme dividam o universo avaliado em negros e brancos; pretos, pardos e brancos; ou outras classificações. Esse tipo de inconsistência foi detectada pela literatura científica produzida a respeito do tema, como no seguinte estudo: Ao sistematizar os argumentos de eminentes cientistas sociais contra as cotas raciais, contidos na segunda parte da antologia Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo (Fry et al., 2007), Feres Júnior (2008, p. 58) constatou que cerca de um terço dos 50 textos publicados no livro manifestavam contra as cotas o argumento de “não ser possível separar as pessoas com base na raça no Brasil”. A dificuldade de se adotar procedimentos classificatórios objetivos foi o sétimo argumento mais prevalente entre os vinte e dois motivos mobilizados pelos autores contra as cotas raciais. A dificuldade de identificação dos beneficiários também se torna evidente ao examinarmos a literatura relacionada. Por um lado, pode-se utilizar o argumento de que os sujeitos de direitos, geneticamente falando, corresponderiam a 87% das pessoas que são descendentes de africanos (Pena; Bortolini, 2004). Isso corresponderia a 166 milhões de pessoas pelo censo de 2010. Por outro lado, o percentual de pessoas que se autodeclaram como pretas (7,6%) ou pardas (43,1%) corresponde a 50,7%. Além disso, há evidências demonstrando a ambiguidade das medidas de raça ou cor no Brasil quando se utilizam diferentes estratégias de coleta da informação racial (Bailey; Loveman; Muniz, 2013; Bailey; Telles, 2006; IBGE, 2011; Loveman; Muniz; Bailey, 2012; Simões; Jeronymo, 2007; Telles; Lim, 1998). Muniz (2012), por exemplo, demonstra que somente metade dos entrevistados em uma pesquisa de representatividade nacional se classifica ou é classificada dentro da mesma categoria racial quando se adota quatro metodologias distintas de coleta da informação racial. A inconsistência classificatória racial, a dificuldade de se identificar beneficiários legítimos das cotas, seria assim uma das barreiras técnicas à implantação de tais ações afirmativas. Mesmo que esta barreira esteja superada desde 2012, a partir da lei de cotas federal, as polêmicas em torno de fraudes classificatórias ainda continuam. Além disso, seria possível argumentar que, diante da incerteza de cor – em função de “fraudes” de declaração ou diferentes métodos de classificação –, a desigualdade racial também poderia ser variável. Como medidas de desigualdade dependem de como os recursos são distribuídos entre pessoas pertencentes a diferentes grupos raciais, elas podem se alterar: 1) diante de uma redistribuição de recursos entre grupos fixos; 2) diante de uma redistribuição de grupos (ex. reclassificação racial) entre recursos; ou 3) ambos. No caso brasileiro, como a raça é uma variável volátil, o segundo tipo de dinâmica entra em vigor, fazendo com que a desigualdade racial seja causa, mas não necessariamente consequência exclusiva, das políticas de ação afirmativa. (MUNIZ, Jerônimo. Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades. Civitas, 16(2), e62-e86. 2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2016.2.23097) Todavia, o mesmo trabalho conclui que as variações nas classificações não elidem a validade do modelo de recorte racial, pois em todos os cenários avaliados as políticas ainda beneficiariam pessoas em situação de vulnerabilidade: De fato, ao se utilizarem quatro metodologias de classificação racial empregadas pela PESB 2002, cerca de metade dos pardos não se classificam (ou são classificados) como tais em todas elas. São os autodenominados pretos, entretanto, os que têm as maiores chances de serem racialmente inconsistentes. Esta inconsistência classificatória teria então alguma consequência sobre a desigualdade? A distribuição de anos de estudo e o consumo de bens e serviços seria afetada por esta inconsistência? (…) por um lado os inconsistentemente classificados são responsáveis por uma parcela significativa das desigualdades totais e interraciais de escolaridade e consumo, mas, por outro, se os mesmos fossem desconsiderados do computo das desigualdades totais estas pouco se alterariam, apesar do aparente aumento relativo das desigualdades inter-raciais (Gráfico 5). A variabilidade da desigualdade diante da incerteza classificatória racial não deve, portanto, continuar a fazer parte da “postura obscurantista” (Feres Júnior, 2008, p. 72) daqueles que costumam utilizá-la como parte do argumento especulativo contra ações afirmativas baseadas em cotas raciais. Este artigo esclarece que em pelo menos duas dimensões da estratificação social entre as raças, educação e consumo, há evidência para se rechaçar a relevância da taxonomia para o nosso entendimento ou mensuração das desigualdades populacionais, ainda que, paradoxalmente, uma parcela considerável destas mesmas desigualdades seja devida àqueles cuja a cor é incerta. (MUNIZ, Jerônimo. Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades. Civitas, 16(2), e62-e86. 2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289. 