Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5002942-62.2022.4.03.6002

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: ANDRE FRANCA DA SILVA

Advogado do(a) APELANTE: ANGELO MAGNO LINS DO NASCIMENTO - MS16986-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5002942-62.2022.4.03.6002

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: ANDRE FRANCA DA SILVA

Advogado do(a) APELANTE: ANGELO MAGNO LINS DO NASCIMENTO - MS16986-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

 

Trata-se de Apelação Criminal interposta por ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, nascido em 23.07.1983, originada de ação penal intentada pela suposta prática dos crimes previstos nos artigos 250, 262, 288 e 330, todos do Código Penal.

 

Recebida em 02.12.2022 (ID 273491550), a denúncia narra que (ID 273491457):

 

No dia 18 de novembro de 2022, ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, de maneira consciente e voluntária, associado com outros indivíduos ainda não identificados, bloqueou a BR-163, no Trevo da Bandeira, em Dourados/MS expondo a perigo os usuários da rodovia, impedindo e dificultando o funcionamento do sistema de transporte rodoviário federal.

 

Posteriormente ao bloqueio da rodovia com pneus, o ora denunciado causou incêndio expondo a perigo a vida, a integridade física e o patrimônio de outras pessoas que transitavam pela citada rodovia federal.

 

Por fim, o denunciado desobedeceu ordem judicial, especialmente a proferida, e amplamente divulgada, na ADPF 519/DF, que considerou ilegal o bloqueio de rodovia motivado pelo inconformismo com o resultado eleitoral.

 

Com efeito, na data mencionada, o denunciado, em companhia de outras pessoas, utilizando um veículo de carga do tipo bitrem, SCANIA/R124 LA6X2NA, de cor branca e placas CYN7H18 e REB/FACCHINI-IR RER GR, de cor preta e placas CPJ4I63, transportou até o local denominado Trevo da Bandeira, em Dourados/MS, na BR 163, km 256, dezenas de pneus usados e, de forma organizada e rápida, distribuiu estes pneus sobre a pista de rolamento da referida rodovia e atearam fogo, fugindo do local logo em seguida.

 

No momento em que o caminhão que era conduzido por ANDRÉ, contendo a carga de pneus usados em seu interior, chegou ao Trevo da Bandeira, outros manifestantes já se aglomeravam lá e, de forma coordenada, dividiram-se no local e começaram o bloqueio:

 

Conforme se pode verificar das imagens acostadas ao relatório encaminhado pela Polícia Rodoviária Federal, os indivíduos estavam utilizando panos nos rostos, com a intenção de esconder a identidade durante a empreitada criminosa, bem como também retiraram a placa dianteira do veículo para tentar dificultar a identificação dos responsáveis.

 

Durante o incêndio provocado intencionalmente com a finalidade de interromper o trânsito e causar pânico na população, um veículo foi acometido pelas chamas, sendo destruído, o que quase culminou numa tragédia com seus ocupantes, de acordo com a imagem abaixo:

 

Ressalta-se que o ocorrido não se tratou de um ato de vandalismo isolado, mas foi premeditado e combinado por meio de mensagens de WhatsApp, no grupo “Dourados MS – BR163”, no qual era planejada alguma ação no Trevo da Bandeira, observando-se que um dos integrantes do grupo, de nome José Carlos Rozin, já se posicionava no local e aguardava a chegada de outros integrantes do grupo para que fossem promovidas ações de bloqueio, como realmente aconteceu pouco tempo depois:

 

Em diligências a campo e se valendo de imagens cedidas pela Concessionária CCRMSVia, a Polícia Federal identificou ANDRÉ FRANÇA DA SILVA como o proprietário do veículo que levou os pneus até o Trevo da Bandeira. Em seguida, agentes de inteligência da PRF foram até os endereços registrados de ANDRÉ, encontrando o caminhão em frente ao endereço situado na Rua Januário de Araújo, 485, Jardim Márcia, Dourados/MS.

 

Na ocasião, havia duas mulheres retirando pneus do caminhão e colocando-os dentro da casa. Além disso, estavam lavando a cabine, de modo a retirar as marcas de graxa que existiam no veículo, conforme vídeo veiculado em aplicativos de mensagens, na tentativa de dificultar a sua identificação:

 

Importante citar, ademais, que o bloqueio de rodovias, motivado pelo inconformismo eleitoral, está proibido e foi considerado ilegal pelo Ministro Alexandre de Morais, conforme decisão judicial proferida na ADPF 519/DF.

 

Ouvido em sede policial (ID 269349717, f. 47-49), ANDRÉ FRANÇA DA SILVA declarou, em síntese, que, no dia 18/11/2022, pela manhã, foi abastecer seu veículo num posto de combustível localizado na “Mão do Braz” e, numa lanchonete perto de tal local, escutou algumas pessoas conversando sobre a possibilidade de bloqueio e sobre a necessidade de levar pneus para o local. Assim, dispôs-se a levar os pneus, os quais pegou na “Borracharia do Ari”, na “Mão do Braz”, tendo afirmado para Ari que levaria os pneus para descarte na Prefeitura, tanto que alegou ter recebido a quantia de R$ 100,00 de Ari para fazer o referido descarte. Após, afirma que deixou os pneus no Trevo da Bandeira, onde havia cerca de 25 pessoas, mas foi embora antes de algumas pessoas que não conhece atearem fogo nos pneus.

 

Assim, por causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física e o patrimônio de outras pessoas, em associação com mais de três pessoas, ainda não identificadas, bem como por impedir e dificultar o funcionamento do sistema rodoviário federal e desobedecer ordem judicial ANDRÉ FRANÇA DA SILVA praticou os crimes previstos nos artigos 250, 262, 288 e 330 do Código Penal em concurso formal.

 

Diante do exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL oferece denúncia em desfavor de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, imputando-lhe a prática dos crimes previstos nos artigos 250, 262, 288 e 330 do Código Penal.

 

Pede o recebimento da denúncia, seguida da citação do réu para responder a acusação, instruindo-se o processo até final condenação. Pede que o juízo condene a denunciado a pagar, nos termos do art. 387, IV do CPP, danos morais coletivos no valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), valor esse a ser revertido ao Fundo dos Direitos Difusos visando ao fortalecimento das instituições e valores democráticos. Frisa-se que o ato do requerido foi praticado tendo em vista seu inconformismo com o resultado das eleições gerais de 2022, o que denota a importância da sua condenação em tal montante como forma de fortalecer o regime democrático.

 

A r. sentença (ID 273491693), publicada em 16.03.2023, proferida pelo Exmo. Juiz Federal Fabio Fischer (1ª Vara Federal de Dourados/MS), julgou procedente a ação penal para condenar ANDRÉ FRANÇA DA SILVA ao cumprimento das penas privativas de liberdade de 04 (quatro) anos e 09 (nove) meses de reclusão, e 15 (quinze) dias-multa, bem como de 01 (um) ano e 32 (trinta e dois) dias de detenção, e 12 (doze) dias-multa, fixados em ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente ao tempo dos fatos. Fixou o regime prisional inicial SEMIABERTO, não alterado pelo tempo decorrido de prisão preventiva até o ato sentencial. Determinou o cumprimento de prisão preventiva em caráter adaptado às circunstâncias da pena imposta (ID 273491687).

 

Nas razões de Apelação, a Defesa pugna pela absolvição fundada na ausência de prova de que o réu concorreu para a provocação do incêndio, enfatizando a ausência de prova pericial concernente ao perigo que teria causado, bem como na ausência de prova de que teria se consorciado com outros indivíduos para a prática de crimes. Subsidiariamente, a substituição da pena privativa de liberdade em restritivas de direitos (ID 274139583).

 

Não foram oferecidas Contrarrazões pelo órgão ministerial, substituídas pela apresentação de peça única pela Procuradoria Regional da República perante o segundo grau de jurisdição (ID 275945399).

 

A Procuradoria Regional da República opinou pelo desprovimento da Apelação defensiva (ID 276148841).

 

Em caráter incidental à Apelação Criminal, foi proferida decisão monocrática revocatória da prisão preventiva, com imposição de medidas cautelares alternativas (ID 282497587), da qual manifestou ciência o Ministério Público Federal, sem recurso (ID 283124487).

 

É o relatório.

 

À revisão.

 

 

 

 


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11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5002942-62.2022.4.03.6002

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APELANTE: ANDRE FRANCA DA SILVA

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V O T O – V I S T A

 

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO:

Na sessão de 22 de fevereiro de 2024, o e. Relator, Desembargador Federal Fausto De Sanctis, proferiu voto cujo dispositivo é o seguinte:

Ante o exposto, voto por dar parcial provimento à Apelação Criminal de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, de sorte a (i) manter unicamente a condenação pelo crime disposto no art. 262 do Código Penal, à pena de 01 (um) ano de detenção, em regime inicial ABERTO, substituída por uma pena de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo prazo da pena substituída, em favor de entidade beneficente indicada pelo Juízo da Execução Penal; (ii) absolvê-lo quanto ao crime de incêndio (art. 250 do CP), por não constituir infração penal autônoma, em razão da consunção pelo crime do art. 262 do Código Penal (art. 386, inc. III, do CPP); (iii) absolvê-lo quanto ao crime de associação criminosa (art. 288 do CP), por não haver prova da existência do crime (art. 386, inc. II, do CPP); e (iv) absolvê-lo quanto ao crime de desobediência (art. 330 do CP), por não constituir o fato infração penal (art. 386, inc. III, do CPP), nos termos acima expendidos.

Pedi vista para melhor examinar as circunstâncias do caso e passo, agora, ao meu voto.

