Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001383-63.2011.4.03.6125

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001383-63.2011.4.03.6125

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

  

 

R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de apelação interposta contra sentença (ID 100908125, 25 de 178) que julgou procedentes os pedidos formulados na ação civil pública, extinguindo o processo com resolução de mérito, nos termos do art. 269, I, do CPC, para determinar que a UNIÃO: (a) promova o licenciamento e o custeio perante o órgão ambiental competente dos assentamentos do Programa "Banco da Terra", localizados nos municípios de Bernardino de Campos, Campos Novos Paulista, Espírito Santo do Turvo, Fartura, Piraju, Santa Cruz do Rio Pardo, São Pedro do Turvo, Sarutaiá e Timburi; (b) assuma os custos decorrentes de medidas preventivas e corretivas determinadas pelo órgão ambiental competente em consequência do licenciamento ambiental. Descabe condenação em custas processuais e honorários advocatícios, a teor do art. 18 da Lei 7.347/85.

A ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, em face da União, objetivando a condenação da mesma a: (a) promover o licenciamento e arcar com os respectivos custos perante o órgão ambiental competente dos assentamentos do Programa "Banco da Terra", localizados nos municípios de Bernardino de Campos, Campos Novos Paulista, Espírito Santo do Turvo, Fartura, Piraju, Santa Cruz do Rio Pardo, São Pedro do Turvo, Sarutaiá e Timburi; (b) assumir os custos decorrentes das medidas preventivas e corretivas determinadas pelo órgão ambiental competente em consequência do licenciamento ambiental. Sustenta a legitimidade ativa do Ministério Público Federal, com fulcro na Lei 7.347/85, art. 129, III da Constituição Federal e na Lei Complementar 75/93, bem como a competência da Justiça Federal. Quanto ao mérito, defende que a União teria atuado no caso como agente financiador da compra e venda de várias propriedades rurais e nesta condição estaria obrigada a exigir o licenciamento ambiental em momento anterior à liberação dos valores, nos termos do art. 12 da Lei 6.938/81. Ressalta que a Resolução 289/2001 do CONAMA estabeleceria que para casos de assentamento decorrente de reforma agrária seria necessária a prévia apresentação da licença ambiental (art. 3°, § 2°), dispositivo que poderia ser aplicado de forma analógica ao caso uma vez que um projeto de reforma agrária e um projeto do Banco da Terra possuiriam nuances fáticas semelhantes, com a ocupação de áreas rurais por vários agricultores, impactando o ecossistema local. Mencionou, ainda, que o licenciamento ambiental não estaria esgotado nas atividades arroladas no anexo da Resolução 237/97, podendo ser exigido para outras atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, o que se verificaria no presente caso.
Juntou aos autos inquérito civil público (fis. 05/162).

Citada, a União respondeu por contestação o feito às fls. 171/195. Preliminarmente, a ré sustenta a ilegitimidade ativa do Ministério Público, por tratar a demanda de interesses individuais disponíveis; impossibilidade jurídica do pedido por vedação expressa do art. 1° da Lei 7.347/85 e em razão da impossibilidade de transferirem-se as obrigações pertinentes à preservação do meio ambiente dos proprietários para a União; a ilegitimidade passiva da União tendo em vista que a sua atuação se limitaria a disponibilidade orçamentária, sendo as demais etapas do financiamento executadas por outros entes públicos; e, por fim, requer o ingresso do IBAMA no feito com o litisconsorte passivo. No mérito sustenta, em apertada síntese, que as operações de créditos fundiários possibilitariam a transferência de uma propriedade privada para outra particular, caracterizando uma transação entre particulares, situação distinta da tocante à reforma agrária, motivo pelo qual a responsabilidade pela realização de licenciamento ambiental seria dos proprietários das terras beneficiados pelo financiamento. Defende, ainda, a responsabilidade dos proprietários com base na teoria do risco da atividade, não podendo haver a socialização do prejuízo e privatização do lucro. Sustenta que responsabilizar a União neste caso seria uma afronta ao Princípio da Legalidade uma vez que não haveria previsão legal que a determinasse realizar o licenciamento. E alerta para a existência do Principio Orçamentário da Universalidade, segundo o qual todas as despesas deveriam constar do orçamento Público, sendo expressamente vedado a inclusão de despesas em previsão.

