APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000724-89.2021.4.03.6004
RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA
APELANTE: UNIÃO FEDERAL
APELADO: MARCELO MOURA CABRAL
Advogado do(a) APELADO: ROGERIO ZARATTINI CHEBABI - SP175402-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000724-89.2021.4.03.6004 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: UNIÃO FEDERAL APELADO: MARCELO MOURA CABRAL Advogados do(a) APELADO: ROGERIO ZARATTINI CHEBABI - SP175402-A, THAMIRES ISSA CASTELLO FILETTO - SP424846-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de ação de rito ordinário, ajuizada por Marcelo Moura Cabral em face da União Federal, objetivando provimento jurisdicional que determine a sua inclusão no rol de Despachantes Aduaneiros, sem a exigência de aprovação no exame de qualificação técnica. Narra o autor que é ajudante de despachante aduaneiro, devidamente habilitado pela Receita Federal do Brasil, há mais de 10 anos, exercendo livre e legalmente sua profissão, sendo vinculado a um despachante aduaneiro, trabalhando em parceria com despachos aduaneiros de importação e exportação. Aduz que se deparou com a exigência de aprovação em exame de qualificação técnica para sua inclusão no rol dos despachantes aduaneiros. Sustenta que instituir requisitos de qualificação para o exercício profissional, somente poderá ser feito mediante Lei, resguardando-se o preconizado no artigo 5, XIII, da Constituição Federal. Por meio de sentença, o MM Juízo a quo julgou procedente a ação, nos termos do art. 487, inciso I do Código de Processo Civil, para determinar à requerida que inclua o nome do requerente no rol dos despachantes aduaneiros sem a necessidade de aprovação no exame de qualificação técnica, observadas as demais exigências para tanto. Condenou a União ao pagamento de honorários advocatícios, fixados nos valores mínimos previstos no art. 85, §§ 3º e 5º, do mesmo Diploma Legal (Id. 281152202). Apela a União, requerendo a reforma do julgado, alegando que as exigências contidas nos incisos do §1º, do art. 810 do Decreto nº 6.759/2009, visam tão somente proteger a sociedade dos riscos decorrentes do mau exercício da atividade e que o exame de qualificação técnica surgiu justamente da necessidade de se diminuir os erros identificados pelo Fisco no processo de despacho aduaneiro, equívocos esses decorrentes da falta de conhecimento técnico por parte dos despachantes aduaneiros. (Id. 281152204). Com contrarrazões, os autos foram encaminhados a esta E. Corte. É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000724-89.2021.4.03.6004 RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA APELANTE: UNIÃO FEDERAL APELADO: MARCELO MOURA CABRAL Advogados do(a) APELADO: ROGERIO ZARATTINI CHEBABI - SP175402-A, THAMIRES ISSA CASTELLO FILETTO - SP424846-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O "exame de qualificação técnica" foi instituído como requisito para o exercício da profissão de despachante pelo artigo 810, VI, do Regulamento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto n° 6.759/2009, com fulcro no artigo 5°, § 3°, do Decreto-Lei n° 2.472/1988, que assim dispõe : “Art. 5° A designação do representante do importador e do ex-portador poderá recair em despachante aduaneiro, relativamente ao despacho aduaneiro de mercadorias importadas e exportadas e em toda e qualquer outra operação de comércio exterior, realizada por qualquer via, inclusive no despacho de bagagem de viajante. 3° Para a execução das atividades de que trata este artigo, o Poder Executivo disporá sobre a forma de investidura na função de Despachante Aduaneiro, mediante ingresso como Ajudante de Despachante Aduaneiro, e sobre os requisitos que serão exigidos das demais pessoas para serem admitidas como representantes das partes interessadas.” Por sua vez, o Decreto n.° 6.759, de 05/02/2009 assim estabelece: Art. 810. O exercício da profissão de despachante aduaneiro somente será permitido à pessoa física inscrita no Registro de Despachantes Aduaneiros, mantido pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (Decreto-Lei n° 2.472, de 1988, art. 5°, § 3°). § 1° A inscrição no registro a que se refere o caput será feita, a pedido do interessado, atendidos os seguintes requisitos: VI - aprovação em exame de qualificação técnica. Por fim, a IN RFB nº 1.209/11 estabeleceu requisitos e procedimentos para o exercício das profissões de despachante aduaneiro e de ajudante de despachante aduaneiro e em seu art. 4º estabeleceu o exame de qualificação direcionado para ajudantes de despachantes aduaneiros: Art. 4º O exame de qualificação técnica consiste na avaliação da capacidade profissional do ajudante de despachante aduaneiro para o exercício da profissão de despachante aduaneiro. Pois bem. O inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal garante o "livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Dessa forma, qualquer restrição ao livre exercício profissional somente poderá ser veiculada por lei, assim entendido o comando genérico e abstrato, emanado do poder competente, e com observância ao processo legislativo previsto pela Constituição. Consoante o artigo 25 do ADCT, as normas que delegaram ao Poder Executivo legislar acerca de matéria de competência do Congresso Nacional foram revogadas, verbis: Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I – ação normativa; II – alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie. Destarte, a partir de 180 dias da promulgação da Constituição Federal de 1988, o §3º do Decreto-lei nº 2.472/88, no ponto em que delegava ao Poder Executivo a competência para dispor sobre a investidura na função de despachante aduaneiro deixou de ter efeito. Ora, por força do princípio da reserva legal, não poderiam o Decreto nº 6.759/2009, bem como a IN RFB nº 1.209/2011 exigirem o requisito de aprovação em exame de qualificação técnica para o exercício da profissão de despachante aduaneiro, considerando a inexistência de lei que determine tal exigência. É bem de ver que a lei não pode delegar ao regulamento a definição de direitos e obrigações profissionais, considerando que a Constituição Federal somente admite que isso seja feito por ato formal do Poder Legislativo, no exercício das suas atribuições. O regulamento, por decreto ou qualquer outro meio formal, não pode ser autônomo, já que lhe cabe apenas detalhar as condições materiais para o exercício de um direito ou uma obrigação. Desta feita, seja pela não recepção constitucional ou pela caducidade do Decreto-Lei nº 2.472/88, ou pela regulamentação infralegal da profissão de despachante aduaneiro, operada por meio do Decreto nº 6.759/09 e da IN RFB nº 1.209/2011, concluiu-se que o óbice apontado pela ré, aprovação em exame de qualificação técnica, não pode prevalecer. Nesse sentido trago à colação precedentes desta Quarta Turma: ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. REGISTRO DE DESPACHANTE ADUANEIRO. ART. 45, § 2º, DECRETO 646/92. OFENSA AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. RECURSO PROVIDO. - Inicialmente, resulta prejudicado o agravo interno interposto contra a decisão singular que examinou o pedido de concessão de tutela antecipada de urgência, por força do julgamento deste recurso, uma vez que as questões apontadas pela agravante também são objeto deste voto o qual é, nesta oportunidade, submetido ao colegiado, cumprindo o disposto no art. 1021 do CPC. - A discussão, ora posta em exame, cinge-se à legalidade da negativa da Receita Federal do Brasil em proceder o registro de Despachante Aduaneiro do apelante, que já é habilitado pela própria RFB, como Ajudante de Despachante Aduaneiro. - Aduz a parte apelante que a atividade de ajudante de despachante aduaneiro (que é um interveniente do comércio exterior) é muito limitada, permitindo que atue somente vinculado a um despachante aduaneiro, nos termos do § 5º, art. 9º da IN RFB nº 1273/2012. - Informa que se depararam com a exigência de aprovação em Exame de Qualificação Técnica, fixada no art. 4º e seguintes da Instrução Normativa RFB nº 1.209/2011, que estabelece requisitos e procedimentos para o exercício das profissões de despachante aduaneiro e de ajudante de despachante aduaneiro. - De fato, a Receita Federal, com fundamento no § 6º do art. 810 do Decreto nº 6.759/09, que regulamenta a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior, editou a supracitada IN RFB nº 1.209/2011. - Em relação a este ponto, a jurisprudência desta E. Corte aponta no sentido de que, por conta do princípio da reserva legal, afigura-se indevida a imposição do requisito de aprovação em exame de qualificação técnica para o exercício da profissão de despachante aduaneiro pelo Decreto nº 6.759/2009, bem como pela IN RFB nº 1.209/2011, considerando a inexistência de lei que determine tal exigência. - Em razão de tais elementos, em sede de análise sumária se conclui que a profissão de despachante aduaneiro ou ajudante de despachante aduaneiro não têm os requisitos em lei previstos, de modo que não devem subsistir as exigências do artigo 5º, §3º, do Decreto-Lei nº 2.472/88 ou do artigo 810, inciso VI, do Decreto nº 6.759/09. Precedentes jurisprudenciais. - Agravo interno prejudicado. Apelação provida. (TRF 3ª Região, 4ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5033401-78.2021.4.03.6100, Rel. Desembargador Federal MONICA AUTRAN MACHADO NOBRE, julgado em 03/04/2023, DJEN DATA: 12/04/2023) Desse modo, preenchidos os requisitos exigidos, a qual não exige a prova de qualificação técnica, tem o autor o direito ao credenciamento (inscrição) como despachante aduaneiro. Ante o exposto, nego provimento ao apelo. É como voto.
