Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção

EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5005413-67.2020.4.03.6181

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

EMBARGANTE: MOHAMED ABDULAHI MOHAMED

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5005413-67.2020.4.03.6181

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

EMBARGANTE: MOHAMED ABDULAHI MOHAMED

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

 R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de embargos infringentes opostos pela defesa Mohamed Abdulahi Mohamed contra o acórdão de Id n. 276001982, por meio do qual a 11ª Turma deste Tribunal, por maioria, decidiu dar provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal, para receber a denúncia oferecida em face de Mohamed Abdulahi Mohamed, nos termos do voto da Relatora, Eminente Juíza Federal convocada Monica Bonavina, acompanhada pelo Des. Fed. Nino Toldo, vencido o Des. Fed. José Lunardelli que negava provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal.

A ementa foi lavrada nos seguintes termos:

PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. USO DE DOCUMENTO FALSO. ARTIGO 304, C.C 297, AMBOS DO CP. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. AFASTADA. PRESENÇA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. ART. 10 DA LEI N. 9.474/1997. ESTATUTO DO REFUGIADO. REQUERIMENTO DE SUSPENSÃO DO FEITO. AFASTADO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROVIDO.

- Para que a persecução penal possa ser instaurada e também para que possa ter continuidade no decorrer de um processo-crime, faz-se necessária a presença de justa causa para a ação penal consistente em elementos que evidenciem a materialidade delitiva, bem como indícios de quem seria o autor do ilícito penal. Trata-se de aspecto que visa evitar a instauração de relação processual que, por si só, já possui o condão de macular a dignidade da pessoa humana e, desta feita, para evitar tal ofensa, imperiosa a presença de um mínimo lastro probatório a possibilitar a legítima atuação estatal.

- A jurisprudência atual do C. Supremo Tribunal Federal tem analisado a justa causa, dividindo-a em 03 (três) aspectos que necessariamente devem concorrer no caso concreto para que seja válida a existência de processo penal em trâmite contra determinado acusado: (a) tipicidade, (b) punibilidade e (c) viabilidade - nesse diapasão, a justa causa exigiria, para o recebimento da inicial acusatória, para a instauração de relação processual e para o processamento propriamente dito da ação penal, a adequação da conduta a um dado tipo penal, conduta esta que deve ser punível (vale dizer, não deve haver qualquer causa extintiva da punibilidade do agente) e deve haver um mínimo probatório a indicar quem seria o autor do fato típico.

As provas colhidas na fase de Inquérito Policial revelam indícios idôneos e suficientes de autoria e materialidade, de modo que, sendo a fase de recebimento da inicial acusatória pautada pelo postulado in dubio pro societate, a instauração do processo penal é medida que se impõe.

- Presentes os requisitos que ensejam o reconhecimento de justa causa para a persecução penal, haja vista a presença de materialidade delitiva e de indícios de autoria, bem como a subsunção dos fatos, em tese, ao tipo penal e a ausência de causa extintiva da punibilidade empregável à espécie, deve ser dado provimento ao Recurso em Sentido Estrito, valendo o presente Acórdão como recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, nos termos da Súmula nº 709 do Supremo Tribunal Federal.

- Segundo o disposto no art. 10, caput e § 1º, da Lei nº 9.474 de 22 de julho de 1997, que rege a condição jurídica de refugiado, o arquivamento do processo criminal está condicionado à concessão de refúgio ao indivíduo estrangeiro. As informações contidas nos autos 0001575-33.2019.403.6119, apontam a possibilidade de que a documentação utilizada no pedido de refúgio seja contrafeita. Porquanto prematuro, indeferido o pedido de suspensão do presente procedimento criminal, sem prejuízo de posterior reanálise pelo r. juízo natural do feito, amparado pelas provas produzidas na instrução criminal e, especificamente, por informação atualizada sobre o pedido de refúgio do acusado.

-  Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal a que se dá provimento para se receber a denúncia, conforme o entendimento contido na Súmula nº 709 do STF (salvo quando nula a decisão de primeiro grau, o acórdão que provê o recurso contra a rejeição da denúncia vale, desde logo, pelo recebimento dela).  (Id n. 272919830)

A Defensoria Pública da União aduz, em síntese, o que segue: 

a) não há justa causa para o início da ação penal em desfavor de estrangeiro que ingressou no país de forma irregular, cuja permanência foi autorizada pelo Estado brasileiro; 

b) o embargante afirmou em seu depoimento na polícia que seu nome verdadeiro é Mohamed, nacional da Somália; 

c) a Lei n. 9.474/97 confere especial proteção ao indivíduo qualificado como refugiado, de modo que o ingresso irregular no país não o impede de obter essa condição; 

d) requer que prevaleça o voto vencido do Des. Fed. José Lunardelli, a fim de que seja negado provimento ao recurso em sentido estrito, mantendo-se a rejeição da denúncia por ausência de justa causa para a ação penal (Id n. 276602929). 

Contrarrazões no Id n. 277498674, pela qual o Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Ronaldo Pinheiro de Queiroz, manifestou-se pelo desprovimento do recurso. 

É o relatório. 

Encaminhem-se os autos à revisão, nos termos regimentais.

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção
 

EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5005413-67.2020.4.03.6181

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

EMBARGANTE: MOHAMED ABDULAHI MOHAMED

 

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

 

Trata-se de embargos infringentes opostos pela defesa Mohamed Abdulahi Mohamed contra o acórdão de Id n. 276001982, por meio do qual a 11ª Turma deste Tribunal, por maioria, decidiu dar provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal, para receber a denúncia oferecida em face de Mohamed Abdulahi Mohamed, nos termos do voto da Relatora, Eminente Juíza Federal convocada Monica Bonavina, acompanhada pelo Des. Fed. Nino Toldo, em que fiquei vencido, ao negar provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal.

Em sessão realizada no dia 16/11/2023, o e. Relator proferiu voto no sentido de negar provimento aos presentes embargos infringentes.

Pedindo vênia ao e. Relator, divirjo de seu judicioso voto, por entender que deve prevalecer o voto vencido, de minha lavra (ID 273430510), o qual reproduzo integralmente, in verbis:

 

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal (ID 256839813) em face de decisão proferida na data de 06.10.2021 (ID 256839812), pelo Exmo. Juiz Federal Silvio César Arouck Gemaque (9ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP), que rejeitou a denúncia oferecida em face de MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, nascido aos 01.01.1994, como incurso no artigo 304, c.c o artigo 297, ambos do Código Penal, em razão da não comprovação da materialidade delitiva e ausência de justa causa, nos termos do artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal (“faltar justa causa para o exercício da ação penal”).

Narra a r. denúncia (ID 256839802):

 

“Foi instaurado Inquérito Policial para apurar a prática do crime de uso documento falso, vez que consta no Laudo de Perícia Papiloscópica nº 703/2019- NID/DREX/SR/PF/SP coincidência de digitais entre os estrangeiros MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, nacional da Somália, filho de Abdulahi Mohamed e Zeinab Hasan Ali, nascido aos 01/01/1994, e AHMED ALI ABDIRAHMAN, nacional da Quênia, nascido aos 10/08/1991, tratando-se, possivelmente, da mesma pessoa.

Consta dos autos que, no dia 04/09/2017, AHMED ALI ABDIRAHMAN formalizou pedido de refúgio (SEI 08505.059829/2017-04) junto ao NRE/DELEMIG/DREX/SR/PF/AP, tendo anteriormente se apresentado, em 26/08/2017, perante as autoridades migratórias no Aeroporto Internacional de Guarulhos portando o passaporte C045229 e visto de entrada nº 442713MK.

Ademais, consoante pesquisa realizada no SISMIGRA, foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/SF, em data não identificada, em favor de AHMED ALI ABDIRAHMAN, tendo sido o referido registro concedido com validade indeterminada sob o nº RNM F0825355.

Assim sendo, evidente a existência de materialidade e autoria delitiva, vez que o denunciado MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED utilizou-se de documentação fraudulenta para ingressar no Brasil em nome da pessoa ficta de AHMED ALI ABDIRAHMAN, incorrendo na figura típica prevista no artigo 297 e 304, ambos do Código Penal.

Ademais, a materialidade delitiva é confirmada pelo Laudo Pericial nº 703/2019-NID/DREX/SR/PF/SP, o qual será oportunamente juntado aos autos, consoante pedido feito na cota por este Parquet, vez que, por um lapso, não consta acostado aos presentes autos.

Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL denuncia MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED pelo crime previsto no artigo 304 e incurso nas penas do artigo 297, ambos do Código Penal, requerendo que, recebida e autuada a presente, seja citado o denunciado para apresentação de resposta à acusação, designada audiência para seu interrogatório e dado prosseguimento ao feito, pelo rito ordinário, até a prolação da final sentença condenatória, nos termos dos artigos 394 a 405 do Código de Processo Penal.”

 

O juízo de origem rejeitou a denúncia (ID 256839812), com a seguinte fundamentação, in verbis:

 

“Em que pese a argumentação expendida pelo MPF, entendo que não há a justa causa exigida pelos artigos 304 c.c. 297 do Código Penal a propiciar o recebimento da denúncia ofertada.

Estabelecem os mencionados artigos:

Art. 304. Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts.297 a 302:

Pena – a cominada à falsificação ou à alteração

(...)

Art. 297. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:

Pena – Reclusão, de dois a seis anos, e multa.

(...)

Conforme registrado na própria denúncia, há indícios de que Mohamed Abdullahi Mohamed e Ahmed Ali Abdirahman possivelmente seriam a mesma pessoa, em face da coincidência de impressões digitais.