Acompanho o e. Relator quanto à absolvição de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA relativamente às imputações de prática dos crimes de associação criminosa (CP, art. 288) e desobediência (CP, art. 330). Todavia, dele divirjo, com a devida vênia, em relação à absolvição da imputação de prática do crime de incêndio (CP, art. 250).

Examino, inicialmente, a preliminar de ausência de prova pericial quanto ao crime de incêndio, trazida nas razões de apelação (ID 274139583).

A defesa sustenta que, como esse crime deixa vestígios, a perícia é imprescindível, conforme dispõem os arts. 158 e 173 do Código de Processo Penal. Todavia, não foi realizada perícia e sua ausência não foi devidamente justificada, motivo pelo qual o acusado deve ser absolvido. Sem razão, contudo.

A perícia pode, em situações excepcionais, ser substituída por outras provas, como a testemunhal, nos termos do art. 167 do Código de Processo Penal. E essa é a situação dos autos, haja vista não ter sido possível realizar a perícia em razão do material ter sido consumido pelo fogo.

Além disso, havia a necessidade de liberação da rodovia, o que demandou a intervenção do corpo de bombeiros para conter o fogo, que, inclusive, chegou a atingir e danificar o veículo de terceiro que tentou ultrapassar o bloqueio ilegal. Portanto, foi devidamente justificada a não realização da prova pericial.

Assim, foram demonstradas não só a materialidade, mas também a autoria do delito por outras provas, entre elas as imagens da rodovia, a apreensão de materiais (galão de combustível e pedaços de borracha) na residência do acusado e a prova testemunhal. A propósito disso tudo, destaco os seguintes trechos da sentença (ID 273491687; negritos no original):

materialidade delitiva está comprovada pelo relatório da Delegacia de Polícia Rodoviária Federal (ID 269967722 - Pág. 50 e seguintes), e respectivas fotografias, captadas pelas câmeras de monitoramento da BR-163, nas quais se visualiza uma linha de pneus em chamas, bem como a espessa nuvem de fumaça preta característica da incineração da borracha.

As testemunhas igualmente confirmaram o incêndio na linha de pneus.

WALDIR BRASIL DO NASCIMENTO JUNIOR, Policial Rodoviário Federal disse ter recebido a informação sobre o bloqueio da pista, e quando chegou ao local, constatou o incêndio e o veículo de passageiros que tentou furar o bloqueio inteiramente carbonizado.

LUIZ HENRIQUE CORRÊA, delegado da Polícia Federal disse que vinham monitorando informações sobre um possível bloqueio da BR-163, e aproximadamente às 12h do dia 18 de novembro passado recebeu a notícia do incêndio de alguns pneus da rodovia.

ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, em seu interrogatório, embora negue a autoria delitiva, admitiu que os pneus confessadamente espalhados na rua foram incendiados, afirmando que teve conhecimento do incêndio e do fogo em um veículo de passeio algum tempo depois de ter saído do local.

A efetiva exposição a perigo da vida e patrimônio pelo incêndio está igualmente caracterizada. O incêndio ocorreu ao longo de uma via federal, com elevado fluxo de veículos e no momento em que havia aglomeração de manifestantes.

Ademais, a exposição a perigo veio a se concretizar em dano efetivo ao patrimônio, pois as chamas atingiram um veículo de passeio que tentou passar pelo local, mas foi inteiramente carbonizado, pegando fogo ainda com os passageiros em seu interior, como relataram as testemunhas, e retrata registro fotográfico inserido no relatório da Polícia Rodoviária Federal (ID 269967722 - Pág. 59).

A defesa argumentou ser imprescindível a realização de exame de corpo de delito para a comprovação da materialidade do crime de incêndio, como se extrai do art. 173 do CPP:

 

Art. 173.  No caso de incêndio, os peritos verificarão a causa e o lugar em que houver começado, o perigo que dele tiver resultado para a vida ou para o patrimônio alheio, a extensão do dano e o seu valor e as demais circunstâncias que interessarem à elucidação do fato.

 

A alegação não merece acolhida.

O referido dispositivo está inserido no capítulo do exame de corpo de delito e perícias em geral, que é inaugurado pela previsão genérica do art. 158, segundo o qual “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”

Sendo espécie de prova pericial sobre o corpo de delito, o exame de que trata o art. 173 também está submetido à condicionante prevista no art. 158, qual seja, de que a perícia só é indispensável quando a infração “deixar vestígios”.

Nesse sentido é o entendimento consolidado no âmbito do STJ, e resumido no item número 9 da edição 111 da Jurisprudência em Tese:

 

É necessária a realização do exame de corpo de delito para comprovação da materialidade do crime quando a conduta deixar vestígios, entretanto, o laudo pericial será substituído por outros elementos de prova na hipótese em que as evidências tenham desaparecido ou que o lugar se tenha tornado impróprio ou, ainda, quando as circunstâncias do crime não permitirem a análise técnica.

 

Entendimento esse expressamente esposado em julgados daquela Corte:

 

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE INCÊNDIO. AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. ART. 173 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AUTO DE CONSTATAÇÃO INDIRETA. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA PARA A NÃO REALIZAÇÃO DE LAUDO PERICIAL. RECURSO IMPROVIDO.

1. Segundo a jurisprudência consolidada desta Corte, nos delitos que deixam vestígios, a substituição do exame pericial por outros meios de prova somente é possível em hipóteses excepcionais quando desaparecidos os sinais ou as circunstâncias não permitirem a realização do laudo, hipótese não verificada no caso dos autos.

2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.750.717/RS, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 5/2/2019, DJe de 18/2/2019.)

 

Na hipótese dos autos, imputa-se ao acusado o incêndio provocado em pneus espalhados ao longo da rodovia BR-163, dispostos de forma a impedir por completo a passagem de veículos.

Imagens capturadas a partir de câmeras de monitoramento da concessionária CCR-Via registraram o aludido incêndio (ID 269967722 - Pág. 51 e 58), por meio do qual é possível constatar claramente o grau avançado de deterioração do material incinerado, restando praticamente nada de resquícios, que pudessem ser analisados.

Além do mais, o bloqueio e respectivo incêndio assumiu tal proporção, que um veículo que tentou ultrapassar o bloqueio pelo acostamento da pista acabou incendiado, colocando em risco de vida os seus passageiros, como amplamente noticiado e admitido pelo próprio acusado (ID 269967722 - Pág. 59).

As circunstâncias exigiram ação dos bombeiros, para controle do fogo e liberação da via, a fim de evitar novos acidentes potencialmente fatais e viabilizar o trânsito no local – uma das vias de acesso à cidade e com intenso fluxo de veículos, como se verifica pela reportagem acostada aos autos (ID 269967722 - Pág. 62).

Conclui-se, portanto, que o incêndio, por suas circunstâncias, não deixou vestígios e a sua localização e circunstâncias do momento impediram a conservação do local, para análise técnica, pois demandou imediata ação para segurança pública e restabelecimento do trânsito local.

Resta plenamente justificada a ausência de perícia no local do incêndio, a afastar a tese da imprescindibilidade da prova técnica para a materialidade delitiva.

autoria resta igualmente demonstrada nos autos.

A defesa nega a autoria. André afirmou que esteve no local espalhando os pneus com a ajuda de terceiros, e se retirou logo em seguida. Disse que apenas veio a saber do incêndio algum tempo depois.

As testemunhas informaram que não presenciaram o momento em que foi ateado fogo nos pneus, e igualmente disseram que não havia agentes dos respectivos órgãos de segurança no local no momento do incêndio. Waldir Brasil disse ainda que, ao chegar no local, o caminhão de ANDRÉ já não se encontrava no local.

Nada obstante, os elementos colhidos nos autos demonstram a autoria de André também em relação ao crime de incêndio.

Os fatos ocorreram em 18 de novembro passado. Dois dias após, foi realizada busca na residência de ANDRÉ, onde fora encontrado e apreendido um galão de aproximadamente 50 litros de etanol e dois sacos plásticos contendo vários pedaços de borrachas de câmeras de ar de veículo, na cor preta (ID 269967722 - Pág. 83).

Cuida-se de remanescentes de instrumentos do crime de incêndio, utilizados para fazer com que os pneus pegassem fogo.

A testemunha LUIZ HENRIQUE CORRÊA, delegado de Polícia Federal, em seu testemunho, esclareceu que pneus de borracha necessitam de algum elemento que os auxilie a incendiar, pois a mera exposição ao fogo não é suficiente para esse efeito, e justamente o combustível e os pedaços de borracha, menos resistentes, servem evidentemente para esse propósito.

A explicação apresentada pelo acusado para o combustível armazenado em sua residência não se mostra crível: disse que o galão de combustível seria utilizado para a fuga da cidade depois que soube do incêndio do veículo de passeio, para evitar parada para abastecimento de seu veículo.

O simples fato de ter enchido o galão com combustível logo após o ocorrido já exporia o acusado a público, e o abastecimento do veículo poderia ser realizado em qualquer lugar ou por qualquer pessoa, não se mostrando um risco maior do que o armazenamento do galão de combustível.

Fica claro, assim, que os pneus espalhados na pista foram levados por ANDRÉ juntamente com as tiras de borracha e etanol, para fazer incendiar o material.

Some-se a essas circunstâncias, o comportamento de ANDRE após ter conhecimento do incêndio do veículo de passeio. Disse ter se deslocado para Itaum com medo de ser preso após saber do incidente. Disse ainda que providenciou a venda de um veículo pessoal em 3 horas por R$ 12.000,00, entregando o valor para um advogado que conheceu nas manifestações em frente ao quartel, a fim de ser repassado ao proprietário do aludido veículo danificado.

