APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001275-33.2022.4.03.6134
RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR
APELANTE: LAFONTANT CORRIOLAN, FABIENNE CORRIOLAN, D. N. G.
Advogado do(a) APELANTE: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A
APELADO: UNIÃO FEDERAL
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001275-33.2022.4.03.6134 RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR APELANTE: LAFONTANT CORRIOLAN, FABIENNE CORRIOLAN, D. N. G. Advogado do(a) APELANTE: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A APELADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação em ação ordinária proposta por LAFONTANT CORRIOLAN (residente no Brasil, na cidade de Americana/SP), FABIENNE CORRIOLAN e DRUSSILE NIXARAH GUERRIER, representada pela genitora FABIENNE CORRIOLAN (ambas residentes no Haiti), contra a UNIÃO, em que pleiteiam liminarmente a antecipação dos efeitos da tutela para o fim de autorizar seu ingresso no Brasil, pela via aérea, sem que lhes seja exigida a apresentação de visto de qualquer categoria, julgando-se, ao final, procedente a demanda e confirmando-se os efeitos da medida antecipatória. Aduziram, em síntese, que o primeiro autor reside no Brasil e deseja trazer as demais autoras, sua filha e neta, que residem no Haiti; que o Haiti vivencia uma severa crise política e socioeconômica, quadro agravado por um terremoto de grandes proporções, ocorrido em 14/08/2021, e que a situação do país tem levado milhares de haitianos a buscar o ingresso regular no Brasil, porém, os serviços de requerimento de vistos brasileiros estão indisponíveis/inacessíveis. Requereram os benefícios da Justiça Gratuita. Atribuído à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais) (Id 268766692). Indeferida a tutela provisória (Id 268766712). Comprovada a interposição de agravo de instrumento pelos autores (Id 268766717), foi mantida a decisão por seus próprios fundamentos (Id 268766744). Pugnou a ré, em sua contestação, preliminarmente, pela extinção do processo sem resolução do mérito, ante a ausência de interesse processual (art.485, VI, do CPC) e, no mérito, pela manutenção do indeferimento da tutela antecipada e pela improcedência do pedido vertido na inicial (Id 268766725). Réplica em que reiteradas as razões da exordial e impugnadas as razões apresentadas em contestação (Id 268766745). O juízo a quo, nos termos do art. 487, I do CPC, julgou improcedente o pedido. Custas ex lege. Honorários pela parte autora, em 10% do valor da causa, com exigibilidade suspensa em razão da gratuidade judiciária concedida (Id 268766767). Apelação dos autores em que sustentaram, em síntese, que o primeiro autor reside no Brasil e deseja trazer as demais autoras, sua filha e neta, que residem no Haiti; que o Haiti vivencia uma severa crise política e socioeconômica e que a situação do país tem levado milhares de haitianos a buscar o ingresso regular no Brasil, porém, os serviços de requerimento de vistos brasileiros estão indisponíveis/inacessíveis; que almejam a união familiar, atendendo-se ao princípio da unidade da família no direito internacional dos refugiados, em caráter emergencial e que a legislação brasileira acolhe o direito do refugiado à união familiar (Id 2268766770). Contrarrazões da União em que alegou, preliminarmente, a ausência de interesse de agir, uma vez que não existe qualquer resistência em sede administrativa por parte do Poder Público. No mais, frisou que o pedido de dispensa de visto não tem respaldo legal; que o procedimento realizado pela Embaixada no Haiti para processamento do pedido de vistos é regular, apresentando, inclusive, desempenho superior ao de outras embaixadas e que a procedência do pleito autoral resvalaria em violação ao princípio da isonomia em relação aos demais consulentes interessados no visto brasileiro. Por fim, aduziu que sequer restou comprovada a relação de parentesco entre os demandantes, haja vista que os documentos acostados aos autos originários para tal fim estão redigidos em francês, sem a devida tradução, conforme determina o parágrafo único art. 192, do CPC (Id 268766773). É o relatório
DECLARAÇÃO DE VOTO O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL RUBENS CALIXTO (Relator): Trata-se de apelação interposta por LAFONTANT CORRIOLAN, FABIENNE CORRIOLAN e DRUSSILE NIXARAH GUERRIER contra sentença que julgou improcedente o pedido de ingresso em território nacional, independentemente da apresentação de visto, da requerente que reside no Haiti, sob o fundamento da reunião familiar. O e. Relator deu provimento ao recurso para autorizar o ingresso, pela via aérea, das apelantes residentes no Haiti, “sem que lhes seja exigida a apresentação de visto de qualquer categoria”. Todavia, com a devida vênia, divirjo do entendimento da relatoria, pelas razões que passo a expor. Trata o presente feito da possibilidade de ingresso de estrangeiro em território nacional, independentemente da concessão de visto, para fins de reunião familiar. Especificamente quanto aos migrantes originários do Haiti, é de conhecimento público que o referido país enfrenta grave crise humanitária e de segurança pública agravada por desastres naturais. Tal cenário culminou em uma escalada nas solicitações de visto e residência temporária para fins de acolhida humanitária, registrando-se a entrada de 161 mil haitianos no Brasil entre 2012 e 2023, conforme dados divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. O acolhimento a nacionais haitianos inclui-se em política vigente desde a revogada Lei nº 6.815/1980, quando editada a Resolução Normativa nº 97, de 12/01/2012, expedida pelo Conselho Nacional de Imigração, prevendo a concessão do visto constante do art. 16 da Lei nº 6.815/1980, por razões humanitárias, isto é, “aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12/01/2010”.A referida norma teve sua vigência prorrogada até 30/10/2016 pela Resolução Normativa CNI nº 117, de 12/8/2015. Ainda, no intuito de suprir a excessiva demanda dirigida à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, foi instalado, em 29/09/2015, o Brazil Visa Application Centre (BVAC), da Organização Internacional para Migrações (IOM), destinado a auxiliar os candidatos no preenchimento dos formulários e verificação da documentação apresentada para encaminhamento à Embaixada brasileira. Além da possibilidade de agendamento pelo site da IOM (acerca do qual há relatos de ausência de vagas), foi disponibilizado o e-mail iomhaitivrf@iom.int, destinado aos pedidos de visto para reunião familiar. Posteriormente, a Lei nº 13.455/2017, que revogou a Lei nº 6.815/1980, passou a prever, expressamente, que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar (arts. 3º, VI e VIII, e 4º, III, da Lei nº 13.445/2017). Nos termos dos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.455/2017, o visto é o documento que dá a seu titular a expectativa de ingresso em território nacional e será concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados por órgão competente do Poder Executivo, escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior. Ainda, dispõe o art. 12 que poderá ser concedido ao solicitante que pretenda ingressar ou permanecer no país vistos de visita, temporário, diplomático, oficial e de cortesia. Especificamente quanto ao visto temporário, prevê o art. 14, I, c, e § 3º do mesmo diploma legal a possibilidade de concessão de visto com finalidade de acolhida humanitária, destinado ao “apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento”. Atendendo ao disposto pelo art. 36, §1º, do Decreto nº 9.199/2017, que regulamenta a Lei de Migração, foi expedida a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30/03/2023, que rege a concessão do visto temporário e da autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais haitianos e apátridas. O art. 2º da norma determinou que o visto temporário será concedido exclusivamente pela Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, bem como que os novos pedidos serão recebidos apenas quando forem concluídas todas as entrevistas para solicitação de vistos agendadas até a data de publicação da Portaria, ficando