Contudo, não há nos autos qualquer documento a comprovar a verdadeira identidade de Mohamed Abdullahi Mohamed, haja vista que não há qualquer registro de sua existência, a não ser a própria declaração do denunciado (ID 40050975-fls.46). Não há registros de entrada ou saída do país ou mesmo informação em qualquer outro banco de dados a confirmar esta como verdadeira identidade (ID 40050975-fls.21, fls.22, fls.23, fls.24, fls.25, fls.26, fls.27).

É claro que o fato de dois nomes possuírem a mesma impressão digital indica que algum deles ou os dois são falsos. Todavia, não há nos autos demonstração de qual deles seria inidôneo, apenas as declarações do denunciado, as quais poderiam ser facilmente demonstradas por meio de informações obtidas no país de origem do denunciado, Somália.

Também não se mostra presente a comprovação de informações sobre Ahmed Ali Abdirahman e o passaporte utilizado na entrada no Brasil (conforme ID 40040975-fls.33) e na solicitação de refúgio perante a Delemig/DPF/SP (conforme ID 40040975-fls.29), vez que não houve a apreensão do mencionado passaporte, nem a obtenção de dados perante o país expedidor, Quênia.

Depreende-se, assim, a ausência de materialidade do delito de uso de documento falso imputado ao denunciado. Não se está a afirmar a necessidade do documento e de perícia, a quais são prescindíveis ao delito em tela, mas a existência de outros elementos a comprovar, de fato, a falsidade documental.

Assim, diante da não comprovação da materialidade delitiva e ausência de justa causa, rejeito a denúncia de ID 77062543-fls.03/06, com fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.”

 

Pedi vista dos autos para melhor analisar a ausência de justa causa para o início da ação penal.

Além da fundamentação de ausência de materialidade delitiva, constante na decisão recorrida, há que se analisar a questão posta também sob o aspecto do caráter fragmentário do Direito Penal. Vejamos.

 

Compulsando os autos, verifica-se que consta do Relatório Final da Polícia Federal (ID 256839800 – fls. 4), o quanto segue, in verbis:

 

INQUÉRITO POLICIAL:IPL 2019.0015332-SR/PF/SP

Processo Judicial nº:

Data do fato: 04/09/2017

Data do protocolo: 19/12/2019

Data da instauração: 31/08/2020

Data do término da investigação: 06/08/2021

Tipos penais: Art. 307, Art. 299, Art. 309, Art. 304 - Decreto Lei 2.848/1940 - Código Penal

I - FATO INVESTIGADO E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

 O presente Inquérito Policial foi instaurado por Portaria na data supra mencionada, para apurar O Laudo de Perícia Papiloscópica nº 703/2019-NID/DREX/SR/PF/SP aponta a coincidência de digitais entre os estrangeiros MOHAMED ABDULAHI MOHAMED, nacional da Somália, filho de Abdulahi Mohamed e de Zeinab Hasan Ali, nascido aos 01/01/1994, e AHMED ALI ABDIRAHMAN, nacional no Quênia, nascido aos 10/08/1991, que, em 04/09/2017, formalizou requerimento de refúgio (SEI 08505.059829/2017-04) perante o NRE/DELEMIG/DREX/SR/PF/SP, reportando-se ainda que, em 26/08/2017, também se apresentou como AHMED perante as autoridades migratórias do Aeroporto Internacional de Guarulhos, portando o passaporte C045229 e visto de entrada nº 442713MK. Reporta-se, por fim, o resultado da pesquisa realizada no SISMIGRA que indica que, em data não identificada, foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada.

II- DAS DILIGÊNCIAS REALIZADAS

Na fl. 5, encontra-se expediente encaminhado pela NUCART/DELEMIG/DREX/SR/PF/SP. Nas fls. 46/48, encontra-se o auto de qualificação e interrogatório de MOHAMED ABDULAHI MOHAMED OU AHMED ALI. Na fl. 77, encontra-se a Informação Policial informando que o investigado não foi encontrado para intimação.

III- PROVA DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA

 Destarte, analisando as evidencias carreadas não restou devidamente cristalina a materialidade delitiva, bem como a autoria devidamente delineada, s.m.j..

IV- CONCLUSÃO

Posto isto, encerram-se os trabalhos de Polícia Judiciária, remetendo-se os presentes autos para apreciação e demais providências que se entendam pertinentes, permanecendo este órgão policial à disposição para eventuais outras diligências que sejam imprescindíveis ao oferecimento da denúncia (art. 16 c/c art. 46/CPP).

 

Conforme se verifica, a autoridade policial entendeu pela insuficiência de materialidade e até mesmo autoria para o oferecimento da denúncia, se colocando à disposição para eventuais outras diligências.

Além disso, verifica-se do referido Relatório Policial, que “foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada.”

Diante de tais fatos, faz-se necessário analisar a legislação que regula o ingresso do estrangeiro no território nacional e o pedido de refúgio, prevista na Lei n.º 9.474/1997, por oportuno ao caso dos autos:

Do Ingresso no Território Nacional e do Pedido de Refúgio

Art. 7º O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível.

§ 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.

§ 2º O benefício previsto neste artigo não poderá ser invocado por refugiado considerado perigoso para a segurança do Brasil.

Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.

Art. 9º A autoridade a quem for apresentada a solicitação deverá ouvir o interessado e preparar termo de declaração, que deverá conter as circunstâncias relativas à entrada no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país de origem.

Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.

§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento.

§ 2º Para efeito do disposto no parágrafo anterior, a solicitação de refúgio e a decisão sobre a mesma deverão ser comunicadas à Polícia Federal, que as transmitirá ao órgão onde tramitar o procedimento administrativo ou criminal.

A Lei n.º 9.474/97 confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado (art. 1º desta lei), ou seja, que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conferindo-lhe direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º desta lei).

Por determinação do art. 8º da mencionada Lei n.º 9.474/97, o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não impede que ele faça o requerimento de refúgio às autoridades competentes, o que demonstra que, salvo raras exceções (arts. 7º, § 2º c.c art. 3º, III, desta mesma lei), sua entrada irregular (ilegal ou ilícita), em território nacional, não obsta que alcance a qualidade jurídica de refugiado .

Nestes termos, se a pessoa qualificada como "refugiado" pratica algum ato ilícito para conseguir efetivar sua entrada em território nacional, e tal ato ilícito se correlacionar diretamente a esta empreitada, o procedimento (cível, administrativo ou criminal) deve ser arquivado, com fundamento no § 1º, do art. 10 da lei em estudo, acima descrito.

Isso se dá porque, pela interpretação sistemática e teleológica da legislação, verifica-se que a vontade do legislador foi de conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado , conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso país, depois de ter um passado sofrido em sua terra natal.

No caso específico dos autos, as impressões digitais indicam que Mohamed Abdullahi Mohamed e Ahmed Ali Abdirahman são a mesma pessoa e, apesar de não se ter informações a respeito do pedido de reconhecimento da condição de refugiado do recorrido, sabe-se que “foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada. (negritei)

Nestes termos, entendo deva ser mantida a decisão recorrida, que rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, por ausência de justa causa, considerando-se o caráter fragmentário do direito penal, haja vista não haver "sentido lógico (pré-jurídico) e jurídico no fato de órgão do Estado brasileiro permitir a permanência de estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e autorizar-se, em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso".

Em caso similar, ou seja, no Recurso Em Sentido Estrito n.º 0006745-88.2016.4.03.6119/SP (número antigo 2016.61.19.006745-4/SP), apresentei voto vista no mesmo sentido, entretanto, fiquei vencido. Foram opostos Embargos Infringentes, os quais foram providos, para prevalecer o voto vencido de minha lavra, cuja ementa a seguir se descreve:

 

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. USO DE DOCUMENTO FALSO. PASSAPORTE. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REFÚGIO. SUSPENSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. DIREITO DE PERMANÊNCIA. OBTENÇÃO. DENÚNCIA. JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE DA CONDUTA.

1. Há justa causa para a ação penal se presentes os elementos que demonstrem a existência de fundamento de direito e de fato para a instauração do processo, a partir do caso concreto.

2. O tratamento jurídico especial conferido pelo ordenamento jurídico brasileiro ao refugiado encontra fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da prevalência dos direitos humanos.

3. A concessão da permanência definitiva ao estrangeiro, por via administrativa, denota o desinteresse do Estado em punir sua conduta relativa à entrada no País mediante uso de passaporte falso.

4. Embargos infringentes acolhidos.” (EIfNu - EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE - 8575 / SP 0006745-88.2016.4.03.6119 – Rel. Des. Fed. Mauricio Kato - e-DJF3 Judicial 1 DATA:28/04/2021)

 

Aliás, cumpre descrever o parecer da Procuradoria Regional da República (naqueles autos, ou seja, 2016.61.19.006745-4/SP), por ser pertinente, in verbis:

(...)

"Dessarte, como já relatado, a questão recursal também deslinda com o aspecto material da conduta imputada, qual seja, de que não deve ser recebida a denúncia diante do caráter fragmentário do Direito Penal, pois a concessão de permanência ao Recorrido via administrativa evidencia o desinteresse do Estado em punir sua conduta pela entrada ilegal no País, conforme específicos trechos de fls. 59.

(...)