Em réplica, o Ministério Público Federal manifestou-se às fls 329/331. Encerrada a instrução, a União manifestou-se às fls. 335/343.

Foi proferida a sentença ora impugnada.

Em razões de apelação (ID 100908125, 53 de 178), a União requer o recebimento do recurso em ambos os efeitos nos termos do art. 520 e art. 558, parágrafo do CPC/73 e art. 14 da Lei 7.347/85. No mérito sustenta, em síntese, que não atua como agente financeiro do Programa Banco da Terra. Afirma que o art. 16, IV do Decreto 4.892/2003 lhe atribui somente papel de direção. Defende que não há, de sua parte, atuação no mercado de financiamento intermediando crédito para aquisição de imóveis rurais com finalidade de obter lucro, pressuposto de aplicação do art. 12 da Lei 6.938/81 e da disposição semelhante contida no Decreto 99.274/90. Assevera que o mesmo Decreto 4.892/2003, por meio do art. 15, caput, III, com a incumbência de liberar os recursos, atribui ao BNDES a gestão do Fundo de Terras e da Reforma Agrária - Banco da Terra, fundo contábil sem personalidade jurídica. Prossegue afirmando que a União apenas oferece a dotação orçamentária necessária à execução do programa, conforme incisos do art. 2º da LC 93/98. Refere que o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) obedece ao princípio da execução descentralizada, conforme arts. 4º, 5º e 6º da LC 93/98. Aduz que não possui atribuição ou recursos humanos para efetuar licenciamentos ambientais e que as determinações da sentença alcançam nove municípios distintos, além de licenciamento junto a órgão estadual, o que coloca em causa sua legitimidade passiva. Subsidiariamente aponta a existência de litisconsórcio necessário com as municipalidades e demais entidades estaduais, associações e instituições financeiras envolvidas, como as que subscrevem Termo de Cooperação (fls. 283/287) e outros documentos constantes nos autos. Protesta que a sentença rechaçou o ingresso do IBAMA no pólo passivo da ação. Defende, ao contrário do que decidiu o juízo a quo, ser imprescindível a atuação do Poder Judiciário para acompanhar e analisar o cumprimento da decisão. Aponta a ilegitimidade ativa do Ministério Público para atuar na causa, uma vez que a proteção ambiental deferida cinge-se a áreas privadas, em relação às quais a responsabilidade de licenciamento é do particular proprietário, perfeitamente identificável, não se cogitando a existência de direitos difusos ou coletivos, razão pela qual os custos não podem ser repassados aos cofres públicos. Argui que sequer há homogeneidade de interesses nos autos, já que nem todos os casos envolvem exigência de licenciamento ambiental, a depender da atividade desenvolvida. Destaca que a cláusula que versa sobre proteção ambiental não é abusiva, considerando a teoria do risco da atividade, o Princípio do Poluidor Pagador, a natureza propter rem da obrigação, e que o licenciamento ambiental reverte-se-á em benefício econômico dos proprietários, sob pena de esvaziamento da lei ambiental. Ressalta que as razões anteriormente referidas também dão causa à impossibilidade jurídica do pedido. Argumenta que a cumulação de sanções de obrigação de fazer e pagar é vedada pelo art. 3º da Lei 7.347/85. Aduz que a analogia não justifica a equiparação do PNCF com os demais programas de reforma agrária para fins de licenciamento ambiental, por ausência de lacuna na lei.

O Ministério Público Federal noticia a interposição de agravo de instrumento (ID 100908125, 136 de 178). Notícia de que o efeito suspensivo foi indeferido em 18/10/2012 pelo Juiz Federal Convocado Herbert de Bruyn no AI 0022109-66.2012.4.03.0000/SP, distribuído ao então relator Desembargador Federal Mairan Maia.

Parecer da Procuradoria Regional da República da 3ª Região pelo não provimento da apelação (ID 100908125, 168 de 178).

É o relatório.

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001383-63.2011.4.03.6125

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

V O T O
 

O Ministério Público tem legitimidade ativa para propor ação civil pública que verse sobre a responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, nos termos do art. 1º, I, art. 5º, I da Lei 7.347/85, na esteira do teor do art. 129, III da CF, que define como função institucional do Ministério Público a promoção de inquérito civil e ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

A natureza do direito ao meio ambiente como direito difuso, ademais, tem amparo no art. 225, caput da CF, segundo o qual o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é entendido como bem de uso comum do povo, sendo dever do Poder Público e toda a coletividade defendê-lo e preservá-lo.

