Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
2ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0009978-56.2012.4.03.6112

RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO

APELANTE: DIRCEU VICENTE, SILSA MARIA VICENTE

Advogado do(a) APELANTE: DANIEL SEBASTIAO DA SILVA - SP57671-N

APELADO: SERGIO LOPES FEITOSA, HERMINIA SOARES

Advogado do(a) APELADO: GLEIDMILSON DA SILVA BERTOLDI - SP283043-N

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
2ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0009978-56.2012.4.03.6112

RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO

APELANTE: DIRCEU VICENTE, SILSA MARIA VICENTE

Advogado do(a) APELANTE: DANIEL SEBASTIAO DA SILVA - SP57671-N

APELADO: SERGIO LOPES FEITOSA, HERMINIA SOARES

Advogado do(a) APELADO: GLEIDMILSON DA SILVA BERTOLDI - SP283043-N

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R E L A T Ó R I O

 

O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FRANCISCO (Relator): Trata-se de apelação interposta por DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE em face de sentença que, em ação de manutenção de posse proposta por SERGIO LOPES FEITOSA e HERMINIA SOARES FEITOSA, assim decidiu:

Ao fio do exposto, com fulcro no art. 487, I, do CPC, JULGO PROCEDENTE o pedido vertido na inicial para o fim de CONDENAR os Réus DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE a desocuparem o imóvel individualizado como lote 59 do Assentamento Porto Velho, localizado no Município de Presidente Epitácio, sob pena de desocupação forçada, bem como a se absterem de praticar atos que venham a turbar a posse dos autores. Concedo a antecipação de tutela possessória para o fim de determinar que os Réus desocupem o imóvel em testilha no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da intimação da presente sentença, sob pena de desocupação forçada. Decorrido o prazo sem que se comprove a desocupação voluntária, expeça-se o mandado de manutenção na posse. Condeno os Réus ao pagamento de custas processuais e honorários, estes fixados no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais), observado o teor do art. 98, 3º, do NCPC. P.R.I.

Alegam os apelantes, em suma, que o autor Sergio nunca trabalhou no lote mencionado, pois é aposentado por invalidez. Aduzem que são agricultores e sempre trabalharam na zona rural e que conheceram os autores e os demais filhos do Sr. João Dudas Feitosa, os quais cederam seus direitos aos contestantes pelo valor de R$ 80.000,00. Pontuam que o negócio foi entabulado verbalmente em fevereiro de 2010 e o valor seria pago com a regularização da situação perante o INCRA. Afirmam que fizeram benfeitorias no imóvel e cultivam a terra. Destacam que os autores e os demais irmãos combinaram de deixar a terra em 2010, mas até a presente data não a desocuparam. Destacam que, ao tempo em que o lote deveria ser desocupado, os autores aumentaram o valor pretendido pelo seu quinhão, não havendo concordância pelos apelantes. Dizem que tal situação gerou clima hostil entre apelantes e apelados, bem como em relação aos demais irmãos, que pretendem manter o negócio. Requerem o provimento do recurso, com a reforma da sentença, para que o pedido seja julgado improcedente. Subsidiariamente, pugnam pelo pagamento das benfeitorias realizadas. Pleiteiam a suspensão da execução da tutela antecipada deferida na sentença.

Com contrarrazões, subiram os autos a esta Corte.

O Ministério Público Federal ofereceu parecer.

É o breve relatório. Passo a decidir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
2ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0009978-56.2012.4.03.6112

RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO

APELANTE: DIRCEU VICENTE, SILSA MARIA VICENTE

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V O T O

 

O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FRANCISCO (Relator): Preliminarmente, afasto a alegação de nulidade da sentença por ausência de intervenção ministerial em 1ª Instância, na medida em que não demonstrada a ocorrência de prejuízo. O simples fato de a ação ter sido julgada procedente, contrariamente aos interesses dos réus (particulares), não revela a ocorrência de prejuízo, sendo insuficiente para acarretar a nulidade do julgado e o consequente retorno dos autos à Vara de origem. Vale acrescentar que o representante ministerial não apontou quais provas pretende produzir nem mesmo indicou qual teria sido o prejuízo efetivo experimento pelas partes ou em detrimento ao interesse da coletividade. Além do mais, é preciso considerar que o feito já tramita há mais de 10 anos (necessidade de observar o art. 5º, LXXVIII, da CF/1988 – princípio da razoável duração do processo) e que a intervenção do MPF em 2ª Instância supre a não intervenção na Instância inferior. Nessa linha, entendimento do C. STJ:

AGRAVO REGIMENTAL - AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS POR ATO ILÍCITO - PRELIMINAR DE NULIDADE POR AUSÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO DO PARQUET NO 1º GRAU REJEITADA - REGULARIDADE PERANTE O 2º GRAU - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO - PRECEDENTES - ILICITUDE DE ATOS PRATICADOS AFASTADA - REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO - IMPOSSIBILIDADE - SÚMULA 7/STJ - DECISÃO AGRAVADA - MANUTENÇÃO - AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1.- A jurisprudência é firme no sentido de que a nulidade decorrente da ausência de intervenção ministerial em primeiro grau é sanada quando, não tendo sido demonstrado prejuízo, o Ministério Público intervém em segundo grau de jurisdição.

2.- Ultrapassar os fundamentos do Acórdão e acolher a tese sustentada pelo Agravante quanto à ilicitude dos atos praticados pelos agravados, afastada pelo Tribunal a quo, demandaria inevitavelmente, o reexame de provas, incidindo, à espécie, o óbice da Súmula 7 desta Corte.

3.- O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar a conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos.

4.- Agravo Regimental improvido.

(AgRg no AREsp n. 96.428/PA, relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 23/10/2012, DJe de 6/11/2012.)

Anoto, ainda, que nos autos nº 0005496-65.2012.403.6112, conexos a estes autos e objeto de julgamento em conjunto, a alegação de nulidade da sentença por ausência de intervenção ministerial em 1ª Instância, suscitada pelo Ministério Público Federal em seu parecer, foi rejeitada pelo E. Desembargador Federal Souza Ribeiro (ID 90378205, fls. 45/48 daqueles autos), sendo que, na sequência, a própria Douta Procuradoria Regional da República reformulou seu entendimento, para considerar que não se justifica a intervenção ministerial no caso em apreço (ID 90378205, fls. 52 daqueles autos).

Passo ao exame da apelação.

