AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5015620-78.2019.4.03.0000
RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE
AGRAVANTE: DAYANA DA SILVA GONCALVES
Advogado do(a) AGRAVANTE: MARIANA MARQUES GUTIERRES - MS22445-A
AGRAVADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
OUTROS PARTICIPANTES:
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5015620-78.2019.4.03.0000 RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE AGRAVANTE: DAYANA DA SILVA GONCALVES Advogado do(a) AGRAVANTE: MARIANA MARQUES GUTIERRES - MS22445-A AGRAVADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL [cb] R E L A T Ó R I O Agravo de instrumento interposto por Dayana da Silva Gonçalves contra decisão (Id 16644342 dos autos originários) que, em sede de ação ordinária, indeferiu a tutela de urgência requerida nos seguintes termos (Id 14790844 - pág. 13 daqueles autos): [...] c. Que seja concedida TUTELA DE URGÊNCIA, determinando-se à Ré que realize, de imediato, inaudita altera pars, a matrícula da Requerente no curso de Zootecnia – Bacharelado, até o julgamento final da presente demanda, momento em que, certamente, será concedida a vaga, em definitivo à parte Autora, determinando-se desde logo a fixação de astreintes no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais) em caso de descumprimento da decisão, nos termos do artigo 536, caput e § 1º e artigo 537, caput e § 4º, ambos do Código de Processo Civil. [...] Sustenta a agravante, em síntese, que faz jus à vaga para a qual concorreu, visto que foi convocada na 5º chamada do SISU para a realização de matrícula, é dotada das características físicas compatíveis com a raça parda e é oriunda de escola pública, tal como exigido no edital. Afirma que não houve qualquer fundamentação para o indeferimento de sua autodeclaração pela banca avaliadora de veracidade, o que configura ilegalidade, motivo pelo qual pleiteia a tutela, uma vez que as aulas do 2º semestre de 2019 iriam começar no dia 22/7/2019. Foi deferida a antecipação da tutela recursal (Id 80460215). Contraminuta apresentada (Id 85325207). É o relatório.
DECLARAÇÃO DE VOTO A EXMA. SRA. DRA. DESEMBARGADORA FEDERAL MARLI FERREIRA: Ousei divergir do E. Relator por entender que a confirmação da condição do fenótipo de negro ou pardo pela Banca de Avaliação da Veracidade da Declaração é um instrumento para evitar fraudes e o uso indevido das cotas por quem não possui esse direito. De acordo com o art. 294 do CPC, a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência. O art. 300 do CPC estabelece como requisitos para a tutela de urgência: a) a probabilidade ou plausibilidade do direito; e b) o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Esse artigo assim dispõe: "Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. §1º Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la. §2º A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia. §3º A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão." Depreende-se da leitura do artigo acima que se revela indispensável à entrega de provimento antecipatório não só a probabilidade do direito, mas também a presença de perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, sendo que esses requisitos devem ser satisfeitos cumulativamente. Nesse contexto, permite-se inferir que o novo Código de Processo Civil, neste aspecto, não alterou as condições para deferimento de tutela antecipatória fundada em urgência (anterior art. 273, I, do CPC/73). No caso concreto, não se encontram presentes os requisitos necessários ao deferimento da pretendida tutela. Destaco que os critérios de matrícula, avaliação e promoção configuram atos discricionários das universidades, que podem ser escolhidos com liberdade, seguindo disposições previamente estabelecidas no Regimento Geral da Instituição e respeitada a legislação de regência e a Constituição Federal. A Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, sendo que os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência. Aplicável à espécie o artigo 1º da referida Lei cuja redação ora transcrevo: “Art. 1o As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)“ Referida Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 7.824/2012 e a Portaria