Conforme já relatado anteriormente, a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal em face da União objetiva sua condenação a promover o licenciamento ambiental, em municípios determinados, de assentamentos do Programa "Banco da Terra" perante os órgãos competentes, assumindo os custos necessários a esta finalidade, incluindo aqueles decorrentes das medidas preventivas e corretivas eventualmente determinadas por aqueles órgãos.

A ação discute o assentamento de agricultores rurais sem a realização de prévio licenciamento ambiental, situação que envolve lesão efetiva ou potencial ao meio ambiente, direito da coletividade, enquadrando-se, com clareza, nos requisitos necessários à configuração da legitimidade ativa do Ministério Público.

Melhor sorte não socorre à União ao tentar argumentar que o licenciamento ambiental envolveria questão de direito privado atrelada à posse e à propriedade de imóveis adquiridos entre particulares.

A ação discute a situação de imóveis vinculados ao Programa Nacional de Crédito Fundiário, instituído inicialmente pelo art. 1º, § 1º, VI do Decreto 4.892/2003, atual art. 1º, § 1º, III do Decreto 11.585/2023, que concede financiamentos com recursos oriundos do Fundo de Terras e da Reforma Agrária (Banco da Terra), criado, por sua vez, com a finalidade de financiar programas de reordenação fundiária e de assentamento rural.

Referido programa é destinado a trabalhadores rurais não-proprietários e agricultores proprietários de imóveis cuja área não alcance a dimensão da propriedade familiar e que sejam insuficientes para gerar renda capaz de lhe propiciar o próprio sustento e o de sua família (art. 1º, I e II da LC 93/98). O PNCF, deste modo, compõe política pública desenhada para atender demandas de acesso à terra e reforma agrária.

A situação dos autos, portanto, envolve, no mínimo e em tese, direitos individuais homogêneos de relevância social, direitos que também atribuem ao Ministério Público a legitimidade para proposição de ação civil pública, conforme há tempos reconhece o Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AGÊNCIAS BANCÁRIAS. FUNCIONAMENTO INTERNO. TEMPO DE ESPERA. LEGITIMIDADE ATIVA. MINISTÉRIO PÚBLICO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. MUNICÍPIO. ASTREINTES. DESCABIMENTO. AGRAVO INTERNO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1. O Ministério Público possui legitimidade para propor Ação Civil Pública voltada à defesa de direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, quando presente relevância social objetiva do bem jurídico tutelado. Precedentes.
2. (...)
4. Agravo interno a que se dá provimento para conhecer do agravo e dar parcial provimento ao recurso especial.
(AgInt no AREsp n. 1.220.326/PE, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 5/10/2023.)

A legitimidade passiva da União, bem como o litisconsórcio aventado na apelação, são questões que se confundem com o mérito a respeito da existência, ou não, de responsabilidade de sua parte e com ela será analisada.

É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI da CF). Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI da CF).

A própria União, elenca dispositivos da LC 93/98 segundo os quais o Fundo de Terras e da Reforma Agrária (Banco da Terra) será constituído, entre outras fontes de financiamento, de dotações consignadas no Orçamento Geral da União (art. 2º, IV, LC 93/98) e dotações consignadas nos Orçamentos Gerais dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 2º, V, LC 93/98). A apelante destaca que o fundo é administrado de forma a permitir a participação descentralizada de Estados e Municípios, na elaboração e execução de projetos, garantida a participação da comunidade no processo de distribuição de terra e implantação de projetos (art. 4º, LC 93/98).

O art. 1º, § 1º, IV do Decreto 4.892/03, que regulamentava a lei complementar quando do ajuizamento da ação, estabelece que os programas, projetos e atividades que venham a ser financiados com recursos do Fundo de Terras e da Reforma Agrária deverão levar em conta, entre outras, as questões de conservação e proteção ao meio ambiente. A redação é semelhante ao quanto disposto no atual art. 1º, § 2º, II do Decreto 11.585/2023.

O art. 15 do Decreto 4.892/03, atual art. 14 do Decreto 11.585/2023, define que a gestão financeira do Fundo de Terras e da Reforma Agrária fica a cargo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. É certo que não há menções diretas ou indiretas à questões ambientais entre as competências do órgão gestor do Banco da Terra elencadas no art. 5º da LC 93/98.