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. REEXAME NECESSÁRIO. DESPACHANTE ADUANEIRO. EXAME DE QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. DESCABIMENTO. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGA. SENTENÇA MANTIDA.
- No caso concreto, insurge-se o autor contra a exigência de aprovação no exame de qualificação técnica para o processamento e análise do seu pedido de inscrição no registro de Despachante Aduaneiro.
- Consoante o artigo 25 do ADCT, as normas que delegaram ao Poder Executivo legislar acerca de matéria de competência do Congresso Nacional foram revogadas.
- Destarte, a partir de 180 dias da promulgação da Constituição Federal de 1988, o § 3º do Decreto-Lei nº 2.472/88, no ponto em que delegava ao Poder Executivo a competência para dispor sobre a investidura na função de despachante aduaneiro deixou de ter efeito.
- Nesse contexto, seja pela não recepção constitucional ou pela caducidade do Decreto-Lei n.º 2.472/88, norma que deixou de ter qualquer eficácia, ou pela regulamentação infra-legal operada pela IN RFB nº 1.209/2011 e pelo Decreto nº 6.759/09, especificamente em relação ao artigo 810, inciso VI, merece ser mantida a sentença, haja vista que a exigência de qualificação técnica para o exercício da profissão em debate ofende o princípio da reserva legal.
- Desse modo, afigura-se correto o provimento de 1º grau de jurisdição ao determinar que a autoridade impetrada processe o pedido administrativo do impetrante para inscrição como Despachante Aduaneiro sem a exigência de aprovação em exame de qualificação técnica prevista na IN/RFB n.º1.209/11. Precedentes.
- Remessa oficial a que se nega provimento.
(TRF 3ª Região, 4ª Turma, RemNecCiv - REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL - 5000549-61.2022.4.03.6004, Rel. Desembargador Federal ANDRE NABARRETE NETO, julgado em 06/12/2023, Intimação via sistema DATA: 07/12/2023)
O Desembargador Federal Wilson Zauhy:
Peço vênia ao Relator para divergir de seu voto, pelas razões que passo a expor:
Discute-se no caso a validade, ou não, da exigência de exame de qualificação para o exercício da atividade de despachante aduaneiro, inicialmente previsto pelo Decreto-Lei nº 2.472/1988, in verbis:
“Art. 5º A designação do representante do importador e do exportador poderá recair em despachante aduaneiro, relativamente ao despacho aduaneiro de mercadorias importadas e exportadas e em toda e qualquer outra operação de comércio exterior, realizada por qualquer via, inclusive no despacho de bagagem de viajante.
(...)
3º Para a execução das atividades de que trata este artigo, o Poder Executivo disporá sobre a forma de investidura na função de Despachante Aduaneiro, mediante ingresso como Ajudante de Despachante Aduaneiro, e sobre os requisitos que serão exigidos das demais pessoas para serem admitidas como representantes das partes interessadas.
(...)” (destaquei).