a concessão sujeita às condições em Porto Príncipe para o processamento de vistos. Ademais, prevê em seu art. 4º que o imigrante detentor do visto temporário deverá registrar-se em uma das unidades da Polícia Federal em até noventa dias após seu ingresso em território nacional, decorrendo de tal registro a residência temporária, que terá prazo de dois anos. Restando noventa dias para o término do prazo, o imigrante poderá requerer, também em uma unidade da Polícia Federal, autorização de residência com prazo indeterminado (art. 8º). Nesse cenário surgiu a possibilidade da concessão do visto ou autorização de residência para fins de reunião familiar, previsto pelo art. 37 da Lei nº 13.445/2017 e regulamentado pelo art. 45 do Decreto nº 9.199/2017 e pela mais recente Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023. De acordo com as aludidas normas, poderão ser familiares chamantes os nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti que obtiveram autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária, por prazo determinado ou indeterminado. Ainda, poderão ser chamados, os seguintes nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti: I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro; II - filho de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; III - enteado de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência, desde que menor de dezoito anos de idade, ou até os vinte e quatro anos de idade, se comprovadamente estudante, ou de qualquer idade, se comprovada a dependência econômica em relação ao chamante; IV - que tenha filho brasileiro; V - que tenha filho imigrante beneficiário de autorização de residência; VI - ascendente até o segundo grau de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; VII - descendente até o segundo grau de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; VIII - irmão de imigrante beneficiário de autorização de residência, desde que menor de dezoito anos de idade, ou até os vinte e quatro anos de idade, se comprovadamente estudante, ou de qualquer idade, se comprovada a dependência econômica em relação ao chamante; ou IX - que tenha brasileiro sob a sua tutela, curatela ou guarda. A solicitação da autorização de residência deverá ser realizada por meio de formulário disponibilizado no âmbito do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (DEMIG/MJSP) e deverá ser instruído com os documentos constantes do rol do art. 6º da Portaria. Autorizada a residência prévia, “o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, 3º, da Portaria). Em consulta à Cartilha Informativa sobre Documentação de Reunificação Familiar para Haitianos, disponível no Portal de Imigração do Ministério da Justiça e Segurança Pública, extrai-se a informação de que a solicitação deve ser realizada através do sistema MigranteWeb pelo familiar chamante. Ainda, consta a informação de que o migrante que já realizou o protocolo eletrônico no sistema SEI junto ao DEMIG/MJSP, antes da entrada em vigor da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023, deverá enviar novamente os requerimentos pelo novo sistema. Assim, não se desconhece os inúmeros esforços envidados pelo governo brasileiro no intuito de facilitar o requerimento por nacionais haitianos de concessão de visto e de residência temporária, bem como de garantir a celeridade na análise de tais pedidos. Provas disso são a edição das Portarias Interministeriais MJSP/MRE nº 37/2023 e 38/2023, a criação do sistema MigranteWeb e a instalação do BVAC/IOM, que segue em funcionamento, ainda que submetido a condições precárias de abastecimento e segurança. Contudo, também são de conhecimento público os recorrentes relatos por parte de migrantes acerca da dificuldade ou mesmo impossibilidade de acesso a tais programas, seja por indisponibilidade dos sistemas ou pela ausência de vagas para agendamento. De fato, ao realizar diversas tentativas de agendamento no site do BVAC/IOM (https://haiti.iom.int/cavb), constatou-se que a mensagem é sempre de que todas as vagas estão atualmente preenchidas e de que novas janelas serão abertas em breve. Ademais, a despeito da disponibilização do e-mail iomhaitivrf@iom.int, destinado aos pedidos de visto para reunião familiar, há informações de que, constantemente, a caixa de entrada encontra-se cheia. Considerando os complexos trâmites diplomáticos cumpridos pelo Poder Executivo, as ferramentas por ele disponibilizadas, bem como a preservação de sua competência para a análise dos pedidos de concessão de vistos e autorizações de residência, conclui-se que a intervenção do Poder Judiciário em tais decisões deve limitar-se a situações excepcionais, não cabendo sua atuação de forma indiscriminada. Nesse sentido, restou decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Agravo Interno em Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3.092/SC, que “é necessário que se permita aos magistrados o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado”. Ainda, quando do julgamento dos embargos de declaração opostos em face do referido acórdão, reiterou o E. STJ a exigência do cumprimento das condições por ele estabelecidas, de forma cumulativa, (esgotamento das possibilidades administrativas e adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis), para a o eventual deferimento de medidas liminares. No caso dos autos, verifica-se que os apelantes alegam, dentre outras questões, a impossibilidade de acesso aos sistemas de agendamento. Conforme acima fundamentado, as possíveis dificuldades a que estão sujeitos os interessados em realizar o requerimento administrativo de visto e residência ou a eventual indisponibilidade momentânea dos sistemas governamentais, por si só, não autorizam a atuação do Poder Judiciário no sentido da determinação de expedição de visto ou autorização de ingresso em território nacional independentemente dele, atribuições de competência do Poder Executivo. Contudo, em consonância com o quanto decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, entendo cabível a intervenção judicial para garantir aos migrantes o recebimento e análise de seus requerimentos pelas autoridades competentes quando inviável sua realização pela via administrativa, como ocorre no caso em tela. Nesse mesmo sentido, julgados em casos análogos proferidos no âmbito desta E. Corte Regional: ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTRANGEIRO. HAITI. AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM. VISTO HUMANITÁRIO PARA REUNIÃO FAMILIAR. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE RECEBIMENTO E AVALIAÇÃO DOS DOCUMENTOS PELA UNIÃO FEDERAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - A questão do ingresso dos haitianos com vista à reunião familiar, consoante decisão proferida pelo STJ, no SLS 3092-SC não está suspensa, tendo sido autorizada às instâncias inferiores a análise das liminares e tutelas com critério e cautela, desde que se observem se houve exaurimento das possibilidades administrativas de e medidas instrutórias de informação viáveis. - Os autores, provenientes do Haiti, buscam o ingresso em território brasileiro por via aérea, para reunião familiar. Sustentam que, em razão do conturbado momento político que o país enfrenta, qualquer tipo de serviço público prestado, principalmente emissão de qualquer visto/passaporte encontra-se impossível de conseguir, ressaltando ainda que qualquer ida a capital do país é extremamente perigosa em razão da guerrilha. Expõe que, hoje, os haitianos estão totalmente desassistidos, sendo, além de vítima da miséria e catástrofes naturais, também de corrupção. Ademais, a obtenção de visto brasileiro no Consulado do Brasil em Porto Príncipe, Haiti, é tarefa quase impossível, conforme seguidamente noticiado nos meios de comunicação. - Por outro lado, a União não está inerte quanto à situação dos haitianos que objetivam acolhida humanitária, tanto que foi editada a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 33, de 29 de dezembro de 2022, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti, ratificando os objetivos norteadores da política migratória. - Cabe destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no precedente supracitado (SLS Nº 3092-SC) ponderou que a intervenção do Poder Judiciário deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas e reforçou a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis inclusive perícia social no Brasil, para que sejam deferidas as liminares e tutelas nos casos de ingresso sem visto dos haitianos. - Agravo de instrumento parcialmente provido para determinar que a União Federal receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário, nos termos da fundamentação. (TRF 3ª Região, 4ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5001770-15.2023.