Em apertada síntese, o CNIg defere a concessão de permanência definitiva ao estrangeiro refugiado ou asilado que comprove possuir condições de trabalho no Brasil, atendendo às demandas nacionais, numa clara materialização normativa do princípio fundamental da República Federativa do Brasil como o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da CRFB/88), e a prevalência dos Direitos Humanos enquanto princípio fundamental a ser seguido nas suas relações internacionais (art. 4º, inciso II, da Magna Carta).

Pouco tempo depois, veio a lume a Lei nº 9.474/97, a qual confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado - em apertadíssima síntese, àquele que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conforme dicção do art. 1º desta Lei - sendo que a especial condição benéfica de refugiado concede ao Requerente o direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º da Lei n.º 9.474/97).

Por força normativa clara (art. 8º da Lei nº 9.474/97), o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não é impeditivo à solicitação do refúgio às autoridades competentes, o que evidencia que, salvo raras exceções (pessoa considerada perigosa para a segurança do Brasil ou envolvida em gravíssimos crimes, tais como contra a paz, humanidade, hediondo ou tráfico de drogas - arts.7º, § 2º c/c art. 3º, III, ambos da lei nº.9.474/97, a entrada irregular, ilegal ou ilícita em território nacional não é impeditivo à obtenção do status jurídico de refugiado .

Materializando esta orientação normativa, o art. 10 da Lei nº. 9.474/97 é taxativo ao dispor que, realizado o pedido de refúgio ao CONARE, será suspenso o procedimento administrativo (inquérito policial, por exemplo) ou o judicial (ação penal) referente ao fato da entrada irregular no Brasil pelo solicitante do refúgio.

O § 1º do art. 10 da Lei nº. 9.474/97 é ainda mais contundente em asseverar que, caso o refúgio seja concedido pela Autoridade Competente, o procedimento criminal então sobrestado será arquivado, desde que, in verbis: "demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento".

Portanto, se houve a prática de algum ilícito (civil, penal ou administrativo) pela entrada ilegal, ilícita ou irregular do estrangeiro em território nacional, e àquele se correlacionar diretamente a esta, deve haver, ex vi legis, o arquivamento do procedimento (cível, administrativo ou criminal) então sobrestado, justamente, porquê a Lei quis conferir um tratamento jurídico especial ao refugiado , mormente diante do seu passado sofrido, o qual busca no Brasil uma luz no fim do túnel na tentativa de reconstruir uma vida digna.

Destaque-se que o mero protocolo do pedido de refúgio pelo peticionário já lhe garante sua estada regular provisória no País até a definição do processo, sendo que o Ministério do Trabalho expedirá a competente carteira de trabalho provisória para garantir o reinício da vida laboral pelo Requerente (art. 21 da Lei nº. 9.474/97).

Gize-se que o status de refugiado impede a extradição do território nacional se houve coincidência dos fatos motivadores (art. 33 da Lei n.º 9.474/97), ao passo que, a priori, impede a expulsão, salvo daquele caso considerado perigoso para a sociedade ou ordem pública nacional (art. 37 da Lei nº. 9.474/97).

Em observação sistêmica da Legislação, nota-se que a vontade do legislador é conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado , conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso País, depois de ter um passado sofrido no seu local de origem.

Tal intelecção resta ainda mais reforçada pela edição e vigência da novel Lei nº 13.445/2017, a qual, na mão da prevalência dos Direitos Humanos como princípio fundamental da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais (art. 4º, II, da CRFB/88), fora ainda mais benéfica aos imigrantes que buscam acolhida em território nacional.

Além deste novíssimo regime de migração - apesar da Lei referir-se que não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais acerca de refugiado s (art. 2º) - nota-se que dispõe sobre a autorização de residência,em território nacional, ao imigrante que, dentre outros, seja por finalidade de acolhida humanitária (art. 30, Ii, "e"), ao passo que a referida Lei dispõe que o solicitante faz jus à residência provisória até a definição de seu pedido (art. 31, § 4º), sendo que a concessão de residência pode ser conferida independentemente da situação migratória, na forma do art. 31, § 5º, da Lei n.º 13.445/2017.

Portanto, a conjectura normativa envolvendo a análise conglobante da Constituição Federal de 1988, das Leis, Decretos e Resoluções Pertinentes, permite afirmar que a vontade do Legislador é conferir um tratamento mais benéfico à pessoa estrangeira solicitante de refúgio, diante do seu reconhecido passado sofrido, visando uma melhora de vida em nosso território nacional.

Nesta senda, cumpre analisar que o arquivamento do pedido de refúgio feito pelo Recorrido OUSMANE SANKHE no CONARE não se deu porque não fora reconhecida sua condição de refugiado nos moldes legais - não adimplemento dos requisitos legais delineados nos arts. 38 e 39 da lei n.º 9.474/97 - mas sim por sua desistência manifestada em virtude de ter obtido permanência definitiva pelo CNIg.

Noutras palavras, adaptando as letras do ofício do CONARE de fls. 49 ao jargão judicial, houve a extinção sem resolução do mérito do pedido de refúgio pela perda superveniente de objeto, com aplicação analógica da ratio legis do art. 485, incisos VI e VII, do Novo CPC (Lei nº. 13.105/2015), possibilitada pela norma de extensão prevista no art. 15 do mesmo Codex (diálogo das fontes).

Ou seja, o pedido de refúgio de OUSMANE fora arquivado porque obteve, por uma via mais expedita, o reconhecimento de que pode permanecer, em território nacional, de modo permanente, para exercer seu trabalho digno, atendendo às demandas laborais nacionais, e não porque não ostenta o caráter legal de refugiado .

Tal ótica é reforçada pela certidão da Oficiala de Justiça do dia 25/04/2018, a qual intimou o Recorrido OUSMANE no seu ambiente de trabalho no dia 24/04/2018 em Londrina/PR (fls. 88), razão pela qual afigura-se que o Recorrido está empenhado em continuar trabalhando em território nacional, reconstruindo sua vida de modo mais digno, sendo que as condições desumanas de vários Países Africanos são fatos notórios, noticiados há muitos anos pelas imprensas nacional e internacional, dentre os quais o País de origem do Recorrido - Senegal (https://pt.wikipedia.org/wiki/Senegal).

Por fim, nota-se que o MPF não cuidou de juntar aos autos certidões de antecedentes criminais da Justiça Federal da 3ª e 4ª Regiões, bem como das Justiças Estaduais de São Paulo ou Paraná, as quais poderiam indicar antecedentes desabonadores do Recorrido o seu envolvimento noutras infrações penais, a indicar que fosse uma pessoa perigosa aos interesses nacionais.

Na ausência de tal prova, a qual era facilmente produzível pelo MPF ou pelo Juízo a seu pedido - não consta nos autos qualquer requerimento neste sentido - deve-se presumir a primariedade e bons antecedentes do Recorrido OUSMANE, o qual, saliente-se, fora intimado no seu local de trabalho.

Assim, antes de se socorrer da principiologia - o que é deveras correto e acertado - mostra-se que, ao contrário do quanto propalado nas razões recursais ministeriais, a interpretação sistêmica e teleológica da nossa Legislação (Constituição Federal de 1988, Lei nº. 6.815/80, Lei nº. 8.490/92, Lei nº. 9.474/97, Lei n.º 13.445/2017 e do Decreto Presidencial nº. 840/1993, da Portaria nº. 634/1996 do Ministério do Trabalho e das Resoluções Normativas nº. 06/1197 e 91/2010 do CNIg), infere-se que a concessão de permanência definitiva ao Recorrido OUSMANE importa a anistia legal prevista no art. 10, § 1º, da Lei n.º 9.474/97, a implicar, pois, a inexistência de justa causa para a ação penal, na exata medida em que o uso de passaporte falso tem correlação com sua entrada irregular no Brasil, conforme já supra exposto.

Portanto, opina-se pelo desprovimento do recurso, mantendo-se a rejeição da denúncia, diante da inexistência de justa causa para a deflagração da ação penal." (negritei).

 

Nestes termos, se o recorrido se encontra residente no país, com a concessão de permanência definitiva (RNM F0825355), com validade indeterminada, entendo que a mens legis é a mesma, devendo ser mantida a rejeição da denúncia, diante da inexistência de justa causa para a deflagração da ação penal.

Diante do exposto, NEGO provimento ao Recurso em Sentido Estrito, interposto pelo Ministério Público Federal.

É o voto.

 

Por tais fundamentos, dou provimento aos Embargos infringentes, para que prevaleça o voto vencido, que negou provimento ao Recurso em Sentido Estrito.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5005413-67.2020.4.03.6181

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

EMBARGANTE: MOHAMED ABDULAHI MOHAMED

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

 V O T O

Imputação. Mohamed Abdulahi Mohamed foi denunciado pelo cometimento do crime previsto no art. 304 c. c. o art. 297, ambos Código Penal, conforme a denúncia que segue: 

Foi instaurado Inquérito Policial para apurar a prática do crime de uso documento falso, vez que consta no Laudo de Perícia Papiloscópica nº 703/2019- NID/DREX/SR/PF/SP coincidência de digitais entre os estrangeiros MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, nacional da Somália, filho de Abdulahi Mohamed e Zeinab Hasan Ali, nascido aos 01/01/1994, e AHMED ALI ABDIRAHMAN, nacional da Quênia, nascido aos 10/08/1991, tratando-se, possivelmente, da mesma pessoa.

Consta dos autos que, no dia 04/09/2017, AHMED ALI ABDIRAHMAN formalizou pedido de refúgio (SEI 08505.059829/2017-04) junto ao NRE/DELEMIG/DREX/SR/PF/AP, tendo anteriormente se apresentado, em 26/08/2017, perante as autoridades migratórias no Aeroporto Internacional de Guarulhos portando o passaporte C045229 e visto de entrada nº 442713MK.

