APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5009423-15.2021.4.03.6119
RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO
APELANTE: JUSTINE EHIWARIO
PROCURADOR: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO
APELADO: UNIÃO FEDERAL
PROCURADOR: PROCURADORIA-REGIONAL DA UNIÃO DA 3ª REGIÃO
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5009423-15.2021.4.03.6119 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO APELANTE: JUSTINE EHIWARIO APELADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): Trata-se de apelação interposta por JUSTINE EHIWARIO, cidadão nigeriano, em ação ajuizada em face da UNIÃO FEDERAL, objetivando o reconhecimento da ilegalidade das sanções previstas na Portaria nº 658/2021, e o direito à regularização migratória, inclusive sob a forma de solicitação do reconhecimento da condição de pessoa refugiada, com a concessão de autorização de residência provisória, ou sob outras formas, bem como a anulação das multas aplicadas em razão de entrada ou estada irregulares. A r. sentença de fls. 220/230 julgou improcedente o pedido inicial e condenou o autor no pagamento de honorários advocatícios fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, suspensa a exigibilidade, em razão da concessão dos benefícios da gratuidade de justiça. Inconformado, apela o autor às fls. 254/287, oportunidade em que, reproduzindo os termos da petição inicial, pugna pela reforma da sentença, ao fundamento de a União Federal impedir o protocolo da solicitação de refúgio, tendo em vista a entrada irregular no país, bem como a iminente ocorrência de sua deportação. Devidamente processado o recurso, com contrarrazões (fls. 290/295), subiram os autos a este Tribunal. É o relatório.
PROCURADOR: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO
PROCURADOR: PROCURADORIA-REGIONAL DA UNIÃO DA 3ª REGIÃO
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5009423-15.2021.4.03.6119 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO APELANTE: JUSTINE EHIWARIO APELADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): A Lei nº 13.445/2017 estabelece que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia da promoção de entrada regular e de regularização documental (art. 3º, V) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, a autorização de residência em diversas hipóteses elencadas no art. 30, destacando-se, para o que aqui interessa, a situação na qual o estrangeiro seja beneficiário de refúgio. Confira-se: “Art. 30: A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante, ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes hipóteses: II - a pessoa: (...) e) seja beneficiária de refúgio, de asilo ou de proteção ao apátrida”. O artigo 31, caput, da Lei nº 13.445/17, ao tempo em que estabeleceu que o procedimento e os prazos para a autorização de residência serão disciplinados pela norma regulamentadora, assegurou que “o solicitante de refúgio, de asilo ou de proteção ao apátrida fará jus a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido” (§4º). Tal normativo, ao cuidar as “infrações e penalidades administrativas”, caracteriza como infração, dentre outras condutas, a entrada em território nacional sem autorização (apenado com deportação, caso não regularize a situação migratória no prazo fixado), permanência depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória, e furtar-se ao controle migratório, na entrada ou saída do território nacional (art. 109, I, II e VII). Há expressa previsão de penalidade pecuniária, cuja aplicação deve observância, pelo agente público, da condição econômica do infrator, a reincidência e a gravidade da infração, com valor mínimo individualizado de R$100,00 (cem reais), em se tratando de pessoa física, limitado a R$10.000,00 (dez mil reais), consoante art. 108, II, IV e V. A seu turno, o Decreto nº 9.199/2017, ao tratar do reconhecimento da condição de refugiado, garante ao solicitante a emissão do “Documento Provisório de Registro Nacional Migratório”, e enseja, com isso, vários direitos ao imigrante, tais como expedição de carteira de trabalho provisória, inclusão no Cadastro de Pessoa Física e abertura de conta bancária em instituição financeira supervisionada pelo Banco Central do Brasil (art. 119). E, ainda, o decreto regulamentador é expresso ao dispor que “o ingresso