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal ANDRE NABARRETE NETO, julgado em 20/09/2023, Intimação via sistema DATA: 21/09/2023) AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO INTERNO. ESTRANGEIRO. HAITI. INGRESSO NO TERRITÓRIO NACIONAL SEM VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. EXAURIMENTO DAS POSSIBILIDADES ADMINISTRATIVAS E DAS MEDIDAS INSTRUTÓRIAS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Dispõe a Constituição Federal em seu artigo 4º, inc. II, que a República Federativa do Brasil é regida nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, dentre outros. Em cumprimento ao comando constitucional a Lei 13.445/2017, em seu artigo 14, I, alínea c e § 3º, prevê a concessão de visto temporário para acolhida temporária.E, sobre a concessão de visto temporário para acolhida humanitária para os nacionais do Haiti foram editadas sucessivas Portarias Interministeriais, pelo Ministério de Estado da Justiça e Segurança Pública e pelo Ministério das Relações Exteriores, sendo a mais recente a nº 38/2023, a qual prevê que o trâmite do pedido se dê de forma mais célere e flexível. A política de imigração é atribuição do Poder Executivo, de maneira que a intervenção do Poder Judiciário deve se restringir a casos excepcionais, sendo de se destacar que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no SLS Nº 3092-SC, versando sobre ingresso no Brasil dos imigrantes haitianos sob motivação humanitária, em julgamento com efeitos estendidos a todos os processos análogos, assentou que os Juízes devem decidir as controvérsias sobre direito imigratório com cautela, reforçando a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias para o deferimento de liminares e tutelas nos casos de ingresso sem apresentação de visto no território nacional. Necessário o exaurimento das possibilidades administrativas e das medidas instrutórias, deve-se acolher parcialmente o pedido para determinar à União que receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário da parte recorrente, nos termos regulamentação normativa específica, no caso a Portaria Interministerial 38, atualmente vigente . Recurso parcialmente provido. (TRF 3ª Região, 6ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5011357-61.2023.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal LUIS ANTONIO JOHONSOM DI SALVO, julgado em 30/08/2023, DJEN DATA: 04/09/2023) CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. HAITIANOS. INGRESSO EM TERRITÓRIO NACIONAL SEM A NECESSIDADE DE VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE. PRECEDENTE DO STJ. OBTENÇÃO DE AGENDAMENTO ELETRÔNICO PARA A CONCESSÃO DE VISTO. DIFICULDADES OPERACIONAIS. CONSTATAÇÃO. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA TRIPARTIÇÃO. POSSIBILIDADE DE REQUERIMENTO, PELA PARTE AUTORA, JUNTO AOS ÓRGÃOS COMPETENTES. GARANTIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DA UNIÃO FEDERAL PARCIALMENTE PROVIDOS. Ante o exposto, com a renovada vênia da relatoria, voto por dar parcial provimento à apelação, a fim de determinar que a União Federal, através dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar, no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão.
1 - O visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.
2 - Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III).
3 - Conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos.
4 - A controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade.
5 - A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto.
6 – Existência de inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. Consulta junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”).
7 - A indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição. Precedente.
8 - Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar (SLS nº 3092/SC, Corte Especial). Entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais.
9 – Edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil.
10 - Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º). Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º.
11 - Normatizou-se, também, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º).
12 - Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos.
13 - Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados.
14 - Nesse particular, impende registrar que o canal eletrônico criado pela chancelaria brasileira (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br), para além de não disponibilizar, de imediato, datas para agendamento, impõe a condição de prévio encaminhamento de todos os documentos devidamente legalizados (reconhecimento da assinatura no original em seu original, pela autoridade consular, tradução para o português por tradutor juramentado no Brasil e, por fim, registro em cartório de títulos e documentos sediado no Brasil, ao custo de vinte dólares norte-americanos cada um), para, só então, uma vez validados, viabilizar o atendimento. Não bastasse, ilustrações retiradas de “prints” do endereço eletrônico mencionado, constantes de outros feitos desse jaez, revelam que, dentre as espécies de visto passíveis de requerimento através do “e-consular”, não está incluída aquela referente ao “Visto temporário para reunião familiar – espécie XI”, a demonstrar, também aqui, a significativa dificuldade de solicitação da permissão de ingresso e permanência em território nacional, pelos meios oficiais então disponibilizados.
15 - Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entende-se que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer. Precedente desta Corte.
16 - Sucumbente a parte autora no pedido de autorização de ingresso no país, sem visto, mas exitosa na determinação de apreciação do pedido pelo Poder Executivo, de rigor a condenação de ambas as partes no pagamento de honorários advocatícios à parte adversa (art. 86/CPC), no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, suspensa a exigibilidade da cobrança em relação à parte autora, ante a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça.
17 – Remessa necessária e recurso da União Federal parcialmente providos.
(TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApelRemNec - APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA - 5001584-93.2021.4.03.6003, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 11/10/2023, DJEN DATA: 18/10/2023)
EXMA. SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA:
Com a devida vênia ao Sr. Relator, a apelação não deve ser provida.
O debate concentra-se na possibilidade de ingresso de cidadão haitiano em território nacional, independente da apresentação de visto.
Uma breve análise da situação vivenciada no Haiti aponta que o país já enfrentava diversas crises internas devido à instabilidade política e econômica, porém o quadro foi agravado após grandes terremotos. A falta de alimentos, saúde e saneamento básico e a crise socioeconômica foram intensificadas pela situação de calamidade pública que assolou a região.
Neste contexto, um fluxo considerável de Haitianos buscou como saída a tentativa de iniciar uma nova vida em outro País, tendo como um dos destinos principais o Brasil.
Diante do alto volume de interessados em ingressar em território brasileiro, foi permitida a concessão de visto humanitário aos haitianos, em caráter especial, concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, nos moldes das Resoluções Normativas do Conselho Nacional de Imigração 97/ 2012 e 102/2013, sem prejuízo das demais modalidades de ingresso previstas na legislação brasileira.