2016.2. 23097) A passagem que se vem de referir é prova de que, embora as dificuldades inerentes à aferição do componente étnico-racial existam, dada a ampla zona de incerteza envolvida, elas por certo não invalidam a alternativa por ações afirmativas de recorte racial. Todavia, elas abrem margem para fraudes, realidade documentada nos precedentes trazidos pela requerente. Trata-se de problema alarmante, que, se não combatido adequadamente, pode vir a significar o sacrifício da própria finalidade das ações afirmativas, privilegiando oportunistas que não deveriam ser abrangidos pela reserva de vagas, em detrimento daqueles que fazem jus a concorrer a ela. Surge, assim, a necessidade de encontrar a melhor abordagem para garantir que os processos seletivos alcançados pela Lei 12.990/14 sejam aplicados de modo a preservar a dignidade pessoal dos candidatos, isto é, permitindo que eles expressem sua convicção identitária livremente, mas sem estimular declarações infundadas na realidade, a ponto de comprometer os fundamentos dessa relevante espécie de ação estatal. Para equilibrar essas perspectivas, o ato normativo impugnado adota um ponto de largada absolutamente razoável, ao determinar que a concorrência às vagas reservadas obedecerá, de início, ao critério da autodeclaração (seguindo classificação adotada pelo IBGE), que é acolhido pela comunidade jurídica internacional como modelo preferencial. Mas a própria Lei 12.990/14, no seu art. 2º, § único, prevê etapa complementar de classificação, a se instaurar em caso de constatação da falsidade da declaração, prescrevendo que ela pode resultar na eliminação do concurso, bem como na aplicação de outras penalidades cabíveis. Trata-se de sábia abertura a um procedimento corretivo, indispensável para viabilizar a aplicação legítima das ações afirmativas. No julgamento da ADPF 186, o voto-condutor proferido pelo Min. RICARDO LEWANDOWSKI apontava para possíveis soluções, considerando aceitáveis tanto aquelas que se bastassem com a autodeclaração, quanto a previsão de modelos mistos, caracterizados por fases de checagem, por heterodeclaração: ... Sua Excelência reputou viável, inclusive, a formação de um comitê de avaliação, encarregado de proceder à veracidade das declarações dos candidatos. A meu ver, ao determinar que “Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis” (art. 2º, § único) a Lei 12.990/14 foi categórica ao exigir uma cautela para além da mera autodeclaração, impondo a realização de um procedimento de verificação da idoneidade das afirmações dos candidatos. O que a lei não estabelece – e que pode ensejar alguma disceptação – é como o Poder Público deverá se organizar para constatar e remediar eventuais falsidades. Durante os últimos anos, as universidades que aplicam sistemas de cotas com segmentação racial em seus vestibulares têm adotado as mais diversas fórmulas para evitar fraudes, experiências que certamente poderão ser utilizadas para subsidiar a formação de um padrão a ser aplicado nacionalmente. De qualquer modo, parece fora de dúvida que, para preservar da melhor maneira possível a dignidade dos candidatos, evitando maiores constrangimentos, o ideal é que o processo de verificação da autenticidade da declaração privilegie, inicialmente, registros documentais capazes de corroborar a afirmação dos candidatos. Isso pode ser providenciado pela apresentação de fotografias ou até mesmo por documentos públicos que assinalem sinais étnico-raciais referentes aos candidatos e, também, a seus respectivos genitores. Segundo Hédio Silva Júnior, especialista no tema, há uma série de documentos públicos que ostentam informações relevantes para solver dúvidas sobre a realidade étnico-racial: (…) em pelo menos sete documentos públicos os brasileiros são classificados racialmente com base na cor da pele, são eles: 1. Cadastro do alistamento militar; 2. Certidão de nascimento (cor era assinalada até 1975); 3. Certidão de óbito; 4. Cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário (incluindo boletins de ocorrência e inquéritos policiais); 5. Cadastro geral de empregados e desempregados. 6. Cadastros de identificação civil – RG (SP, DF, etc.); 7. Formulário de adoção de varas da infância e adolescência. (SILVA JR., HÉDIO. Documentos públicos como prova de pertencimento racial, 2013. Disponível em http://www.afropress.com/post.asp?id=15523. Acesso em 8/5/2017) Portanto, deve ser oportunizado aos candidatos optantes por concorrer no sistema de vagas reservadas a apresentação de documentos capazes de comprovar a declaração por eles subscritas. Apenas se a análise desses documentos se revelar insuficiente é que deverá ser acionada a alternativa mais invasiva, consistente em convocação para entrevista presencial, em que o candidato poderá ser indagado sobre os elementos que materializam a sua concepção de pertencimento. Diante da necessidade de manter a fidelidade teleológica das ações afirmativas de recorte racial, entendo ser relevante que a