irregular no território nacional não constituirá impedimento para a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e para a aplicação dos mecanismos de proteção da pessoa refugiada, hipótese em que não incidirá o disposto no art. 307, desde que, ao final do procedimento, a condição de refugiado seja reconhecida”, na exata compreensão de seu art. 120, lembrando que as penalidades constantes no citado art. 307, são as mesmas elencadas no já citado art. 109 da Lei de Migração. Por outro lado, e para o que aqui interessa, durante o lapso temporal no qual o mundo fora assolado pela pandemia da Covid-19, o Governo Federal editou a Lei nº 13.979/2020, estabelecendo medidas para seu enfrentamento, dentre as quais a restrição de ingresso em território nacional, com o escopo de impedir a entrada de viajantes e, com isso, acarretar potencial aumento dos riscos de contaminação e disseminação do vírus. Confira-se: “Art. 3º: Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: a) entrada e saída do País; b) locomoção interestadual e intermunicipal”. A tanto, diversas portarias regulamentaram a restrição mencionada, valendo menção a Portaria nº 658, de 05 de outubro de 2021, que, durante sua vigência, dispôs, em seu art. 4º, acerca da proibição da entrada no país de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, por rodovias ou quaisquer outros meios terrestres, sujeitando o infrator à responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata e inabilitação do pedido de refúgio (art. 7º). A Portaria em questão fora revogada pela de nº 660, e assim sucessivamente, sobrevieram Portarias revocatórias das anteriores (nº 661, revogada pela de nº 663, que, por sua vez, fora revogada pela de nº 666), passando esta última a autorizar a entrada no país, por via terrestre, do viajante de procedência internacional, brasileiro ou estrangeiro, desde que apresentado, nos pontos de controle, comprovante de vacinação (art. 7º). O texto fora repetido na Portaria nº 670 e, finalmente, na Portaria nº 678, de 12 de setembro de 2022, desta feita ampliando a autorização de ingresso desde que apresentado, alternativamente (art. 3º) “I - o comprovante de vacinação COVID-19, nos termos do art. 4º, impresso ou em meio eletrônico; ou II - o comprovante de realização de teste para rastreio da infecção pelo SARS-CoV2 (covid-19), com resultado negativo ou não detectável, do tipo teste de antígeno ou laboratorial RT-PCR realizados em um dia antes do momento do embarque”, mas mantendo, no entanto, as sanções originalmente estabelecidas, inclusive a possibilidade de deportação. Dito isso, verifica-se, de forma inequívoca, que as penalidades aplicadas àqueles imigrantes com entrada irregular em território nacional, durante o período de restrição sanitária, constaram tão somente das Portarias mencionadas, na medida em que a própria lei não traz, em seu bojo, a previsão de qualquer sanção decorrente do ingresso irregular. Disso resulta que os normativos em questão (Portarias Interministeriais) desbordaram, a mais não poder, dos limites definidos pela lei que lhes serviu de fundamento, já que esta apenas possibilitou a imposição de restrições de entrada, saída e locomoção em solo brasileiro, passando ao largo de qualquer medida punitiva. Outro não é o entendimento pacífico deste Tribunal, incluindo precedente desta 3ª Turma, assim ementado: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA. PORTARIA INTERMINISTERIAL 652/2021. PANDEMIA DE COVID-19. ABSTENÇÃO DE RETIRADA COMPULSÓRIA DE ESTRANGEIRO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. 1. A questão posta nos autos diz respeito à permanência de estrangeiro em território nacional, em contrariedade com as normas previstas na Portaria Interministerial nº 652/2021. 2. A tutela provisória de urgência, em sua modalidade antecipada, objetiva adiantar a satisfação da medida pleiteada, garantindo a efetividade do direito material discutido. Para tanto, nos termos do art. 300 do atual Código de Processo Civil, exige-se, cumulativamente, a demonstração da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora). 