Soma-se o fato de que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar, nos termos dos arts. 3º, VI e VIII e 4º, III, da Lei 13.445/17 (Lei de Migração).
Neste sentido, o art. 37 da Lei de Migração, em concretização aos direitos e garantias do migrante, prevê a concessão de visto e autoriza a residência no Brasil com a finalidade de reunião familiar, aos descendentes até o segundo grau, cônjuge ou companheiro, dentre outros, in verbis:
Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:
I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma;
II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência;
III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou
IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda.
Mesmo com estes instrumentos legais à disposição, a grave crise securitária e institucional no Haiti não foi superada e vem impedindo, por razões de força maior, a regular realização de serviços diplomáticos, incluindo a concessão dos vistos de acolhida humanitária e de reunião familiar aos cidadãos haitianos.
Assim, algumas situações evidenciam a necessidade de mitigação do rito diplomático, mediante a permissão de ingresso de estrangeiro em território nacional sem a concessão de visto. Trata-se da necessidade de priorizar os princípios migratórios reconhecidos internacionalmente e constitucionalmente pela República Federativa do Brasil, em especial, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e o princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF).
Porém, a referida mitigação não pode ser feita de maneira indiscriminada. No julgamento da Suspensão de Liminar e de Sentença 3.092/SC, o STJ determinou que a análise deve ser feita de forma concreta e individualizada, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado.
Tal posicionamento foi reafirmado na análise dos embargos de declaração opostos naquele processo, ocasião em que a Corte Superior apontou queo voto proferido anteriormente foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes o eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.
Inclusive, o STJ aponta que, para preservar a autoridade desta decisão, o não cumprimento das referidas prescrições poderá ensejar a propositura de reclamação, até mesmo em âmbito disciplinar:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE INTEGRAÇÃO DA EMENTA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO.
1. Consoante a literalidade do artigo 1.022 do Código de Processo Civil, os Embargos de Declaração são cabíveis para esclarecer obscuridade, eliminar contradição, suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o Tribunal de ofício ou a requerimento, e/ou corrigir eventual erro material.
2. Comando contido na parte dispositiva do Voto que foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes do eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.
3. Descumprimento dessas prescrições que poderá ensejar a propositura de Reclamação para a preservação da autoridade da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e, eventualmente, de Reclamação Disciplinar perante os órgãos correcionais contra os recalcitrantes, mas não de Embargos de Declaração que objetivem dar destaque, na ementa, a aspectos que a parte considera relevantes.
4. A ementa é simples extrato dos pontos essenciais do Voto e não pode e nem deve conter todos os seus fundamentos e estipulações. Inviabilidade do manejo de Embargos de Declaração que objetivem a sua complementação.
5. Inexistindo omissão, obscuridade ou contradição a ser suprida, inviável o acolhimento dos Embargos de Declaração.
6. Embargos de Declaração rejeitados.
(STJ, EDcl no AgInt na SLS 3092, Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 25/04/2023 – grifo nosso).
Em atendimento ao disposto pelo STJ, a análise do caso concreto revela que a petição inicial traz argumentos genéricos, reforçando, por meio de notícias jornalísticas, as já conhecidas dificuldades sociais, econômicas e humanitárias enfrentadas pela população do Haiti. Porém, não há nos autos qualquer descrição individualizada da realidade fática da parte autora. Além do que, em primeiro grau de jurisdição não foram atendidas as medidas instrutórias de informação exigidas pelo STJ (como, por exemplo, a perícia social).
Inexiste comprovação de que a parte esgotou as possibilidades administrativas.
E em consulta ao sítio eletrônico do e-consular (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br/) é possível verificar que o sistema está em pleno funcionamento.
Além disso, por meio da criação de vias mais ágeis e simplificadas para concessão administrativa dos vistos, é notório o esforço da Administração em solucionar as dificuldades geradas pela alta demanda de requerimentos realizados pelos haitianos. Como exemplo, a edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE 38/2023, que facilitou a tramitação dos pedidos de reunião familiar, possibilitando a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário aos nacionais haitianos com vínculos familiares no Brasil, sem necessidade de pagamento de taxas e com a redução dos encaminhamentos à embaixada de Porto Príncipe.
Logo, embora reconhecida a possibilidade de mitigação dos procedimentos diplomáticos em respeito aos princípios dignidade da pessoa humana, da acolhida humanitária, dos direitos da criança e do adolescente e do direito à reunião familiar, no caso concreto não foram enfrentados de maneira pormenorizada e individualizada os motivos que permitiriam a concessão de entrada de imigrante em território brasileiro sem a apresentação de visto.
Em face do exposto, com a devida vênia ao Sr. Relator, nego provimento à apelação.
É como voto.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001275-33.2022.4.03.6134
RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR
APELANTE: LAFONTANT CORRIOLAN, FABIENNE CORRIOLAN, D. N. G.
Advogado do(a) APELANTE: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A
APELADO: UNIÃO FEDERAL
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
Trata-se de apelação em ação ordinária em que os autores pretendem a reversão da sentença que indeferiu o pleito de autorização de ingresso das autoras que residem na República do Haiti no Brasil, pela via aérea, sem que lhes seja exigida a apresentação de visto de qualquer categoria.
O apelo comporta provimento.
Ab initio, cumpre destacar a regra a que o Poder Judiciário se submete de não intervir no mérito dos atos administrativos, em respeito à separação dos poderes.
Não obstante, a margem de liberdade de atuação da Administração não é irrestrita, podendo o Judiciário adentrar a seara administrativa para aferir a legalidade do ato, controle este que abrange a observância dos princípios constitucionais e legais.
O caso trazido à apreciação impõe precisamente a interferência do Poder Judiciário em ato do executivo, em caráter excepcional, para dar efetividade a princípios que informam a ordem jurídica vigente.
Vejamos.
A República Federativa do Brasil é signatária da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, além de ratificar os principais instrumentos internacionais de direitos humanos.
A ratificação de tais normas e o status supralegal que ostentam frente à legislação doméstica evidenciam o compromisso do Estado brasileiro em erigir um amplo espectro jurídico de proteção e assistência ao refugiado, concebendo sua política migratória a partir dos princípios de direitos humanos, solidariedade e de cooperação internacional.
Neste contexto, há que se destacar também que o ordenamento pátrio reconhece a importância do direito de reunião familiar, sem distinção entre nacionais e estrangeiros, conforme a especial proteção conferida à família expressa no art. 226 da Constituição Federal.
Outrossim, a presença de menor no polo ativo da ação atrai também a aplicação da doutrina de proteção integral à infância, consagrada no art. 227 da Constituição Federal de 1988, e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, conforme previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (incorporada pelo Decreto Legislativo 99.710/90), de sorte que não cabe desconsiderar as consequências deletérias da privação do convívio familiar para o desenvolvimento do menor.