Corte estabeleça interpretação conforme à Constituição do art. 2º, § único da Lei 12.990/14, para fixar que (a) é mandatória a realização de fase apuratória da veracidade das declarações dos candidatos interessados em concorrer às vagas reservadas aos negros; e (b) nesse procedimento, deve ser priorizada a avaliação de natureza documental, fundada em fotografias e documentos públicos, figurando a entrevista como opção residual. Ante o exposto, o voto é pela procedência do pedido, declarando a constitucionalidade da Lei 12.990/14, fixando interpretação conforme do seu art. 2º, § único, nos termos acima enunciados. (pg. 79 de 186) O Ministro Edson Fachin, ao citar doutrina sobre o assunto, discorreu sobre o problema da motivação (ponto aqui trazido à discussão), mas acabou, também, concluindo no mesmo sentido do relator, acompanhando-o, inclusive assentando a necessidade de estabelecimento de mecanismos de controle de fraudes. O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: ... A questão, então, passa a ser a forma pela qual se poderia fazer o heterorreconhecimento. Em recente obra sobre o tema, Edilson Vitorelli bem discorreu sobre o problema: “A pior parte da experiência do heterorreconhecimento é que, embora tenha criado juízes para avaliar a raça, ela não respondeu à pergunta que havia ficado aberta, acerca do critério que essas pessoas devem aplicar. Todos os editais com previsão de heterorreconhecimento trouxeram previsão genérica do que faria alguém ser considerado negro, aludindo, por exemplo, a “traços fenotípicos”, sem dizer quais, ou não trouxeram critério algum. A teoria do Direito Administrativo não permitiria sequer atribuir a tais atos o adjetivo de discricionários, dada a ausência de limites legais. A avaliação racial foi estabelecida nos editais como ato completamente arbitrário da comissão encarregada. Os absurdos foram, em curto prazo, descobertos pela imprensa: gêmeos univitelinos, um considerado negro e outro não, a filha de um pai negro e mãe branca foi aceita como cotista e o pai, recusado, dentre outros. É evidente que, no Brasil, a zona de incerteza para se definir quem é negro e quem não é, com base na observação da cor da pele, será consideravelmente maior que a certeza. Todas as leis relativas à igualdade racial, no Brasil, adotaram o parâmetro da autodeclaração. O candidato se declara negro, ou, dependendo da situação, se declara preto ou se declara pardo e isso basta para lhe atribuir essa condição. O problema, mais uma vez, é o critério. Nenhuma lei, federal ou estadual, define quais características o candidato deve levar em conta para se declarar. Não se define sequer se a avaliação é fenotípica ou genotípica e, muito menos, quais os traços que devem ser considerados pelo interessado, ao se olhar no espelho, ou avaliar sua experiência de vida pretérita, para se declarar ou não. (…) Isso se comprova pelo modo como o próprio IBGE, expressamente referido pelo Estatuto da Igualdade Racial, conduz o questionamento racial no contexto do censo. Nele, ao cidadão apenas é perguntado “qual a sua cor?”, sem que se diga o que se entende por cor, devendo o recenseado se enquadrar em uma das cinco opções (branco, pardo, preto, indígena ou amarelo). A Lei, ao afirmar que seria considerados negros aqueles que se enquadrassem nos critérios do IBGE, estabeleceu um falso parâmetro, uma vez que, como percebeu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, “tanto a Lei 12.990/2014, quando o Estatuto da Igualdade Racial instituído pelo Lei 12.288, de 2010, dizem apenas que será aquele que preencha os requisitos do IBGE, órgão que, até o presente momento, não conseguiu definir por intermédio de qualquer ato administrativo normativo quem é negro ou pardo. (…) Eis o problema, então de volta à estaca zero. Autodeclaração e risco de fraude ou heterorreconhecimento e risco de arbitrariedade? A opção deve ser pelo mal menor. Conforme a experiência estrangeira vem demonstrando, a única forma de se operar com conceitos de raça, para viabilizar ações afirmativas ou políticas benéficas a seus destinatários, é mediante autodeclaração. É preciso assumir o risco da existência de algum grau de fraude, ainda que isso fragilize o sistema. O heterorreconhecimento exige a elaboração de critérios rigorosos para a atuação do avaliar, o que ninguém conseguiu formular até hoje.” (VITORELLI, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Salvador: Editora JusPodium, 2017, p. 76-81). Na esteira desse entendimento, a interpretação a ser dada ao dispositivo constante do art. 2º deveria necessariamente conduzir a rejeição do critério de heterorreconhecimento, não por sua inconstitucionalidade, mas porque a opção legislativa envolveria apenas um controle de fraude relativamente à autoidentificação. Nessa linha de compreensão, se a declaração é uma verdade sobre o próprio sujeito, a fraude só poderia ser apurada por má-fé, tendo em vista que é a essência da má-fé implica, como falava Jean Paul Sartre, “que o mentiroso está em