Toda essa mobilização e esforço para esconder-se da polícia e disponibilizar considerável quantia para reparar um mal pelo qual, segundo afirma, não tinha responsabilidade alguma é inconsistente, mas se mostra coerente com a preocupação de alguém diretamente responsável pelo incêndio.

Assim, as provas dos autos apontam para a autoria de ANDRÉ em relação ao delito de incêndio, as quais não foram afastadas pelas alegações trazidas pela defesa.

 

Em igual sentido, trago a seguinte passagem do parecer subscrito pela Procuradora Regional da República Adriana Scordamaglia (ID 276148841, pp. 11/12 e 14/15):

Quanto à alegação recursal da imprescindibilidade da realização da perícia quanto ao crime de incêndio, é de conhecimento que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em atenção aos artigos 158 e 167, do Código de Processo Penal, no sentido de que os crimes que deixam vestígios demandam, a exemplo do crime de incêndio, a realização de prova pericial para a comprovação da materialidade. Contudo, uma justificada a impossibilidade de sua realização, diante da não preservação do local, mostra-se possível comprovação por outros meios. Nesse sentido:

[...]

Assim, uma vez descaracterizado o local dos fatos, de forma a se justificar a impossibilidade de realização da perícia, mostra-se escorreito o reconhecimento da materialidade por outros meios, como o relatório da Delegacia de Polícia Rodoviária Federal e as imagens captadas pelas câmeras de monitoramento da BR-163.

 

Ademais, discordo do e. Relator quanto à aplicação do princípio da consunção e a consequente absolvição do acusado quanto à imputação do delito de incêndio, realizadas com os seguintes fundamentos:

I - CONSUNÇÃO DO CRIME DE INCÊNDIO (ART. 250 DO CP) PELO CRIME DE ATENTADO CONTRA A SEGURANÇA DE MEIO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO (ART. 262 DO CP)

A imputação delitiva concentra-se principalmente sobre o fato de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA ter contribuído para o bloqueio da BR-163, no contexto já explicitado linhas acima, ao utilizar o seu caminhão SCANIA/R124 LA6X2NA 420, de cor branca e placas CYN7H18; e REB/FACCHINI-IR RER GR, de cor preta e placas CPJ4I63, para o transporte e descarregamento de pneus sobre a pista da rodovia federal, a fim de que comparsas ateassem fogo, provocando incêndio com o fito de interromper o fluxo de veículos rodoviários, na manhã do dia 18.11.2022.

Tais dados foram documentados por agentes policiais (ID 273491541 - Pág. 50/56) e parcialmente confirmados pelo próprio acusado, que reconheceu tanto na fase inquisitorial como em juízo que efetivamente realizou o transporte dos pneus que foram incendiados (273491687 - Pág. 4).

Foi registrado também que um veículo de passeio acabou consumido pelas chamas ao tentar atravessar o bloqueio incendiado, denotando perigo concreto da interdição aos veículos rodoviários (relatório da Polícia Rodoviária Federal - ID 269967722 - Pág. 59).

Depreende-se dos autos ainda que, em diligência de busca e apreensão na residência de ANDRE, foram apreendidos um galão de aproximadamente 50 litros de etanol e dois sacos plásticos contendo vários pedaços de borrachas de câmeras de ar de veículo, na cor preta (ID 273491541 - Pág. 80/83).

Vale acrescentar a ponderação bem efetuada pelo r. juízo sentenciante de que o comportamento de ANDRÉ coaduna com esforços do grupo de manifestantes para promover fechamento da rodovia (ID 273491687 - Pág. 7):

 

(...) manifestantes já aguardavam no local com o intuito deliberado de bloquear a passagem de veículos, como inclusive já vinha ocorrendo em datas anteriores e em diferentes locais de forma combinada e coordenada, como aponta relatório da Polícia Federal (ID 269967722 - Pág. 161 e seguintes).

De forma coerente com a prévia organização do bloqueio, ANDRÉ, ao chegar no local, já contava com o auxílio de parte dos manifestantes, com quem fora ajustado o bloqueio no local e data exatos.

 

Perícia realizada no aparelho celular de ANDRÉ comprovam ainda a ciência de diferentes pessoas a respeito da sua participação no bloqueio da pista. Em mensagem a um interlocutor desconhecido, ANDRÉ informa que iriam fechar a rotatória no dia 17 de novembro (ID 277665684, pag 5).

(...)

As mensagens demonstram claramente que havia uma rede de diferentes pessoas envolvidas no bloqueio da rodovia, contradizendo a versão defensiva de que resolveu levar os pneus para trancar a passagem da via de última hora. Foram identificadas ainda diversas mensagens de ANDRÉ solicitando doações para diferentes pessoas, a fim de contribuir com o consumo de subsistência em prol da manifestação (ID 277665684, pag 7).

 

Conforme o panorama fático-probatório ora delineado, resulta nítido que o fogo ateado nos pneus cumpriu o propósito específico de interditar a circulação rodoviária como forma ilícita de protesto contra o resultado eleitoral.

Diante de tais premissas fáticas, necessário considerar a inviabilidade jurídica da dupla imputação pelos crimes de incêndio e de atentado contra meio de transporte rodoviário, em face do princípio da consunção, conforme as razões abaixo explicitadas.

Primeiramente, vale observar a previsão legal dos delitos ora cotejados:

 

Incêndio

Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.

(...)

Atentado contra a segurança de outro meio de transporte

Art. 262 - Expor a perigo outro meio de transporte público, impedir-lhe ou dificultar-lhe o funcionamento:

Pena - detenção, de um a dois anos.

 

Ambos os dispositivos preveem infrações contra a incolumidade pública – Título VIII do Código Penal, distinguindo-se respectivamente em crime de perigo comum (Capítulo I) e crime contra a segurança dos meios de transporte (Capítulo II).

Tratam-se de delitos de perigo concreto, cuja consumação independe de qualquer resultado naturalístico, perfazendo-se pela efetiva periclitação do bem jurídico tutelado, a incolumidade pública, propiciada dolosamente pela criação de situação de perigo concreto.

Desta forma, impõe-se considerar que a condenação pelos dois delitos ora cotejados equivale à dupla incriminação em face de uma única violação à ordem jurídica.

O caso dos autos expõe, nesse sentido, um conflito aparente de normas, o qual deve ser dirimido pelo princípio da consunção.

Conforme se pode depreender dos dados objetivos da realidade apreensíveis do conjunto probatório, denota-se que ANDRÉ intencionou contribuir com o bloqueio da rodovia fornecendo meios para a disposição dos pneus que obstruíram a livre circulação de bens e pessoas na BR-163.

A finalidade do agir delituoso não consistia, assim, em simplesmente criar incêndio, mas valer-se deste como uma etapa eficiente para alcançar a interdição da via pública.

Demais disto, a situação de perigo concreto provocada pelo incêndio corresponde exatamente ao risco causado aos meios de transporte rodoviários, porquanto o local incendiado foi precisamente a pista da BR-163.

Evidencia-se, portanto, que o incêndio constituiu mero crime-meio, um ato executório do crime-fim, o atentado contra a segurança do transporte rodoviário.

Necessário dizer que a gravidade em abstrato dos delitos em questão não inibe a consunção do crime do art. 250 pelo do art. 262, ambos do Código Penal, colhendo-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça diversos precedentes que reafirmaram a adequação de tal solução:

 

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES AMBIENTAIS. DANO EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO, IMPEDIMENTO À REGENERAÇÃO DA FLORA E CONSTRUÇÃO IRREGULAR (ARTS. 40, 48 E 64 DA LEI 9.605/1998). ABSORÇÃO DOS DOIS PRIMEIROS DELITOS PELO ÚLTIMO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

(...)

3. Consoante o entendimento das duas Turmas que compõem a Terceira Seção deste STJ, a conduta do art. 48 da Lei 9.605/1998 é mero pós-fato impunível do ato de construir em local não edificável. Afinal, com a própria existência da construção desejada e executada pelo agente - e à qual, portanto, se dirigia seu dolo -, é inevitável que fique impedida a regeneração da flora antes existente no mesmo lugar.

4. Para analisar a possibilidade de absorção do crime do art. 40 da Lei 9.605/1998 pelo do art. 64, não é relevante a diversidade de bens jurídicos protegidos por cada tipo incriminador; tampouco impede a consunção o fato de que o crime absorvido tenha pena maior do que a do crime continente, como se vê na própria Súmula 17/STJ.

5. O dano causado pela construção do recorrido à estação ecológica se encontra, efetivamente, absorvido pela edificação irregular. Este dano pode, em tese, ser considerado concomitante à construção, enquanto ato integrante da fase de execução do iter do art. 64, caso em que se aplicaria o princípio da consunção em sua formulação genérica; ou, então, como consequência naturalística inafastável e necessária da construção, de maneira que seu tratamento jurídico seria o de pós-fato impunível. De todo modo, o dano à unidade de conservação se situa na escala causal da construção irregular (seja como ato executório ou como exaurimento), nela exaurindo toda sua potencialidade lesiva.

6. Recurso Especial desprovido.

(STJ. 5ª Turma. REsp 1.925.717-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/05/2021)

 

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIMINAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. DELITO COMETIDO COM OBJETIVO DE SONEGAR O IMPOSTO SOBRE IMPORTAÇÃO. FALSO (CRIME-MEIO). DESCAMINHO (CRIME-FIM). RELAÇÃO DE CAUSALIDADE. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. APLICABILIDADE. ABSORÇÃO DO CRIME-MEIO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1. Constatado que a falsidade ideológica foi o meio pelo qual a ré buscou iludir o pagamento de tributos incidentes nas importações, mostra-se patente a relação de causalidade com o crime de descaminho, o que atrai a incidência da consunção.