Normativa nº 18/2012 do Ministério da Educação, que são anteriores à abertura do edital. Como se vê o requisito para que a agravante participasse do ingresso por reserva de vaga (cotas) era que fosse negra, parda ou indígena, o que não restou comprovado na entrevista em questão. A agravante declarou que era parda e que autorizava a verificação dos dados, sabendo que a omissão ou falsidade de informações resultaria nas punições cabíveis, inclusive a desclassificação do candidato. Assim, vê-se que a recorrente já tinha ciência de que a Universidade poderia, a qualquer momento, verificar as informações declaradas e cancelar sua matrícula, haja vista que esta se candidatou a vaga de cotista, sem que tivesse o fenótipo de parda, o que fere o princípio da legalidade. É certo que cabe a Administração rever seus atos para corrigir vícios cometidos, conforme Súmula 473 do STF: “Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.” O Edital que rege a convocação em questão tem expressa previsão de que “o candidato convocado para matrícula nas vagas reservadas (cotas) deve comprovar sua condição de acordo com os itens 3.4 deste Edital, de acordo com a cota escolhida”, traçando as seguintes regras (ID 244573612): “3.4. A Banca de Avaliação da Veracidade da Autodeclaração analisará as características fenotípicas próprias das pessoas pretas ou pardas, sendo elas: a cor da pele parda ou preta, a textura do cabelo crespo ou enrolado, o nariz largo e lábios grossos e amarronzados. 3.5. O comparecimento para a Banca de Avaliação da Veracidade da Autodeclaração é pessoal e intransferível. Em hipótese alguma a Banca fará a avaliação de verificação por procuração, correspondência ou qualquer outro meio digital. 3.6. A confirmação da veracidade da autodeclaração pela banca, instituída pela UFMS, é condição obrigatória para efetivação da matrícula. 3.7. O não comparecimento do candidato ou o indeferimento da autodeclaração implicam na perda da vaga. ...” Como se vê, nos casos da espécie, não são considerados os aspectos genéticos, mas sim os aspectos físicos, na forma determinada pelo edital. Como é sabido, o edital é lei entre as partes e os concorrentes tiveram conhecimento das regras nele esculpidas, inclusive o fato de que teria que comprovar os requisitos legais junto a uma comissão verificadora específica da UFMS. Dessa forma, a princípio, tenho que a Universidade apenas fez cumprir as regras contidas no edital do processo seletivo, sem estabelecer critérios e exigências não previstos no instrumento convocatório. Por outro ângulo, observo que não cabe ao Poder Judiciário substituir-se à banca avaliadora na análise fenotípica da autora e de sua correspondente classificação racial, devendo limitar-se a verificar a ocorrência de ilegalidade ou teratologia no estabelecimento de tal avaliação e na sua realização. Destarte, não merece acolhida a pretensão deduzida neste recurso. Ante o exposto, nego provimento ao presente agravo de instrumento. É como voto.
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5015620-78.2019.4.03.0000
RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE
AGRAVANTE: DAYANA DA SILVA GONCALVES
Advogado do(a) AGRAVANTE: MARIANA MARQUES GUTIERRES - MS22445-A
AGRAVADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
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V O T O
Acerca da tutela de urgência, prevê o artigo 300 da lei processual civil:
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
§ 1o Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.
§ 2o A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia.
§ 3o A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.
A outorga de tutela de urgência, portanto, é exceção e, para o seu deferimento, é imprescindível que se verifiquem elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Nesse sentido o STJ: AgInt no RMS 60.885/SC.
A controvérsia reside em torno da legalidade do ato que indeferiu a matrícula da agravante no curso de Zootecnia, dado que concorreu à vaga prevista na Lei nº 12.711/2012 e Resolução nº 7/2018 da UFMS, porém concluiu a banca de veracidade da autodeclaração não estarem preenchidos os requisitos necessários à afirmação prestada, nos termos do edital de ingresso.