posse completa da verdade que ele esconde”. (SARTRE, Jean Paul. Bad Faith. The Philosophy of Existencialism. Selected Essays. Tradução livre). Assim, o critério legal de fraude só poderia ser empregado se o autor da declaração reconhece-se não abrangido pela política afirmativa, mas ainda assim declarasse estar nela incluso. Essa seria, no entanto, uma prova impossível à Administração, a indicar que, ao estabelecer a opção pelo controle de fraude, adotou o legislador critério de heterorreconhecimento, porquanto não poderia a Administração atribuir-se uma finalidade que não pudesse atender. A corroborar tal interpretação, tampouco se poderia admitir que o fim constitucionalmente indicado, consubstanciado na promoção da igualdade, pudesse ser atendido sem quaisquer mecanismos de controle, exigência ínsita ao princípio republicano. Haveria, nesta dimensão, uma interpretação inconstitucional, na medida em que daria à norma uma proteção insuficiente do direito de igualdade: o Estado, na acepção de Dieter Grimm, estaria fazendo pouco para proteger o direito ameaçado. Não se olvida que mesmo esse critério comporta dificuldades operacionais. É preciso, contudo, afastar de plano a alegação de que a definição racial para efeitos de ação afirmativa seria ilegítima. A Convenção para Eliminação da Discriminação Racial, internalizada por meio do Decreto 65.810/69, assentou, em seu Artigo I, que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos.” Sendo legítima a adoção do critério de diferenciação, deve-se, portanto, reconhecer como necessária a atuação positiva da Administração Pública tendente a fiscalizar os processos de seleção por do critério de heterorreconhecimento. Embora a interpretação constitucional não determine o alcance, a priori, dos critérios de adequação e de proporcionalidade, é possível identificar parâmetros normativos, que defluem diretamente do texto constitucional e limitam as escolhas da Administração. Neste ponto, é preciso ter-se em conta que não deve ser o objetivo da política afirmativa definir uma forma “correta” de identidade racial: o próprio Comitê criado pela Convenção para Eliminação da Discriminação Racial rechaça, em seu Comentário n. 32 (CERD/C/GC/32/ par. 34), essa possibilidade. A justificação para adoção de um critério de escolha deve, então, decorrer da própria finalidade a que se destina a política afirmativa. Noutras palavras, a justificação deve derivar da proteção à discriminação, compreendida como a equiparação da raça a um status, como lembrou Neil Gotanda na crítica que fez à “Color-Blind Constitution”. De fato, a discriminação, nos termos do Artigo I da Convenção para Eliminação da Discriminação Racial, deriva do uso da “raça” como um instrumento de regulação social: “Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.” Há, de forma evidente, uma similitude entre as noções de “distinção”, empregada pela Convenção, e a de “barreiras”, utilizada, por exemplo, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. De fato, a discriminação racial é um obstáculo à plena igualdade de participação social, razão pela qual o próprio Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial defendeu, no recente Comentário 34 (CERD/C/GC/34/ par. 50), que os Estados são obrigados a tomar medidas efetivas para remover todos os obstáculos que impedem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais de pessoas com descendência africana, especialmente nas áreas de educação, moradia, emprego e saúde. Tal obstáculo é, sem dúvidas, culturalmente determinado. Por essa razão, correta é a definição dada por Tsemig Yang em “Choice and Fraud in Racial Identification: The Dilemma of Policing in Affirmative Action, the Census, and a Color-Blind Society” (Michigan Journal of Race and Law, Vol. 11, p. 367): “a política de ação afirmativa é menos uma função do status racial puro [embora seja dele dependente] do que uma experiência racial com discriminação”. Sendo assim definido o pressuposto da ação afirmativa, a identificação que se faz necessária para as provas de concurso público deve ser feita por comissão plural, a exemplo das equipes multidisciplinares a que se refere o Estatuto da Pessoa com Deficiência, e deve contar com a participação de ao menos um negro ou pardo. Tal diretriz é consentânea com a Declaração de Durban que, em seu parágrafo 99, fixou: “Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação.” É evidente que é possível – e legítimo, como destacou o Relator – que a Administração defina outros critérios para essas comissões. Os parâmetros aqui indicados, no entanto, porque decorrem diretamente do Texto Constitucional e dos tratados internacionais de direitos humanos, aplicáveis à hipótese por força do art. 5º, § 2º, da CRFB, exigem que eventual interpretação conformadora deles não se desvirtuem. Assim, é procedente o pedido formulado pelo amicus curiae relativamente à interpretação conforme do art. 2º da Lei 12.990. Finalmente, no que tange à aplicação da Lei aos efeitos decorrentes da nomeação em cargo público, trata-se de verificar como deve ser feito o cômputo da ordem de nomeação. O critério foi objeto de diversos debates neste Tribunal no que diz respeito às cotas para pessoas com deficiência. Esta Corte, no entanto, veio a interpretar o critério da seguinte maneira: “Mandado de segurança. 