Compulsando os autos, verifica-se que HERMÍNIA SOARES LOPES FEITOSA e SERGIO LOPES FEITOSA ajuizaram ação de manutenção de posse, com pedido de liminar, em face de DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE, objetivando afastar turbação na posse do imóvel individualizado como Lote 59 do Assentamento Porto Velho, Município de Presidente Epitácio/SP. Aduzem que o pai do autor, Sr. José Dudas Feitosa, foi beneficiado com a posse do lote no assentamento rural em testilha e, em 2008, os autores se mudaram para o referido lote, uma vez que o Sr. José Dudas Feitosa estava doente e necessitava de cuidados, além de ajuda com os afazeres do campo. Relatam que passaram a ajudar o titular do lote em suas ocupações, cultivando diversas plantações como milho, mandioca, abóbora, maxixe, melancia, pepino, manga, dentre outras, além de criar gado de corte e leite. Narram que o Sr. José faleceu em 26.12.2008, permanecendo no lote apenas os autores e a Sra. Maria Lopes Feitosa, esposa do falecido. Discorrem que, com o falecimento do possuidor originário, os irmãos do autor passaram a cogitar vender o lote, o que nunca foi aceito pelos autores. Disseram que argumentaram com os demais irmãos a impossibilidade de vender o lote sem anuência da União e que tinham o interesse de se habilitar para que o imóvel lhes fosse cedido. Dizem que encaminharam a documentação para o INCRA e aguardam uma definição. Contam que, no final do ano de 2010, sem a anuência dos autores, os irmãos negociaram com os Réus a venda do lote pela quantia de R$ 80.000,00, a ser paga quando o INCRA regularizar a documentação. Destacam que foi autorizado, desde então, pelos irmãos do autor, que os Réus passassem a ocupar uma das casas existentes no lote. Relatam que os Réus foram notificados pelo INCRA para desocuparem o imóvel, uma vez que a ocupação foi considerada irregular. Contam que os Réus, diante da notificação, ajuizaram ação de manutenção de posse perante este Juízo, na qual foi deferida a liminar. Alegam que a posse dos autores deve ser preservada em detrimento da posse dos Réus, uma vez que são sucessores do possuidor originário e efetivamente exercem atividades rurais. Batem pela existência de turbação em sua posse.

De início, registro que a autora HERMÍNIA SOARES LOPES FEITOSA é parte legítima para figurar no polo ativo da presente ação de manutenção de posse, seja porque é casada com o coautor SERGIO LOPES FEITOSA (herdeiro do falecido beneficiário José Dudas Feitosa), seja porque já residia no referido lote quando da propositura da ação, de sorte que se encontra legitimada para a defesa da sua posse.

Na sequência, esclareço que a presente ação de manutenção de posse é conexa à ação de oposição nº 0004087-83.2014.403.6112, na qual proferi o seguinte voto:

Compulsando os autos, verifica-se que o INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA) ajuizou a presente oposição em face de HERMÍNIA SOARES LOPES FEITOSA, SERGIO LOPES FEITOSA, DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE, objetivando a reintegração na posse do imóvel individualizado como Lote 59 do Assentamento Porto Velho, Presidente Epitácio, SP. Aduz, em síntese, que o lote em testilha é objeto de disputa judicial entre os opostos, encerrada nas ações de manutenção de posse nº 0005496-65.2012.4.03.6112 e de reintegração de posse nº 0009978-56.2012.4.03.6112. Relata que o Lote nº 59 do Assentamento Porto Velho foi objeto de concessão para fins de reforma agrária ao Sr. José Dudas Feitosa, falecido em 2008. Acresce que os opostos Sergio e Hermínia se mudaram para o lote guerreado pouco antes do falecimento do beneficiado, na intenção de assisti-lo e auxilia-lo no trabalho rural. Destaca que, com a morte do beneficiado, continuaram no lote juntamente com a esposa do falecido e mãe do oposto Sergio. Diz que os irmãos de Sergio negociaram com o oposto Dirceu e sua esposa Silsa a venda do lote, de propriedade do INCRA, pelo valor de R$ 80.000,00, que seria pago após a regularização pelo INCRA. Agrega que, com a negociação, os opostos Dirceu e Silsa passaram a viver no lote juntamente com Sergio e Hermínia. Sublinha que foi apresentada documentação pelos opostos Sergio e Hermínia visando regularizar a situação, todavia, esta não foi aceita e os opostos foram notificados para desocuparem o lote. Sustenta a impossibilidade de ser reconhecida a posse agrária dos opostos, uma vez que não possuem justo título e boa-fé. Bate pela impossibilidade da usucapião de terra pública. Assevera que inexiste posse exercida pelos opostos e sim mera ocupação precária, uma vez que não foram previamente autorizados pelo INCRA para ingressarem na área. Defende a ocorrência de esbulho.

Preliminarmente, cumpre registrar que a oposição (arts. 56 a 61 do CPC/73, vigente à época da propositura) pode ser considerada uma ação incidental, intentada por terceiro (ou seja, alguém que não é parte no processo originário) contra as duas partes, as quais se tornam litisconsortes passivas na oposição. O pedido deduzido na oposição tem que ter por objeto (bem da vida) a mesma coisa ou direito que é discutido na ação originária.

Nesse sentido, tem-se que a via processual eleita pelo INCRA é perfeitamente adequada, não se podendo falar em falta de interesse de agir.

Com efeito, nos projetos de assentamento rural, o INCRA concede a posse direta ao beneficiário da cessão e reserva para si a posse indireta, circunstância que se revela suficiente ao exercício do direito de sequela quando verificada, em tese, a ocupação irregular do imóvel de propriedade pública. Vale lembrar que a posse indireta é exercida por quem detém todos os outros direitos inerentes à propriedade (arts. 1.197 e 1.228 do CC), a não ser o de uso, o qual é exercido pelo possuidor direto. O INCRA, na qualidade de possuidor indireto, se encontra, portanto, legitimado à propositura da ação de oposição, que se configura meio processual adequado para o exercício do direito de sequela. A presente oposição, ademais, será decidida conjuntamente com as ações de manutenção e de reintegração de posse envolvendo o mesmo imóvel, nos termos do art. 61 do CPC/73.

Tecidas essas considerações preliminares, passo ao exame do mérito.

A reforma agrária pode ser definida como "o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade" (art. 1º, § 1º, da Lei nº 4.504/1964 – Estatuto da Terra).

Ao tratar dos objetivos e dos meios de acesso à propriedade rural, dispôs o referido Estatuto da Terra, em seu art. 16, que “A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”. A competência para promover e coordenar a execução do programa de reforma agrária foi atribuída ao INCRA (art. 16, parágrafo único).

Em nível constitucional, prevê o art. 184 da CF/1988 que “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. O imóvel rural não cumpre a sua função social quando não atende aos requisitos elencados no art. 186, I a IV, da Carta Magna: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e (d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Dispõe ainda a CF/1988, em seu art. 189, que os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei.

O procedimento da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária é regido pela Lei Complementar nº 76/1993 e pela Lei nº 8.629/1993, a qual prevê no art. 2º que a propriedade rural que não cumprir com a função social, prevista no artigo 9º da referida lei, quais sejam, aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, é passível de desapropriação.

O procedimento desta modalidade de desapropriação, por seu turno, é dividido em três fases: 1ª) ocorre na esfera administrativa, mediante decreto expropriatório do Presidente da República, após a identificação do imóvel como improdutivo pelo INCRA; 2ª) ocorre na esfera judicial, quando a União, com fundamento no decreto expropriatório e no prazo de até dois anos a partir de sua publicação, propõe ação de desapropriação em face do proprietário do imóvel em questão; e 3ª) distribuição pelo INCRA das parcelas da propriedade expropriada aos pretensos beneficiários da reforma agrária, previamente cadastrados na autarquia.