Com base nesse normativo, assim previu o Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro):
“Art. 810. O exercício da profissão de despachante aduaneiro somente será permitido à pessoa física inscrita no Registro de Despachantes Aduaneiros, mantido pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (Decreto-Lei nº 2.472, de 1988, art. 5º, § 3º).
(...)
VI - aprovação em exame de qualificação técnica.
(...)” (destaquei).
No plano infralegal, a realização do exame de qualificação está disciplinada pela Instrução Normativa RFB n° 1.209, de 07 de novembro de 2011.
Pois bem.
Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, como regra geral, a liberdade de exercício profissional, a ser restringida apenas por lei, in verbis:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
(...)” (destaquei).
Registre-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente decidido que eventuais restrições legais à liberdade de exercício profissional, além de veiculadas por lei, devem ser justificadas à luz dos critérios de adequação e razoabilidade e por razões de interesse público, com vistas à mitigação dos riscos sociais próprios do exercício da profissão.
Neste sentido:
“É legítima restrição legislativa ao exercício profissional quando indispensável à viabilização da proteção de bens jurídicos de interesse público igualmente resguardados pela própria Constituição, de que são exemplos a segurança, a saúde, a ordem pública, a incolumidade individual e patrimonial. Para tanto, requer-se que a disciplina legislativa tendente a condicionar o exercício profissional atenda aos critérios de adequação e de razoabilidade e seja justificada por razão de interesse público e sustentada em parâmetros técnicos idôneos à mitigação de riscos sociais próprios do exercício da profissão. As restrições dispostas no art. 36, a, §§ 1º e 2º, do Decreto 21.981/1932, perseguem fins legítimos de interesse público, na medida em que, dada a relevância das atribuições de leiloeiros, relacionadas à administração da hasta pública e à alienação dos bens de terceiros, visam a coibir conflitos de interesse, ou seja, a garantir a atuação profissional proba, livre de ingerências que possam comprometer o desempenho de suas funções. Não havendo restrição legislativa ao exercício da profissão de leiloeiro para além de incompatibilidades que lhe são próprias, as normas questionadas não se mostram injustificadas, arbitrárias ou excessivas para o fim a que se propõem, razão pela qual não há falar na alegada ofensa ao valor social do trabalho e ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, consagrados nos arts. 1º, IV e 5º, XIII, da Constituição da República”.
[ADPF 419, rel. min. Edson Fachin, j. 15-12-2020, P, DJE de 8-2-2021.]
“As limitações ao livre exercício das profissões serão legítimas apenas quando o inadequado exercício de determinada atividade possa vir a causar danos a terceiros e desde que obedeçam a critérios de adequação e razoabilidade, o que não ocorre em relação ao exercício da profissão de músico, ausente qualquer interesse público na sua restrição. A existência de um conselho profissional com competências para selecionar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de músico (art. 1º), para proceder a registros profissionais obrigatórios, para expedir carteiras profissionais obrigatórias (arts. 16 e 17) e para exercer poder de polícia, aplicando penalidades pelo exercício ilegal da profissão (arts. 18, 19, 54 e 55), afronta as garantias da liberdade de profissão e de expressão artística” (destaquei).
[ADPF 183, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 27-9-2019, P, DJE de 18-11-2019.]
Conclui-se, portanto, que as restrições ao exercício profissional são compatíveis com a Constituição Federal de 1988 se (i) veiculadas por lei em sentido formal e (ii) justificadas por razões de interesse público, como visto até aqui.
Bem firmadas essas premissas, passo à análise detida de cada um desses requisitos.
Da necessidade de lei em sentido formal
Como visto, a exigência de aprovação em exame de qualificação tem fundamento legal no Decreto-Lei nº 2.472/1988.
O Relator entende que o dispositivo em questão não foi recepcionado em razão do quanto previsto no art. 25, I, do ADCT, in verbis:
“Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a:
I - ação normativa;
II - alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie.
(...)” (destaquei).
No entanto, e com todas as vênias, não me filio a este entendimento.
Veja-se que o dispositivo é expresso ao revogar dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional.