Diante de tais premissas, portanto, é possível se cogitar da flexibilização de determinados procedimentos de controle e regularização migratórios, tendo em vista o fim de assegurar direitos fundamentais aos imigrantes, em especial, àqueles que se encontrem em situação de refúgio ou acolhida humanitária.
Nesse sentido, no plano dos instrumentos internacionais, os principais marcos relativos à proteção conferida à família estão apresentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 16); no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 23); na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Convenção sobre Direitos da Criança e na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951.
Confira-se:
Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Artigo 16.
(...)
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos:
artigo 23. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.
Convenção sobre os Direitos da Criança:
Artigo 9
1. Os Estados Partes garantirão que a criança não seja separada dos seus pais contra a sua vontade, exceto quando as autoridades competentes sujeitas a revisão judicial determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos aplicáveis, que tal separação é necessária ao interesse superior da criança. Tal determinação pode ser necessária em um caso específico, como por exemplo, um dos pais estar sujeito a medidas privativas de liberdade, devido a condenação por um delito.
2. Em qualquer procedimento enunciado no parágrafo 1 do presente artigo, todas as partes interessadas deverão ter a oportunidade de participar nele e de dar a conhecer as suas opiniões.
3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança de manter contato com ambos os pais, caso um ou ambos tenham sido separados da criança, salvo se for contrário ao interesse superior da criança.
(...)
Artigo 10 - Em conformidade com a obrigação dos Estados Partes, enunciada no artigo 9, parágrafo 1, os pedidos feitos por um filho ou por seus pais para entrar ou sair de um Estado Parte, com o objetivo de reunir-se à sua família, serão tratados pelos Estados Partes de forma positiva, humanitária e expedita. Os Estados Partes assegurarão ainda que a apresentação de tal pedido não implicará em conseqüências prejudiciais para os pedintes e para os membros de sua família.
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967:
Art. 12 - Estatuto pessoal
1. O estatuto pessoal de um refugiado será regido pela lei do país de seu domicílio, ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência.
2. Os direitos adquiridos anteriormente pelo refugiado e decorrentes do estatuto pessoal, e notadamente os que resultam do casamento, serão respeitados por um Estado Contratante, ressalvado, sendo o caso, o cumprimento das formalidades previstas pela legislação do referido Estado, entendendo-se, todavia, que o direito em causa deve ser dos que seriam reconhecidos pela legislação do referido Estado se o interessado não se houvesse tornado refugiado. - grifei
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):
artigo 17. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.
Na legislação pátria, o direito de reunião familiar tem seu conteúdo previsto na Constituição Federal, quando esta garante a proteção familiar, sem distinção entre nacionais e estrangeiros (arts. 226 e 227 da Constituição), na Lei de Migração (Lei n.º 13.445/2017); e na Resolução nº 108/2012 do CNIg.
Adiante, transcrição das normas previamente citadas:
Constituição Federal:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. - grifei.
Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração):
Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:
(...)
VIII - garantia do direito à reunião familiar;
(...)
Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:
(...)
III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes;
(...)
Da Reunião Familiar
Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:
(...)
III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; - grifei.
Resolução n.º 108/2012 do CNIg:
O Conselho Nacional de Imigração, instituído pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 e organizado pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, no uso das atribuições que lhe confere o Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993,
Resolve:
Art. 1º O Ministério das Relações Exteriores poderá conceder visto temporário ou permanente, a título de reunião familiar, aos dependentes de cidadão brasileiro ou de estrangeiro temporário ou permanente no Brasil. - grifei.
Portanto, há robusto embasamento normativo garantindo o direito de reunião familiar pelo Estado brasileiro.
Demais disso, no caso concreto, resta caracterizada evidente situação emergencial a que os apelantes residentes no Haiti estão sujeitos, diante da grave crise humanitária e institucional que assola o país e dos inúmeros óbices relatados na exordial do feito e nas razões recursais à obtenção do visto perante a embaixada do Brasil lá instalada.
Outrossim, os documentos anexados aos autos comprovam com verossimilhança o estatuto pessoal dos recorrentes, comprovando de modo suficiente os vínculos familiares relatados.
Nesse sentido, da simples leitura do RNM expedido pela República Federativa do Brasil em favor do autor LAFONTANT CORRIOLAN, residente no Brasil, e da documentação acostada em nome de FABIENNE CORRIOLAN e DRUSSILE NIXARAH GUERRIER, especialmente os passaportes haitianos, tem-se que se trata de avô, filha e neta.
Diante de tal contexto, com fundamento em razões humanitárias, na proteção à família e no superior interesse da criança, é caso de se garantir o direito de reunião familiar, mitigando-se - como medida necessária e razoável - o rigor da exigência de exibição do visto para a entrada de refugiados no país.
Cumpre mencionar que a Lei nº 9.474/97, em seu art. 8º, prevê a possibilidade de refúgio ainda que a entrada do estrangeiro no país se dê ilegalmente, sem a apresentação do visto, portanto. Confira-se, verbis:
Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.
Por derradeiro, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a se pronunciar, no agravo interno em Suspensão Liminar de Sentença nº 3092-SC, acerca da concessão de liminares que permitiam o ingresso de haitianos no país sem a necessidade de visto.
Por ocasião do julgamento, a Corte Especial ressaltou os princípios adotados em favor da criança e do adolescente, a importância nuclear da família, a proteção aos direitos fundamentais e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como fundamentos para a concessão de liminar permitindo o ingresso de haitianos no Brasil.
Destacou, assim, que o pleito no sentido de se determinar restrição genérica, irrestrita e absoluta à análise de liminares, a pretexto de se evitar possível efeito multiplicador das decisões, não tem amparo na Constituição.
Eis a ementa do supra citado julgado:
AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ESTRANGEIROS MENORES DE IDADE AFASTADOS DOS GENITORES. ACOLHIDA HUMANITÁRIA DE HAITIANOS. EFEITO MULTIPLICADOR. SUSPENSÃO GENÉRICA DE TODAS E QUALQUER MEDIDA LIMINAR SOBRE O TEMA, PRESENTE OU FUTURA. PONDERAÇÃO DE VALORES E RAZOABILIDADE. EXAME INDIVIDUALIZADO DE CADA SITUAÇÃO. 1. A intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. 2. O indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento das estipulações constitucionais e com a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos. 3. Primazia da proteção da criança e do adolescente, da tutela da família como base da sociedade e do direito ao convívio familiar.4. Salvaguarda da possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação, inclusive a obtenção de medidas liminares. Direito fundamental da pessoa que tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional. 5. A Segunda Turma do E. STF, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida, com base em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na proteção de direitos fundamentais.6. Permissão às instâncias inferiores para o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência e com cautela, diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasi , deliberem sobre a concessão ou não das medidas liminares. 7. Agravos Internos providos para reformar a decisão objurgada e reestabelecer as liminares de origem.
(AgInt na SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 3.092 - SC (2022/0099380-0), Min. Rel. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, julgamento em 07/12/2022). - grifei.