2. A jurisprudência desta Corte admite que um crime de maior gravidade, assim considerado pela pena abstratamente cominada, pode ser absorvido, por força do princípio da consunção, por um crime menos grave, quando, repita-se, utilizado como mero instrumento para consecução de um objetivo final único.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 100.322/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, DJe 07/03/2014)

 

Consequentemente, deve ser afastada a condenação de ANDRÉ pelo crime de incêndio (art. 250 do CP), em razão de sua consunção pelo crime de atentado contra a segurança do meio de transporte rodoviário (art. 262 do CP), acerca do qual resta mantida a sua condenação.

 

Pedindo vênia ao e. Relator, dele discordo porque os elementos probatórios contidos nos autos mostram a existência de desígnios autônomos quanto aos crimes de incêndio (CP, art. 250) e de atentado contra a segurança de outro meio de transporte (CP, art. 262).

Com efeito, a colocação dos pneus na rodovia já seria suficiente para alcançar o objetivo do acusado, de fechar a rodovia. Contudo, sua vontade também se dirigiu a neles atear fogo e, assim, causar incêndio, demonstrando, portanto, a impossibilidade de absorção do delito do art. 250 do Código Penal por aquele do art. 262.

O comportamento do acusado após a consumação do crime reforça isso. Em seu interrogatório (ID 273491629), assumiu ter fugido por receio do que teria ocorrido com a pessoas que estavam dentro do veículo incendiado e, ainda, prontamente indenizou sua proprietária pelo dano causado. Assim, o acusado atuou com vontade dirigida a não apenas bloquear a rodovia e, com isso, impedir e dificultar o funcionamento do sistema de transporte rodoviário federal, mas também a causar incêndio, que resultou inclusive em destruição de patrimônio alheio.

Diante disso, mantenho sua condenação pela prática do crime previsto no art. 250 do Código Penal.

Passo, então, ao reexame da dosimetria das penas dos crimes dos arts. 250 e 262 do Código Penal.

 

Crime do art. 250 do Código Penal

Na primeira fase, o juízo a quo considerou negativamente os motivos do crime, fixando a pena-base em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 15 (quinze) dias-multa, da seguinte forma (ID 273491687; grifos e negritos no original):

motivo do crime deve ser valorado de forma negativa. Como acima explicitado, ANDRÉ participava das manifestações em frente ao batalhão do Exército em Dourados, onde era ostensivamente pleiteada a ação dos militares, para obstar o resultado obtido nas urnas, de forma democrática e legítima, como atestou o Tribunal Eleitoral, e reconheceram organismos internacionais e a Casa Legislativa.

Incitava-se novo golpe militar, na tentativa de subjugar a opção da maioria contra as regras estruturantes do Estado Democrático de Direito, e com o retorno do país aos anos sombrios que a Constituição de 1988 buscou superar.

O delito foi praticado nesse contexto. Indagado sobre a motivação do ato, ANDRÉ disse que o fez em razão de tudo o que via e ouvia, para garantir um futuro melhor para seus filhos. O ato foi motivado pela vontade de ver revertida, por meio da violência, o resultado do pleito.

Nesses termos, fixa-se a pena-base em 3 anos e 06 meses de reclusão e 15 dias-multa.

O fundamento utilizado pelo juízo não pode ser utilizado como justificativa para elevação da pena-base. É certo que o acusado, dentro de um contexto de descontentamento com o resultado das eleições de 2022, causou incêndio em pneus que havia depositado em pista de rodovia federal. Mas isso não é demonstração de que agiu compelido pela vontade reverter o resultado das eleições por meio da violência. Não há, nos autos, nada que indique isso. Por isso, reduzo, de ofício, a pena-base para 3 (três) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, mínimo legal.

Na segunda fase, não foram reconhecidas circunstâncias agravantes nem atenuantes, o que confirmo, ficando inalterada a pena intermediária.

Na terceira fase, o juízo não aplicou nenhuma causa de aumento ou de diminuição, o que também confirmo, de modo que a pena definitiva para este crime fica estabelecida em 3 (três) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa.

Mantenho o valor unitário do dia-multa em 1/4 (um quarto) do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos, pois foi fundamentado na condição econômica do réu e não houve insurgência da defesa quanto a isso.

 

Crime do art. 262 do Código Penal

Na primeira fase, o juízo a quo considerou negativamente os motivos do crime, fixando a pena-base em 1 (um) ano e 3 (três) meses de detenção, sob os mesmos fundamentos do crime anterior, acima transcritos.

O e. Relator reduziu a pena-base, com o seguinte fundamento (negritos no original):

Primeira fase da dosimetria penal

 Nota-se que o r. juízo a quo exasperou a pena-base tendo em vista unicamente o motivo do crime, elencando como fundamentos a participação em manifestações em que se pleiteava ação militar para obstar o resultado das eleições, incitando novo golpe militar para subjugar por meio da violência a escolha presidencial da maioria do eleitorado brasileiro.

 Embora possa ser verdadeiro, conforme se depreende da compilação de elementos colhidos por agentes policiais, que havia manifestantes extremados reivindicando a oposição de intervenção militar em face do resultado do pleito eleitoral de 2022, a natureza subjetiva da responsabilização penal exige a demonstração concreta de que o indivíduo coadunava com tal propósito e intencionava fomentar a manobra contrária ao sistema democrático, circunstância que não pode ser presumida na medida em que os protestos não eram monolíticos em suas reivindicações.

 Não sendo possível colher tal finalidade inidônea do agir do réu, o motivo deve ser considerado neutro, reduzindo a pena-base para 01 (um) ano de detenção.

Acompanho Sua Excelência. Como dito acima, no reexame da dosimetria da pena do crime do art. 250 do Código Penal, o fundamento utilizado pelo juízo não pode ser utilizado como justificativa para elevação da pena-base.

Não há dúvidas de que o acusado, dentro de um contexto de descontentamento com o resultado das eleições de 2022, impediu e dificultou o funcionamento do sistema de transporte rodoviário federal, mediante o bloqueio da BR163 com pneus. Contudo, isso também não é demonstração de que agiu compelido pela vontade reverter o resultado das eleições por meio da violência, não havendo, nos autos, elemento indicativo disso.

Assim, acompanho o e. Relator para, de ofício, reduzir a pena-base para 1 (um) ano de detenção, mínimo legal.

Na segunda fase, o juízo não reconheceu circunstâncias agravantes e reconheceu a circunstância atenuante da confissão espontânea (CP, art. 65, III, “d”), visto que o réu admitiu a prática do delito e essa admissão foi considerada na fundamentação da sentença condenatória (Súmula 545 do STJ). No entanto, tendo em vista a orientação da Súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), com repercussão geral (REQORG 597270, Pleno, Rel. Ministro Cezar Peluso, j. 26.3.2009, Publicação DJe 04.6.2009), a pena, nesta fase, não pode ficar aquém do mínimo legal, conforme constou no voto do e. Relator, que acompanho.

Assim, a pena intermediária fica em 1 (um) ano de detenção.

Na terceira fase, o juízo não aplicou nenhuma causa de aumento ou de diminuição, o que foi confirmado pelo e. Relator, que novamente acompanho, ficando a pena definitiva para este crime estabelecida em 1 (um) ano de detenção.

 

Regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade e sua substituição por restritivas de direitos

O juízo fixou o regime semiaberto para início do cumprimento da pena privativa de liberdade e a defesa pediu, apenas, a “[a] substituição da pena privativa de liberdade em restritivas de direito” (ID 274139583, p. 14). Com razão.

Ante a absolvição do acusado pela prática de dois crimes e o afastamento das circunstâncias que justificaram a fixação das penas-base de outros dois acima do mínimo legal, e tendo em vista que o total da pena privativa de liberdade (somadas as penas de ambos os crimes) é de 4 (quatro) anos, não se justifica a fixação de regime inicial mais gravoso, considerando-se os critérios do art. 33, § 2º, “c”, do Código Penal.

Por isso, fixo o regime aberto para início do cumprimento da pena privativa de liberdade e, presentes os requisitos previstos no art. 44 do Código Penal, acolho o pedido da defesa e substituo essa pena por duas restritivas de direitos, consistentes em: i) prestação de serviços à comunidade ou a entidade pública, em local a ser definido pelo juízo da execução penal, pelo prazo da pena substituída; e ii) prestação pecuniária, no valor de 10 (dez) salários mínimos, destinada a entidade assistencial a ser definida pelo juízo da execução penal, tendo em vista a capacidade socioeconômica do acusado, retratada nos autos.

Posto isso, divirjo do e. Relator para DAR PARCIAL PROVIMENTO à apelação em menor extensão e manter a condenação de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA pela prática do crime previsto no art. 250 do Código Penal, reduzindo ao mínimo legal a pena-base, ficando as penas definitivamente estabelecidas em 3 (três) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, no valor unitário de 1/4 (um quarto) do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos, para este crime, e em 1 (um) ano de detenção para o crime do art. 262 do Código Penal; bem como fixar o regime aberto para início do cumprimento da pena privativa de liberdade e substituí-la por duas restritivas de direitos, nos termos da fundamentação supra, acompanhando o voto de Sua Excelência em todo o mais.

É o voto.