2. Direito administrativo. 3. Concurso público. MPU. Candidata portadora de deficiência. Cargo de Técnico de Saúde/Consultório Dentário. 4. Reserva de vagas. Limites estabelecidos no Decreto 3.298/99 e na Lei 8.112/90. Percentual mínimo de 5% das vagas. Número fracionado. Arredondamento para primeiro número inteiro subsequente. Observância do limite máximo de 20% das vagas oferecidas. 5. Segurança concedida.” (MS 30861, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 22/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 111 DIVULG 06-06-2012 PUBLIC 08-06-2012 RIP v. 14, n. 73, 2012, p. 239-241) A ordem de nomeação fixa, por consequência lógica, a ordem de antiguidade para efeitos na promoção de carreiras, caso aplicável. Assim, a interpretação que restringe os efeitos decorrentes da ordem de nomeação, substituindo-se por outros, não apenas atenta à ordem estabelecida na lei, mas contraria a própria finalidade da política por ela estabelecida e, nessa dimensão, é inconstitucional. Ante o exposto, acompanho o Relator para julgar procedente a presente ação declaratória e para: (i) dar interpretação conforme a Constituição do art. 2º, caput e parágrafo único, da Lei 12.990/2014, para assentar a necessidade de estabelecimento de mecanismos de controle de fraudes nas autodeclarações dos candidatos nos concursos públicos federais; (ii) dar interpretação conforme a Constituição do art. 1º da Lei 12.990/2014, para esclarecer que a política de cotas raciais de que trata a lei se aplica a todos os órgãos e instituições públicas federais, incluindo aquelas dotadas de autonomia em face do Poder Executivo Federal; (iii) dar interpretação conforme a Constituição do art. 4º da Lei 12.990/2014, para estabelecer que a ordem de classificação estabelecida no preceito se aplica não apenas à nomeação, mas deve também incidir sobre todas as demais dimensões da vida funcional dos servidores públicos cotistas. É como voto. (pg. 89/105 de 186) Ao que se observa, apesar de todas as ressalvas feitas quanto à subjetividade dos critérios de identificação (autodeclaração e heteroidentificação), inclusive quanto à problemática da motivação, fato é que a composição plenária do STF concluiu pela constitucionalidade do sistema, observada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa: Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, e fixou a seguinte tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. Ausentes, participando de sessão extraordinária no Tribunal Superior Eleitoral, os Ministros Rosa Weber e Luiz Fux, que proferiram voto em assentada anterior, e o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 8.6.2017. Observa-se, portanto, que, para o STF, o legislador fez expressa opção pelo sistema da autodeclaração, autorizando o sistema da heteroidentificação, que consiste na instauração de comissões (de heteroidentificação) que se limitam a confirmar, ou não confirmar, a declaração feita pelo candidato. Autodeclaração e heteroidentificação são critérios subjetivos que buscam se complementar, vale dizer, dar uma certeza maior de que a política de ação afirmativa esteja atingindo suas finalidades, sendo reconhecida a constitucionalidade de ambos os critérios. Rejeitou-se, portanto, o critério “científico” de classificação, por se reconhecer que a ampla miscigenação presente na sociedade brasileira tornaria impossível o estabelecimento de qualquer outro critério que não fosse o da aparência (fenotipia), que é o fator determinante para a discriminação. De modo que a tradicional motivação dos atos administrativos, tal como propugnado pelo autor, teria o condão de, na verdade, instituir os tais “critérios científicos” que fomentariam, em tese, os argumentos daqueles que sustentavam a instauração de um chamado “tribunal racial” que a lei buscou afastar, privilegiando, na verdade, o critério da aparência, pois é essa característica que, como se viu, normalmente leva à discriminação (ou preconceito) dos afrodescendentes. Disso decorre que não há qualquer inconstitucionalidade / ilegalidade no ato administrativo expedido por comissão de heteroidentificação que se limita a cumprir esse papel. Aplica-se aqui, às inteiras, o postulado da vinculação ao instrumento convocatório. Precedentes: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. CONCURSO PÚBLICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CANDIDATO APROVADO NAS VAGAS DESTINADAS AOS NEGROS E PARDOS. CRITÉRIO DA AUTODECLARAÇÃO. PREVISÃO EDITALÍCIA. VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA ESCLARECER QUE NÃO HÁ NECESSIDADE DE DESLOCAR O IMPETRANTE PARA A VAGA DE COTISTA, UMA VEZ EMPOSSADO PELA LISTA GERAL. 