Segundo o disposto no art. 16 da Lei nº 8.629/93, o INCRA possui o prazo de 3 anos, contados da data do registro do título translativo do domínio, para distribuir as terras aos beneficiários do programa, sendo que a distribuição dos imóveis rurais obtidos através da reforma agrária poderá ocorrer por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso, ficando os beneficiários obrigados a cultivar o imóvel direta e pessoalmente e não poderão ceder o seu uso a terceiro ou negociá-lo a qualquer título, pelo prazo de 10 anos (art. 21 da Lei nº 8.629/1993). Caso o beneficiário não cumpra com as suas obrigações, ocorrerá a rescisão do contrato e consequentemente o retorno do imóvel para o domínio do órgão alienante ou concedente.

De outro lado, preceitua a Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra), em seu art. 1º, § 1º, que se considera "Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade". O mesmo Estatuto, agora em seu art. 2º, caput, estabelece que é assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social. E a propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente (art. 2º, § 1º):

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.

Outrossim, é dever do Poder Público, entre outros, promover e criar as condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra economicamente útil, de preferência nas regiões onde habita, sendo certo que a todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultive, dentro dos termos e limitações estabelecidos na Lei nº 4.504/1964 (art. 2º, §§ 2º e 3º).

O que se denota das disposições constitucionais e legais pertinentes à matéria tratada nestes autos é que são dois os objetivos da reforma agrária: a) beneficiar as pessoas que apresentem aptidão para residir na terra e torna-la produtiva; b) estabelecer o bem-estar dos beneficiários e de suas famílias, proporcionando-lhes condições para que trabalhem e tirem o seu sustento da terra. Evidencia-se a preocupação não apenas com o próprio beneficiário da terra, mas também com os componentes de sua família.

De outro giro, o art. 18, §§ 10 e 11, da Lei nº 8.629/1993, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, estabelece a disciplina das situações decorrentes do falecimento do beneficiário do programa de distribuição de terras:    

Art. 18.  A distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária far-se-á por meio de títulos de domínio, concessão de uso ou concessão de direito real de uso - CDRU instituído pelo art. 7o do Decreto-Lei no 271, de 28 de fevereiro de 1967.         

(...)

§ 10.  Falecendo qualquer dos concessionários do contrato de concessão de uso ou de CDRU, seus herdeiros ou legatários receberão o imóvel, cuja transferência será processada administrativamente, não podendo fracioná-lo.                       (Incluído pela Lei nº 13.001, de 2014)

§ 11.  Os herdeiros ou legatários que adquirirem, por sucessão, a posse do imóvel não poderão fracioná-lo.                   (Incluído pela Lei nº 13.001, de 2014)

A ideia de proteção à família do beneficiário originário que vem a falecer, no sentido de que seus herdeiros receberão o imóvel que lhe havia sido destinado, acaba por atrair a incidência das disposições do Código Civil atinentes à aquisição da posse, notadamente o seu art. 1.206, assim redigido:

Art. 1.206. A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres.

O referido dispositivo legal, note-se, cuida da transmissão da posse em razão da morte, a chamada “sucessão na posse”, aplicando-se o princípio da “saisine” (art. 1.784 do CC), segundo o qual é garantida a transmissão desde logo aos herdeiros, não havendo que se falar em intervalo entre o falecimento e a transferência dos bens aos herdeiros, a qual se opera de imediato.

A regulamentação infralegal apoia as afirmações feitas até aqui, como se nota do art. 73 do Decreto nº 59.428/1966, “in verbis”:

Art 73. Falecendo o parceleiro que tenha assinado o contrato de colonização e de promessa de compra e venda, seus herdeiros receberão a parcela livre de ônus, mediante resgate pelo seguro de renda, temporária a que se refere o Art. 53 dêste Regulamento, mas estarão obrigados por outros compromissos assumidos pelo de cujus .

§1º Se o núcleo ainda não estiver emancipado, a transferência será processada administrativamente e sem intervenção judiciária.

§ 2º Os herdeiros ou legatários que adquirirem, por sucessão, o domínio dos lotes ou parcelas, não poderão fracioná-los.

§ 3º No caso de um ou mais herdeiros ou legatários desejar explorar o lote ou parcela assim havido, o IBRA o INDA, poderão diligenciar no sentido de os sucessores obterem financiamento através do Sistema Nacional de Crédito Rural, desde que comprovem a inexistência de recursos próprios.

É preciso recordar, entretanto, que a posse agrária tem fundamentos distintos da posse civil, podendo ser entendida não somente como o exercício de alguns dos direitos inerentes a propriedade (art. 1.196 do CC), especialmente o direito de usar a coisa, mas sim como o exercício direto de atividades agrárias desempenhadas em gleba de terra rural, capaz de propiciar o seu pleno uso econômico e atendendo aos requisitos elencados no art. 186 da CF/1988. Portanto, é preciso que se verifique a exploração direta da terra para torná-la produtiva, eis que é esta a razão maior do projeto de reforma agrária. Assim, não basta que o interessado ostente a condição de herdeiro do beneficiário, é necessário que, efetivamente, esta pessoa tenha aptidão para trabalhar na terra, tornando-a produtiva e atendendo à função social da propriedade rural destinada à reforma agrária.

No caso dos autos, os elementos de prova existentes revelam que no lote nº 59 do Assentamento Porto Velho, localizado no Município de Presidente Epitácio/SP, há duas residências, sendo que em uma delas residem SERGIO LOPES FEITOSA e sua esposa HERMÍNIA SOARES LOPES FEITOSA. Sergio é filho do Sr. JOSÉ DUDAS FEITOSA, beneficiário originário do lote. No auto de constatação (ID 90378201, fls. 61/70) também se verificou que Sergio e sua esposa possuem uma pequena criação de animais e cultivam mandioca e milho, bem como sobrevivem com a venda de leite tirado das vacas que possuem no lote.

Da documentação existente nos autos é possível concluir, portanto, que o lote não se encontra abandonado, mas, ao contrário, está sendo objeto de exploração rural, atendendo à sua função social. Além disso, na sua própria inicial, o INCRA reconhece que "os autores se mudaram para o lote guerreado pouco antes do falecimento do beneficiado, na intenção de assisti-lo e auxilia-lo no trabalho rural" (ID 90378201, fls. 08). De tal modo, reconhece-se que os autores viviam no mesmo lote com o Sr. José Dudas Feitosa antes mesmo de seu falecimento e o auxiliavam nas lides rurais, encontrando-se perfeitamente caracterizada a denominada “posse agrária”, a qual foi transmitida aos herdeiros do falecido Sr. José Dudas Feitosa, na forma da legislação de regência. Assim, na linha do que concluiu a sentença ora apelada, “não colhe o pedido formulado em relação Sergio Lopes Feitosa e sua esposa Hermínia Soares Lopes Feitosa, uma vez que comprovada a regularidade de sua posse, bem como o exercício de atividade rural no imóvel”.

À luz das considerações até aqui expostas, tenho que não procede a argumentação do apelante, no sentido de que os opostos SERGIO LOPES FEITOSA e HERMINIA SOARES não contariam com justo título hábil a legitimar sua posse sobre o lote objeto da lide possessória. Na verdade, o justo título de que dispunha o beneficiário originário Sr. JOSÉ DUDAS FEITOSA foi transmitido ao seu filho SERGIO por força da sucessão havida, plenamente admitida pela legislação, tal como já foi aqui explicitado.