  
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5002942-62.2022.4.03.6002

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: ANDRE FRANCA DA SILVA

Advogado do(a) APELANTE: ANGELO MAGNO LINS DO NASCIMENTO - MS16986-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

 

Introdução

 

O presente caso retrata um conjunto de imputações contextualizadas pelas manifestações populares contrárias ao resultado do pleito presidencial brasileiro de 30 de outubro de 2022, em decorrência das quais disseminou-se sistêmicos bloqueios de rodovias por todo o País.

 

Na referida conjuntura política e social, ANDRÉ FRANÇA DA SILVA contribuiu para com os protestos levados a efeito na BR-163, no Trevo da Bandeira, em Dourados/MS, os quais transbordaram em bloqueio da via rodoviária mediante a oposição de barreiras de pneus incendiados.

 

A conduta supostamente delituosa foi bem sintetizada na peça acusatória:

 

No dia 18 de novembro de 2022, ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, de maneira consciente e voluntária, associado com outros indivíduos ainda não identificados bloqueou a BR-163, no Trevo da Bandeira, em Dourados/MS expondo a perigo os usuários da rodovia, impedindo e dificultando o funcionamento do sistema de transporte rodoviário federal.

 

Posteriormente ao bloqueio da rodovia com pneus, o ora denunciado causou incêndio expondo a perigo a vida, a integridade física e o patrimônio de outras pessoas que transitavam pela citada rodovia federal.

 

Por fim, o denunciado desobedeceu à ordem judicial, especialmente a proferida, e amplamente divulgada, na ADPF 519/DF, que considerou ilegal o bloqueio de rodovias motivado pelo inconformismo com o resultado eleitoral.

 

Com efeito, na data mencionada, o denunciado, em companhia de outras pessoas, utilizando um veículo de carga do tipo bitrem, SCANIA/R124 LA6X2NA, de cor branca e placas CYN7H18 e REB/FACCHINI-IR RER GR, de cor preta e placas CPJ4I63, transportou até o local denominado Trevo da Bandeira, em Dourados/MS, na BR 163, km 256, dezenas de pneus usados e, de forma organizada e rápida, distribuiu estes pneus sobre a pista de rolamento da referida rodovia e atearam fogo, fugindo do local logo em seguida.

 

Acatando integralmente a tese ministerial, o r. Juízo sentenciante reputou como perpetrados quatro delitos distintos, a saber, incêndio, atentado contra a segurança de outro meio de transporte, associação criminosa e desobediência, todos objetos da insurgência recursal defensiva.

 

Cotejo da liberdade de manifestação e do direito à reunião com o direito de ir e vir da coletividade - ato ilícito capaz de ostentar relevo penal

 

Importante ser dito, de início, que o protesto em local público constitui legítima conotação do direito fundamental de liberdade de expressão e de reunião. O Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADPF 519, apreciou a constitucionalidade das paralizações promovidas em rodovias brasileiras por razões político-eleitorais, sabiamente divisando a seguinte consideração (ID 273491541 – Pág. 480):

 

A Constituição consagra que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente, tratando-se, pois, de direito individual o coligar-se com outras pessoas, para fim lícito. O direito de reunião é uma manifestação coletiva da liberdade de expressão, exercitada por meio de uma associação transitória de pessoas e tendo por finalidade o intercâmbio de ideias, a defesa de interesses, a publicidade de problemas e de determinadas reivindicações. Paolo Barile bem qualifica o direito de reunião como, simultaneamente, um direito individual e uma garantia coletiva, uma vez que consiste tanto na possibilidade de determinados agrupamentos de pessoas reunirem-se para livre manifestação de seus pensamentos, concretizando a titularidade desse direito inclusive para as minorias, quanto na livre opção do indivíduo de participar ou não dessa reunião (Diritti dell’uomo e libertà fondamentali. Bolonha: Il Molino, 1984. p. 182-183), não podendo ser obrigado pelos manifestantes a cessar suas atividades.

 

Decerto, contudo, que o regular exercício do direito importa em conformá-lo à proteção de outros direitos e liberdades, essencialmente, ao livre trânsito de bens e pessoas. Nesse sentido, a decisão proferida nos autos da mencionada ADPF bem colacionou o quanto proclamado na ordem jurídica internacional pela Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em seu artigo 29, e pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, em seu artigo 11:

 

Artigo 29. Toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade”. (...) “no exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.

 

Artigo 11. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade reunião pacífica e liberdade de associação, incluindo o direito de formar sindicatos com outros e de se unir a sindicatos em defesa de seus interesses. 2. O exercício desses direitos não pode estar sujeito a outras restrições além daquelas que, previstas em lei, constituem medidas necessárias, em uma sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa ordem e prevenção do crime, a proteção da saúde ou moralidade, ou a proteção dos direitos e liberdades dos outros”.

 

Neste diapasão, assevera a Corte Suprema que (ID 273491541):

 

A razoabilidade no exercício da greve, das reuniões e passeatas previstas constitucionalmente, deve, portanto, evitar a ofensa aos demais direitos fundamentais, o desrespeito à consciência moral da comunidade, visando, em contrapartida, a esperança fundamentada de que se possa alcançar um proveito considerável para a convivência social harmoniosa, resultante na prática democrática do direito de reivindicação. Trata-se da cláusula de proibição de excesso (Übermassverbot) consagrada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, ao estabelecer o pensamento da proporcionalidade como parâmetro para se evitar os tratamentos excessivos, abusivos e inadequados, buscando-se sempre no caso concreto o tratamento necessariamente exigível.

 

A interrupção do fluxo rodoviário de insumos essenciais e de pessoas motivada pelo protesto popular, independentemente do mérito quanto à questão de fundo reivindicada, não encontra respaldo na ordem jurídica brasileira e pode ganhar relevo penal se o abuso do direito de manifestação e de reunião perfizer conduta tipificada em lei.

 

A condenação do réu pelos crimes imputados, todavia, depende do preenchimento preciso dos requisitos que serão esmiuçados a seguir.

 

I - CONSUNÇÃO DO CRIME DE INCÊNDIO (ART. 250 DO CP) PELO CRIME DE ATENTADO CONTRA A SEGURANÇA DE MEIO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO (ART. 262 DO CP)

 

A imputação delitiva concentra-se principalmente sobre o fato de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA ter contribuído para o bloqueio da BR-163, no contexto já explicitado linhas acima, ao utilizar o seu caminhão SCANIA/R124 LA6X2NA 420, de cor branca e placas CYN7H18; e REB/FACCHINI-IR RER GR, de cor preta e placas CPJ4I63, para o transporte e descarregamento de pneus sobre a pista da rodovia federal, a fim de que comparsas ateassem fogo, provocando incêndio com o fito de interromper o fluxo de veículos rodoviários, na manhã do dia 18.11.2022.

 

Tais dados foram documentados por agentes policiais (ID 273491541 - Pág. 50/56) e parcialmente confirmados pelo próprio acusado, que reconheceu tanto na fase inquisitorial como em juízo que efetivamente realizou o transporte dos pneus que foram incendiados (273491687 - Pág. 4).

 

Foi registrado também que um veículo de passeio acabou consumido pelas chamas ao tentar atravessar o bloqueio incendiado, denotando perigo concreto da interdição aos veículos rodoviários (relatório da Polícia Rodoviária Federal - ID 269967722 - Pág. 59).

 

Depreende-se dos autos ainda que, em diligência de busca e apreensão na residência de ANDRE, foram apreendidos um galão de aproximadamente 50 litros de etanol e dois sacos plásticos contendo vários pedaços de borrachas de câmeras de ar de veículo, na cor preta (ID 273491541 - Pág. 80/83).

 

Vale acrescentar a ponderação bem efetuada pelo r. juízo sentenciante de que o comportamento de ANDRÉ coaduna com esforços do grupo de manifestantes para promover fechamento da rodovia (ID 273491687 - Pág. 7):

 

(...) manifestantes já aguardavam no local com o intuito deliberado de bloquear a passagem de veículos, como inclusive já vinha ocorrendo em datas anteriores e em diferentes locais de forma combinada e coordenada, como aponta relatório da Polícia Federal (ID 269967722 - Pág. 161 e seguintes).

 

De forma coerente com a prévia organização do bloqueio, ANDRÉ, ao chegar no local, já contava com o auxílio de parte dos manifestantes, com quem fora ajustado o bloqueio no local e data exatos.

 

Perícia realizada no aparelho celular de ANDRÉ comprovam ainda a ciência de diferentes pessoas a respeito da sua participação no bloqueio da pista. Em mensagem a um interlocutor desconhecido, ANDRÉ informa que iriam fechar a rotatória no dia 17 de novembro (ID 277665684, pag 5).

 

(...)

 

As mensagens demonstram claramente que havia uma rede de diferentes pessoas envolvidas no bloqueio da rodovia, contradizendo a versão defensiva de que resolveu levar os pneus para trancar a passagem da via de última hora. Foram identificadas ainda diversas mensagens de ANDRÉ solicitando doações para diferentes pessoas, a fim de contribuir com o consumo de subsistência em prol da manifestação (ID 277665684, pag 7).

 

Conforme o panorama fático-probatório ora delineado, resulta nítido que o fogo ateado nos pneus cumpriu o propósito específico de interditar a circulação rodoviária como forma ilícita de protesto contra o resultado eleitoral.

 

Diante de tais premissas fáticas, necessário considerar a inviabilidade jurídica da dupla imputação pelos crimes de incêndio e de atentado contra meio de transporte rodoviário, em face do princípio da consunção, conforme as razões abaixo explicitadas.

 

Primeiramente, vale observar a previsão legal dos delitos ora cotejados:

 

Incêndio

 

Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

 

Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.

 

(...)