3. A Portaria Interministerial nº 652/2021, publicada no contexto de agravamento da crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19, buscou impedir a entrada de estrangeiros possivelmente infectos com o vírus no Brasil, como forma de evitar a disseminação da doença em território nacional. Ademais, seu art. 8º prevê a possibilidade de imposição de responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata ou inabilitação de pedido de refúgio àqueles que descumprirem suas disposições. 4. A inabilitação ao pedido de refúgio prevista no ato normativo em tela viola o princípio da proibição de rechaço a refugiado, contemplado na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 50.215/61. 5. Nos termos da Lei 9.474/97, a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio. Verifica-se, portanto, que a Portaria Interministerial nº 652/2021 extrapolou os limites que lhe cabiam, enquanto ato regulamentar, notadamente porque no âmbito da Lei 13.979/20, editada especialmente para disciplinar sobre medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19, nada foi disposto quanto à solicitação de refúgio. 6. Em que pesem as alegações do demandante, verifica-se que o pronunciamento judicial agravado foi suficiente à tutela do direito pretendido, na medida em que impôs a abstenção de qualquer ato que pudesse promover a retirada compulsória do recorrente do País, ou que pudesse lhe acarretar limitações em seu direito ambulatorial por razões migratórias. Entende-se que, ao menos em sede de cognição sumária, há resguardo suficiente e proporcional de suas garantias. 7. Agravo de instrumento desprovido”. (AI nº 5012134-17.2021.4.03.0000, Rel. Des. Federal Antonio Cedenho, 3ª Turma, p. 10/02/2022). E, ainda: “MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO. INGRESSO IRREGULAR EM TERRITÓRIO NACIONAL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19. RESTRIÇÕES IMPOSTAS POR ATO INFRALEGAL. LEI 13.979/2020. PORTARIAS 652/21 E 655/21. APELAÇÃO E REMESSA NECESSÁRIA DESPROVIDAS. 1. Trata-se de mandado de segurança impetrado por estrangeiro com o fito de obter o processamento do seu pedido de reconhecimento da condição de refugiado. 2. Segundo o artigo 8º da Lei nº 9.474/97 (Estatuto dos Refugiados), a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio. 3. O Decreto nº 9.199/17, ao regulamentar a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), também dispõe em seu artigo 120 que "o ingresso irregular no território nacional não constituirá impedimento para a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e para a aplicação dos mecanismos de proteção da pessoa refugiada, hipótese em que não incidirá o disposto no art. 307, desde que, ao final do procedimento, a condição de refugiado seja reconhecida". 4. A Lei nº 13.979/2020, que trata das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, nada estabelece acerca de estrangeiros que adentrem o território brasileiro em busca de refúgio durante a pandemia. 5. Assim, tanto a Portaria Interministerial nº 652/2021, de 25 de janeiro de 2021, quanto a Portaria nº 655, de 23 de junho de 2021, extrapolaram os limites que lhes cabiam, enquanto ato regulamentar, ao preverem, no artigo 8º, III, que o descumprimento desses atos administrativos, implicaria para o agente infrator a inabilitação de pedido de refúgio, mormente porque no âmbito da Lei 13.979/20 nada foi disposto nesse sentido. Precedente. 6. Apelação e remessa necessária desprovidas” (AC nº 5009838-55.2021.4.03.6100, Rel. Des. Federal Nelton dos Santos, 3ª Turma, p. 25/05/2022). Pois bem. No caso dos autos, o autor, natural da Nigéria, estaria “sendo vítima de grave violação de direitos humanos por parte do Estado Brasileiro. Em situação de extrema vulnerabilidade e atualmente residentes em território nacional, encontra-se em situação migratória irregular. Contudo, em razão da vigência da Portaria Interministerial nº 658, de 05/10/2021, imposta pela União e aplicada pelas autoridades migratórias, o grupo está impedido de solicitar refúgio e ainda correm o alto risco de serem sumariamente deportados”. Entretanto, da percuciente análise de toda a documentação que instruiu a presente demanda, não há qualquer elemento de prova – mesmo indiciária – no sentido de confirmar a narrativa da petição inicial, a qual, registre-se, contém “redação padronizada”, conforme inúmeros casos examinados por este Relator oriundos da Defensoria Pública. Isso porque, malgrado a suposta ilegalidade perpetrada pelos órgãos de controle migratório, fato é que a presente ação