Mas, ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que a ocupação do lote nº 59 por SERGIO LOPES FEITOSA e HERMINIA SOARES fosse, por hipótese, tida como irregular, encontraria incidência no caso o art. 26-B da Lei nº 8.629/1993, segundo o qual a ocupação irregular de lote, sem autorização do INCRA, em área objeto de projeto de assentamento criado há, no mínimo, dois anos, contados a partir de 22/12/2016, poderá ser regularizada, desde que observadas as vedações constantes do art. 20 da citada Lei, bem como as condições previstas no mesmo art. 26-B. Confira-se o teor do dispositivo legal:

Art. 26-B.  A ocupação de lote sem autorização do Incra em área objeto de projeto de assentamento criado há, no mínimo, dois anos, contados a partir de 22 de dezembro de 2016, poderá ser regularizada pelo Incra, observadas as vedações constantes do art. 20 desta Lei.                       (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017) 

§ 1o  A regularização poderá ser processada a pedido do interessado ou mediante atuação, de ofício, do Incra, desde que atendidas, cumulativamente, as seguintes condições:                           (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

I - ocupação e exploração da parcela pelo interessado há, no mínimo, um ano, contado a partir de 22 de dezembro de 2016;                         (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

II - inexistência de candidatos excedentes interessados na parcela elencados na lista de selecionados de que trata o § 3o do art. 19 desta Lei para o projeto de assentamento;                      (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

III - observância pelo interessado dos requisitos de elegibilidade para ser beneficiário da reforma agrária; e                       (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

IV - quitação ou assunção pelo interessado, até a data de assinatura de novo contrato de concessão de uso, dos débitos relativos ao crédito de instalação reembolsável concedido ao beneficiário original.                       (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 2o  Atendidos os requisitos de que trata o § 1o deste artigo, o Incra celebrará contrato de concessão de uso nos termos do § 2o do art. 18 desta Lei.                       (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

Na espécie, ficou comprovado que os herdeiros exploram economicamente o imóvel, o qual também serve como sua moradia habitual, com o cumprimento da função social da propriedade rural. Outrossim, as fotos juntadas aos autos dão conta não só da exploração econômica do lote, bem como da realização de benfeitorias no local (ID 90378201, fls. 61/70).

Descabida, ainda, qualquer invocação ao tipo penal contido no art. 20 da Lei nº 4.947/1966, pois não se pode sequer cogitar de ocupação ilegítima de terra pública.

Assim, em razão das considerações até aqui expostas, tem-se que, a despeito de o INCRA ser o legítimo proprietário da área parcelada, sendo certo que os assentados estão obrigados a cumprir as normas que regem o programa nacional de reforma agrária, cabendo à autarquia a seleção das famílias a serem beneficiadas, a documentação existente nos autos revela que os apelados SERGIO LOPES FEITOSA e HERMÍNIA SOARES residem no lote desde 2008 e, desde então, o utilizam para fins de moradia e de subsistência. Não se desconhece, outrossim, que o INCRA possui uma ordem cronológica de famílias para assentar, mas deferir o pedido de reintegração de posse formulado pela autarquia iria de encontro ao objetivo da reforma agrária e traria enormes prejuízos aos referidos opostos, que têm mantido a exploração do lote há mais de 10 anos, nos termos almejados pelo projeto de assentamento, cumprindo, assim, a função social da propriedade exigida pela Constituição Federal.

Ademais, a irregularidade da ocupação não pode se sobrepor ao fato de que os apelantes preenchem os requisitos para ser beneficiários do lote e que eles conferem à área a devida função social, mormente quando a Lei nº 8.629/1993, alterada pela Lei 13.465/2017, passou a prever a possibilidade de regularização a posteriori de lotes ocupados em assentamentos. Nesse sentido, julgados desta C. Corte Regional:

REMESSA OFICIAL. INCRA. REFORMA AGRÁRIA. OCUPAÇÃO IRREGULAR DO LOTE. PESSOA NÃO CADASTRADA NO PNRA. INÉRCIA DO INCRA. CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. MANUTENÇÃO DA POSSE DA AUTORA.

1. Narra a inicial que o autor reside no imóvel com sua família desde 2009 e explora a terra através do plantio de soja, milho e criação de animais, de modo que atende a função social da propriedade e preenche todos os requisitos necessários à manutenção da sua posse. Todavia, informa que foi notificado pelo réu para desocupação do lote em razão de ocupação irregular.

2. Consta que, em 2012, o requerente foi notificada pelo INCRA a desocupar o lote em 48 horas, razão pela qual ajuizou a presente ação, com pedido liminar, a fim de que seja mantida a sua posse sobre o imóvel.

3. O INCRA foi devidamente citado e apresentou contestação sustentando, em síntese, que o autor ocupa o lote de forma irregular e sem autorização. Requereu a reintegração na posse do lote.

4. Sobreveio sentença, que julgou procedente a ação, para determinar a manutenção da posse da autora sobre o lote descrito na inicial e julgou improcedente o pedido de reintegração de posse.

5. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) define reforma agrária como "o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade".

6. Com efeito, a sua implementação tem como objetivo precípuo promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio, através de um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra (artigo 16 da mesma lei).

7. Para tal fim, a Constituição Federal, em seu artigo 184, autoriza a desapropriação por interesse social da propriedade rural que não esteja cumprindo a sua função social, ou seja, aquela que não atende aos requisitos dispostos no artigo 186, incisos I a IV, da Carta Magna: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

8. O procedimento desta modalidade de desapropriação é dividido em três fases. A primeira se dá por meio de decreto expropriatório do Presidente da República, após a identificação do imóvel como improdutivo pelo INCRA; a segunda ocorre na esfera judicial, quando a União, com fundamento no decreto expropriatório e no prazo de até dois anos a partir de sua publicação, propõe ação de desapropriação em face do proprietário do imóvel em questão; e a terceira se refere à distribuição pelo INCRA das parcelas da propriedade expropriada aos pretensos beneficiários da reforma agrária, previamente cadastrados na autarquia.

9. Nesse contexto, a Lei nº 8.629/93, em consonância com o que prevê a Constituição Federal (artigo 189), dispõe em seu artigo 18 que a distribuição das parcelas do imóvel rural pode se dar por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso - CDRU, esta última modalidade foi incluída pela Lei nº 13.001/2014, inegociáveis pelo prazo de dez anos, sendo assegurado ao beneficiário do contrato de concessão de uso o direito de adquirir, em definitivo, o título de domínio da propriedade.

10. No tocante à qualidade de beneficiário da reforma agrária, a redação do artigo 20 da Lei nº 8.629/93 vigente à época dos fatos tratados no presente feito dispunha que não poderia ser beneficiário o proprietário rural, salvo algumas exceções, tampouco aquele que exercesse função pública, autárquica ou em órgão paraestatal, ou o que estivesse investido de atribuição parafiscal, ou, ainda, quem já tivesse sido contemplado anteriormente com parcelas em programa de reforma agrária.