1. A teor do disposto no art. 1.022 do Código Fux, os Embargos de Declaração destinam-se a suprir omissão, afastar obscuridade ou eliminar contradição existente no julgado, o que não se verifica no caso dos autos, porquanto o acórdão embargado dirimiu todas as questões postas de maneira clara, suficiente e fundamentada. 2. Conforme destacado anteriormente, a questão em debate cinge-se à verificação da suposta ilegalidade no ato administrativo que determinou a nulidade da inscrição do recorrente no concurso público para o cargo de Oficial de Controle Externo, Classe II, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, conforme Edital 002/2013, em face da ausência de comprovação da afrodescendência declarada para fins de concorrência nas vagas específicas para negros e pardos. 3. Da leitura atenta das cláusulas editalícias que dispõem acerca dos critérios para que o candidato concorra nas vagas destinadas a negros e pardos, verifica-se que o único requisito exigido é a autodeclaração, não havendo qualquer outra previsão ou parâmetro a ser utilizado na fiscalização do sistema de cotas. 4. No caso, o ora embargado, apesar de ter se declarado negro, foi submetido, posteriormente, à uma comissão para aferição dos requisitos. Verificou-se que esta comissão impôs nova exigência: a de ter que comprovar ser filho de mãe ou pai negro, não podendo sua cor de pele ter advindo de seus avós ou outro parente (fls. 104). 5. Portanto, se o edital estabelece que a simples declaração habilita o candidato a concorrer nas vagas destinadas a negros e pardos e não fixa os critérios para aferição desta condição, não pode a Administração, posteriormente, sem respaldo legal ou no edital do certame, estabelecer novos critérios ou exigências adicionais, sob pena de afronta ao princípio da vinculação ao edital. 6. Assim, não há necessidade de esclarecer se a comissão pode ser considerada como responsável pela avaliação, porquanto, no caso, o que houve foi a instituição de nova exigência (aprovação pela comissão) não prevista no edital. Logo, havendo previsão editalícia, é possível a instituição de uma comissão avaliadora dos requisitos para o preenchimento das vagas destinadas a afrodescentes; no caso dos autos, porém, não há essa previsão, por isso a atuação de tal comissão pode ser admitida. 7. Quanto à advertência de que a manutenção do recorrente/impetrante no regime de cotas, apesar de já haver tomado posse no cargo em decorrência da inscrição na lista geral, inviabilizará a posse dos demais candidatos cotistas, abrindo-se a vaga para a lista geral (fls. 587), merece este esclarecimento: uma vez empossado o candidato embargado, não há necessidade de deslocá-lo para a vaga de cotista, tendo em vista que a tutela almejada já foi satisfeita. Inclusive, no item "e" da petição inicial do writ havia pedido no sentido do impetrante ser remetido à lista geral de classificação. 8. No tocante a citação dos demais candidatos aprovados no concurso para integrar a lide, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado quanto à inexistência de litisconsórcio passivo necessário entre todos os candidatos aprovados em concurso público. Neste sentido: AgInt no REsp. 1.690.488/MG, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, DJe 20.6.2018; e AREsp 1.244.080/PI, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 16.4.2018. 9. Embargos de Declaração do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL parcialmente acolhidos para esclarecer que não há necessidade de deslocar o impetrante para a vaga de cotista, uma vez empossado pela lista geral. (EDcl no AgRg no RMS 47.960/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 15/10/2019) ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ENSINO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 489, § 1º, E 1.022 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015. AUSÊNCIA. COTAS RACIAIS. ALTERAÇÃO DOS CRITÉRIOS APÓS A FINALIZAÇÃO DO CERTAME. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Não se configura a ofensa aos arts. 489, § 1º, e 1.022 do Código de Processo Civil/2015, uma vez que a Corte regional julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, em conformidade com o que lhe foi apresentado. 2. O órgão julgador não é obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. 3. Em se tratando de disputa de vagas em Universidades Públicas reservadas pelo critério da cota racial, ainda que válida a utilização de parâmetros outros que não a tão só autodeclaração do candidato, há de se garantir, no correspondente processo seletivo, a observância dos princípios da vinculação ao edital, da legítima confiança do administrado e da segurança jurídica. 4. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório impõe o respeito às regras previamente estipuladas por ambas as partes, as quais não podem ser modificadas com o certame já finalizado, como no caso dos autos, porquanto o recorrido realizou concurso vestibular em 2015 e as novas regras foram estabelecidas pela administração em 2016. 