No entanto, o art. 16 do Decreto 4.892/03, atual art. 15 do Decreto 11.585/2023, em suas distintas redações, definiu distintos e sucessivos órgãos gestores do programa, todos ligados diretamente à administração pública federal, além de suas atribuições, entre as quais: definir o montante de recursos destinados às despesas acessórias relativas à aquisição do imóvel rural; assegurar a análise jurídica prévia da documentação dos imóveis e das propostas de financiamento; estabelecer normas gerais de fiscalização dos projetos assistidos pelo Fundo de Terras e da Reforma Agrária; elaborar estudos de avaliação de impactos dos projetos e programas financiados pelo Fundo de Terras e da Reforma Agrária (art. 3º, art. 11, art. 16, IV, X, "e", XIV do Decreto 4.892/03, atuais art. 15, IV, "b", IX, "e", X, XIII, "a" do Decreto 11.585/2023).

A Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, estabelece em seu art. 10 que a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.

O art. 12, caput, da mesma Lei 6.938/81, por sua vez, assenta que as entidades e órgãos de financiamento e incentivos governamentais condicionarão a aprovação de projetos habilitados a esses benefícios ao licenciamento, na forma daquela Lei, e ao cumprimento das normas, dos critérios e dos padrões expedidos pelo CONAMA. O parágrafo único do dispositivo dispõe que as aquelas entidades deverão fazer constar dos projetos a realização de obras e aquisição de equipamentos destinados ao controle de degradação ambiental e à melhoria da qualidade do meio ambiente.

Da interpretação sistemática do art. 23, VI da CF, do art. 2º, IV, da LC 93/98, do art. 1º, § 1º, IV, art. 3º, art. 11 e art. 16 do Decreto 4.892/03 (atuais art. 1º, § 2º, II e art. 15 do Decreto 11.585/2023), além do art. 10 e art. 12 da Lei 6.938/81, infere-se que é competência da União proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, preocupação que deve balizar suas ações ao conceber, financiar e gerir políticas públicas, como fica reconhecido na própria redação dos decretos que regulamentam a LC 93/98.

O dever da União de zelar pelo prévio licenciamento de projetos e atividades promovidas pela sua atuação na esfera econômica e social estão expressamente previstos pela lei que disciplina a Política Nacional do Meio Ambiente. É pouco relevante que a gestão financeira do Fundo de Terras e da Reforma Agrária (Banco da Terra) fique a cargo do BNDES, quando os órgãos gestores sempre foram ligados à administração direta no âmbito federal e tem atribuições que se coadunam com o pedido formulado na inicial da presente ação civil pública.

O art. 3º, IV, da Lei 6.938/81 define como poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental. A legitimidade passiva e a responsabilidade da União enquanto poluidora indireta, neste diapasão, são cristalinas.

A argumentação da União, ao sustentar que a responsabilidade pelo licenciamento ambiental seria exclusivamente do poluidor direto, considerando, ainda, previsões contratuais nesse sentido e a natureza propter rem da obrigação, atenta contra a natureza solidária da obrigação e seu dever de precaução e reparação enquanto poluidora indireta.

Com efeito, o Programa Nacional de Crédito Fundiário, conquanto desenhado como política de crédito para compra e venda de imóveis rurais, não pode ser pensado exclusivamente sob a ótica do direito civil, notadamente ao se considerar sua finalidade precípua de atender trabalhadores rurais e pequenos proprietários que podem ser considerados hipossuficientes.

Nestas condições, os custos e a necessidade do licenciamento ambiental podem, inclusive, inviabilizar as atividades dos destinatários do programa, como sói acontecer na implementação de políticas de reforma agrária que se adstringem a disponibilizar a terra nua, sem se preocupar com despesas acessórias, ou com as condições de produção e sobrevivência dos beneficiários da política pública que, sob outra ótica, também poderiam teoricamente ser vistos como consumidores finais de crédito oferecido por instituições financeiras. Destaca-se que, ainda assim, não se pode concluir que as obrigações ambientais deixariam de ser exigíveis desses mesmos beneficiários, o que não impede o reconhecimento da obrigação da União.

Quanto a todos dispositivos elencados pela União que apontariam para a solidariedade das obrigações em relação aos outros entes da federação e demais instituições envolvidas na implementação, cumpre destacar dispositivos do código civil e do código de processo civil.