No caso, verifica-se dos autos que a recorrente apresentou autodeclaração ao considerar que se trata de pessoa preta ou parda, nos termos dos Editais Prograd/UFMS nº 39 e 40, de 7 de fevereiro de 2019 (item 3 – Id. 14790951 - Pág. 1 dos autos originais) e, em seguida, se submeteu à banca de avaliação de veracidade, a qual indeferiu a matrícula da candidata (Id. 14790952 - Pág. 2/4 dos autos originais). Apresentado recurso administrativo, a decisão foi mantida.
É cediço que no Brasil foi implementada a política pública denominada de “ações afirmativas”, para favorecer o ingresso de afrodescendentes nas universidades e no serviço público, com o escopo de reparar e compensar, no presente, um passado repulsivo de discriminação racial e, assim, o resgate de uma dívida histórica.
A fim de dar efetividade ao Estatuto da Igualdade Racial, promulgou-se a Lei nº 12.711/2012, que instituiu o sistema de cotas na educação superior federal brasileira e reservou nas instituições de ensino superior uma faixa de 50% das vagas para alunos provenientes do ensino médio em escolas públicas. Destinou metade para alunos cuja renda familiar per capita seja igual ou inferior a um salário-mínimo e meio (cota social) e a outra metade a discentes "autodeclarados negros, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência” na proporção da população local, segundo o censo do IBGE (cota racial e inclusiva de pessoas com deficiência).
Preconizam os artigos 1º e 3º da Lei nº 12.711/2012, in verbis:
“Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita .
[...]
Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.”
Com o escopo de conferir concretude aos dispositivos legais, o Ministério da Educação publicou a Portaria Normativa nº 18/2012, que tratou da política pública de ações afirmativas. Eis a dicção de seus artigos 3º e 14, in verbis:
“Art. 3º - As instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação - MEC que ofertam vagas de educação superior reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, inclusive em cursos de educação profissional técnica, observadas as seguintes condições:
I - no mínimo 50% (cinquenta por cento) das vagas de que trata o caput serão reservadas aos estudantes com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita; e
II - proporção de vagas no mínimo igual à da soma de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação do local de oferta de vagas da instituição, segundo o último Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, será reservada, por curso e turno, aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.
Parágrafo único - Os resultados obtidos pelos estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio - Enem poderão ser utilizados como critério de seleção para as vagas mencionadas neste artigo.
[...]
Art. 14 - As vagas reservadas serão preenchidas segundo a ordem de classificação, de acordo com as notas obtidas pelos estudantes, dentro de cada um dos seguintes grupos de inscritos:
I - estudantes egressos de escola pública, com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita:
a) que se autodeclararam pretos, pardos e indígenas;
b) que não se autodeclararam pretos, pardos e indígenas.
II - estudantes egressos de escolas públicas, com renda familiar bruta superior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita:
a) que se autodeclararam pretos, pardos e indígenas;
b) que não se autodeclararam pretos, pardos e indígenas.
III - demais estudantes.
Parágrafo único - Assegurado o número mínimo de vagas de que trata o art. 10 e no exercício de sua autonomia, as instituições federais de ensino poderão, em seus concursos seletivos, adotar sistemática de preenchimento de vagas que contemple primeiramente a classificação geral por notas e, posteriormente, a classificação dentro de cada um dos grupos indicados nos incisos do caput.”
Do exame das normas de regência sobre as cotas em instituições de ensino superior federais, constata-se que foi adotado pela legislação brasileira o critério da autodeclaração para a caracterização do candidato como negro, pardo ou indígena.
Em 2012 o Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, reconheceu a constitucionalidade do sistema de cotas para o ingresso nas universidades públicas federais, no julgamento da ADPF 186/DF, conforme acórdão assim ementado:
“Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.”