veio instruída com os seguintes documentos: 1) Folha de rosto do passaporte (fl. 42); 2) Protocolo de solicitação de refúgio, emitido pelo Comitê Nacional de Refugiados, com os dados: “Solicitação finalizada” e “Nº de controle: 1451182021” (fl. 43); 3) Conta de energia elétrica em nome de pessoa estranha aos autos, com o objetivo de comprovar o endereço residencial do autor (fl. 44); 4) CPF do requerente (fl. 45); 5) Documento em língua estrangeira, datado de 21/05/2014, sem tradução para o português (fl. 46); 6) Recibo de preenchimento de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado no Sisconare, em nome do autor, sob nº de controle 1451182021 (fl. 47). Depreende-se, daí, incontroversa a condição do autor de solicitante de refúgio, a ensejar-lhe a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido, a contento do disposto no art. 31, §4º, da Lei de Migração. No entanto, inexiste nos autos elemento de prova no sentido de que o pedido de refúgio tenha sido inabilitado por força das Portarias Interministeriais citadas; não há, da mesma forma, notícia de imposição de multa pecuniária em razão do ingresso ou permanência irregular em território nacional, ou mesmo a informação de que a entrada do imigrante tenha se dado por via terrestre, em período pandêmico, sujeitando-o, eventualmente, aos efeitos dos normativos mencionados. Por outro lado, sequer fora mencionado pela União Federal, em sua contestação, estar o imigrante em situação irregular no país, seja por qual motivo. O que se verifica, bem ao reverso do quanto alegado pelo autor, é que houve o formal recebimento da solicitação de refúgio, do que se depreende, muito embora não se saiba, até o momento, qual seu desfecho, a inexistência de qualquer ilegalidade por parte da União. Não se desincumbiu o autor do ônus da prova a amparar sua pretensão, na exata compreensão do disposto no art. 373, I, do Código de Processo Civil, razão pela qual de rigor o decreto de improcedência do pedido inicial, tal e qual consignado pelo Juízo de primeiro grau. Ante o exposto, nego provimento à apelação e mantenho hígida a r. sentença de origem. É como voto.
PROCURADOR: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO
PROCURADOR: PROCURADORIA-REGIONAL DA UNIÃO DA 3ª REGIÃO
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REFÚGIO. LEI Nº 13.979/2020. RESTRIÇÃO DE ENTRADA, SAÍDA E LOCOMOÇÃO EM TERRITÓRIO NACIONAL. PANDEMIA DA COVID-19. PORTARIAS INTERMINISTERIAIS. PREVISÃO DE SANÇÕES POR ENTRADA IRREGULAR DE IMIGRANTE. AUSÊNCIA DE PROVA. RECURSO DO AUTOR DESPROVIDO.
1 - O artigo 31, caput, da Lei nº 13.445/17, ao tempo em que estabeleceu que o procedimento e os prazos para a autorização de residência serão disciplinados pela norma regulamentadora, assegurou que “o solicitante de refúgio, de asilo ou de proteção ao apátrida fará jus a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido” (§4º).
2 - A seu turno, o Decreto nº 9.199/2017, ao tratar do reconhecimento da condição de refugiado, garante ao solicitante a emissão do “Documento Provisório de Registro Nacional Migratório”, e enseja, com isso, vários direitos ao imigrante, tais como expedição de carteira de trabalho provisória, inclusão no Cadastro de Pessoa Física e abertura de conta bancária em instituição financeira supervisionada pelo Banco Central do Brasil (art. 119).
3 - E, ainda, o decreto regulamentador é expresso ao dispor que “o ingresso irregular no território nacional não constituirá impedimento para a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e para a aplicação dos mecanismos de proteção da pessoa refugiada, hipótese em que não incidirá o disposto no art. 307, desde que, ao final do procedimento, a condição de refugiado seja reconhecida”, na exata compreensão de seu art. 120, lembrando que as penalidades constantes no citado art. 307, são as mesmas elencadas no já citado art. 109 da Lei de Migração.
4 - Por outro lado, e para o que aqui interessa, durante o lapso temporal no qual o mundo fora assolado pela pandemia da Covid-19, o Governo Federal editou a Lei nº 13.979/2020, estabelecendo medidas para seu enfrentamento, dentre as quais a restrição de ingresso em território nacional, com o escopo de impedir a entrada de viajantes e, com isso, acarretar potencial aumento dos riscos de contaminação e disseminação do vírus.