Não é outro o entendimento que tem sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal:
“A jurisprudência desta Corte fixou orientação no sentido de que o art. 25 do ADCT, ao determinar a revogação de todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, tornou insubsistentes, perante a nova ordem constitucional, apenas as delegações anteriormente concedidas, sem, contudo, invalidar os diplomas normativos editados sob a ordem constitucional precedente com fulcro nas atribuições delegadas” (destaquei).
[RE 1.237.758, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 5-8-2020, 2ª T, DJE de 13-8-2020.]
Ocorre que a Constituição Federal de 1988 não reservou ao Congresso Nacional a competência para dispor sobre restrições ao exercício de atividades profissionais.
Tampouco se via tal reserva na Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional n° 01/1969, vigente ao tempo da edição do Decreto-Lei nº 2.472/1988.
Daí porque não cabe falar em delegação legislativa a ser revogada pelo art. 25 do ADCT.
A corroborar este entendimento, veja-se que o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que o despachante aduaneiro atua como agente delegado da Administração Pública, ainda que sem vínculo funcional, com atividades delegadas e reguladas por ato normativo da Receita Federal do Brasil:
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA ESTADUAL. ESTELIONATO E APROPRIAÇÃO INDÉBITA. CRIMES SUPOSTAMENTE PERPETRADOS POR DESPACHANTE ADUANEIRO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO. AGENTE DELEGADO. EQUIPARAÇÃO A SERVIDOR PÚBLICO PARA FINS PENAIS. ART. 327 DO CP. DELEGAÇÃO E FISCALIZAÇÃO. RECEITA FEDERAL DO BRASIL. INTERESSE FEDERAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 147/STJ.
1. O despachante aduaneiro é pessoa física que atua como representante do importador e/ou do exportador nas atividades de comércio exterior, além daquelas previstas no art. 808 do Decreto n. 6.759/2009.
2. Embora o § 8º do art. 810 do Decreto n. 6.759/2009 estabeleça a inexistência de vínculo funcional entre tais agentes e a Administração Pública, não há dúvida de que a categoria se enquadra como agente delegado, circunstância que firma sua equiparação ao funcionário público para fins penais (art. 327 do CP).
3. Considerando que o ato de delegação e a fiscalização subsequente da atividade são de atribuição da Receita Federal do Brasil, sendo, inclusive, reguladas por ato normativo daquele órgão federal (Instrução normativa n. 1.209, de 7/11/2011), não há dúvida que há interesse da União nos crimes perpetrados por tais agentes no exercício da função, sendo, ainda, o caso de incidir o enunciado da Súmula 147 desta Corte à espécie.
4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 9ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Paraná, o suscitante” (destaquei).
(STJ, CC nº 170.426/PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe: 19/02/2020).
Naturalmente, não se poderia admitir a disciplina de tal atividade por ato da Receita Federal se fosse ela reservada à competência do Congresso Nacional.
Sendo assim, forçoso concluir que o Decreto-Lei nº 2.472/1988 é ato normativo com força de lei, com fundamento de validade nos artigos 46, V e 55 da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional n° 01/1969, e que não foi revogado pelo art. 25 do ADCT por não versar sobre matéria reservada ao Congresso Nacional.
Sobre o status legal do Decreto-Lei em questão, confira-se, dentre outros:
“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE IMPORTAÇÃO. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. AGENTE MARÍTIMO. ARTIGO 32, DO DECRETO-LEI 37/66. FATO GERADOR ANTERIOR AO DECRETO-LEI 2.472/88. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL DA RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA.
(...)
1. O agente marítimo, no exercício exclusivo de atribuições próprias, no período anterior à vigência do Decreto-Lei 2.472/88 (que alterou o artigo 32, do Decreto-Lei 37/66), não ostentava a condição de responsável tributário, nem se equiparava ao transportador, para fins de recolhimento do imposto sobre importação, porquanto inexistente previsão legal para tanto.
(...)
11. Conseqüentemente, antes do Decreto-Lei 2.472/88, inexistia hipótese legal expressa de responsabilidade tributária do "representante, no País, do transportador estrangeiro", contexto legislativo que culminou na edição da Súmula 192/TFR, editada em 19.11.1985, que cristalizou o entendimento de que:
(...)