(ADPF 186, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014)
O Ministro Relator da ADPF 186/DF, Ricardo Lewandowski, em seu voto, ao examinar se os mecanismos utilizados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em consonância com a ordem jurídica constitucional brasileira, reconheceu que há duas maneiras distintas de identificação: a autoidentificação, que decorre da autodeclaração realizada pelo candidato, e a heteroidentificação, efetuada pela administração universitária, e asseverou que ambas são aceitáveis sob o enfoque constitucional, in verbis:
“Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros).
[...]
Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional.”
É cediço que as regras editalícias são vinculantes tanto para a universidade quanto para os candidatos.
Em juízo de cognição perfuntória, verifica-se que, em sua resposta na ação originária, a instituição de ensino adotou o critério fenótipo, desconsiderada a ascendência étnica, consoante informado pela comissão constituída para esse fim, com fundamento na Resolução nº 7/ 2018 da UFMS:
Art. 12. O método de aferição da veracidade da autodeclaração para pessoas pretas e pardas será realizado mediante a obrigatória presença da pessoa, por constatação visual e registro audiovisual e/ou fotográfico no momento da Banca, que ficará sob a guarda e por tempo determinado pela Prograd ou Propp.
§ 1º Serão observados os seguintes aspectos fenotípicos: cútis parda ou preta, textura do cabelo crespo ou ondulado, nariz largo e lábios grossos amarronzados.
§ 2º Para vagas reservadas às pessoas autodeclaradas pretas ou pardas serão consideradas única e exclusivamente os aspectos fenotípicos de pretos ou pardos como base para análise e validação, excluídos os aspectos referentes à ascendência e ao genótipo.
(...)
Aos autos originais foram acostados documentos, entre eles: fotografias da agravante quando criança e adulta, de seus avós e genitores (Id. 14790958 - Pág. 2/3), consulta de cadastro de paciente do SUS (Id. 14790954 - Pág. 1), certidão de nascimento.
A questão em tela não é se o critério utilizado estava previsto no edital ou se o Judiciário pode ou não se substituir à comissão de avaliação. É se os instrumentos aplicados para constatar ser a candidata negra (preta ou parda) atendem às garantias constitucionais ou legais. A universidade, por sua vez, informou em seu parecer que a candidata não cumpriu os requisitos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 12 da Resolução nº 7/2018 da UFMS, com a seguinte justificativa:
“A Banca constituída pela INSTRUÇÃO DE SERVIÇO Nº 37, de 07 de fevereiro de 2019, publicada no Boletim de Serviços da UFMS nº 6976, de 11/02/2019, realizou a avaliação do (a) candidato (a) acima identificado (a) para análise dos aspectos fenotípicos visualmente observáveis.
A Banca observou os aspectos fenotípicos contidos como critérios nos parágrafos 1 e 2 do Artigo 12 da RESOLUÇÃO Nº 7, de 29 de janeiro de 2018 que aprova as Normas Regulamentadoras de Avaliação e Verificação da Veracidade da Autodeclaração prestada por pessoas pretas ou pardas candidatas à reserva de vagas no processo seletivo de ingresso na graduação UFMS.