11. Os beneficiários têm a obrigação de cultivar a sua parcela direta e pessoalmente, ou através de seu núcleo familiar, e de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos (artigo 21 da mesma lei), sob pena de rescisão do contrato e o retorno do imóvel ao INCRA.

12. No caso, embora a ocupação do lote nº 67 tenha se dado de forma irregular, qual seja, sem observância dos critérios do Programa Nacional da Reforma Agrária - PNRA, verifica-se, pelo Auto de Constatação, que o autor, desde então, o utiliza para fins de moradia e de subsistência.

13. Ademais, as fotografias juntadas aos autos tanto pelos autores como pelo Oficial de Justiça em sua vistoria corroboram a versão da autora, no sentido de que residem no imóvel e realizam atividades de plantio e de criação de animais.

14. Dessa forma, conforme bem assinalado na r. sentença, "considerando o que fora exposto e ciente de que o Poder Judiciário não pode agir desapegado das normas legais mais comezinhas à questão para permitir a retirada de ocupante irregular que preenche os requisitos para ser beneficiário do Projeto de Reforma Agrária, observo que o autor exerce atividade que lhe permite renda vinculada ao labor rural, ou seja, exerce atividades que permitem que a sua sobrevivência derive exclusivamente de atividades agrícolas, extrativistas e/ou pecuaristas".

15. Apelação a que se nega provimento.

(TRF 3ª Região, 1ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0002788-72.2012.4.03.6005, Rel. Desembargador Federal VALDECI DOS SANTOS, julgado em 25/11/2022, DJEN DATA: 29/11/2022)

APELAÇÃO CÍVEL. MANUTENÇÃO/REINTEGRAÇÃO DE POSSE. INCRA. OCUPAÇÃO IRREGULAR DE LOTES DA REFORMA AGRÁRIA. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO. PREENCHIDOS OS REQUISITOS DO ARTIGO 26-B DA LEI 8.629/93. SENTENÇA REFORMADA. INVERSÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. RECURSO PROVIDO.

1.  A demanda, com pedido liminar, foi ajuizada por Valmir Messias dos Santos e Maria de Fátima Almenara em face do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, visando à regularização de sua ocupação no lote n. 61 do Projeto de Assentamento Margarida Alves, localizado no município de Rio Brilhante/MS, emitindo-se contrato de concessão de uso em seus nomes e inscrevendo-os como beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA.

2. A sentença julgou improcedente o seu pedido de manutenção/regularização de posse, revogando-se a tutela provisória anteriormente concedida, e julgou procedente o pedido de reintegração de posse, formulado pelo INCRA, concedendo o prazo de 90 dias para os autores desocuparem voluntariamente o imóvel, sob pena de multa diária no valor de R$ 100,00 e de expedição de mandado de reintegração de posse. Os autores foram condenados ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em 10% do valor atualizado da causa, cuja exigibilidade ficará suspensa, nos termos do artigo 98, §2º, do CPC.

3. Em suas razões recursais, os autores alegam o direito à regularização de sua ocupação, através e contrato de concessão de uso e de título domínio da propriedade, com fulcro nos direitos fundamentais à moradia e função social da propriedade. Subsidiariamente, requerem a indenização das benfeitorias úteis e necessárias, e acessões físicas, ou, ao menos, que seja respeitado o direito de retenção das benfeitorias.

4. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) define reforma agrária como "o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade". Com efeito, a sua implementação tem como objetivo precípuo promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio, através de um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra (artigo 16 da mesma lei).

5. A Lei nº 8.629/93, em consonância com o que prevê a Constituição Federal (artigo 189), dispõe que, no Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA, cabe ao INCRA a distribuição das parcelas do imóvel rural aos pretensos beneficiários da reforma agrária, previamente cadastrados, por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso - CDRU, esta última modalidade foi incluída pela Lei nº 13.001/2014, inegociáveis pelo prazo de dez anos, sendo assegurado ao beneficiário do contrato de concessão de uso o direito de adquirir, em definitivo, o título de domínio da propriedade.

6. No tocante à qualidade de beneficiário da reforma agrária, o artigo 20 da Lei nº 8.629/93, com redação dada pela Lei nº 13.465/2017, dispõe sobre as pessoas que não poderão ser selecionadas como tais. Os beneficiários têm a obrigação de cultivar a sua parcela direta e pessoalmente, ou através de seu núcleo familiar, e de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos (artigo 21 da mesma lei), sob pena de rescisão do contrato e o retorno do imóvel ao INCRA.

7. Noutro vértice, o artigo 26-B da Lei nº 8.629/93, igualmente incluído pela Lei nº 13.465/2017, prevê a possibilidade de regularização de ocupações irregulares de lotes da reforma agrária, até mesmo de ofício, pelo INCRA, desde que cumpridas as condições estipuladas nos incisos I a IV de seu §1º.

8. No caso, o lote 61 do PA Margarida Alves foi originalmente destinado a Maria Nalu Carvalho Contini, em 2001, que, em razão de problemas de saúde, desistiu do imóvel em 2006.

9. Em outubro de 2009, os ora apelantes passaram a ocupá-lo e explorá-lo, e, em julho de 2010, buscaram regularizar sua situação perante o INCRA. Após pareceres administrativos no sentido de que o ocupante preenchia os requisitos para ser beneficiário da reforma agrária, a Superintendência Regional do INCRA em MS, em agosto de 2010, deferiu a regularização da parcela, "mediante a expedição de contrato de concessão de uso (CCU ) para o atual ocupante que deverá ser inscrito como beneficiário do Programa Nacional de Reforma Agrária — PNRA".

10. Ademais, em vistorias realizadas em julho de 2010 e julho de 2011, apurou-se a existência de plantação de mandioca e de cana, criação de gado leiteiro, galinhas e porcos, pomar e horta no lote.

11. Todavia, quando o procedimento administrativo foi remetido à Unidade Avançada Dourados, o órgão notificou os apelantes a desocuparem o lote, por constituir ocupação sem anuência do INCRA. O recurso administrativo por eles interposto foi indeferido, razão pela qual ajuizaram a presente demanda.

12. Neste contexto, assevera-se que, nos termos do artigo 26-B da Lei nº 8.629/93, a ocupação de lote sem autorização do INCRA, em PA criado há, no mínimo, dois anos, contados a partir de 22 de dezembro de 2016, poderá ser regularizada, desde que atendidas, cumulativamente, as seguintes condições: a) ocupação e exploração da parcela pelo interessado há, no mínimo, um ano, contado a partir de 22 de dezembro de 2016; b) observância pelo interessado dos requisitos de elegibilidade para ser beneficiário da reforma agrária; c) quitação ou assunção pelo interessado, até a data de assinatura de novo contrato de concessão de uso, dos débitos relativos ao crédito de instalação concedido ao beneficiário original; e d) inexistência de candidatos excedentes interessados na parcela, elencados na lista de selecionados para o PA em questão.              

13. Pois bem. O Projeto de Assentamento Margarida Alves foi criado muito antes de 2016, sendo certo que os apelantes ocupam e exploram o lote 61 desde 2009, e que, conforme reconhecido pelo próprio INCRA no processo administrativo, preenchem os requisitos para serem beneficiários da reforma agrária.