Ademais, consoante pesquisa realizada no SISMIGRA, foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/SF, em data não identificada, em favor de AHMED ALI ABDIRAHMAN, tendo sido o referido registro concedido com validade indeterminada sob o nº RNM F0825355.

Assim sendo, evidente a existência de materialidade e autoria delitiva, vez que o denunciado MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED utilizou-se de documentação fraudulenta para ingressar no Brasil em nome da pessoa ficta de AHMED ALI ABDIRAHMAN, incorrendo na figura típica prevista no artigo 297 e 304, ambos do Código Penal.

Ademais, a materialidade delitiva é confirmada pelo Laudo Pericial nº 703/2019-NID/DREX/SR/PF/SP, o qual será oportunamente juntado aos autos, consoante pedido feito na cota por este Parquet, vez que, por um lapso, não consta acostado aos presentes autos.

(...)

Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL denuncia MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED pelo crime previsto no artigo 304 e incurso nas penas do artigo 297, ambos do Código Penal, requerendo que, recebida e autuada a presente, seja citado o denunciado para apresentação de resposta à acusação, designada audiência para seu interrogatório e dado prosseguimento ao feito, pelo rito ordinário, até a prolação da final sentença condenatória, nos termos dos artigos 394 a 405 do Código de Processo Penal.  (destaques do original, Id n. 256839802)

O Juízo a quo rejeitou a denúncia por ausência de comprovação da materialidade da denúncia e de justa causa (Id n. 256839811).

O Ministério Público Federal interpôs recurso em sentido estrito, pugnando pela reforma da sentença e o recebimento da denúncia (Id n. 256839813).

A 11ª Tuma deste Egrégio Tribunal Federal, por maioria, decidiu dar provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal, para receber a denúncia oferecida em face de Mohamed Abdulahi Mohamed, nos termos do voto da Relatora, Eminente Juíza Convocada Monica Bonavina, acompanhada pelo Des. Fed. Nino Toldo, vencido o Des. Fed. José Lunardelli que negava provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal.

A divergência refere-se quanto ao recebimento da denúncia.

No julgamento do recurso em sentido estrito prevaleceu o voto da Relatora, conforme segue:

A JUÍZA FEDERAL CONVOCADA MONICA BONAVINA: 

Cuida-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal (ID 256839813) em face de decisão (ID 256839812) que rejeitou a denúncia oferecida em face de MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, como incurso no artigo 304, c.c o artigo 297, ambos do Código Penal, em razão da não comprovação da materialidade delitiva e ausência de justa causa para persecução penal, nos termos do artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal. 

DA NECESSÁRIA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL

Para que a persecução penal possa ser instaurada e também para que possa ter continuidade no decorrer de um processo-crime, faz-se necessária a presença de justa causa para a ação penal consistente em elementos que evidenciem a materialidade delitiva, bem como indícios de quem seria o autor do ilícito penal. Trata-se de aspecto que visa evitar a instauração de relação processual que, por si só, já possui o condão de macular a dignidade da pessoa humana e, desta feita, para evitar tal ofensa, imperiosa a presença de um mínimo lastro probatório a possibilitar a legítima atuação estatal. Dentro desse contexto, dispõe o art. 395, III, do Código de Processo Penal, que a denúncia ou a queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal, o que se corporifica pela ausência de substrato probatório mínimo no sentido de comprovar a materialidade delitiva e a autoria da infração penal.

Destaque-se que a jurisprudência atual do C. Supremo Tribunal Federal tem analisado a justa causa, dividindo-a em 03 (três) aspectos que necessariamente devem concorrer no caso concreto para que seja válida a existência de processo penal em trâmite contra determinado acusado: (a) tipicidade, (b) punibilidade e (c) viabilidade - nesse diapasão, a justa causa exigiria, para o recebimento da inicial acusatória, para a instauração de relação processual e para o processamento propriamente dito da ação penal, a adequação da conduta a um dado tipo penal, conduta esta que deve ser punível (vale dizer, não deve haver qualquer causa extintiva da punibilidade do agente) e deve haver um mínimo probatório a indicar quem seria o autor do fato típico. Nesse sentido: 

"AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE (ART. 215 DO CÓDIGO PENAL). EXTINÇÃO ANÔMOLA DA AÇÃO PENAL. QUESTÕES DE MÉRITO QUE DEVEM SER DECIDIDAS PELO JUIZ NATURAL DA CAUSA. PRECEDENTES. 1. A justa causa é exigência legal para o recebimento da denúncia, instauração e processamento da ação penal, nos termos do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, e consubstancia-se pela somatória de três componentes essenciais: (a) TIPICIDADE (adequação de uma conduta fática a um tipo penal); (b) PUNIBILIDADE (além de típica, a conduta precisa ser punível, ou seja, não existir quaisquer das causas extintivas da punibilidade); e (c) VIABILIDADE (existência de fundados indícios de autoria). 2. Esses três componentes estão presentes na denúncia ofertada pelo Ministério Público, que, nos termos do artigo 41 do CPP, apontou a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e a classificação do crime. 3. A análise das questões fáticas suscitadas pela defesa, de forma a infirmar o entendimento da instância ordinária, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, providência incompatível com esta via processual. 4. Agravo regimental a que se nega provimento" (HC 144343 AgR, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 25/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017) - destaque nosso.

 

Importante consignar que a rejeição da peça acusatória (ou mesmo a absolvição sumária do acusado) com base na inexistência de justa causa para a ação penal impõe que o julgador tenha formado sua convicção de maneira absoluta nesse sentido na justa medida em que defenestra a persecução penal antes do momento adequado à formação da culpa (qual seja, a instrução do processo-crime). Apesar de se exigir a não instauração de relação processual sem um lastro mínimo probatório (nos termos anteriormente tecidos), há que ser ressaltado que prevalece na fase do recebimento da denúncia o princípio do "in dubio pro societate" de modo que o magistrado deve sopesar essa exigência de lastro mínimo probatório imposto pelo ordenamento jurídico pátrio a ponto de não inviabilizar o "jus accusationis" estatal a perquirir prova plena da ocorrência de infração penal (tanto sob o aspecto da materialidade como sob o aspecto da autoria) - a respeito do exposto, vide a ementa que segue: 

"PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO MAJORADO, QUADRILHA OU BANDO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E PREVARICAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE NA VIA DO WRIT. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. CARÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOLO. REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. ABSORÇÃO DOS CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA PELO ESTELIONATO. TEMA NÃO DEBATIDO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INDEVIDA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. (...) 2. A rejeição da denúncia e a absolvição sumária do agente, por colocarem termo à persecução penal antes mesmo da formação da culpa, exigem que o julgador tenha convicção absoluta acerca da inexistência de justa causa para a ação penal. 3. Embora não se admita a instauração de processos temerários e levianos ou despidos de qualquer sustentáculo probatório, nessa fase processual deve ser privilegiado o princípio do in dubio pro societate. De igual modo, não se pode admitir que o julgador, em juízo de admissibilidade da acusação, termine por cercear o jus accusationis do Estado, salvo se manifestamente demonstrada a carência de justa causa para o exercício da ação penal. 4. A denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do Código de Processo Penal e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o exercício da ampla defesa e do contraditório pelo réu. (...)" (STJ, RHC 40.260/AM, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 22/09/2017) - destaque nosso. 

Não é por outro motivo que se pacificou o entendimento em nossos C. Tribunais Superiores, bem como nesta E. Corte Regional, no sentido de que o ato judicial que recebe a denúncia ou a queixa, por configurar decisão interlocutória (e não sentença), não demanda exaustiva fundamentação (até mesmo para que não haja a antecipação da fase de julgamento para antes sequer da instrução processual judicial), cabendo salientar que o ditame insculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal, de exigir profunda exposição dos motivos pelos quais o juiz está tomando esta ou aquela decisão, somente teria incidência em sede da prolação de sentença penal (condenatória ou absolutória) - nesse sentido: 

"PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DESNECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO PROFUNDA OU EXAURIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. WRIT NÃO CONHECIDO. (...) 2. A decisão que recebe a denúncia (art. 396 do Código de Processo Penal) e aquela que rejeita o pedido de absolvição sumária (art. 397 do CPP) não demandam motivação exauriente, considerando a natureza interlocutória de tais manifestações judiciais, sob pena de indevida antecipação do juízo de mérito, que somente poderá ser proferido após o desfecho da instrução criminal, com a observância das regras processuais e das garantias da ampla defesa e do contraditório. 3. No caso dos autos, em que pese a sucinta fundamentação, o Juízo singular afastou as teses defensivas suscitadas na resposta à acusação, pois entendeu, naquele momento processual, ausentes as hipóteses de absolvição sumária do acusado, pela atipicidade do fato ou pela existência de causa excludente da ilicitude do fato ou da culpabilidade, bem como de extinção da punibilidade, nos termos do art. 397 do CPP. 4. Conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou-se o entendimento da inexigibilidade de fundamentação complexa no recebimento da denúncia, em virtude de sua natureza interlocutória, não se equiparando à decisão judicial a que se refere o art. 93, IX, da Constituição Federal. (...)" (STJ, HC 320.452/MS, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 28/08/2017) - destaque nosso. 