5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.794.413/RS, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 6/9/2019.) No caso, como se viu, o edital previu o controle da autodeclaração por meio de comissão de heteroidentificação, cujo critério de seleção é o da fenotipia (aparência). Por fim, quanto ao pedido sucessivo (manutenção do impetrante na listagem da ampla concorrência – v. fls. 15-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 12), melhor sorte não socorre o impetrante, posto que, segundo o edital, há um quantitativo máximo previsto para os candidatos da ampla concorrência (quantitativo máximo previsto para o cadastro reserva), verbis: 10 DA NOTA FINAL E DA CLASSIFICAÇÃO FINAL NO PROCESSO SELETIVO PÚBLICO 10.1 A nota final no processo seletivo público, exceto para a Ênfase 19: Engenharia de Segurança de Processo, será a nota final nas provas objetivas (NFPO). 10.2 A nota final no processo seletivo público para a Ênfase 19: Engenharia de Segurança de Processo será o somatório da nota final nas provas objetivas (NFPO) e da nota final na avaliação de títulos (NFAT). 10.3 Após o cálculo da nota final no processo seletivo público e aplicados os critérios de desempate constantes do subitem 10.8 deste edital, os(as) candidatos(as) serão listados(as) em ordem de classificação por ênfase, de acordo com os valores decrescentes das notas finais no processo seletivo. 10.4 O(a) candidato(a) que for considerado(a) pessoa com deficiência, após a avaliação da equipe multiprofissional, terá seu nome publicado em lista à parte e figurará também na lista geral de classificação geral por ênfase. 10.5 Os nomes dos(as) candidatos(as) que, no ato da inscrição, se declararem aptos a concorrer às vagas reservadas na forma da Lei n.º 12.990/2014, se não eliminados(as) no processo seletivo público, serão publicados em lista à parte e figurarão também na lista de classificação geral por ênfase. 10.6 O edital de resultado final no processo seletivo público contemplará a relação dos(as) candidatos(as) aprovados(as), ordenados(as) por classificação, dentro dos quantitativos previstos para o cadastro de reserva constante no quadro do Anexo I deste edital. 10.6.1 Caso não haja candidato(a) com deficiência aprovado(a) até a classificação estipulada no quadro do Anexo I deste edital, serão contemplados os(as) candidatos(as) da listagem geral em número correspondente, observada rigorosamente a ordem de classificação por ênfase. 10.6.2 Caso não haja candidato(a) negro(a) aprovado(a) até a classificação estipulada no quadro do Anexo I deste edital, serão contemplados os(as) candidatos(as) da listagem geral em número correspondente, observada rigorosamente a ordem de classificação por ênfase. 10.7 Todos os resultados citados neste edital serão expressos até a segunda casa decimal, arredondando-se para o número imediatamente superior se o algarismo da terceira casa decimal for igual ou superior a cinco. (v. fls. 68/69-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 65) Para a carreira pleiteada pelo impetrante (Ênfase 14: Engenharia de Equipamentos – Mecânica), o edital prevê as seguintes quantidades de vagas: VAGAS AC (Ampla Concorrência): 113 PCD (Pessoa com Deficiência): 13 NEGROS: 32 TOTAL: 158 CADASTRO DE RESERVA (INCLUÍDAS AS VAGAS) AC (Ampla Concorrência): 568 PCD (Pessoa com Deficiência): 64 NEGROS: 158 TOTAL: 790 (fls. 75-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 72) Se reconhecida a condição de cotista, o impetrante estaria incluído no cadastro reserva (158), posto que obteve a 80ª colocação (v. fls. 199-PJe – ID Num. 276641708 - Pág. 1). Não tendo sido reconhecida a condição de cotista, obteve a 1.292ª colocação entre os candidatos concorrentes na ampla concorrência, superando o quantitativo máximo de 568 previsto no anexo I do edital (fls. 75-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 72). Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É o voto.
E M E N T A
CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE ENGENHEIRO MECÂNICO DA PETROBRAS. CANDIDATO COTISTA. AUTODECLARAÇÃO + CONFIRMAÇÃO POR COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. FENOTIPIA. CRITÉRIO SUBJETIVO QUE TEVE SUA CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MOTIVAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE O PODER JUDICIÁRIO SUBSTITUIR O JULGAMENTO DA COMISSÃO, NOTADAMENTE EM CASO EM QUE O AUTOR NÃO COMPROVOU A EXISTÊNCIA DE QUALQUER ILEGALIDADE. APLICAÇÃO DO POSTULADO DA VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO. RECURSO NÃO PROVIDO.
1 – Como resulta claro das normas constantes do edital, o candidato que desejar concorrer pelo sistema de cotas deverá autodeclarar a sua condição de afrodescendente no momento da inscrição e essa autodeclaração deverá ser confirmada por uma comissão de heteroidentificação (identificação por terceiros dos caracteres físicos e visíveis dos candidatos afrodescendentes), que utilizará o critério da fenotipia (aparência) para confirmar, ou não, a autodeclaração.