14. No tocante à exploração adequada do lote, além das vistorias acima citadas, foram realizadas vistorias em julho de 2019 e dezembro de 2020, sendo atestado em ambas que o lote apresenta níveis satisfatórios de produtividade.

15. Há nos autos, ainda, documento subscrito pelo apelante Valmir, datado de 22/07/2010, pelo qual concorda em assumir as obrigações e débitos referentes "aos créditos Alimentação, Fomento e Habitação perante o INCRA ou outros inerentes a parcela, bem como os recursos do PROCERA e ou PRONAF Grupo — A, contratados junto ao Banco do Brasil S.A, nas modalidades de custeio/investimento, seja na forma individual ou coletiva", restando, portanto, preenchido este requisito também.

16. Por fim, em relação à exigência de ausência de candidatos excedentes, tal informação não consta nos autos. Ressalte-se que o INCRA foi intimado por este Relator para fornecer especificamente esta informação, mas, não o fez. Além disso, conforme bem consignado pelo Ministério Público Federal, houve no curso do feito múltiplas oportunidades em que o INCRA reexaminou os autos ou reabriu a instrução para avaliar o atendimento dos requisitos para regularização, mas, ainda assim, deixou de trazer este dado.

17. Diante disso, razão assiste ao Parquet, ao afirmar que, considerando o tempo de duração da presente demanda, bem como a natureza social dos direitos nela discutidos, "não se pode admitir que a ausência de resposta do INCRA ao questionamento expressamente formulado por este Tribunal persista protelando a solução da lide", tampouco "que os autores permaneçam com os ônus decorrentes da inação do órgão fundiário", de modo que tal requisito - inexistência de candidatos excedentes - deve ser reputado preenchido.

18. Dessa forma, estando preenchidos todos os requisitos do artigo 26-B da Lei nº 8.629/93, a ocupação dos apelantes deve ser regularizada, cabendo ao INCRA incluí-los como beneficiários da reforma agrária e promover a celebração de contrato de concessão de uso, nos termos do §2º do citado artigo.

19. Sendo assim, a r. sentença deve ser reformada, invertendo-se os ônus da sucumbência.

20. Condenação do INCRA ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em 10% sobre o valor atualizado da causa, os quais deverão ser majorados em 1%, nos termos do art. 85, § 11, do CPC.

21. Apelação a que se dá provimento.

(TRF 3ª Região, 1ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0004442-98.2015.4.03.6002, Rel. Desembargador Federal RENATO LOPES BECHO, julgado em 02/02/2023, Intimação via sistema DATA: 03/02/2023)

Já em relação à posse exercida por DIRDEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE, a solução há de ser outra.

De fato, assim dispõe o art. 189, caput, da CF/1988:

Art. 189. Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.

(...)

A CF estabelece, portanto, verdadeira cláusula temporal restritiva do direito de transmissão ou de cessão de uso de imóvel rural designado a programas de reforma agrária, o que encontra justificativa no próprio Estatuto da Terra, mais especificamente na figura do parceleiro, que é aquele que adquire lotes ou parcelas em área destinada à reforma agrária (arts. 4º, VII e IX, 25, 26 e 64, I, da Lei nº 4.504/1964). Assim, a concessão de uso é considerada inegociável, por sua natureza de ato celebrado em função da pessoa do parceleiro beneficiário, ao menos durante o prazo decenal constitucionalmente previsto.

Nessa linha, o julgado que segue, proveniente desta C. Corte Regional:

PROCESSO CIVIL. MANUTENÇÃO DE POSSE. INCRA. ASSENTAMENTO. REFORMA AGRÁRIA. OCUPAÇÃO IRREGULAR. APELAÇÃO IMPROVIDA.

1. O Programa Nacional de Reforma Agrária tem por escopo proporcionar aos trabalhadores rurais necessitados acesso à terra para que nela possam residir e produzir, efetivando o princípio constitucional da "função social da propriedade."

2. O Estatuto da Terra estabelece que o Poder Público, para acesso a propriedade rural, promoverá o recrutamento e seleção de indivíduos ou famílias.

3. Os beneficiários da reforma agrária serão escolhidos nas condições e termos previstos em lei, desde que devidamente cadastrados, com a prévia anuência do INCRA.

4. Extrai-se, ainda, que a concessão de uso dos benefícios pela reforma agrária é inegociável pelo prazo de dez anos, constando, expressamente, a proibição de transferências dos lotes.

5. Como se sabe, o contrato de assentamento gera direitos e obrigações entre os contratantes, cujos limites deverão ser respeitados pelos beneficiários da reforma agrária.

6. O que se busca com a autuação do INCRA na escolha dos beneficiários é a promoção da igualdade, de modo a evitar fraudes na concessão de uso de terras rurais.

7. Na hipótese dos autos, nos termos dos documentos trazidos pelo INCRA, a Autarquia Federal deliberou a Joaquim de Almeida e sua esposa Maria Donizete de Almeida o lote de nº 18 do P. A. Dandara (fls. 47/50).

8. Em vistoria realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ao lote de terra nº 18, assentamento Dandara, foi constatada que a parcela do assentamento foi vendida sem anuência do INCRA para Patrícia Stephany dos Santos (fls. 63/87).

9. No presente caso, os apelantes não estão incluídos em programa de reforma agrária.

10. Verificada a irregularidade da ocupação, caracteriza-se a mera detenção e não a posse, não dispondo a apelante de proteção em face do apelado. Quem dispõe de proteção por eventual turbação ou esbulho de posse é o INCRA, proprietário da gleba de terra em discussão nestes autos.

11. Apelação improvida.

(TRF 3ª Região, QUINTA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1855583 - 0002126-85.2012.4.03.6142, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO FONTES, julgado em 24/05/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:30/05/2017 )

Dessa forma, tem-se que há vedação constitucional explícita quanto à alienação do lote em questão, sendo que tal vedação também vem expressa no art. 18 da Lei nº 8.629/1993, assim redigido à época dos fatos:

Art. 18. A distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária far-se-á através de títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de 10 (dez) anos.

A vedação constitucional e legal se justifica, na medida em que a reforma agrária trata-se de política pública de inclusão social, não se podendo tolerar condutas que representem verdadeira especulação imobiliária envolvendo os imóveis rurais desapropriados e cedidos aos beneficiários do programa. É justamente por isso que o dispositivo legal proíbe qualquer negociação envolvendo as parcelas de terra destinadas pelo Programa Nacional de Reforma Agrária aos trabalhadores rurais, pelo período de dez anos, assegurando, outrossim, uma conduta ética e honesta daqueles que são beneficiários da política pública.

Tal vedação também vem expressa no próprio Contrato de Assentamento nº SP 008300000099, firmado com o beneficiário José Dudas Feitosa: "CLÁUSULA QUARTA - A parcela/fração contratada é inegociável pelo prazo de 10 (dez) anos, nos termos do art. 189 da Constituição Federal, contados a partir da emissão do Contrato de Concessão de Uso - CCU ou do Título de Domínio, conforme norma específica. CLÁUSULA QUINTA - No caso do beneficiário assentado alienar, hipotecar, arrendar, ou efetuar qualquer tipo de transferência de titularidade, benfeitorias e possessórias da parcela/fração a terceiros, sem que o INCRA tome prévio conhecimento e aquiescência, dar-se-á rescisão do presente Contrato, independentemente de ação judicial."