"PROCESSUAL PENAL E PENAL: HABEAS CORPUS. ARTIGO 334-A, §1º, IV DO CP. DENÚNCIA. APTIDÃO. REQUISITOS PREVISTOS NO ARTIGO 41 DO CPP SATISFEITOS. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. QUESTÕES QUE SE CONFUNDEM COM O MÉRITO. ORDEM DENEGADA. (...) IX - No momento do recebimento da denúncia ou da análise da resposta à acusação, o Juízo não está obrigado a manifestar-se de forma exauriente e conclusiva acerca das teses apresentadas pela defesa, evitando-se, assim, o julgamento da demanda anteriormente à devida instrução processual (...)" (TRF3, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, HC - HABEAS CORPUS - 71222 - 0002937-65.2017.4.03.0000, Rel. DES. FED. CECILIA MELLO, julgado em 27/06/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:06/07/2017) - destaque nosso. 

In casu, observa-se que as provas colhidas na fase de Inquérito Policial, quais sejam, o Laudo de Perícia Papiloscópica nº 703/2019 (ID 256839808), que conclui que “(...) o signatário das impressões digitais em nome de MOHAMED ABDULAHI MOHAMED ou AHMED ALI (I-A) e nas impressões digitais armazenadas no AFIS com o nome de AHMED ALI ABDIRAHMAN (I-B) foram produzidas pela mesma pessoa.”; as declarações do réu em sede policial (ID 256839787 p. 46/48) e; bem como a condenação nos autos da ação penal 0001575-33.2019.4.03.6119 (ID 256839787 p. 07/13) por fatos análogos, revelam indícios idôneos e suficientes de autoria e materialidade, de modo que, sendo a fase de recebimento da inicial acusatória pautada pelo postulado in dubio pro societate, a instauração do processo penal é medida que se impõe. 

Subsidiariamente, requer a Defensoria Pública da União a suspensão do presente procedimento criminal em razão da condição de refugiado do acusado, invocando a aplicação do artigo 10 da Lei n.º 9.474/1997 (Estatuto do Refugiado) (ID. 256839861).

Segundo o disposto no art. 10, caput e § 1º, da Lei nº 9.474 de 22 de julho de 1997, que rege a condição jurídica de refugiado, o arquivamento do processo criminal está condicionado à concessão de refúgio ao indivíduo estrangeiro: 

Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.

§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento. 

Rememore-se que MOHAMED já foi condenado nos autos nº. 0001575-33.2019.4.03.6119 por fatos semelhantes aos presentes, vez que teria se apresentado, em 24/07/2019, perante a autoridade alfandegária, com passaporte nº 23465237 do Reino da Noruega, em nome de LEON RANS, sendo processado e condenado pelo uso do referido documento falso (ID 256839787 p. 07/13). 

Ademais, as informações contidas nos autos 0001575-33.2019.403.6119 (ID. 256839786), apontam a possibilidade de que a documentação utilizada no pedido de refúgio referente a Ahmed Ali Abdirahman, realizado em 04.09.2017, e anteriormente apresentadas às autoridades migratórias (em 26.08.2017), seja contrafeita. 

Confira-se transcrição do interrogatório judicial, extraída da r. sentença proferida nos autos 0001575-33.2019.403.6119 (ID. 256839787, p. 09): 

“(...)

Interrogado, o réu disse que seu nome é Mohamed Abdulahi Mohamed. Nasceu em 01/01/1994, morava na Somália, não trabalha e é solteiro. A respeito da denúncia, disse ser verdadeira. Fez o passaporte na África do Sul. Um amigo o fez. Alguém lhe passou um contato. Pegou o passaporte em maio de 2019. Já tinha intenção de vir ao Brasil. Já veio ao Brasil em 2017, em busca de uma vida melhor e para proporcionar uma vida melhor a seus familiares. Veio ao Brasil em agosto de 2017 e ficou até o momento da prisão. Nunca saiu do Brasil. O passaporte foi trazido por um amigo, que lhe entregou aqui. Ele é da Somália e se chama Hussem. Conheceu-o na cidade, em um restaurante, aqui no Brasil. Ele trouxe o passaporte e depois lhe deu; disse que poderia usá-lo. Ele veio ao Brasil para morar aqui. O réu queria o passaporte para ir ao Peru e depois voltar ao Brasil. Desde agosto de 2017 não saiu do país. Não usou o passaporte em maio de 2019; foi o homem que entrou. Em 2017, usou um passaporte queniano. Não tem passaporte da Somália. O nome Ahmed Ali Abdirahman foi usado por ele no passaporte queniano, mas não é seu nome verdadeiro. Desde 2017, trabalha em uma empresa de frangos no setor de "sangratório", desde abril, com carteira assinada. Morava em Brasília, trabalha lá e conseguiu trabalho em abril. Tem carteira de trabalho e CPF. Não possui antecedentes criminais. Não tirou passaporte em seu nome porque seu pais é sofrido, não tem governo. Não tirou passaporte em seu nome verdadeiro no Brasil porque não tem embaixada aqui. Não procurou ajuda. Deu entrada em pedido de refúgio, com nome falso, com o passaporte queniano. Naquela época, não tinha documento, por isso não havia como pedir o refúgio com o nome verdadeiro. Tem protocolo desse pedido, com o uso do passaporte queniano. Indagado pela defesa, disse que iria ao Peru para passear. Ia ficar uma semana e voltar. Depois da audiência de custódia, voltou à Delegacia do aeroporto e não lhe foi oportunizado o pedido de refúgio. Na Somália, sofria muito com a guerra, seu pai morreu e teria que entrar no grupo. Sua mãe lhe mandou embora dali. Indagado por este juízo, disse que morava no seguinte endereço: Samambaia Norte, 433, casa 1, Conjunto 16, Brasília. Não tem família lá, pois moram na Somália. Em Brasília tem apenas amigos. Não tem prova de sua nacionalidade da Somália, além da própria língua. Deixou os documentos (carteira de trabalho) em sua própria casa. Não sabe se ainda estão lá. Perdeu o passaporte queniano há muito tempo. Tentou fazer uma ligação para sua família, mas não conseguiu. Os grupos de seu país cortam todos os contatos. Não sabia o número de telefone da mãe. Não usou passaporte da Noriega para entrar no Brasil. Não disse na Delegacia que estava no Brasil há três meses, estava se referindo à pessoa que lhe deu passaporte.

(...)” 

Desta feita, porquanto prematuro, fica indeferido o pedido de suspensão do presente procedimento criminal, sem prejuízo de posterior reanálise pelo r. juízo natural do feito, amparado pelas provas produzidas na instrução criminal e, especificamente, por informação atualizada sobre o pedido de refúgio do acusado (SEI n.º 08505.059829/2017-04). 

Tenho, pois, que independentemente se saber qual seja a verdadeira identidade do recorrido fato é que ele tem se apresentado com documentos falsos, pois não pode ter as duas identidades simultanea e validamente. 

Portanto, presentes os requisitos que ensejam o reconhecimento de justa causa para a persecução penal, haja vista a presença de materialidade delitiva e de indícios de autoria, bem como a subsunção dos fatos, em tese, ao tipo penal no qual MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED foi denunciado e a ausência de causa extintiva da punibilidade empregável à espécie, deve ser dado provimento ao presente Recurso em Sentido Estrito, valendo o presente Acórdão como recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, nos termos da Súmula nº 709 do Supremo Tribunal Federal, como incurso nas penas do crime do artigo 304, c.c o artigo 297, ambos do Código Penal.

 DISPOSITIVO

 Ante o exposto, voto por DAR PROVIMENTO ao Recurso em Sentido Estrito do Ministério Público Federal, para receber a denúncia oferecida em face de MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, nos termos anteriormente expendidos.

 É o voto. (sic, Id n. 272919825)

O Eminente Desembargador Federal Relator José Lunardelli, que ficou vencido, consignou em seu voto, o seguinte:

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI.

Registro, de início, que o relatório pertinente ao feito em exame consta no ID de fls, e a ele me reporto para fins descritivos.

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal (ID 256839813) em face de decisão proferida na data de 06.10.2021 (ID 256839812), pelo Exmo. Juiz Federal Silvio César Arouck Gemaque (9ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP), que rejeitou a denúncia oferecida em face de MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, nascido aos 01.01.1994, como incurso no artigo 304, c.c o artigo 297, ambos do Código Penal, em razão da não comprovação da materialidade delitiva e ausência de justa causa, nos termos do artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal (“faltar justa causa para o exercício da ação penal”).

Narra a r. denúncia (ID 256839802): 

“Foi instaurado Inquérito Policial para apurar a prática do crime de uso documento falso, vez que consta no Laudo de Perícia Papiloscópica nº 703/2019- NID/DREX/SR/PF/SP coincidência de digitais entre os estrangeiros MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED, nacional da Somália, filho de Abdulahi Mohamed e Zeinab Hasan Ali, nascido aos 01/01/1994, e AHMED ALI ABDIRAHMAN, nacional da Quênia, nascido aos 10/08/1991, tratando-se, possivelmente, da mesma pessoa.

Consta dos autos que, no dia 04/09/2017, AHMED ALI ABDIRAHMAN formalizou pedido de refúgio (SEI 08505.059829/2017-04) junto ao NRE/DELEMIG/DREX/SR/PF/AP, tendo anteriormente se apresentado, em 26/08/2017, perante as autoridades migratórias no Aeroporto Internacional de Guarulhos portando o passaporte C045229 e visto de entrada nº 442713MK.

Ademais, consoante pesquisa realizada no SISMIGRA, foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/SF, em data não identificada, em favor de AHMED ALI ABDIRAHMAN, tendo sido o referido registro concedido com validade indeterminada sob o nº RNM F0825355.