Transcrevo do referido julgado, os seguintes excertos:
Como bem se percebe da judiciosa decisão da lavra do eminente ex-Presidente do STJ, a suspensão das medidas liminares foi ditada pelo fundamento primevo do risco de multiplicação de demandas da natureza idêntica à que motivou a propositura desta SLS, nas quais se objetiva a isenção de visto ou o processamento imediato de requerimentos dessa autorização de entrada no País por autoridades imigratórias.
(...)
No entanto, o indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento de estipulações constitucionais, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos. É preciso que se tenham em mente os primados da proteção da criança e do adolescente, a tutela da família como base da sociedade e o direito ao convívio familiar, rememorando-se que os postulantes, em sua imensa maioria, são menores de idade que pretendem reencontrar os genitores, que já estão no Brasil. Nesse quadrante, não parece legítima a suspensão irrestrita de toda e qualquer liminar que verse sobre o direito de ingresso de haitianos no território nacional, em ações presentes e futuras, tal como deliberado na decisão ora recorrida.
O artigo 227 da Constituição Federal estipula ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos não só perante outros particulares, mas também perante o Estado e quaisquer entidades públicas, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação — inclusive a obtenção de medidas liminares — é direito fundamental da pessoa e, como tal, tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional.
(...)
A proibição genérica e irrestrita de obtenção de provimentos judiciais em sede de direitos fundamentais — proteção da criança e do adolescente, a tutela da família como base da sociedade e o direito ao convívio familiar — encontraria justificativa apenas na conjugação dos direitos, liberdades e garantias entre si e com outros direitos fundamentais (colisão de direitos fundamentais) ou na conjugação com princípios objetivos, institutos ou valores constitucionais de outra natureza, o que não ocorre neste caso. Decerto, o potencial efeito multiplicador das demandas judiciais nas quais se busca acelerar o exame de requerimentos administrativos de permissão de entrada no País não se enquadra em restrição que milite em favor da Administração e que esteja assegurada pelo arcabouço constitucional.
Destaco que a Segunda Turma do E. STF, na sessão virtual do dia 7/10/2022, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida pelo Juízo da 2.ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Jundiaí/SP (processo 5004055-95.2021.4.03.6128) — um dos processos afetados pela SLS concedida (embora não seja aqui agravante).
Colhem-se daquele julgado os seguintes excertos:
12. A decisão liminar proferida em primeira instância converge com a proteção dada pela Constituição da República às crianças, adolescentes e à família, e aos direitos conferidos ao imigrante pela novel legislação de migração (Lei nº 13.445, de 2017), a qual possui inspiração constitucional, já que substitui o superado estatuto do estrangeiro. E mais, as normas internacionais subscritas e internalizadas pelo Brasil concedem idêntica guarida. Todo esse arcabouço normativo foi violado, de maneira mediata, presente a transgressão direta e imediata à liberdade de locomoção das pacientes. 13. Com efeito, o art. 226, caput, da CRFB, ao disciplinar que “[a] família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, revela a importância da família para o Constituinte. Segue-se o art. 227 dispondo ser dever “da família, da sociedade” e, também, “do Estado”, assegurar à criança e ao adolescente, “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 14. Ao utilizar o termo “prioridade”, a Constituição da República denota, consoante enfatizou o eminente Ministro Roberto Barroso, “a precedência em abstrato e ‘prima facie’ dos direitos dos menores, em caso de colisão com outras normas.E o faz por se ter entendido que, em virtude da condição de fragilidade e de vulnerabilidade das crianças, devem elas sujeitar-se a um regime especial de proteção, para que possam se estruturar concernentes às crianças devem buscar atender ao princípio do superior interesse do menor” . (RE nº 778.889/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 10/03/2016, p. 1º/08/2016). 15. Não por outra razão, o Supremo Tribunal Federal, ao vedar a expulsão de estrangeiro cujo filho brasileiro fora reconhecido ou adotado posteriormente ao ato expulsório, por unanimidade, no RE nº 608.898-RG/DF, Tema RG nº 373, assentou a proeminência dos direitos constitucionais supracitados em detrimento da “soberania nacional”. Eis a síntese do julgado:
“ESTRANGEIRO – EXPULSÃO – FILHO BRASILEIRO – SOBERANIA NACIONAL VERSUS FAMÍLIA. O § 1º do artigo 75 da Lei nº 6.815/1980 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, sendo vedada a expulsão de estrangeiro cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e deste depender economicamente.”
(...)
18. No mesmo sentido, a proteção conferida aos imigrantes também tem guarida na Lei Fundamental, que versa, no âmbito das relações internacionais, ser o Brasil regido pelo princípio da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (CRFB, art. 4º, incs. II e IX). É imperioso, ainda, apreciar o caso concreto sob a perspectiva do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CRFB, art. 1º, inc. III), que reverbera por todo o ordenamento jurídico, assumindo a função de verdadeiro vetor interpretativo e base sustentadora do Estado Democrático de Direito.
(...)
21. À vista dessa nova legislação e da crise humanitária no Haiti, foi expedida a Portaria Interministerial nº 13, de 16 de dezembro de 2020 (dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e Relações Exteriores), a prever sobre a concessão de visto temporário e de autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais haitianos e apátridas residentes na República do Haiti. Coincidentemente, naquela oportunidade, o cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública era por mim ocupado, de modo que, desde então, estive atento aos múltiplos aspectos que envolvem a questão da migração e dos direitos fundamentais da população haitiana.
(...)
25. Com efeito, foram considerados, de um lado: a vedação a ingerências no Poder Executivo; e, de outro, o direito à liberdade de ir, vir e permanecer, a especial salvaguarda conferida à criança e ao adolescente, a tutela da família, como base da sociedade, o direito ao convívio familiar, sem olvidar, ainda, as diretrizes constitucionais e legais que devem guiar o Estado Brasileiro nas relações internacionais. 26. Surge imperioso fazer cessar, de imediato, o impedimento de entrada no País (locomoção), promovendo-se a acolhida das menores estrangeiras, que permanecem longe dos pais desde o ano de 2019, de modo a propiciar-lhes a reunião familiar e, por conseguinte, um desfecho à situação de risco a que, possivelmente, estão submetidas, longe dos genitores, em país mergulhado em caos humanitário, social, político e institucional. 27. Portanto, na espécie, configura-se, de modo excepcional, situação de ilegalidade flagrante, apta a respaldar o revigoramento da tutela de urgência implementada em primeira instância. 28. Diante do exposto, nego seguimento ao habeas corpus, porém, com base no art. 192 do RISTF, concedo, de ofício, a ordem para restabelecer a decisão liminar proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Jundiaí/SP (processo nº 5004055-95.2021.4.03.6128). 29. Determino à Secretaria Judiciária, adotadas as devidas cautelas, oficiar ao Ministério das Relações Exteriores, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à Advocacia-Geral da União, apresentando o inteiro teor desta decisão.” - grifei.