Já o art. 21 da Lei nº 8.629/1993 corrobora a vedação acima e impõe a obrigação de cultivo direto e pessoal do imóvel ou através do núcleo familiar:

Art. 21. Nos instrumentos que conferem o título de domínio ou concessão de uso, os beneficiários da reforma agrária assumirão, obrigatoriamente, o compromisso de cultivar o imóvel direta e pessoalmente, ou através de seu núcleo familiar, mesmo que através de cooperativas, e o de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos.

No caso sob apreciação, as provas dos autos indicam que o lote foi objeto de cessão com o contrato assinado em 17/12/2002. Desse modo, quando ocorreu a alegada alienação por parte dos herdeiros aos adquirentes, DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE, no ano de 2008, não havia transcorrido o prazo de dez anos exigido pela legislação de regência da matéria, de forma que o ato é de ser considerado ineficaz. 

E, como consequência da violação às disposições constitucionais, legais e contratuais, não há que se falar que DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE sejam possuidores de boa-fé e com justo título, tratando-se o caso, na realidade, de mera ocupação do lote, uma vez que, em relação ao INCRA, não pode ser oposta como verdadeira posse, porquanto considerada clandestina (art. 1.208, CC).

É de se lembrar, ademais, que nos termos do art. 1.206 do CC, já mencionado acima, “a posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres”, de sorte que continuam a incidir as mesmas limitações legais e contratuais que vedam a negociação do imóvel rural destinado à reforma agrária pelo prazo de 10 anos.

Também é relevante registrar que, em relação a DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE não existe possibilidade de regularização fundiária, na forma prevista no art. 26-B da Lei 8.629/1993, visto que, além de a posse exercida não poder ser considerada de boa-fé, encontra incidência a restrição estabelecida no art. 18, § 11, da Lei nº 8.629/1993, que veda o fracionamento da posse do imóvel pelos herdeiros ou sucessores do primitivo beneficiário.

Assim sendo, a oposição proposta pelo INCRA contra Dirceu Vicente e Silsa Maria Vicente é procedente, sem que se possa falar, outrossim, em direito à indenização pelas benfeitorias eventualmente realizadas no lote, consoante pacífica jurisprudência do C. STJ, materializada em sua Súmula nº 619, segundo a qual “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”.

Diante do exposto, NEGO PROVIMENTO à apelação e ao reexame necessário.

Em vista do trabalho adicional desenvolvido na fase recursal e considerando o conteúdo da controvérsia, com fundamento no art. 85, §11, do CPC, a verba honorária fixada em primeiro grau de jurisdição favoravelmente ao advogado de SERGIO LOPES FEITOSA e HERMINIA SOARES deve ser majorada em 10%, respeitados os limites máximos previstos nesse mesmo preceito legal, e observada a publicação da decisão recorrida a partir de 18/03/2016, inclusive (E.STJ, Agravo Interno nos Embargos de Divergência 1.539.725/DF, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, 2ª seção, DJe de 19/10/2017).

É como voto.

Os fundamentos acima reproduzidos, que levaram à confirmação da sentença proferida na oposição, aplicam-se ao presente caso.

De fato, restou assentada a improcedência da oposição ajuizada pelo INCRA contra HERMÍNIA SOARES LOPES FEITOSA e SERGIO LOPES FEITOSA, uma vez que foi reconhecido seu direito de permanecerem no lote objeto da lide, por preencherem os requisitos para sua legítima aquisição, na qualidade de herdeiros de José Dudas Feitosa.

De outro lado, a oposição do INCRA foi julgada procedente em relação aos ora apelantes DIRCEU VICENTE e SILSA MARIA VICENTE, porquanto sua posse foi considerada clandestina e de má-fé, posto que adquirida de forma contrária às normas constitucionais, legais e contratuais que regem o Programa Nacional de Reforma Agrária. Configurado, assim, o estado de turbação da posse dos autores, conduzindo à procedência da ação de manutenção de posse. 

A essas considerações é importante acrescentar que considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade (art. 1.196 do CC).

O possuidor, ademais, tem direito de ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no caso de esbulho e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado (art. 1.210 do CC).

Além disso, de acordo com o art. 927 do CPC/1973, vigente à época da propositura da ação, nas ações possessórias é necessário que a parte autora comprove, cumulativamente, a turbação ou o esbulho praticado pelo réu, a data do fato ilícito, e a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção e, por sua vez, a perda da posse, na ação de reintegração (STJ, AgInt no AREsp 605.410/MG, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 03/08/2018).

A turbação, no caso, encontra-se demonstrada, uma vez que os réus, ora apelantes, estão ocupando o imóvel cuja posse foi cedida à família dos autores sem a aquiescência destes. A ocupação indevida atinge uma casa de morada e parte do lote onde os réus cultivam suas plantações, conforme foi verificado em constatação feita pelo Oficial de Justiça nos autos da ação de oposição acima mencionada.

Nessa linha, deve ser confirmada a sentença que julgou procedente a presente ação de manutenção de posse.

Descabido, outrossim, o pleito subsidiário formulado pelos apelantes, de que seja determinado o pagamento pelas benfeitorias alegadamente feitas no imóvel, pois, exceção feita à reconvenção, não é dado ao réu formular pedido condenatório em face do autor. O requerimento, portanto, deve ser objeto de ação própria.

 Diante do exposto, REJEITO a preliminar de nulidade da sentença levantada pelo Ministério Público Federal e NEGO PROVIMENTO à apelação. Prejudicado o pleito de suspensão da execução da tutela antecipada deferida na sentença.

Em vista do trabalho adicional desenvolvido na fase recursal e considerando o conteúdo da controvérsia, com fundamento no art. 85, §11, do CPC, a verba honorária fixada em primeiro grau de jurisdição deve ser majorada em 10%, respeitados os limites máximos previstos nesse mesmo preceito legal, e observada a publicação da decisão recorrida a partir de 18/03/2016, inclusive (E.STJ, Agravo Interno nos Embargos de Divergência 1.539.725/DF, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, 2ª seção, DJe de 19/10/2017). Deve ser observado, contudo, o disposto no art. 98, § 3º, do CPC, uma vez que os apelantes são beneficiários da assistência judiciária gratuita.

É como voto.

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

 

APELAÇÃO. AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE. MATÉRIA PRELIMINAR DE NULIDADE. PROGRAMA NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA. SUCESSÃO. POSSE DO LOTE. 

- Afastada a alegação de nulidade da sentença por ausência de intervenção ministerial em 1ª Instância, na medida em que não demonstrada a ocorrência de prejuízo.

- O simples fato de o pedido formulado na ação ter sido julgado procedente, contrariamente aos interesses dos réus (particulares), não revela a ocorrência de prejuízo, sendo insuficiente para acarretar a nulidade do julgado e o consequente retorno dos autos à Vara de origem. Vale acrescentar que o representante ministerial não apontou quais provas pretende produzir nem mesmo indicou qual teria sido o prejuízo efetivo experimento pelas partes ou em detrimento ao interesse da coletividade. Além do mais, é preciso considerar que o feito já tramita há mais de 10 anos (necessidade de observar o art. 5º, LXXVIII, da CF/1988 – princípio da razoável duração do processo) e que a intervenção do MPF em 2ª Instância supre a não intervenção na Instância inferior. Precedente do C. STJ.