Assim sendo, evidente a existência de materialidade e autoria delitiva, vez que o denunciado MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED utilizou-se de documentação fraudulenta para ingressar no Brasil em nome da pessoa ficta de AHMED ALI ABDIRAHMAN, incorrendo na figura típica prevista no artigo 297 e 304, ambos do Código Penal.

Ademais, a materialidade delitiva é confirmada pelo Laudo Pericial nº 703/2019-NID/DREX/SR/PF/SP, o qual será oportunamente juntado aos autos, consoante pedido feito na cota por este Parquet, vez que, por um lapso, não consta acostado aos presentes autos.

Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL denuncia MOHAMED ABDULLAHI MOHAMED pelo crime previsto no artigo 304 e incurso nas penas do artigo 297, ambos do Código Penal, requerendo que, recebida e autuada a presente, seja citado o denunciado para apresentação de resposta à acusação, designada audiência para seu interrogatório e dado prosseguimento ao feito, pelo rito ordinário, até a prolação da final sentença condenatória, nos termos dos artigos 394 a 405 do Código de Processo Penal.” 

O juízo de origem rejeitou a denúncia (ID 256839812), com a seguinte fundamentação, in verbis:

 “Em que pese a argumentação expendida pelo MPF, entendo que não há a justa causa exigida pelos artigos 304 c.c. 297 do Código Penal a propiciar o recebimento da denúncia ofertada.

Estabelecem os mencionados artigos:

Art. 304. Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts.297 a 302:

Pena – a cominada à falsificação ou à alteração

(...)

 Art. 297. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:

Pena – Reclusão, de dois a seis anos, e multa.

(...)

Conforme registrado na própria denúncia, há indícios de que Mohamed Abdullahi Mohamed e Ahmed Ali Abdirahman possivelmente seriam a mesma pessoa, em face da coincidência de impressões digitais.

Contudo, não há nos autos qualquer documento a comprovar a verdadeira identidade de Mohamed Abdullahi Mohamed, haja vista que não há qualquer registro de sua existência, a não ser a própria declaração do denunciado (ID 40050975-fls.46). Não há registros de entrada ou saída do país ou mesmo informação em qualquer outro banco de dados a confirmar esta como verdadeira identidade (ID 40050975-fls.21, fls.22, fls.23, fls.24, fls.25, fls.26, fls.27).

É claro que o fato de dois nomes possuírem a mesma impressão digital indica que algum deles ou os dois são falsos. Todavia, não há nos autos demonstração de qual deles seria inidôneo, apenas as declarações do denunciado, as quais poderiam ser facilmente demonstradas por meio de informações obtidas no país de origem do denunciado, Somália.

Também não se mostra presente a comprovação de informações sobre Ahmed Ali Abdirahman e o passaporte utilizado na entrada no Brasil (conforme ID 40040975-fls.33) e na solicitação de refúgio perante a Delemig/DPF/SP (conforme ID 40040975-fls.29), vez que não houve a apreensão do mencionado passaporte, nem a obtenção de dados perante o país expedidor, Quênia.

Depreende-se, assim, a ausência de materialidade do delito de uso de documento falso imputado ao denunciado. Não se está a afirmar a necessidade do documento e de perícia, a quais são prescindíveis ao delito em tela, mas a existência de outros elementos a comprovar, de fato, a falsidade documental.

Assim, diante da não comprovação da materialidade delitiva e ausência de justa causa, rejeito a denúncia de ID 77062543-fls.03/06, com fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.”

 Pedi vista dos autos para melhor analisar a ausência de justa causa para o início da ação penal.

Além da fundamentação de ausência de materialidade delitiva, constante na decisão recorrida, há que se analisar a questão posta também sob o aspecto do caráter fragmentário do Direito Penal. Vejamos.

Compulsando os autos, verifica-se que consta do Relatório Final da Polícia Federal (ID 256839800 – fls. 4), o quanto segue, in verbis

INQUÉRITO POLICIAL:IPL 2019.0015332-SR/PF/SP

Processo Judicial nº:

Data do fato: 04/09/2017

Data do protocolo: 19/12/2019

Data da instauração: 31/08/2020

Data do término da investigação: 06/08/2021

Tipos penais: Art. 307, Art. 299, Art. 309, Art. 304 - Decreto Lei 2.848/1940 - Código Penal

I - FATO INVESTIGADO E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

 O presente Inquérito Policial foi instaurado por Portaria na data supra mencionada, para apurar O Laudo de Perícia Papiloscópica nº 703/2019-NID/DREX/SR/PF/SP aponta a coincidência de digitais entre os estrangeiros MOHAMED ABDULAHI MOHAMED, nacional da Somália, filho de Abdulahi Mohamed e de Zeinab Hasan Ali, nascido aos 01/01/1994, e AHMED ALI ABDIRAHMAN, nacional no Quênia, nascido aos 10/08/1991, que, em 04/09/2017, formalizou requerimento de refúgio (SEI 08505.059829/2017-04) perante o NRE/DELEMIG/DREX/SR/PF/SP, reportando-se ainda que, em 26/08/2017, também se apresentou como AHMED perante as autoridades migratórias do Aeroporto Internacional de Guarulhos, portando o passaporte C045229 e visto de entrada nº 442713MK. Reporta-se, por fim, o resultado da pesquisa realizada no SISMIGRA que indica que, em data não identificada, foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada.

II- DAS DILIGÊNCIAS REALIZADAS

Na fl. 5, encontra-se expediente encaminhado pela NUCART/DELEMIG/DREX/SR/PF/SP. Nas fls. 46/48, encontra-se o auto de qualificação e interrogatório de MOHAMED ABDULAHI MOHAMED OU AHMED ALI. Na fl. 77, encontra-se a Informação Policial informando que o investigado não foi encontrado para intimação.

III- PROVA DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA

Destarte, analisando as evidencias carreadas não restou devidamente cristalina a materialidade delitiva, bem como a autoria devidamente delineada, s.m.j.

IV- CONCLUSÃO

Posto isto, encerram-se os trabalhos de Polícia Judiciária, remetendo-se os presentes autos para apreciação e demais providências que se entendam pertinentes, permanecendo este órgão policial à disposição para eventuais outras diligências que sejam imprescindíveis ao oferecimento da denúncia (art. 16 c/c art. 46/CPP).

 Conforme se verifica, a autoridade policial entendeu pela insuficiência de materialidade e até mesmo autoria para o oferecimento da denúncia, se colocando à disposição para eventuais outras diligências.

Além disso, verifica-se do referido Relatório Policial, que “foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada.”

Diante de tais fatos, faz-se necessário analisar a legislação que regula o ingresso do estrangeiro no território nacional e o pedido de refúgio, prevista na Lei n.º 9.474/1997, por oportuno ao caso dos autos:

Do Ingresso no Território Nacional e do Pedido de Refúgio

Art. 7º O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível.

§ 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.

§ 2º O benefício previsto neste artigo não poderá ser invocado por refugiado considerado perigoso para a segurança do Brasil.

Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.

Art. 9º A autoridade a quem for apresentada a solicitação deverá ouvir o interessado e preparar termo de declaração, que deverá conter as circunstâncias relativas à entrada no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país de origem.

Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.

§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento.

§ 2º Para efeito do disposto no parágrafo anterior, a solicitação de refúgio e a decisão sobre a mesma deverão ser comunicadas à Polícia Federal, que as transmitirá ao órgão onde tramitar o procedimento administrativo ou criminal.

A Lei n.º 9.474/97 confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado (art. 1º desta lei), ou seja, que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conferindo-lhe direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º desta lei).

Por determinação do art. 8º da mencionada Lei n.º 9.474/97, o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não impede que ele faça o requerimento de refúgio às autoridades competentes, o que demonstra que, salvo raras exceções (arts. 7º, § 2º c.c art. 3º, III, desta mesma lei), sua entrada irregular (ilegal ou ilícita), em território nacional, não obsta que alcance a qualidade jurídica de refugiado.

Nestes termos, se a pessoa qualificada como "refugiado" pratica algum ato ilícito para conseguir efetivar sua entrada em território nacional, e tal ato ilícito se correlacionar diretamente a esta empreitada, o procedimento (cível, administrativo ou criminal) deve ser arquivado, com fundamento no § 1º, do art. 10 da lei em estudo, acima descrito.

Isso se dá porque, pela interpretação sistemática e teleológica da legislação, verifica-se que a vontade do legislador foi de conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado, conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso país, depois de ter um passado sofrido em sua terra natal.

No caso específico dos autos, as impressões digitais indicam que Mohamed Abdullahi Mohamed e Ahmed Ali Abdirahman são a mesma pessoa e, apesar de não se ter informações a respeito do pedido de reconhecimento da condição de refugiado do recorrido, sabe-se que “foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada. (negritei)

Nestes termos, entendo deva ser mantida a decisão recorrida, que rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, por ausência de justa causa, considerando-se o caráter fragmentário do direito penal, haja vista não haver "sentido lógico (pré-jurídico) e jurídico no fato de órgão do Estado brasileiro permitir a permanência de estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e autorizar-se, em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso".

Em caso similar, ou seja, no Recurso Em Sentido Estrito n.º 0006745-88.2016.4.03.6119/SP (número antigo 2016.61.19.006745-4/SP), apresentei voto vista no mesmo sentido, entretanto, fiquei vencido. Foram opostos Embargos Infringentes, os quais foram providos, para prevalecer o voto vencido de minha lavra, cuja ementa a seguir se descreve:

 “PENAL. PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. USO DE DOCUMENTO FALSO. PASSAPORTE. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REFÚGIO. SUSPENSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. DIREITO DE PERMANÊNCIA. OBTENÇÃO. DENÚNCIA. JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE DA CONDUTA.