Nesta linha de entendimento, cito precedentes desta Corte:
PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. ESTRANGEIRO. REUNIÃO FAMILIAR. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM POR CIDADÃ DO HAITI. INGRESSO DE ESTRANGEIRA NO TERRITÓRIO NACIONAL, POR VIA AÉREA, INDEPENDENTEMENTE DE VISTO. DIREITO À REUNIÃO FAMILIAR. POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA. MEDIDA HUMANITÁRIA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL DEFERIDA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO.
1. No feito subjacente, foi ajuizada ação objetivando provimento jurisdicional que permita o ingresso em território nacional da menor Jeftalie Normilus, haitiana, sem a necessidade de apresentação de visto, para fins de reunião familiar. Sustentam os autores a impossibilidade de obter o visto para ingresso no Brasil.
2. O MM. Juízo de primeiro grau indeferiu o pedido de tutela antecipada (ID 121550534 no PJe de origem).
3. O art. 300 do Código de Processo Civil dispõe que será concedida a tutela de urgência quando restarem evidenciados os seguintes pressupostos: (i) a probabilidade do direito; e (ii) o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
4. Na espécie, estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência recursal postulada pelos agravantes, diante do perigo de dano ao direito de convivência de familiar, que deve ser especialmente tutelado pelo Estado, ex vi do art. 226 da Constituição Federal.
5. Ademais, resta caracterizada situação emergencial a que a agravante Jeftalie Normilus está sujeita, em face da grave crise social e humanitária que assola o Haiti, bem como dos óbices relatados na exordial do feito de origem e nas razões recursais, mormente diante da dificuldade de acesso à Embaixada do Brasil naquele país.
6. O direito à reunião familiar configura princípio constitucional e uma medida humanitária, possibilitando que sejam devolvidas aos refugiados e migrantes as condições mínimas de dignidade e de exercício da cidadania.
7. O art. 3º, inciso VIII, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) elenca a garantia do direito à reunião familiar no rol dos princípios e diretrizes que regem a política migratória brasileira. Nesse panorama, no caso concreto, torna-se imprescindível a atuação do Poder Judiciário para conferir efetividade ao direito à reunião familiar.
8. Assim, afigura-se cabível, na hipótese específica dos autos, autorizar, excepcionalmente, a vinda da agravante para o país, mesmo sem visto, a fim de assegurar a proteção à família e à filha menor do estrangeiro com celeridade.
9. Destarte, deve ser mantida a decisão que deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal.
10. Agravo de instrumento provido. Agravo interno prejudicado.
(TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5027413-43.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal NELTON AGNALDO MORAES DOS SANTOS, julgado em 06/05/2022, Intimação via sistema DATA: 10/05/2022) - grifei.
PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. ESTRANGEIRO. REUNIÃO FAMILIAR. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM POR CIDADÃO DO HAITI. INGRESSO DE FILHA MENOR NO TERRITÓRIO NACIONAL, POR VIA AÉREA, INDEPENDENTEMENTE DE VISTO. EXTREMA VULNERABILIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.
1. A questão posta nos autos diz respeito à permissão de entrada de estrangeiro no Brasil, por via aérea, sem apresentação de visto.
2. A tutela provisória de urgência, em sua modalidade antecipada, objetiva adiantar a satisfação da medida pleiteada, garantindo a efetividade do direito material discutido. Para tanto, nos termos do art. 300 do atual Código de Processo Civil, exige-se, cumulativamente, a demonstração da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora).
3. Na hipótese, verifica-se que o primeiro recorrente demonstrou sua permanência regular no Brasil, com comprovação de renda (ID 91698649), residência fixa (ID 91698856) e documentação de identificação civil (ID 91698877, 91698872, 91699302, 91698899). O parentesco entre requerentes também foi inequivocamente comprovado (ID 91699314).
4. É sabido que a máxima da proporcionalidade encontra-se implicitamente consagrada na atual Constituição Federal e costuma ser deduzida do sistema de direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, bem como da cláusula do devido processo legal substantivo.
5. A doutrina, por sua vez, opta muitas vezes por destrinchar o princípio da proporcionalidade em três subprincípios, viabilizando melhor exercício da ponderação de direitos fundamentais. Assim, surgem os vetores da adequação, que traduz a compatibilidade entre meios e fins; a necessidade enquanto exigência de utilizar-se o meio menos gravoso possível; e a proporcionalidade em sentido estrito que consiste no sopesamento entre o ônus imposto e o benefício trazido pelo ato administrativo.
6.Tendo em vista a presença de menor impúbere no polo ativo da ação, atrai-se também a aplicação da doutrina da proteção integral, inaugurada com a nova ordem constitucional, pela qual assegura-se às crianças e adolescentes o direito à convivência familiar e seu reconhecimento enquanto pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, nos termos do art. 227 da Constituição Federal de 1988.
7. Acrescenta-se que privação do convívio familiar, ainda que temporária, imposta a criança e adolescente prejudica sua formação pessoal, enfraquece os laços afetivos, e intensifica o risco de abandono paterno, hipóteses que não podem ser desconsideradas, especialmente em juízo de cognição sumária, em face do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (incorporada pelo Decreto Legislativo 99.710/90).
8. Ressalta-se também que o Brasil vem tradicionalmente assumindo compromissos internacionais de solidariedade e promoção de direitos humanos junto ao povo haitiano, conforme observa-se da Nota nº 102 do Ministério das Relações Exteriores, publicada em 16.08.2021: “ao tomar conhecimento com consternação do terremoto que atingiu o Haiti na manhã deste sábado, 14 de agosto, o governo brasileiro manifesta sua solidariedade ao povo haitiano e reafirma seu firme compromisso com a continuidade da ajuda humanitária prestada àquele país.”
9. É coerente e proporcional, portanto, que se imponha, no caso concreto, a mitigação da rigidez burocrática procedimental, por razões humanitárias e em prol da reunião de integrantes do mesmo grupo familiar, em situação de extrema vulnerabilidade.
10. Em cotejo aos valores sociais em disputa, é certo que risco da irreversibilidade da demanda se instaura, de maneira muito mais severa, em desfavor dos indivíduos, do que em relação ao Poder Público.
11. Agravo de instrumento provido.
(TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5025658-81.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal ANTONIO CARLOS CEDENHO, julgado em 04/02/2022, Intimação via sistema DATA: 08/02/2022) - grifei
Além do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
ADMINISTRATIVO E INTERNACIONAL. ESTRANGEIRO. REUNIÃO FAMILIAR. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM POR CIDADÃO DO HAITI. INGRESSO DOS FILHOS MENORES NO TERRITÓRIO NACIONAL, POR VIA AÉREA, INDEPENDENTEMENTE DE VISTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CONCESSÃO DE VISTO DE PERMANÊNCIA POR RAZÕES HUMANITÁRIAS POSTERIORMENTE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.