Há solidariedade quando na mesma obrigação concorre mais de um devedor e todos estão obrigados a responder pela dívida toda (art. 264 do CC), circunstância em que o credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum - e se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto (art. 275, caput do CC). A propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores não implica em renúncia da solidariedade (art. 275, parágrafo único do CC).

O próprio código civil prevê a possibilidade de ajuizamento de ação pelo credor contra apenas um ou parte dos devedores solidários, sendo esta a própria lógica que define a existência e a utilidade da obrigação solidária.

Não suficiente, a reforçar esse entendimento, é certo que a solidariedade da obrigação não dá causa necessariamente à configuração de litisconsórcio necessário entre os devedores solidários, que só ocorre por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes (art. 114 do CPC).

Embora seja admissível que o réu requeira o chamamento ao processo dos demais devedores solidários quando o credor exigir de um ou de alguns o pagamento da dívida comum (art. 130, III do CPC), o juiz pode limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes na fase de conhecimento, na liquidação de sentença ou na execução, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença (art. 113, § 1º do CPC), precisamente a hipótese dos autos e a opção do juízo a quo, sem prejuízo do eventual exercício de regresso contra os codevedores.

Nestas condições, o credor não está obrigado a ajuizar a ação contra todos os devedores solidários, nem o juiz obrigado a conduzir o processo com a formação de litisconsórcio facultativo, sem prejuízo de que o devedor que cumpre a totalidade da obrigação possa exercer regresso contra os demais devedores solidários.

Ante o exposto, nego provimento à apelação, na forma da fundamentação acima.

É o voto.