1. Há justa causa para a ação penal se presentes os elementos que demonstrem a existência de fundamento de direito e de fato para a instauração do processo, a partir do caso concreto.

2. O tratamento jurídico especial conferido pelo ordenamento jurídico brasileiro ao refugiado encontra fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da prevalência dos direitos humanos.

3. A concessão da permanência definitiva ao estrangeiro, por via administrativa, denota o desinteresse do Estado em punir sua conduta relativa à entrada no País mediante uso de passaporte falso.

4. Embargos infringentes acolhidos.” (EIfNu - EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE - 8575 / SP 0006745-88.2016.4.03.6119 – Rel. Des. Fed. Mauricio Kato - e-DJF3 Judicial 1 DATA:28/04/2021)

Aliás, cumpre descrever o parecer da Procuradoria Regional da República (naqueles autos, ou seja, 2016.61.19.006745-4/SP), por ser pertinente, in verbis:

(...)

"Dessarte, como já relatado, a questão recursal também deslinda com o aspecto material da conduta imputada, qual seja, de que não deve ser recebida a denúncia diante do caráter fragmentário do Direito Penal, pois a concessão de permanência ao Recorrido via administrativa evidencia o desinteresse do Estado em punir sua conduta pela entrada ilegal no País, conforme específicos trechos de fls. 59.

(...)

Em apertada síntese, o CNIg defere a concessão de permanência definitiva ao estrangeiro refugiado ou asilado que comprove possuir condições de trabalho no Brasil, atendendo às demandas nacionais, numa clara materialização normativa do princípio fundamental da República Federativa do Brasil como o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da CRFB/88), e a prevalência dos Direitos Humanos enquanto princípio fundamental a ser seguido nas suas relações internacionais (art. 4º, inciso II, da Magna Carta).

Pouco tempo depois, veio a lume a Lei nº 9.474/97, a qual confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado - em apertadíssima síntese, àquele que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conforme dicção do art. 1º desta Lei - sendo que a especial condição benéfica de refugiado concede ao Requerente o direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º da Lei n.º 9.474/97).

Por força normativa clara (art. 8º da Lei nº 9.474/97), o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não é impeditivo à solicitação do refúgio às autoridades competentes, o que evidencia que, salvo raras exceções (pessoa considerada perigosa para a segurança do Brasil ou envolvida em gravíssimos crimes, tais como contra a paz, humanidade, hediondo ou tráfico de drogas - arts.7º, § 2º c/c art. 3º, III, ambos da lei nº.9.474/97, a entrada irregular, ilegal ou ilícita em território nacional não é impeditivo à obtenção do status jurídico de refugiado .

Materializando esta orientação normativa, o art. 10 da Lei nº. 9.474/97 é taxativo ao dispor que, realizado o pedido de refúgio ao CONARE, será suspenso o procedimento administrativo (inquérito policial, por exemplo) ou o judicial (ação penal) referente ao fato da entrada irregular no Brasil pelo solicitante do refúgio.

O § 1º do art. 10 da Lei nº. 9.474/97 é ainda mais contundente em asseverar que, caso o refúgio seja concedido pela Autoridade Competente, o procedimento criminal então sobrestado será arquivado, desde que, in verbis: "demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento".

Portanto, se houve a prática de algum ilícito (civil, penal ou administrativo) pela entrada ilegal, ilícita ou irregular do estrangeiro em território nacional, e àquele se correlacionar diretamente a esta, deve haver, ex vi legis, o arquivamento do procedimento (cível, administrativo ou criminal) então sobrestado, justamente, porquê a Lei quis conferir um tratamento jurídico especial ao refugiado , mormente diante do seu passado sofrido, o qual busca no Brasil uma luz no fim do túnel na tentativa de reconstruir uma vida digna.

Destaque-se que o mero protocolo do pedido de refúgio pelo peticionário já lhe garante sua estada regular provisória no País até a definição do processo, sendo que o Ministério do Trabalho expedirá a competente carteira de trabalho provisória para garantir o reinício da vida laboral pelo Requerente (art. 21 da Lei nº. 9.474/97).

Gize-se que o status de refugiado impede a extradição do território nacional se houve coincidência dos fatos motivadores (art. 33 da Lei n.º 9.474/97), ao passo que, a priori, impede a expulsão, salvo daquele caso considerado perigoso para a sociedade ou ordem pública nacional (art. 37 da Lei nº. 9.474/97).

Em observação sistêmica da Legislação, nota-se que a vontade do legislador é conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado, conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso País, depois de ter um passado sofrido no seu local de origem.

Tal intelecção resta ainda mais reforçada pela edição e vigência da novel Lei nº 13.445/2017, a qual, na mão da prevalência dos Direitos Humanos como princípio fundamental da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais (art. 4º, II, da CRFB/88), fora ainda mais benéfica aos imigrantes que buscam acolhida em território nacional.

Além deste novíssimo regime de migração - apesar da Lei referir-se que não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais acerca de refugiado s (art. 2º) - nota-se que dispõe sobre a autorização de residência, em território nacional, ao imigrante que, dentre outros, seja por finalidade de acolhida humanitária (art. 30, Ii, "e"), ao passo que a referida Lei dispõe que o solicitante faz jus à residência provisória até a definição de seu pedido (art. 31, § 4º), sendo que a concessão de residência pode ser conferida independentemente da situação migratória, na forma do art. 31, § 5º, da Lei n.º 13.445/2017.

Portanto, a conjectura normativa envolvendo a análise conglobante da Constituição Federal de 1988, das Leis, Decretos e Resoluções Pertinentes, permite afirmar que a vontade do Legislador é conferir um tratamento mais benéfico à pessoa estrangeira solicitante de refúgio, diante do seu reconhecido passado sofrido, visando uma melhora de vida em nosso território nacional.

Nesta senda, cumpre analisar que o arquivamento do pedido de refúgio feito pelo Recorrido OUSMANE SANKHE no CONARE não se deu porque não fora reconhecida sua condição de refugiado nos moldes legais - não adimplemento dos requisitos legais delineados nos arts. 38 e 39 da lei n.º 9.474/97 - mas sim por sua desistência manifestada em virtude de ter obtido permanência definitiva pelo CNIg.

Noutras palavras, adaptando as letras do ofício do CONARE de fls. 49 ao jargão judicial, houve a extinção sem resolução do mérito do pedido de refúgio pela perda superveniente de objeto, com aplicação analógica da ratio legis do art. 485, incisos VI e VII, do Novo CPC (Lei nº. 13.105/2015), possibilitada pela norma de extensão prevista no art. 15 do mesmo Codex (diálogo das fontes).

Ou seja, o pedido de refúgio de OUSMANE fora arquivado porque obteve, por uma via mais expedita, o reconhecimento de que pode permanecer, em território nacional, de modo permanente, para exercer seu trabalho digno, atendendo às demandas laborais nacionais, e não porque não ostenta o caráter legal de refugiado .

Tal ótica é reforçada pela certidão da Oficiala de Justiça do dia 25/04/2018, a qual intimou o Recorrido OUSMANE no seu ambiente de trabalho no dia 24/04/2018 em Londrina/PR (fls. 88), razão pela qual afigura-se que o Recorrido está empenhado em continuar trabalhando em território nacional, reconstruindo sua vida de modo mais digno, sendo que as condições desumanas de vários Países Africanos são fatos notórios, noticiados há muitos anos pelas imprensas nacional e internacional, dentre os quais o País de origem do Recorrido - Senegal (https://pt.wikipedia.org/wiki/Senegal).

Por fim, nota-se que o MPF não cuidou de juntar aos autos certidões de antecedentes criminais da Justiça Federal da 3ª e 4ª Regiões, bem como das Justiças Estaduais de São Paulo ou Paraná, as quais poderiam indicar antecedentes desabonadores do Recorrido o seu envolvimento noutras infrações penais, a indicar que fosse uma pessoa perigosa aos interesses nacionais.

Na ausência de tal prova, a qual era facilmente produzível pelo MPF ou pelo Juízo a seu pedido - não consta nos autos qualquer requerimento neste sentido - deve-se presumir a primariedade e bons antecedentes do Recorrido OUSMANE, o qual, saliente-se, fora intimado no seu local de trabalho.

Assim, antes de se socorrer da principiologia - o que é deveras correto e acertado - mostra-se que, ao contrário do quanto propalado nas razões recursais ministeriais, a interpretação sistêmica e teleológica da nossa Legislação (Constituição Federal de 1988, Lei nº. 6.815/80, Lei nº. 8.490/92, Lei nº. 9.474/97, Lei n.º 13.445/2017 e do Decreto Presidencial nº. 840/1993, da Portaria nº. 634/1996 do Ministério do Trabalho e das Resoluções Normativas nº. 06/1197 e 91/2010 do CNIg), infere-se que a concessão de permanência definitiva ao Recorrido OUSMANE importa a anistia legal prevista no art. 10, § 1º, da Lei n.º 9.474/97, a implicar, pois, a inexistência de justa causa para a ação penal, na exata medida em que o uso de passaporte falso tem correlação com sua entrada irregular no Brasil, conforme já supra exposto.

Portanto, opina-se pelo desprovimento do recurso, mantendo-se a rejeição da denúncia, diante da inexistência de justa causa para a deflagração da ação penal." (negritei).