 

Atentado contra a segurança de outro meio de transporte

 

Art. 262 - Expor a perigo outro meio de transporte público, impedir-lhe ou dificultar-lhe o funcionamento:

 

Pena - detenção, de um a dois anos.

 

Ambos os dispositivos preveem infrações contra a incolumidade pública – Título VIII do Código Penal, distinguindo-se respectivamente em crime de perigo comum (Capítulo I) e crime contra a segurança dos meios de transporte (Capítulo II).

 

Tratam-se de delitos de perigo concreto, cuja consumação independe de qualquer resultado naturalístico, perfazendo-se pela efetiva periclitação do bem jurídico tutelado, a incolumidade pública, propiciada dolosamente pela criação de situação de perigo concreto.

 

Desta forma, impõe-se considerar que a condenação pelos dois delitos ora cotejados equivale à dupla incriminação em face de uma única violação à ordem jurídica.

 

O caso dos autos expõe, nesse sentido, um conflito aparente de normas, o qual deve ser dirimido pelo princípio da consunção.

 

Conforme se pode depreender dos dados objetivos da realidade apreensíveis do conjunto probatório, denota-se que ANDRÉ intencionou contribuir com o bloqueio da rodovia fornecendo meios para a disposição dos pneus que obstruíram a livre circulação de bens e pessoas na BR-163.

 

A finalidade do agir delituoso não consistia, assim, em simplesmente criar incêndio, mas valer-se deste como uma etapa eficiente para alcançar a interdição da via pública.

 

Demais disto, a situação de perigo concreto provocada pelo incêndio corresponde exatamente ao risco causado aos meios de transporte rodoviários, porquanto o local incendiado foi precisamente a pista da BR-163.

 

Evidencia-se, portanto, que o incêndio constituiu mero crime-meio, um ato executório do crime-fim, o atentado contra a segurança do transporte rodoviário.

 

Necessário dizer que a gravidade em abstrato dos delitos em questão não inibe a consunção do crime do art. 250 pelo do art. 262, ambos do Código Penal, colhendo-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça diversos precedentes que reafirmaram a adequação de tal solução:

 

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES AMBIENTAIS. DANO EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO, IMPEDIMENTO À REGENERAÇÃO DA FLORA E CONSTRUÇÃO IRREGULAR (ARTS. 40, 48 E 64 DA LEI 9.605/1998). ABSORÇÃO DOS DOIS PRIMEIROS DELITOS PELO ÚLTIMO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

(...)

3. Consoante o entendimento das duas Turmas que compõem a Terceira Seção deste STJ, a conduta do art. 48 da Lei 9.605/1998 é mero pós-fato impunível do ato de construir em local não edificável. Afinal, com a própria existência da construção desejada e executada pelo agente - e à qual, portanto, se dirigia seu dolo -, é inevitável que fique impedida a regeneração da flora antes existente no mesmo lugar.

4. Para analisar a possibilidade de absorção do crime do art. 40 da Lei 9.605/1998 pelo do art. 64, não é relevante a diversidade de bens jurídicos protegidos por cada tipo incriminador; tampouco impede a consunção o fato de que o crime absorvido tenha pena maior do que a do crime continente, como se vê na própria Súmula 17/STJ.

5. O dano causado pela construção do recorrido à estação ecológica se encontra, efetivamente, absorvido pela edificação irregular. Este dano pode, em tese, ser considerado concomitante à construção, enquanto ato integrante da fase de execução do iter do art. 64, caso em que se aplicaria o princípio da consunção em sua formulação genérica; ou, então, como consequência naturalística inafastável e necessária da construção, de maneira que seu tratamento jurídico seria o de pós-fato impunível. De todo modo, o dano à unidade de conservação se situa na escala causal da construção irregular (seja como ato executório ou como exaurimento), nela exaurindo toda sua potencialidade lesiva.

6. Recurso Especial desprovido.

(STJ. 5ª Turma. REsp 1.925.717-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/05/2021)

 

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIMINAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. DELITO COMETIDO COM OBJETIVO DE SONEGAR O IMPOSTO SOBRE IMPORTAÇÃO. FALSO (CRIME-MEIO). DESCAMINHO (CRIME-FIM). RELAÇÃO DE CAUSALIDADE. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. APLICABILIDADE. ABSORÇÃO DO CRIME-MEIO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1. Constatado que a falsidade ideológica foi o meio pelo qual a ré buscou iludir o pagamento de tributos incidentes nas importações, mostra-se patente a relação de causalidade com o crime de descaminho, o que atrai a incidência da consunção.

2. A jurisprudência desta Corte admite que um crime de maior gravidade, assim considerado pela pena abstratamente cominada, pode ser absorvido, por força do princípio da consunção, por um crime menos grave, quando, repita-se, utilizado como mero instrumento para consecução de um objetivo final único.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 100.322/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, DJe 07/03/2014)

 

Consequentemente, deve ser afastada a condenação de ANDRÉ pelo crime de incêndio (art. 250 do CP), em razão de sua consunção pelo crime de atentado contra a segurança do meio de transporte rodoviário (art. 262 do CP), acerca do qual resta mantida a sua condenação.

 

II - AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE QUANTO AO CRIME DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 288 DO CP)

 

O delito de associação criminosa possui como objetividade jurídica a tutela da paz pública, tratando-se de infração de perigo abstrato, em que se presume a colocação em risco da sociedade, encontrando tipificação no art. 288, caput, do Código Penal, que contém atualmente a seguinte redação:

 

Associação Criminosa

 

Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013)

 

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013)

 

Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente. (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013)

 

Como requisito implícito do tipo, a conjugação de esforços objetivando a prática delitiva deve retratar um vínculo estável e permanente entre pelo menos três agentes imbuídos do propósito de agirem concertadamente para o cometimento de uma série indeterminada de crimes (na acepção formal do termo).

 

Comumente a configuração do crime de associação criminosa revela-se claramente a partir da detecção de uma estrutura minimamente organizada, com distribuição de tarefas ou escalonamento de funções entre os seus integrantes, viabilizando assim o escopo delitivo comum que permeia todos os agentes envolvidos.

 

Importante ter presente, inclusive, que o delito de associação criminosa ostenta arquétipo dissociado dos crimes visados, na medida em que se caracteriza como delito de perigo e formal, bastando para a sua compleição que ocorra a mera reunião criminosamente ordenada do grupo, independentemente da efetiva consumação dos crimes acordados, como crime de perigo tipificado para a proteção da paz pública (STJ, HC 200.444/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª T. DJe 17.03.2015).

 

No caso dos autos, a r. sentença efetuou juízo condenatório de ANDRÉ, reputando como caracterizada a existência de um vínculo permanente e estruturado para a prática de crimes, consistentes no bloqueio de estrada federal.

 

Entretanto, referida condenação não deve subsistir diante de uma análise criteriosa acerca do efetivo preenchimento dos requisitos do tipo do art. 288 do Código Penal.

 

Cumpre atentar-se, mutatis mutandis, ao ensinamento de Cezar Roberto Bitencourt explicitado na obra Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013 (São Paulo: Saraiva, 2014 – Pág. 55-57):

 

É insuficiente um simples ajuste de vontades, próprio do concurso eventual de pessoas. Na verdade, a característica de estabilidade e permanência é fundamental para existência de uma organização estruturalmente ordenada e compartimentada com tarefas divididas. Em outros termos, é indispensável que a coparticipação criminosa assuma um caráter duradouro de situação em comum entre os seus componentes, antes de eventual prática de crimes objetivando a obtenção de vantagem de qualquer natureza.

 

(...)

 

Em outros termos, o dolo associativo é a vontade livre e consciente de associar-se ou participar de associação já existente, organizada e ordenada estruturalmente, para obter vantagem mediante a prática de crimes. Se a finalidade for a prática de crime determinado, ou crimes da mesma espécie, a figura será a do instituto do concurso de pessoas, independentemente da natureza ou gravidade dos crimes.

 

Neste diapasão, compete ao órgão ministerial a demonstração da affectio criminis societatis com elementos concretos que objetivamente modelam a associação delituosa, evidenciando com segurança a pactuação de um ajuste reconhecidamente ilícito orientado à prática recorrente de infrações penais.

 

A própria tese acusatória carece da efetiva identificação do ânimo associativo estável e permanente voltado à prática de uma série indeterminada de crimes, requisito essencial à adequação típica.

 

A despeito dos requisitos ora explicitados, a acusação acabou respaldada com base em circunstâncias que, embora perfaçam sobejamente o crime de atentado à segurança de meio de transporte rodoviário, são insuficientes para se vislumbrar vínculo associativo exorbitante do mero concurso de pessoas.

 

Com efeito, a r. sentença elencou, em breve síntese, como elementos probatórios os fatos de que diversos manifestantes, muitos dos quais previamente acampados em frente a estabelecimentos militares, em protesto contra o resultado eleitoral, se articularam em grupos de whatsapp para fechar a rodovia, de modo que o bloqueio criminoso se operou de forma combinada e organizada, não tendo sido esta a única ocorrência desta natureza.

 

A conjugação de esforços estruturados para o cometimento da ação delituosa contra o resultado do pleito eleitoral em questão não denota, per se, que se utilizariam dessa estrutura para uma série indeterminada de infrações.

 

O contexto delituoso reflete a existência de um vínculo não direcionado à prática de crimes para além do evento delituoso em questão, senão crimes pontuais relacionados às ações de protesto então em curso.

 

A sofisticação da empreitada delituosa, sem dúvida, merece a reprimenda devida, mas não possui o condão de indicar necessariamente a intenção de perpetuar ilícitos.