14. No que concerne ao período posterior à vigência do Decreto-Lei 2.472/88, sobreveio hipótese legal de responsabilidade tributária solidária (a qual não comporta benefício de ordem, à luz inclusive do parágrafo único, do artigo 124, do CTN) do "representante, no país, do transportador estrangeiro".
(...)
17. Recurso especial fazendário desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008” (destaquei).
(STJ, REsp nº 1.129.430/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, DJe: 14/12/2010).
Com estas considerações, concluo que o art. 5º, § 3º do Decreto-Lei nº 2.472/1988 não foi revogado pelo art. 25 do ADCT.
Das razões de interesse público
O despachante aduaneiro atua como representante do importador ou exportador, nos termos do art. 5º, caput, do Decreto-Lei nº 2.472/1988 e, nesta qualidade, atua de inúmeras formas para que tais operações sejam bem sucedidas, notadamente no que se refere à regularidade documental das mercadorias e na correta apuração dos tributos e encargos incidentes.
Nesse contexto, não há a menor dúvida de que as atividades desempenhadas por despachante aduaneiro importam em elevados riscos sociais, na medida em que sua má execução tem o potencial de inviabilizar operações de comércio exterior e acarretar vultosos prejuízos às partes envolvidas.
Desta forma, é materialmente compatível com a Constituição Federal de 1988 a exigência de aprovação em exame de qualificação para o exercício da profissão de despachante aduaneiro prevista no art. 5º, § 3º do Decreto-Lei nº 2.472/1988.
Dos honorários recursais
Com o provimento de seu recurso, a União Federal passa a se sagrar integralmente vencedora na demanda, não mais havendo de arcar com honorários sucumbenciais.
Isto posto, inverto os ônus sucumbenciais e condeno a parte autora ao pagamento de custas processuais e de honorários advocatícios, estes fixados em 10% sobre o valor atualizado da causa.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por dar provimento à apelação para julgar improcedente o pedido, condenando a parte autora ao pagamento de custas processuais e de honorários advocatícios, estes fixados em 10% sobre o valor atualizado da causa.
É como voto.
E M E N T A
ADMINISTRATIVO. OBRIGATORIDADE DE EXAME DE QUALIFICAÇÃO TÉCNICA PARA PROFISSÃO DE DESPACHANTE ADUANEIRO. DECRETO-LEI Nº 2.472/88. DECRETO Nº 6.759/09. OFENSA AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL.
1. O inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal garante o "livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".
2. A partir de 180 dias da promulgação da Constituição Federal de 1988, o §3º do Decreto-lei nº 2.472/88, no ponto em que delegava ao Poder Executivo a competência para dispor sobre a investidura na função de despachante aduaneiro deixou de ter efeito.
3. Por força do princípio da reserva legal, não poderiam o Decreto nº 6.759/2009, bem como a IN RFB nº 1.209/2011 exigir o requisito de aprovação em exame de qualificação técnica para o exercício da profissão de despachante aduaneiro, considerando a inexistência de lei que determine tal exigência.
4. É bem de ver que a lei não pode delegar ao regulamento a definição de direitos e obrigações profissionais, considerando que a Constituição Federal somente admite que isso seja feito por ato formal do Poder Legislativo, no exercício das suas atribuições. O regulamento, por decreto ou qualquer outro meio formal, não pode ser autônomo, já que lhe cabe apenas detalhar as condições materiais para o exercício de um direito ou uma obrigação.
5. Seja pela não recepção constitucional ou pela caducidade do Decreto-Lei nº 2.472/88, ou pela regulamentação infralegal da profissão de despachante aduaneiro, operada por meio do Decreto nº 6.759/09 e da IN RFB nº 1.209/2011, concluiu-se que o óbice apontado pela ré, aprovação em exame de qualificação técnica, não pode prevalecer.
6. Preenchidos os requisitos exigidos, a qual não exige a prova de qualificação técnica, tem o autor direito ao credenciamento (inscrição) como despachante aduaneiro.
7. Apelo desprovido.