- Nos autos nº 0005496-65.2012.403.6112, conexos a estes autos e objeto de julgamento em conjunto, a alegação de nulidade da sentença por ausência de intervenção ministerial em 1ª Instância, suscitada pelo Ministério Público Federal em seu parecer, foi rejeitada, sendo que, na sequência, a própria Douta Procuradoria Regional da República reformulou seu entendimento, para considerar que não se justifica a intervenção ministerial no caso em apreço.

- Dispõe a ordem constitucional de 1988, em seu art. 189, que os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei.

- Segundo o disposto no art. 16 da Lei nº 8.629/93, o INCRA possui o prazo de 3 anos, contados da data do registro do título translativo do domínio, para distribuir as terras aos beneficiários do programa, sendo que a distribuição dos imóveis rurais obtidos através da reforma agrária poderá ocorrer por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso, ficando os beneficiários obrigados a cultivar o imóvel direta e pessoalmente e não poderão ceder o seu uso a terceiro ou negociá-lo a qualquer título, pelo prazo de 10 anos (art. 21 da Lei nº 8.629/1993). Caso o beneficiário não cumpra com as suas obrigações, ocorrerá a rescisão do contrato e consequentemente o retorno do imóvel para o domínio do órgão alienante ou concedente.

Dois são os objetivos da reforma agrária: a) beneficiar as pessoas que apresentem aptidão para residir na terra e torná-la produtiva; b) estabelecer o bem-estar dos beneficiários e de suas famílias, proporcionando-lhes condições para que trabalhem e tirem o seu sustento da terra. Evidencia-se a preocupação não apenas com o próprio beneficiário da terra, mas também com os componentes de sua família.

O art. 18, §§ 10 e 11, da Lei nº 8.629/1993, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, estabelece a disciplina das situações decorrentes do falecimento do beneficiário do programa de distribuição de terras: § 10.  Falecendo qualquer dos concessionários do contrato de concessão de uso ou de CDRU, seus herdeiros ou legatários receberão o imóvel, cuja transferência será processada administrativamente, não podendo fracioná-lo; § 11.  Os herdeiros ou legatários que adquirirem, por sucessão, a posse do imóvel não poderão fracioná-lo.

- A ideia de proteção à família do beneficiário originário que vem a falecer, no sentido de que seus herdeiros receberão o imóvel que lhe havia sido destinado, acaba por atrair a incidência das disposições do Código Civil atinentes à aquisição da posse, notadamente o seu art. 1.206, segundo o qual a posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres. O referido dispositivo legal, note-se, cuida da transmissão da posse em razão da morte, a chamada “sucessão na posse”, aplicando-se o princípio da “saisine” (art. 1.784 do CC), segundo o qual é garantida a transmissão desde logo aos herdeiros, não havendo que se falar em intervalo entre o falecimento e a transferência dos bens aos herdeiros, a qual se opera de imediato.

- Entretanto, a posse agrária tem fundamentos distintos da posse civil, podendo ser entendida não somente como o exercício de alguns dos direitos inerentes a propriedade (art. 1.196 do CC), especialmente o direito de usar a coisa, mas sim como o exercício direto de atividades agrárias desempenhadas em gleba de terra rural, capaz de propiciar o seu pleno uso econômico e atendendo aos requisitos elencados no art. 186 da CF/1988. Portanto, é preciso que se verifique a exploração direta da terra para torná-la produtiva, eis que é esta a razão maior do projeto de reforma agrária. Assim, não basta que o interessado ostente a condição de herdeiro do beneficiário, é necessário que, efetivamente, esta pessoa tenha aptidão para trabalhar na terra, tornando-a produtiva e atendendo à função social da propriedade rural destinada à reforma agrária.

- Da documentação existente nos autos é possível concluir, portanto, que o lote não se encontra abandonado, mas, ao contrário, está sendo objeto de exploração rural, atendendo à sua função social.

- Não procede a argumentação do apelante, no sentido de que os opostos não contariam com justo título hábil a legitimar sua posse sobre o lote objeto da lide possessória. Na verdade, o justo título de que dispunha o beneficiário originário foi transmitido ao seu filho por força da sucessão havida.

- No caso sob apreciação, as provas dos autos indicam que o lote foi objeto de cessão com o contrato assinado em 17/12/2002. Desse modo, quando ocorreu a alegada alienação por parte dos herdeiros aos adquirentes, no ano de 2008, não havia transcorrido o prazo de dez anos exigido pela legislação de regência da matéria, de forma que o ato é de ser considerado ineficaz. 

- E, como consequência da violação às disposições constitucionais, legais e contratuais, não há que se falar que os apelantes sejam possuidores de boa-fé e com justo título, tratando-se o caso, na realidade, de mera ocupação do lote, uma vez que, em relação ao INCRA, não pode ser oposta como verdadeira posse, porquanto considerada clandestina (art. 1.208, CC).

- É de se lembrar, ademais, que nos termos do art. 1.206 do CC, já mencionado acima, “a posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres”, de sorte que continuam a incidir as mesmas limitações legais e contratuais que vedam a negociação do imóvel rural destinado à reforma agrária pelo prazo de 10 anos.

- Em relação aos apelantes não existe possibilidade de regularização fundiária, na forma prevista no art. 26-B da Lei 8.629/1993, visto que, além de a posse exercida não poder ser considerada de boa-fé, encontra incidência a restrição estabelecida no art. 18, § 11, da Lei nº 8.629/1993, que veda o fracionamento da posse do imóvel pelos herdeiros ou sucessores do primitivo beneficiário.

- Não se pode falar em direito à indenização pelas benfeitorias eventualmente realizadas no lote, consoante pacífica jurisprudência do C. STJ, materializada em sua Súmula nº 619, segundo a qual “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”.

- O possuidor, ademais, tem direito de ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no caso de esbulho e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado (art. 1.210 do CC).

- Além disso, de acordo com o art. 927 do CPC/1973, vigente à época da propositura da ação, nas ações possessórias é necessário que a parte autora comprove, cumulativamente, a turbação ou o esbulho praticado pelo réu, a data do fato ilícito, e a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção e, por sua vez, a perda da posse, na ação de reintegração (STJ, AgInt no AREsp 605.410/MG, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 03/08/2018).

- A turbação, no caso, encontra-se demonstrada, uma vez que os réus, ora apelantes, estão ocupando o imóvel cuja posse foi cedida à família dos autores sem a aquiescência destes. A ocupação indevida atinge uma casa de morada e parte do lote onde os réus cultivam suas plantações, conforme foi verificado em constatação feita pelo Oficial de Justiça nos autos da ação de oposição acima mencionada.

- Matéria preliminar rejeitada. Apelação não provida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Segunda Turma decidiu, por unanimidade, rejeitar a preliminar de nulidade da sentença levantada pelo Ministério Público Federal e negar provimento à apelação. Prejudicado o pleito de suspensão da execução da tutela antecipada deferida na sentença, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.