 

No quadro ora delineado, o acusado deve ser absolvido por não haver prova da existência do crime do art. 288 do Código Penal, nos termos do art. 386, inc. II, do Código de Processo Penal.

 

III - ATIPICIDADE DO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA (ART. 330 DO CP)

 

O crime de desobediência possui como objetividade jurídica o prestígio da função pública, o regular funcionamento da Administração, contrastado pela conduta daquele que desobedeceu a ordem legal de funcionário público, conforme dispõe o art. 330 do Código Penal:

 

Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa.

 

Pune-se a conduta de não se submeter à determinação legal, emanada por autoridade competente e dirigida diretamente ao seu destinatário, compelindo-o juridicamente ao seu cumprimento (não sendo suficiente o mero pedido, solicitação, para a configuração do delito - STJ, HC n. 86.429/SP, 5ª T., rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 01.10.2007).

 

Somente pode ser responsabilizado o destinatário do comando, aquele que possui o dever de observar o conteúdo da ordem exarada pela autoridade pública, consoante doutrina de Cézar Roberto Bitencourt (in Código Penal Comentado, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019 – pág. 2.469):

 

Se o agente não é responsável pela efetivação do ato que, acaso não cumprido, poderá ensejar o crime de desobediência, sua omissão ou não atendimento é absolutamente atípico, pois não tem o “dever legal” de executá-lo. O crime de desobediência somente se configura se a ordem legal for endereçada diretamente a quem tem o dever legal de cumpri-la. Não se pode falar em desobediência se o destinatário da ordem não tiver tal dever.

 

Segundo precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça, não se caracteriza o delito em questão na hipótese em que a ordem encaminhada via postal teve o seu respectivo aviso de recebimento subscrito por terceiro. Exige-se, assim, a notificação pessoal e direta, demonstrando a ciência inequívoca do destinatário da ordem (HC n. 226.512/RJ, 6ª T., rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 30.11.2012).

 

A ordem deve ostentar legalidade formal e material, não sendo crime a inobservância da ordem emanada por autoridade incompetente. A justiça da decisão, contudo, não interfere no dever legal de obedecê-la.

 

No caso dos autos, a acusação pelo crime de desobediência cinge-se à ordem exarada em 31.10.2022 pelo Exmo. Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, no bojo de Medida Cautelar na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 519-DF (ID 273491541 - Pág. 488/489), ora transcrita:

 

Diante de todo exposto, DETERMINO:

 

A) que sejam imediatamente tomadas, pela POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL e pelas respectivas POLÍCIAS MILITARES ESTADUAIS – no âmbito de suas atribuições – , todas as medidas necessárias e suficientes, a critério das autoridades responsáveis do Poder Executivo Federal e dos Poderes Executivos Estaduais, para a IMEDIATA DESOBSTRUÇÃO DE TODAS AS VIAS PÚBLICAS QUE, ILICITAMENTE, ESTEJAM COM SEU TRÂNSITO INTERROMPIDO, com o resguardo da ordem no entorno e, principalmente, à segurança dos pedestres, motoristas, passageiros e dos próprios participantes do movimento ilegal que porventura venham a se posicionar em locais inapropriados nas rodovias do país; bem como, para impedir, inclusive nos acostamentos, a ocupação, a obstrução ou a imposição de dificuldade à passagem de veículos em quaisquer trechos das rodovias; ou o desfazimento de tais providências, quando já concretizadas, GARANTINDO-SE, ASSIM, A TOTAL TRAFEGABILIDADE;

 

B) que, em face da apontada OMISSÃO E INÉRCIA da PRF, o Diretor-Geral da Polícia Rodoviária Federal adote, imediatamente, todas as medidas necessárias para a desobstrução de vias e lugares antes referidos sob jurisdição federal, sob pena de multa horária, de caráter pessoal, de R$ 100.000,00 (cem mil reais), a contar da meia-noite do dia 1º de novembro de 2022, bem assim, se for o caso, de afastamento do Diretor-Geral das funções e prisão em flagrante de crime desobediência;

 

C) que a Polícia Rodoviária Federal e as Polícias Militares estaduais – no âmbito de suas atribuições – identifiquem eventuais caminhões utilizados para bloqueios, obstruções e/ou interrupções em causa, e que REMETA IMEDIATAMENTE À JUÍZO, para que possa ser aplicadas aos respectivos proprietários multa horária de R$ 100.000,00 (cem mil reais).

 

DETERMINO, por fim, que sejam intimados o Ministro da Justiça, o Diretor-Geral da Polícia Rodoviária Federal, todos os Comandantes gerais das Polícias Militares estaduais; bem como o Procurador-Geral da República e os respectivos Procuradores-Gerais de Justiça de todos os Estados para que tomem as providências que entenderem cabíveis, inclusive a responsabilização das autoridades omissas.

 

Pelo teor da determinação judicial ora colacionada, percebe-se que não houve a imposição de uma conduta dirigida especificamente aos manifestantes, de modo que o ora acusado não figurou pessoalmente como destinatário do comando a ser cumprido.

 

Consequentemente não há fato típico a ser considerado sob tal enfoque, sendo imperiosa a absolvição do acusado quanto a referido delito, dada a atipicidade do fato (art. 386, inc. III, do CPP).

 

 

IV - CONCLUSÃO

 

A responsabilidade penal do acusado que subsiste ao cabo da cognição ora efetuada pode ser sintetizada nos seguintes termos:

i) Condenação mantida pelo crime de atentado contra a segurança de meio de transporte rodoviário (art. 262 do CP);

ii) Absolvição quanto ao crime de incêndio (art. 250 do CP), por não constituir infração penal autônoma, em razão da consunção pelo crime do art. 262 do Código Penal (art. 386, inc. III, do CPP);

iii) Absolvição quanto ao crime de associação criminosa (art. 288 do CP), por não haver prova da existência do crime (art. 386, inc. II, do CPP);

iv) Absolvição quanto ao crime de desobediência (art. 330 do CP), por não constituir o fato infração penal, dada a sua atipicidade (art. 386, inc. III, do CPP).

 

V - DOSIMETRIA

 

O cálculo da pena deve atentar aos critérios dispostos no artigo 68 do Código Penal, de modo que, na primeira etapa da dosimetria, observando as diretrizes do artigo 59 do Código Penal, o magistrado deve atentar à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, e estabelecer a quantidade de pena aplicável, dentro de uma discricionariedade juridicamente vinculada, a partir de uma análise individualizada e simultânea de todas as circunstâncias judiciais. Na segunda fase de fixação da pena, o juiz deve considerar as agravantes e atenuantes, previstas nos artigos 61 a 66, todos do Código Penal. Finalmente, na terceira etapa, incidem as causas de diminuição e de aumento da pena.

 

No caso, a reprimenda foi fixada em patamar próximo ao mínimo cominado, mediante a seguinte fundamentação (ID 273491693 - Pág. 12):

 

Passo, a seguir, à dosimetria da pena do referido crime, conforme as disposições do artigo 68 do CP, analisando as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP.

 

a) Circunstâncias judiciais – artigo 59 do CP – na primeira fase de fixação da pena serão analisadas as circunstâncias judiciais aplicáveis ao caso, as quais nortearão a individualização da pena e a fixação da pena-base, quais sejam: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias, consequências do crime e comportamento da vítima.

 

Observo que a culpabilidade foi normal para a espécie. Estando ausentes elementos quanto à conduta social e à personalidade do réu, deixo de valorá-los. O comportamento da vítima não influenciou a conduta do agente. Quanto aos antecedentes, registro que inquéritos policiais e ações penais em andamento não podem ser considerados para majoração da pena-base, a teor do que dispõe a Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça. As circunstâncias do crime não apresentam peculiaridades que justificam a majoração da pena, especialmente considerando a reduzida quantidade de mercadorias transportadas. As consequências do crime foram normais à espécie.

 

O motivo do crime deve ser valorado de forma negativa. Como acima explicitado, ANDRÉ participava das manifestações em frente ao batalhão do Exército em Dourados, onde era ostensivamente pleiteada a ação dos militares, para obstar o resultado obtido nas urnas, de forma democrática e legítima, como atestou o Tribunal Eleitoral, e reconheceram organismos internacionais e a Casa Legislativa.

 

Incitava-se novo golpe militar, na tentativa de subjugar a opção da maioria contra as regras estruturantes do Estado Democrático de Direito, e com o retorno do país aos anos sombrios que a Constituição de 1988 buscou superar.

 

O delito foi praticado nesse contexto. Indagado sobre a motivação do ato, ANDRÉ disse que o fez em razão de tudo o que via e ouvia, para garantir um futuro melhor para seus filhos. O ato foi motivado pela vontade de ver revertida, por meio da violência, o resultado do pleito.

 

Nesses termos, fixa-se a pena-base em 1 ano e 03 meses de detenção.

 

b) Circunstâncias agravantes e atenuantes: não há.

 

Incide a agravante da confissão espontânea, na fração ordinariamente adotada pela jurisprudência, de 1/6, por não haver fundamentos para aplicação de outra em seu lugar.

 

Pena intermediária: 01 ano e 15 dias de detenção.

 

c) Causas de aumento ou diminuição: não há.

 

Pena definitiva: 01 ano e 15 dias de detenção.

 

Fixo o regime inicial aberto, nos termos do art. 33 do CP.

 

Primeira fase da dosimetria penal

 

Nota-se que o r. juízo a quo exasperou a pena-base tendo em vista unicamente o motivo do crime, elencando como fundamentos a participação em manifestações em que se pleiteava ação militar para obstar o resultado das eleições, incitando novo golpe militar para subjugar por meio da violência a escolha presidencial da maioria do eleitorado brasileiro.