5 - A tanto, diversas portarias regulamentaram a restrição mencionada, valendo menção a Portaria nº 658, de 05 de outubro de 2021, que, durante sua vigência, dispôs, em seu art. 4º, acerca da proibição da entrada no país de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, por rodovias ou quaisquer outros meios terrestres, sujeitando o infrator à responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata e inabilitação do pedido de refúgio (art. 7º).
6 - Verifica-se, de forma inequívoca, que as penalidades aplicadas àqueles imigrantes com entrada irregular em território nacional, durante o período de restrição sanitária, constaram tão somente das Portarias mencionadas, na medida em que a própria lei não traz, em seu bojo, a previsão de qualquer sanção decorrente do ingresso irregular.
7 - Disso resulta que os normativos em questão (Portarias Interministeriais) desbordaram, a mais não poder, dos limites definidos pela lei que lhes serviu de fundamento, já que esta apenas possibilitou a imposição de restrições de entrada, saída e locomoção em solo brasileiro, passando ao largo de qualquer medida punitiva. Precedentes deste Tribunal.
8 - No caso dos autos, o autor, natural da Nigéria, estaria “sendo vítima de grave violação de direitos humanos por parte do Estado Brasileiro. Em situação de extrema vulnerabilidade e atualmente residentes em território nacional, encontra-se em situação migratória irregular. Contudo, em razão da vigência da Portaria Interministerial nº 658, de 05/10/2021, imposta pela União e aplicada pelas autoridades migratórias, o grupo está impedido de solicitar refúgio e ainda correm o alto risco de serem sumariamente deportados”.
9 - Entretanto, da percuciente análise de toda a documentação que instruiu a presente demanda, não há qualquer elemento de prova – mesmo indiciária – no sentido de confirmar a narrativa da petição inicial, a qual, registre-se, contém “redação padronizada”, conforme inúmeros casos examinados por esta Turma oriundos da Defensoria Pública.
10 - Isso porque, malgrado a suposta ilegalidade perpetrada pelos órgãos de controle migratório, fato é que a presente ação veio instruída com os seguintes documentos: 1) Folha de rosto do passaporte; 2) Protocolo de solicitação de refúgio, emitido pelo Comitê Nacional de Refugiados, com os dados: “Solicitação finalizada” e “Nº de controle: 1451182021”; 3) Conta de energia elétrica em nome de pessoa estranha aos autos, com o objetivo de comprovar o endereço residencial do autor; 4) CPF do requerente; 5) Documento em língua estrangeira, datado de 21/05/2014, sem tradução para o português; 6) Recibo de preenchimento de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado no Sisconare, em nome do autor, sob nº de controle 1451182021.
11 - Depreende-se, daí, incontroversa a condição do autor de solicitante de refúgio, a ensejar-lhe a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido, a contento do disposto no art. 31, §4º, da Lei de Migração.
12 - No entanto, inexiste nos autos elemento de prova no sentido de que o pedido de refúgio tenha sido inabilitado por força das Portarias Interministeriais citadas; não há, da mesma forma, notícia de imposição de multa pecuniária em razão do ingresso ou permanência irregular em território nacional, ou mesmo a informação de que a entrada do imigrante tenha se dado por via terrestre, em período pandêmico, sujeitando-o, eventualmente, aos efeitos dos normativos mencionados.
13 - Por outro lado, sequer fora mencionado pela União Federal, em sua contestação, estar o imigrante em situação irregular no país, seja por qual motivo.
14 - O que se verifica, bem ao reverso do quanto alegado pelo autor, é que houve o formal recebimento da solicitação de refúgio, do que se depreende, muito embora não se saiba, até o momento, qual seu desfecho, a inexistência de qualquer ilegalidade por parte da União.
15 - Não se desincumbiu o autor do ônus da prova a amparar sua pretensão, na exata compreensão do disposto no art. 373, I, do Código de Processo Civil, razão pela qual de rigor o decreto de improcedência do pedido inicial, tal e qual consignado pelo Juízo de primeiro grau.
16 – Apelação do autor desprovida.