E M E N T A

APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AMBIENTAL. ADMINISTRATIVO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL DE IMÓVEIS FINANCIADOS PELO PROGRAMA NACIONAL DE CRÉDITO FUNDIÁRIO. FUNDO DE TERRAS E DA REFORMA AGRÁRIA (BANCO DA TERRA). LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. DEVER DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. POLUIDORA INDIRETA. SOLIDARIEDADE DA OBRIGAÇÃO AMBIENTAL. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO NÃO CONFIGURADO. APELAÇÃO IMPROVIDA.
I - O Ministério Público tem legitimidade ativa para propor ação civil pública que verse sobre a responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, nos termos do art. 1º, I, art. 5º, I da Lei 7.347/85, na esteira do teor do art. 129, III da CF, que define como função institucional do Ministério Público a promoção de inquérito civil e ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
II - A natureza do direito ao meio ambiente como direito difuso, ademais, tem amparo no art. 225, caput da CF, segundo o qual o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é entendido como bem de uso comum do povo, sendo dever do Poder Público e toda a coletividade defendê-lo e preservá-lo.
III - A ação civil pública proposta pelo MPF em face da União objetiva sua condenação a promover o licenciamento ambiental, em municípios determinados, de assentamentos do Programa "Banco da Terra" perante os órgãos competentes, assumindo os custos necessários a esta finalidade, incluindo aqueles decorrentes das medidas preventivas e corretivas eventualmente determinadas por aqueles órgãos.
IV - A ação discute o assentamento de agricultores rurais sem a realização de prévio licenciamento ambiental, situação que envolve lesão efetiva ou potencial ao meio ambiente, direito da coletividade, enquadrando-se, com clareza, nos requisitos necessários à configuração da legitimidade ativa do Ministério Público.
V - Melhor sorte não socorre à União ao tentar argumentar que o licenciamento ambiental envolveria questão de direito privado atrelada à posse e à propriedade de imóveis adquiridos entre particulares.  A ação discute a situação de imóveis vinculados ao Programa Nacional de Crédito Fundiário, instituído inicialmente pelo art. 1º, § 1º, VI do Decreto 4.892/2003, atual art. 1º, § 1º, III do Decreto 11.585/2023, que concede financiamentos com recursos oriundos do Fundo de Terras e da Reforma Agrária (Banco da Terra), criado, por sua vez, com a finalidade de financiar programas de reordenação fundiária e de assentamento rural.
VI - Referido programa é destinado a
trabalhadores rurais não-proprietários e agricultores proprietários de imóveis cuja área não alcance a dimensão da propriedade familiar e que sejam insuficientes para gerar renda capaz de lhe propiciar o próprio sustento e o de sua família (art. 1º, I e II da LC 93/98). O PNCF, deste modo, compõe política pública desenhada para atender demandas de acesso à terra e reforma agrária.
VII - A situação dos autos, portanto, envolve, no mínimo e em tese, direitos individuais homogêneos de relevância social, direitos que também atribuem ao Ministério Público a legitimidade para proposição de ação civil pública, conforme há tempos reconhece o Superior Tribunal de Justiça
(AgInt no AREsp n. 1.220.326/PE).
VIII -
Da interpretação sistemática do art. 23, VI da CF, do art. 2º, IV, da LC 93/98, do art. 1º, § 1º, IV, art. 3º, art. 11 e art. 16 do Decreto 4.892/03 (atuais art. 1º, § 2º, II e art. 15 do Decreto 11.585/2023), além do art. 10 e art. 12 da Lei 6.938/81, infere-se que é competência da União proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, preocupação que deve balizar suas ações ao conceber, financiar e gerir políticas públicas, como fica reconhecido na própria redação dos decretos que regulamentam a LC 93/98.
IX - O dever da União de zelar pelo prévio licenciamento de projetos e atividades promovidas pela sua atuação na esfera econômica e social estão expressamente previstos pela lei que disciplina a Política Nacional do Meio Ambiente. É pouco relevante que a gestão financeira do Fundo de Terras e da Reforma Agrária (Banco da Terra) fique a cargo do BNDES, quando os órgãos gestores sempre foram ligados à administração direta no âmbito federal e tem atribuições que se coadunam com o pedido formulado na inicial da presente ação civil pública.
X - O art. 3º, IV, da Lei 6.938/81 define como poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental. A legitimidade passiva e a responsabilidade da União enquanto poluidora indireta, neste diapasão, são cristalinas.
XI -
A argumentação da União, ao sustentar que a responsabilidade pelo licenciamento ambiental seria exclusivamente do poluidor direto, considerando, ainda, previsões contratuais nesse sentido e a natureza propter rem da obrigação, atenta contra a natureza solidária da obrigação e seu dever de precaução e reparação enquanto poluidora indireta.
XII - O
Programa Nacional de Crédito Fundiário, conquanto desenhado como política de crédito para compra e venda de imóveis rurais, não pode ser pensado exclusivamente sob a ótica do direito civil, notadamente ao se considerar sua finalidade precípua de atender trabalhadores rurais e pequenos proprietários que podem ser considerados hipossuficientes. Os custos e a necessidade do licenciamento ambiental podem, inclusive, inviabilizar as atividades dos destinatários do programa, como sói acontecer na implementação de políticas de reforma agrária que se adstringem a disponibilizar a terra nua, sem se preocupar com despesas acessórias, ou com as condições de produção e sobrevivência dos beneficiários da política pública. Destaca-se que, ainda assim, não se pode concluir que as obrigações ambientais deixariam de ser exigíveis desses mesmos beneficiários, o que não impede o reconhecimento da obrigação da União.
XIII - Quanto a todos dispositivos elencados pela União que apontariam para a solidariedade das obrigações em relação aos outros entes da federação e demais instituições envolvidas na implementação, destacam-se o art. 264 e art. 275, caput e parágrafo único do CC. O próprio código civil prevê a possibilidade de ajuizamento de ação pelo credor contra apenas um ou parte dos devedores solidários, sendo esta a própria lógica que define a existência e a utilidade da obrigação solidária.
XIV - A solidariedade da obrigação não dá causa necessariamente à configuração de litisconsórcio necessário entre os devedores solidários, que só ocorre  nos termos do art. 114 do CPC. Embora seja admissível que o réu requeira o chamamento ao processo dos demais devedores solidários (art. 130, III do CPC), o juiz pode limitar o litisconsórcio facultativo quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença (art. 113, § 1º do CPC), precisamente a hipótese dos autos e a opção do juízo a quo, sem prejuízo do eventual exercício de regresso contra os codevedores.
XV - Nestas condições, o credor não está obrigado a ajuizar a ação contra todos os devedores solidários, nem o juiz obrigado a conduzir o processo com a formação de litisconsórcio facultativo, sem prejuízo de que o devedor que cumpre a totalidade da obrigação possa exercer regresso contra os demais devedores solidários.
XVI - Apelação improvida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Sexta Turma, por unanimidade, negou provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.