 

Embora possa ser verdadeiro, conforme se depreende da compilação de elementos colhidos por agentes policiais, que havia manifestantes extremados reivindicando a oposição de intervenção militar em face do resultado do pleito eleitoral de 2022, a natureza subjetiva da responsabilização penal exige a demonstração concreta de que o indivíduo coadunava com tal propósito e intencionava fomentar a manobra contrária ao sistema democrático, circunstância que não pode ser presumida na medida em que os protestos não eram monolíticos em suas reivindicações.

 

Não sendo possível colher tal finalidade inidônea do agir do réu, o motivo deve ser considerado neutro, reduzindo a pena-base para 01 (um) ano de detenção.

 

Segunda fase da dosimetria penal

 

Na segunda etapa da dosimetria penal, foi aplicada na r. sentença a atenuante referente à confissão espontânea, a qual deixa de impactar no quantum da reprimenda por este já se encontrar em se seu mínimo previsto em lei, conforme Enunciado nº 231 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

 

Terceira fase da dosimetria penal

 

Não há causas de aumento ou de diminuição aplicáveis, de forma que a pena em concreto se firma em 01 (um) ano de detenção.

 

Regime prisional inicial

 

Deve ser fixado o regime prisional inicial ABERTO, a teor do art. 33, § 3º, c, do Código Penal.

 

Substituição da pena corporal por penas restritivas de direitos

 

Preenchidos os requisitos legais, deve ser facultada ao réu a substituição da pena corporal por uma pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade pelo mesmo prazo da pena substituída, em favor de entidade beneficente indicada pelo Juízo da Execução Penal.

 

Benefícios penais – transação penal e acordo de não persecução penal

 

Tendo em vista a posição do órgão acusatório pelo não oferecimento dos benefícios da transação penal e do acordo de não persecução penal, manifestada em cota introdutória à denúncia, quando expressou que as medidas alternativas ao processo seriam insuficientes ao caso (ID 273491457 - Pág. 10), resta superada, inclusive pela detração do tempo já transcorrido de prisão cautelar, a possibilidade de consideração de tais institutos nesta fase processual.

 

 

VI -                  DISPOSITIVO

 

Ante o exposto, voto por dar parcial provimento à Apelação Criminal de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, de sorte a (i) manter unicamente a condenação pelo crime disposto no art. 262 do Código Penal, à pena de 01 (um) ano de detenção, em regime inicial ABERTO, substituída por uma pena de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo prazo da pena substituída, em favor de entidade beneficente indicada pelo Juízo da Execução Penal; (ii) absolvê-lo quanto ao crime de incêndio (art. 250 do CP), por não constituir infração penal autônoma, em razão da consunção pelo crime do art. 262 do Código Penal (art. 386, inc. III, do CPP); (iii) absolvê-lo quanto ao crime de associação criminosa (art. 288 do CP), por não haver prova da existência do crime (art. 386, inc. II, do CPP); e (iv) absolvê-lo quanto ao crime de desobediência (art. 330 do CP), por não constituir o fato infração penal (art. 386, inc. III, do CPP), nos termos acima expendidos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VOTO

O Desembargador Federal HÉLIO NOGUEIRA: pedindo vênia ao e. Relator, acompanho a divergência inaugurada pelo Desembargador Federal Nino Toldo.

É o voto.


E M E N T A

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (CP, ART. 288), DESOBEDIÊNCIA (CP, ART. 330), INCÊNDIO (CP, ART. 250) E ATENTADO CONTRA A SEGURANÇA DE OUTRO MEIO DE TRANSPORTE (CP, ART. 262). BLOQUEIO DE RODOVIA FEDERAL. MANIFESTAÇÃO CONTRÁRIA AO RESULTADO DAS ELEIÇÕES DE 2022. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E DESOBEDIÊNCIA RECONHECIDA A ATIPICIDADE DAS CONDUTAS. INCÊNDIO. AUSÊNCIA DE PERÍCIA. VALIDADE. SUBSTITUIÇÃO POR OUTRAS PROVAS. EXCEPCIONALIDADE DA SITUAÇÃO. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO.  EXISTÊNCIA DE DESÍGNIOS AUTÔNOMOS. DOSIMETRIA DA PENA.

1. O delito de associação criminosa possui como objetividade jurídica a tutela da paz pública, tratando-se de infração de perigo abstrato, em que se presume a colocação em risco da sociedade. Compete ao órgão ministerial a demonstração da affectio criminis societatis com elementos concretos que objetivamente modelam a associação delituosa, evidenciando com segurança a pactuação de um ajuste reconhecidamente ilícito orientado à prática recorrente de infrações penais. A própria tese acusatória carece da efetiva identificação do ânimo associativo estável e permanente voltado à prática de uma série indeterminada de crimes, requisito essencial à adequação típica.

2. A conjugação de esforços estruturados para o cometimento da ação delituosa contra o resultado do pleito eleitoral em questão não denota, per se, que se utilizariam dessa estrutura para uma série indeterminada de infrações. O contexto delituoso reflete a existência de um vínculo não direcionado à prática de crimes para além do evento delituoso em questão, senão crimes pontuais relacionados às ações de protesto então em curso. A sofisticação da empreitada delituosa, sem dúvida, merece a reprimenda devida, mas não possui o condão de indicar necessariamente a intenção de perpetuar ilícitos.

3. O crime de desobediência possui como objetividade jurídica o prestígio da função pública, o regular funcionamento da Administração, contrastado pela conduta daquele que desobedeceu a ordem legal de funcionário público. Somente pode ser responsabilizado o destinatário do comando, aquele que possui o dever de observar o conteúdo da ordem exarada pela autoridade pública.

4. No caso dos autos, a acusação pelo crime de desobediência cinge-se à ordem exarada em 31.10.2022 pelo Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, no bojo de Medida Cautelar na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 519-DF. Pelo teor dessa determinação judicial, percebe-se que não houve a imposição de uma conduta dirigida especificamente aos manifestantes, de modo que o ora acusado não figurou pessoalmente como destinatário do comando a ser cumprido. Consequentemente não há fato típico a ser considerado sob tal enfoque.

5. Materialidade e autoria dos crimes de incêndio e atentado contra a segurança de outro meio de transporte devidamente comprovadas.

6. A perícia pode, em situações excepcionais, ser substituída por outras provas, como a testemunhal, nos termos do art. 167 do Código de Processo Penal. E essa é a situação dos autos, haja vista não ter sido possível realizar a perícia em razão do material ter sido consumido pelo fogo. Além disso, havia a necessidade de liberação da rodovia, o que demandou a intervenção do corpo de bombeiros para conter o fogo, que, inclusive, chegou a atingir e danificar o veículo de terceiro que tentou ultrapassar o bloqueio ilegal. Portanto, foi devidamente justificada a não realização da prova pericial.

7. Os elementos probatórios contidos nos autos mostram a existência de desígnios autônomos quanto aos crimes de incêndio e de atentado contra a segurança de outro meio de transporte (CP, art. 262). A colocação dos pneus na rodovia já seria suficiente para alcançar o objetivo do acusado, de fechar a rodovia. Contudo, sua vontade também se dirigiu a neles atear fogo e, assim, causar incêndio, demonstrando, portanto, a impossibilidade de absorção do delito do art. 250 do Código Penal por aquele do art. 262.

8. Redução das penas-base ao mínimo legal. É certo que o acusado, dentro de um contexto de descontentamento com o resultado das eleições de 2022, impediu e dificultou o funcionamento do sistema de transporte rodoviário federal, mediante o bloqueio da BR163 com pneus, bem como causou incêndio nesses pneus. Mas isso não é demonstração de que agiu compelido pela vontade reverter o resultado das eleições por meio da violência. Não há, nos autos, nada que indique isso.

9. Fixação do regime inicial aberto para cumprimento das penas privativas de liberdade e sua substituição por duas penas restritivas de direitos.

10. Apelação parcialmente provida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, Prosseguindo o julgamento, a Décima Primeira Turma, por maioria, decidiu DAR PARCIAL PROVIMENTO à apelação em menor extensão e manter a condenação de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA pela prática do crime previsto no art. 250 do Código Penal, reduzindo ao mínimo legal a pena-base, ficando as penas definitivamente estabelecidas em 3 (três) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, no valor unitário de 1/4 (um quarto) do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos, para este crime, e em 1 (um) ano de detenção para o crime do art. 262 do Código Penal; bem como fixar o regime aberto para início do cumprimento da pena privativa de liberdade e substituí-la por duas restritivas de direitos, nos termos do voto do Des. Fed. Nino Toldo, acompanhado pelo Des. Fed. Hélio Nogueira, vencido o Relator Des. Fed. Fausto De Sanctis que dava parcial provimento à Apelação Criminal de ANDRÉ FRANÇA DA SILVA, de sorte a manter unicamente a condenação pelo crime disposto no art. 262 do Código Penal, à pena de 01 (um) ano de detenção, em regime inicial ABERTO, substituída por uma pena de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo prazo da pena substituída, em favor de entidade beneficente indicada pelo Juízo da Execução Penal; o absolvia quanto ao crime de incêndio (art. 250 do CP), por não constituir infração penal autônoma, em razão da consunção pelo crime do art. 262 do Código Penal (art. 386, inc. III, do CPP); o absolvia quanto ao crime de associação criminosa (art. 288 do CP), por não haver prova da existência do crime (art. 386, inc. II, do CPP); e o absolvia quanto ao crime de desobediência (art. 330 do CP), por não constituir o fato infração penal (art. 386, inc. III, do CPP), nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.