1. A reunião familiar configura, além de princípio constitucional, uma medida humanitária para que os refugiados e migrantes tenham restituídas as condições mínimas de existência digna e de cidadania, alcançando ao máximo a possibilidade de levar uma vida normal, de modo que, em casos peculiares, devem tais princípios prevalecerem inclusive ao primado da soberania.
2. O pedido e a sentença estão fundamentados no direito à proteção familiar, assegurado pela Constituição Federal (art. 226) tanto aos nacionais quanto aos estrangeiros, o qual foi recentemente consagrado também pela nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017, art. 3º-VIII) como princípio norteador da política migratória brasileira.
3. Trata-se, ainda, de assegurar a reunião familiar para proteger menores de idade, que gozam de proteção especial em face do que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente.
4. É caso de autorizar, excepcionalmente, a vinda dos familiares para o Brasil neste caso, mesmo sem visto, para assegurar a proteção à família e ao filhos menores do estrangeiro com brevidade.
5. Sentença mantida.
(TRF4, AC 5019355-60.2018.4.04.7200, QUARTA TURMA, Relator SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, juntado aos autos em 27/09/2019) - grifei.
Portanto, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a possibilidade de autorização do ingresso de estrangeiro no Brasil, independentemente da exibição de visto, com fundamento na especial proteção conferida à criança e ao adolescente, na tutela da família e nos princípios da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e prevalência dos direitos humanos que regem o país em suas relações internacionais.
Dessarte, deve ser reformada a r. sentença, a fim de se autorizar o ingresso no Brasil de FABIENNE CORRIOLAN e DRUSSILE NIXARAH GUERRIER, atualmente residentes no Haiti, independentemente de visto.
Vencida, condeno a União ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, os quais fixo no mínimo legal de 10 % sobre o valor da causa, considerada a ausência de proveito econômico, nos termos dos § 3º e 4º do art. 85 do Código de Processo Civil/2015.
Ante o exposto, dou provimento à apelação para julgar procedente o pedido de autorização de ingresso no Brasil, pela via aérea, de FABIENNE CORRIOLAN e DRUSSILE NIXARAH GUERRIER, sem que lhes seja exigida a apresentação de visto de qualquer categoria.
É como voto.
E M E N T A
APELAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. INGRESSO DE ESTRANGEIRO EM TERRITÓRIO NACIONAL. AUSÊNCIA DE VISTO. HAITI. ACOLHIDA HUMANITÁRIA. REUNIÃO FAMILIAR. CONCESSÃO OU DISPENSA DE VISTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTVIO. DETERMINAÇÃO PARA RECEBIMENTO E PROCESSAMENTO DO PEDIDO. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
- O acolhimento a nacionais haitianos inclui-se em política vigente desde a revogada Lei nº 6.815/1980, quando editada a Resolução Normativa nº 97, de 12/01/2012, expedida pelo Conselho Nacional de Imigração, prevendo a concessão do visto constante do art. 16 da Lei nº 6.815/1980, por razões humanitárias. Ainda, no intuito de suprir a excessiva demanda dirigida à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, foi instalado, em 29/09/2015, o Brazil Visa Application Centre (BVAC), da Organização Internacional para Migrações (IOM), destinado a auxiliar os candidatos no preenchimento dos formulários e verificação da documentação apresentada para encaminhamento à Embaixada brasileira.
- A Lei nº 13.455/2017, que revogou a Lei nº 6.815/1980, passou a prever, expressamente, que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar (arts. 3º, VI e VIII, e 4º, III, da Lei nº 13.445/2017).
- Prevê o art. 14, I, c, e § 3º da Lei nº 13.455/2017 a possibilidade de concessão de visto com finalidade de acolhida humanitária. Atendendo ao disposto pelo art. 36, §1º, do Decreto nº 9.199/2017, foi expedida a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30/03/2023, que regulamentou a concessão do visto temporário e da autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais haitianos e apátridas.
- Nesse cenário surgiu a possibilidade da concessão do visto ou autorização de residência para fins de reunião familiar, previsto pelo art. 37 da Lei nº 13.445/2017 e regulamentado pelo art. 45 do Decreto nº 9.199/2017 e pela mais recente Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023. A solicitação da autorização de residência deverá ser realizada por meio de formulário disponibilizado no âmbito do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (DEMIG/MJSP) e deverá ser instruído com os documentos constantes do rol do art. 6º da Portaria.
- Em consulta à Cartilha Informativa sobre Documentação de Reunificação Familiar para Haitianos, disponível no Portal de Imigração do Ministério da Justiça e Segurança Pública, extrai-se a informação de que a solicitação deve ser realizada através do sistema MigranteWeb pelo familiar chamante. Ainda, consta a informação de que o migrante que já realizou o protocolo eletrônico no sistema SEI junto ao DEMIG/MJSP, antes da entrada em vigor da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023, deverá enviar novamente os requerimentos pelo novo sistema.
- Assim, não se desconhece os inúmeros esforços envidados pelo governo brasileiro no intuito de facilitar o requerimento por nacionais haitianos de concessão de visto e de residência temporária, bem como de garantir a celeridade na análise de tais pedidos. Provas disso são a edição das Portarias Interministeriais MJSP/MRE nº 37/2023 e 38/2023, a criação do sistema MigranteWeb e a instalação do BVAC/IOM, que segue em funcionamento, ainda que submetido a condições precárias de abastecimento e segurança. Contudo, também são de conhecimento público os recorrentes relatos por parte de migrantes acerca da dificuldade ou mesmo impossibilidade de acesso a tais programas, seja por indisponibilidade dos sistemas ou pela ausência de vagas para agendamento.
- Considerando os complexos trâmites diplomáticos cumpridos pelo Poder Executivo, as ferramentas por ele disponibilizadas, bem como a preservação de sua competência para a análise dos pedidos de concessão de vistos e autorizações de residência, conclui-se que a intervenção do Poder Judiciário em tais decisões deve limitar-se a situações excepcionais, não cabendo sua atuação de forma indiscriminada.
- Nesse sentido, restou decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Agravo Interno em Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3.092/SC, que “é necessário que se permita aos magistrados o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado”.
- No caso dos autos, verifica-se que a parte agravante alega, dentre outras questões, a impossibilidade de acesso aos sistemas de agendamento.
- Conforme acima fundamentado, as possíveis dificuldades a que estão sujeitos os interessados em realizar o requerimento administrativo de visto e residência ou a eventual indisponibilidade momentânea dos sistemas governamentais, por si só, não autorizam a atuação do Poder Judiciário no sentido da determinação de expedição de visto ou autorização de ingresso em território nacional independentemente dele, atribuições de competência do Poder Executivo.
- Contudo, em consonância com o quanto decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, entendo cabível a intervenção judicial para garantir aos migrantes o recebimento e análise de seus requerimentos pelas autoridades competentes quando inviável sua realização pela via administrativa, como ocorre no caso em tela.
- Apelação parcialmente provida.