2 – Embora esse tema seja polêmico, pois ambos os critérios (autodeclaração e heteroidentificação) são subjetivos, o que, para muitos, não se coaduna com um regime constitucional de amplo acesso aos cargos/postos públicos, onde o que impera é o postulado da isonomia, fato é que o legislador, reconhecendo a ampla miscigenação da sociedade brasileira, preferiu, mesmo assim, instituir uma política de ação afirmativa em favor dos afrodescendentes, na qual estabeleceu a reserva de vagas para os candidatos que se autodeclararem negros / pardos, mas, também, autorizou a utilização de um critério adicional de controle pela Administração (heteroidentificação), onde o que impera é o critério da aparência (fenotipia). Com esse controle, atendendo ao princípio republicano (transparência), procurou “diluir”, por assim dizer, a responsabilidade por essa autoidentificação, visando dar maior credibilidade ao sistema de cotas, contrariando, temporariamente, a regra geral de participação igualitária de todos os candidatos no acesso aos cargos públicos.
3 – O tema não é novo e, em razão das agudíssimas controvérsias estabelecidas na sociedade, foi objeto de diversas manifestações do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a constitucionalidade dessa forma de seleção de parte dos candidatos aos cargos públicos.
4 – Apesar de todas as ressalvas feitas durante o julgamento da ADPF 186 (acesso de estudantes às universidades e instituições federais de ensino) e da ADC 41 (acesso aos cargos públicos na Administração Pública Federal) quanto à subjetividade dos critérios de identificação (autodeclaração e heteroidentificação), inclusive quanto à necessidade de motivação do ato administrativo que faria o “enquadramento” do candidato, fato é que a conclusão foi pela constitucionalidade dessa sistemática, observada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
5 – Afastou-se, portanto, a necessidade de adoção de um critério “científico” de classificação, pois entendeu-se que é a aparência (fenotipia) do indivíduo o fator determinante para a discriminação dos afrodescendentes, como resulta claro dos pronunciamentos dos senhores ministros.
6 – De modo que a tradicional motivação dos atos administrativos, tal como propugnado pelo impetrante, teria o condão de, na verdade, instituir os tais “critérios científicos” que fomentariam os argumentos daqueles que sustentavam a instauração de um chamado “tribunal racial” que a lei buscou afastar. Privilegiou, portanto, o critério da aparência, avaliada por uma comissão, pois é essa característica que normalmente leva à discriminação (ou preconceito) dos afrodescendentes.
7 – O procedimento de heteroidentificação é relativamente simples, se resumindo ao exame das características físicas do candidato e das respostas dadas por ele às perguntas formuladas pela comissão e, no caso destes autos (o procedimento dura aproximadamente um minuto), pode ser consultado no link disponibilizado às fls. 196-PJe (ID Num. 276641706 - Pág. 1 – documentos que acompanham as informações).
8 – Seu objetivo, como resulta claro do diminuto tempo dedicado ao procedimento, é “confirmar” ou “não confirmar” a autodeclaração que o candidato fez no início do certame. Muito longe está de ser uma comissão destinada a proceder ao enquadramento de candidatos segundo critérios “cientificamente” estabelecidos, mesmo porque só vale para o certame em questão.
9 – Por isso, é de pouquíssima utilidade para a resolução da lide a documentação trazida pelo impetrante, tal como a declaração da médica dermatologista, Dra. Elaine Guerra (v. fls. 35/38-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 32), a classificação científica trazida na inicial (v. fls. 6-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 3 – “escala de Fitzpatrick”), “print” de tela de consulta ao cadastro do impetrante e sua filha junto ao banco de dados do SUS (Sistema Único de Saúde – v. fls. 9/10-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 6), o resultado de procedimento de heteroidentificação ao qual se submeteu em certame anterior (fls. 41-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 38), cópias de documentos e fotos do impetrante e membros de sua família (fls. 22/24-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 19; fls. 43/47-PJe – ID Num. 276641687 - Pág. 40), mesmo porque tratam-se de documentos cujo aproveitamento foi expressamente excluído pelo edital.
10 – Aplicação, às inteiras, do postulado da vinculação ao instrumento convocatório, pois o edital previu o controle da autodeclaração por meio de comissão de heteroidentificação, cujo critério de seleção é o da fenotipia (aparência).
11 – Improcedência, também, do pedido sucessivo, qual seja, o de manutenção do impetrante na listagem da ampla concorrência, posto que, segundo o edital, há um quantitativo máximo de candidatos previstos para figurar na respectiva listagem que, no caso da opção exercida pelo impetrante (Ênfase 14: Engenharia de Equipamentos – Mecânica) é de 568, inferior à classificação por ele alcançada (1.292ª colocação).
12 – Recurso não provido.