Sendo assim, a veracidade da autodeclaração apresentada pelo (a) candidado (a) foi:
DEFERIDA ( )
INDEFERIDA: NÃO COMPARECEU ( )
INDEFERIDA (X)
Justificativa: A avaliação da veracidade da autodeclaração considerou única e exclusivamente os aspectos fenotípicos – cútis: parda, ou preta: textura do cabelo: crespo, cacheado, ou ondulado; nariz largo; e, lábios grossos amarronzados, como base análise e validação, os quais foram verificados, obrigatoriamente, com a presença do (a) candidato (a), excluídos os aspectos referentes à ascendência e ao genótipo.” (grifo nosso)
Evidencia-se do parecer colacionado pela banca avaliadora que apenas foi mencionado o texto normativo empregado no exame da questão, o qual indica as características que cada candidato deve apresentar para fazer jus à vaga submetida ao sistema de cotas. Todavia, denota-se que, no caso, não foram apontados individualmente quais os critérios identificados ou não na agravante e que resultaram no indeferimento de sua matrícula. Note-se que a recorrente, tal como determina a regra, compareceu pessoalmente para fins de constatação visual e aferição da veracidade dos dados informados em sua autodeclaração, porém, no cotejo entre a norma e os elementos fornecidos pela candidata, nada foi informado acerca das conclusões obtidas pelos examinadores atuantes na instituição de ensino. É cediço que quando se negam ou limitam direitos, é garantia constitucional ter conhecimento da motivação que levou à negativa do interesse da parte contrária. Contudo, assim não procedeu a banca examinadora, de forma que o parecer carece de fundamentação. Constata-se, portanto que, em princípio, o ato administrativo de exclusão está eivado de vícios. Tanto a precariedade da avaliação fenotípica, como a falta de motivação clara e objetiva quanto à candidata em particular, pois não houve indicação dos fatos e fundamentos jurídicos quando (I) neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses e (III) decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública. Nesse sentido: Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso), Silvio Luís Ferreira da Rocha (Manual) e Maria Sylvia Zanella de Pietro (Direito).
Nesse contexto, não pode a candidata ser prejudicada de efetuar sua matrícula na universidade, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica, da razoabilidade e devido processo legal, visto que, por se tratar de ação ordinária, é possível a dilação probatória a fim de determinar a regularidade do ato e a continuidade no curso superior com esteio no resultado da prova produzida em juízo.
Sobre a questão versada nos autos, cito o seguinte precedente do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
“ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA DE URGÊNCIA. ENSINO SUPERIOR. SISTEMA DE COTAS. COMISSÃO DE VERIFICAÇÃO. CONCLUSÃO APENAS PELO CRITÉRIO DA HETEROIDENTIFICAÇÃO. ILEGALIDADE. HAVENDO DÚVIDA QUANTO À DEFINIÇÃO DO GRUPO RACIAL DO CANDIDATO PELA COMISSÃO DEVE PREVALECER A PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DA AUTODECLARAÇÃO. 1. O Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da Lei n.º 12.990/14, entendendo legítimo o controle da autodeclaração a partir de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa. 2. É ilegal o parecer emitido pela comissão de verificação que, de forma sumária, conclua apenas pelo critério da heteroidentificação, sem qualquer fundamentação e sem levar em consideração a autodeclaração do candidato e os documentos por ele juntados. 3. Diante da subjetividade que subjaz à definição do grupo racial de uma pessoa por uma comissão avaliadora e havendo dúvida quanto a isso, tem-se que a presunção de veracidade da autodeclaração deve prevalecer.”
(TRF4, AG 5037839-92.2018.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relator para Acórdão ROGERIO FAVRETO, juntado aos autos em 25/04/2019) (grifei)
Presente o perigo da demora, em razão do início das aulas.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento, a fim de reformar a decisão agravada e deferir a tutela de urgência para determinar seja efetivada a matrícula da agravante no curso para o qual foi aprovada na UFMS, com livre acesso às aulas, avaliações e demais atividades desenvolvidas pelos acadêmicos até o julgamento final da presente demanda, sob pena de multa no importe de R$ 1.000,00 (mil reais) por dia em caso de descumprimento da decisão, nos termos do artigo 536, caput e § 1º e artigo 537, caput e § 4º, do Código de Processo Civil. Ratifico a antecipação da tutela recursal.
É como voto.
EMENTA
ADMINISTRATIVO. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL. INGRESSO. COTAS RACIAIS. FENÓTIPO. BANCA DE AVALIAÇÃO. LEGALIDADE.
1. A confirmação da condição do fenótipo de negro ou pardo pela Banca de Avaliação da Veracidade da Declaração é um instrumento para evitar fraudes e o uso indevido das cotas por quem não possui esse direito.
2. De acordo com o art. 294 do CPC, a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência. De seu turno, o art. 300 do CPC estabelece como requisitos para a tutela de urgência: a) a probabilidade ou plausibilidade do direito; e b) o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.