Nestes termos, se o recorrido se encontra residente no país, com a concessão de permanência definitiva (RNM F0825355), com validade indeterminada, entendo que a mens legis é a mesma, devendo ser mantida a rejeição da denúncia, diante da inexistência de justa causa para a deflagração da ação penal.

Diante do exposto, NEGO provimento ao Recurso em Sentido Estrito, interposto pelo Ministério Público Federal.

É o voto. (sic, Id n. 273430519)

 Em sede de embargos infringentes, o acusado requer que prevaleça o voto vencido que negou provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal.

Sustenta que não há justa causa para a ação penal em razão da condição de refugiado do acusado (Id n. 276602929).

Não lhe assiste razão.

O acusado foi denunciado pelo cometimento do crime do art. 304 c. c. o art. 297, por ter utilizado passaporte falso em nome de Ahmed Ali Abdirahman, nacional da Quênia, para ingressar no Brasil, em 26.08.17, e posteriormente solicitar refúgio, em 04.09.17 (Id n. 256839802).

Para instruir o Inquérito de Expulsão n. 872/19, instaurado contra o acusado, foi elaborado o Laudo de Perícia Papiloscópica n. 703/2019, que concluiu que as impressões digitais de Mohamed e Ahmed inseridas no banco de dados do sistema automatizado de identificação pertenciam a mesma pessoa (Id n. 256839808).

O acusado confessou a utilização do documento falso no interrogatório realizado em fase policial, ao afirmar que, em 2017, usou o passaporte em nome de Ahmed Ali Abdirahman para entrar no Brasil e após para solicitar o refúgio.

O apelante também confessou ter utilizado posteriormente passaporte falso em nome do norueguês Leon Rans, em 24.07.19, para tentar sair do Brasil com destino ao Peru, com a justificativa de que iria a passeio (fls. 46/47 do Id n. 256839787), o que foi confirmado com a cópia da sentença condenatória juntada nestes autos, proferida na Ação Penal n. 0001575-33.2019.4.03.6119, pela qual o acusado foi condenado e preso, de 24.08.19 a  10.12.19, por falsa identidade e uso de documento falso em nome de Leon Rans (fl. 47 do Id n, 256839787).

Realizada a consulta no sistema de tráfego internacional foi constatada a entrada de Leo Hans no Brasil, em 04.05.19, situação que não foi esclarecida, uma vez que o acusado negou ter saído do Brasil após a sua chegada, em 2.017 (fls. 42/43 do Id n. 256839787).

Observa-se da confissão do acusado e dos documentos juntados aos autos que mesmo após solicitado o pedido de refúgio tentou sair do país utilizando-se de passaporte falsificado em nome de terceiro.

Consta também, em anexo à denúncia, pedido de prisão preventiva formulado pelo Ministério Público Federal, considerando que o acusado não foi encontrado no endereço fornecido, no qual os policiais foram informados por vizinhos que o apelante se encontrava fora do País, provavelmente em Marrocos (p. 2 do Id n. 256839802).

Também não foi localizado o registro de Mohamed Adulahi Mohamed quando consultado o Sistema Nacional de Estrangeiros (SINCRE) nem no Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGFRA) (fls. 24/25 do Id n. 256839787).

Contudo, foi encontrado um pedido de solicitação de refúgio em nome de Ahmed, na categoria de alerta e sem a indicação do seu deferimento (fl. 29 do Id n. 256839787).

Portanto, constata-se que a denúncia preencheu os requisitos do art. 41 do CPP, pois há lastro probatório mínimo de autoria e de materialidade a configurar a justa causa para o recebimento da denúncia.

No caso, presente a justa causa, não se verifica adequado obstar à acusação o exercício da ação penal pela ausência do passaporte produzido em nome de Ahmed e da documentação original do acusado, uma vez que em fase judicial será oportunizada a produção de provas, em observância ao contraditório e ampla defesa para o esclarecimento dos fatos objeto da denúncia.

Ademais, de acordo com o art. 10 da Lei 9.474/97, que trata da condição de refugiado, para que o procedimento criminal seja suspenso, a solicitação deverá ser apresentada de acordo com o art. 7º da citada lei, o que não foi feito. Ao contrário, o acusado solicitou refúgio com documento falsificado e tentou sair do território nacional sem autorização do Governo Brasileiro.

Nesse sentido o parecer da Procuradoria Regional da República:

No caso dos autos, em que pese o sustentado no bojo do voto vencido, não restou demonstrada a condição de refugiado do réu, ora embargante, de modo a incidir o preconizado pelo artigo 10, § 1º, da Lei nº 9.474/97, in verbis: "Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento". Tanto é assim que, no voto condutor, restou assentada a possibilidade de reanálise de tal questão pelo Juízo de origem, "amparado pelas provas produzidas na instrução criminal e, especificamente, por informação atualizada sobre o pedido de refúgio do acusado (SEI n.º 08505.059829/2017-04)" (ID 272919825).

Ademais, como se sabe, embora tenha havido a concessão de permanência definitiva (RNM F0825355), com validade indeterminada, em favor do réu, ora embargante, isto não significa que houve o reconhecimento da condição de refugiado, até porque há diversos tipos de permanência de estrangeiro em território brasileiro, quais sejam:

(...)

Vê-se, portanto, que os requisitos para pedido de refúgio e para as diversas modalidades de permanência em território nacional estão previstos em normas distintas, com condições diferentes. Assim, inadmissível assemelhar a concessão de permanência ao estrangeiro à de refúgio, para fins de arquivamento do procedimento criminal.

Desse modo, de acordo com o conjunto probatório existente nos autos, uma vez que, in casu, houve tão somente a concessão da permanência, tal fato, por si só, não conduz à atipicidade da conduta imputada. (Id. n. 277498674)

Verifica-se, também, que não se pode confundir o enquadramento no regime geral de permanência de estrangeiros no território nacional, destinado aos que perderem a condição de refugiado, prevista no art. 39, parágrafo único, da Lei n. 9.474/97, com a concessão de permanência de estrangeiro prevista na Resolução Normativa n. 6/97, destinada ao detentor da condição de asilado ou refugiado, o que não ficou esclarecido com relação ao apelante quando consultado o Sistema Nacional de Estrangeiros (fls. 29/31 do Id n. 256839787).

Sendo assim, considerando que não consta nos autos a comprovação da condição de refugiado em nome do réu, deve prevalecer o voto condutor que deu provimento ao recurso em sentido estrito para receber a denúncia.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO aos embargos infringentes.

É o voto.


E M E N T A

 

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. USO DE DOCUMENTO FALSO. PASSAPORTE. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REFÚGIO. DIREITO DE PERMANÊNCIA. OBTENÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. DECISÃO DE REJEIÇÃO DA DENÚNCIA MANTIDA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA.

1. O Juízo a quo rejeitou a denúncia por ausência de comprovação da materialidade e ausência de justa causa.

2. In casu, a autoridade policial entendeu pela insuficiência de materialidade e até mesmo autoria para o oferecimento da denúncia, se colocando à disposição para eventuais outras diligências.

3. Além disso, verifica-se do referido Relatório Policial, que “foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada.”

4. A Lei n.º 9.474/97 confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado (art. 1º desta lei), ou seja, que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conferindo-lhe direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º desta lei).

5. Por determinação do art. 8º da mencionada Lei n.º 9.474/97, o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não impede que ele faça o requerimento de refúgio às autoridades competentes, o que demonstra que, salvo raras exceções (arts. 7º, § 2º c.c art. 3º, III, desta mesma lei), sua entrada irregular (ilegal ou ilícita), em território nacional, não obsta que alcance a qualidade jurídica de refugiado.

6. Nestes termos, se a pessoa qualificada como "refugiado" pratica algum ato ilícito para conseguir efetivar sua entrada em território nacional, e tal ato ilícito se correlacionar diretamente a esta empreitada, o procedimento (cível, administrativo ou criminal) deve ser arquivado, com fundamento no § 1º, do art. 10 da lei em estudo, acima descrito.

7. Isso se dá porque, pela interpretação sistemática e teleológica da legislação, verifica-se que a vontade do legislador foi de conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado , conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso país, depois de ter um passado sofrido em sua terra natal.

8. No caso específico dos autos, as impressões digitais indicam que Mohamed Abdullahi Mohamed e Ahmed Ali Abdirahman são a mesma pessoa e, apesar de não se ter informações a respeito do pedido de reconhecimento da condição de refugiado do recorrido, sabe-se que “foi solicitado registro de permanência perante a DELEMIG/DREX/SR/PF/DF, em nome de AHMED, tendo sido concedido o RNM F0825355, com validade indeterminada.

9. Mantida a decisão recorrida, que rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, por ausência de justa causa, considerando-se o caráter fragmentário do direito penal, haja vista não haver "sentido lógico (pré-jurídico) e jurídico no fato de órgão do Estado brasileiro permitir a permanência de estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e autorizar-se, em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso.

10. Embargos Infringentes acolhidos.

 

 

 

 

 

 

 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quarta Seção, por maioria, decidiu dar provimento aos embargos infringentes, nos termos do voto do Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI, no que foi acompanhado pelos Desembargadores Federais PAULO FONTES e MAURÍCIO KATO, e pelo Juiz Federal Convocado FÁBIO MUZEL, vencidos os Desembargadores Federais ANDRÉ NEKATSCHALOW (Relator), FAUSTO DE SANCTIS e NINO TOLDO, que negavam provimento aos Embargos Infringentes, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.