3. Tem-se, assim, que revela indispensável à entrega de provimento antecipatório não só a probabilidade do direito, mas também a presença de perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, sendo que esses requisitos devem ser satisfeitos cumulativamente. Nesse contexto, permite-se inferir que o novo Código de Processo Civil, neste aspecto, não alterou as condições para deferimento de tutela antecipatória fundada em urgência (anterior art. 273, I, do CPC/73).
4. No caso concreto, não se encontram presentes os requisitos necessários ao deferimento da pretendida tutela.
5. Os critérios de matrícula, avaliação e promoção configuram atos discricionários das universidades, que podem ser escolhidos com liberdade, seguindo disposições previamente estabelecidas no Regimento Geral da Instituição e respeitada a legislação de regência e a Constituição Federal.
6. A Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, sendo que os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência. Aplicável à espécie o artigo 1º da referida Lei cuja redação ora transcrevo: “Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)“. Referida Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 7.824/2012 e a Portaria Normativa nº 18/2012 do Ministério da Educação, que são anteriores à abertura do edital.
7. Como se vê o requisito para que a agravante participasse do ingresso por reserva de vaga (cotas) era que fosse negra, parda ou indígena, o que não restou comprovado na entrevista em questão. A agravante declarou que era parda e que autorizava a verificação dos dados, sabendo que a omissão ou falsidade de informações resultaria nas punições cabíveis, inclusive a desclassificação do candidato. Assim, vê-se que a recorrente já tinha ciência de que a Universidade poderia, a qualquer momento, verificar as informações declaradas e cancelar sua matrícula, haja vista que esta se candidatou a vaga de cotista, sem que tivesse o fenótipo de parda, o que fere o princípio da legalidade.
8. É certo que cabe a Administração rever seus atos para corrigir vícios cometidos, conforme Súmula 473 do STF: “Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
9. O Edital que rege a convocação em questão tem expressa previsão de que “o candidato convocado para matrícula nas vagas reservadas (cotas) deve comprovar sua condição de acordo com os itens 3.4 deste Edital, de acordo com a cota escolhida”, traçando as seguintes regras (ID 244573612): “3.4. A Banca de Avaliação da Veracidade da Autodeclaração analisará as características fenotípicas próprias das pessoas pretas ou pardas, sendo elas: a cor da pele parda ou preta, a textura do cabelo crespo ou enrolado, o nariz largo e lábios grossos e amarronzados. 3.5. O comparecimento para a Banca de Avaliação da Veracidade da Autodeclaração é pessoal e intransferível. Em hipótese alguma a Banca fará a avaliação de verificação por procuração, correspondência ou qualquer outro meio digital. 3.6. A confirmação da veracidade da autodeclaração pela banca, instituída pela UFMS, é condição obrigatória para efetivação da matrícula. 3.7. O não comparecimento do candidato ou o indeferimento da autodeclaração implicam na perda da vaga. ...”. Como se vê, nos casos da espécie, não são considerados os aspectos genéticos, mas sim os aspectos físicos, na forma determinada pelo edital.
10. Como é sabido, o edital é lei entre as partes e os concorrentes tiveram conhecimento das regras nele esculpidas, inclusive o fato de que teria que comprovar os requisitos legais junto a uma comissão verificadora específica da UFMS. Dessa forma, a princípio, a Universidade apenas fez cumprir as regras contidas no edital do processo seletivo, sem estabelecer critérios e exigências não previstos no instrumento convocatório.
11. Por outro ângulo, não cabe ao Poder Judiciário substituir-se à banca avaliadora na análise fenotípica da autora e de sua correspondente classificação racial, devendo limitar-se a verificar a ocorrência de ilegalidade ou teratologia no estabelecimento de tal avaliação e na sua realização.
12. Agravo de instrumento improvido.