Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5000227-40.2020.4.03.6124

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

APELADO: EDER TAVARES DE MELLO

Advogados do(a) APELADO: GUILHERME SONCINI DA COSTA - SP106326-A, MARLON LUIZ GARCIA LIVRAMENTO - SP203805-A, RODRIGO SONCINI DE OLIVEIRA GUENA - SP259605-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5000227-40.2020.4.03.6124

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

APELADO: EDER TAVARES DE MELLO

Advogados do(a) APELADO: GUILHERME SONCINI DA COSTA - SP106326-A, MARLON LUIZ GARCIA LIVRAMENTO - SP203805-A, RODRIGO SONCINI DE OLIVEIRA GUENA - SP259605-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

 

Trata-se de ação penal movida pelo Ministério Público Federal em face de EDER TAVARES DE MELLO, nascido em 07.10.1963, como incurso no artigo 171, caput, c.c. §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva. Requerido, ainda, a fixação do valor mínimo de reparação ao dano provocado ao Erário no importe de R$ 288.366,68 (duzentos e oitenta e oito mil, trezentos e sessenta e seis reais e sessenta e oito centavos).

 

Narra a denúncia (ID 278310440), recebida na data de 26.08.2020 (ID 278310771):

 

Consta dos autos que EDER TAVARES DE MELLO, administrador e responsável legal do estabelecimento DROGARIA UBIRAJARA (EDER TAVARES DE MELLO DROGARIA – ME), CNPJ nº 55.371.363/001-25, localizado em Fernandópolis/SP, no período de janeiro de 2013 a abril de 2015, por vontade livre e consciente, mediante registros de dispensações fictícias de medicamentos pelo Programa Farmácia Popular do Brasil , manteve em erro a União (Fundo Nacional de Saúde), mês após mês, obtendo em benefício de sua empresa vantagem ilícita no importe de R$ 288.366,68, incorrendo assim na conduta típica descrita no artigo 171, caput c.c. §3o , do Código Penal, em continuidade delitiva (art. 71 do CP). (...) No caso dos autos, a Polícia Federal recebeu denúncia anônima na data de 28/11/2014 noticiando que três farmácias localizadas no município de Fernandópolis/SP, dentre elas a Drogaria Ubirajara, de propriedade do denunciado, ‘estariam fraudando o programa federal da Farmácia Popular, adulterando receitas com uso de corretivo para apagar nome e data e posteriormente tirando cópia que precisa ficar em arquivo’ (fls. 01 do Apenso I). Desta maneira, em 13/02/2015, a Polícia Federal encaminhou esta notícia ao Departamento Nacional de Auditoria do SUS – DENASUS – sugerindo fossem adotadas as providências cabíveis, dentre elas a realização de fiscalização nas farmácias indicadas. O Delegado da Polícia Federal solicitou ainda fosse encaminhada cópia do procedimento eventualmente instaurado para apuração dos fatos relatados à Delegacia para posterior instauração de inquérito policial (fls. 02 – Apenso I). Assim, o DENASUS encaminhou em 14/11/2017 o relatório final da auditoria realizada (fls. 03 – autos principais) na Drogaria Ubirajara, o que ensejou à instauração do inquérito policial em 09/01/2018 para apuração do delito de estelionato ora denunciado. A auditoria realizada pelo DENASUS (fls. 03/79 – Apenso I) apontou, dentre outras irregularidades, que o denunciado realizou dispensações de medicamentos no período de 2013 a abril de 2015, sem comprovação da aquisição por meio de notas fiscais (Constatação nº 492269), isto é, sem a comprovação de existência de estoque, o que ocasionou o recebimento indevido de R$ 288.366,68 pela farmácia neste período: (...) Não bastassem estas irregularidades, a auditoria do DENASUS também constatou: que o estabelecimento não apresentou a totalidade dos cupons vinculados e respectivas prescrições médicas que lhe foram solicitados (Constatação no. 492281), relativos ao mesmo período, apesar da obrigação de mantê-los em arquivo pelo prazo de 5 (cinco) anos; e prescrições médicas não reconhecidas como autênticas pela profissional médica EDNA MARIA NUNES CARNIEL (Constatação no. 492292), que também foi ouvida em sede policial (fls. 89). Ouvido em sede policial, EDER (fls. 63/64) negou que havia orientação de usar o mesmo código EAN para realizar o cadastramento de medicamentos. EDER, porém, quis esclarecer que, na verdade, por comodidade ou falta de atenção os funcionários cadastravam sempre o mesmo código de barras para os medicamentos vendidos, o que classifica como um erro de administração de sua parte, apresentando contradição em seu depoimento já que declarou que era ele próprio o responsável pela aquisição, estoque e vendas de medicamentos da empresa. Os ex-funcionários ALESSANDRO DEMETRIUS DA SILVEIRA (fls. 22) e ANDRÉ LUIS DE ANDRADE (fls. 23) declararam que nunca notaram nenhuma irregularidade ou algo estranho nas transações do programa Farmácia Popular. Esclareceram também que não sabiam informar se havia recomendação para utilização do mesmo EAN/código de barras para cadastrar determinado medicamento, até porque não realizavam este tipo de procedimento. Já os ex-funcionários ERIK HENRIQUE ALVES CARVALHO (fls. 80/81) e FLAVIO HENRIQUE CERAZE (fls. 87/88) disseram que apenas entregavam os medicamentos e colhiam a assinatura dos clientes, sendo que a responsabilidade do registro e lançamento no sistema era de EDER. Apesar do denunciado ter tentado fazer crer que a irregularidade detectada pelo DENASUS ocorreu em razão de mera falta de controle administrativo do estabelecimento, o conjunto probatório presente nos autos demonstra que EDER agiu com dolo de praticar estelionato contra a União. A uma, o denunciado deixou de comprovar a aquisição dos medicamentos que vendeu através do programa, deixando de apresentar justificativa crível para o suposto extravio das notas fiscais de entrada destes produtos, embora ainda vigorasse o prazo legal de manutenção e guarda destes documentos. A duas, o denunciado alegou que diferentes medicamentos eram dispensados através do mesmo código de barras (EAN) no sistema, argumento também desprovido de credibilidade. Ora, se tal afirmação fosse tomada como verdadeira, inevitavelmente duas situações iriam ocorrer: a) o estabelecimento receberia valor menor pelo medicamento efetivamente entregue ao cliente, caso este fosse mais caro do que aquele cujo código de barras era utilizado para efetivar a venda, o que por si só é nada crível ante a possibilidade da Drogaria inclusive operar em prejuízo a depender da transação realizada; b) ao contrário, o estabelecimento poderia receber valor maior pela venda, o que por si só também caracterizaria outra espécie de fraude, já que nesta hipótese haveria enriquecimento ilícito do estabelecimento. A três, os depoimentos dos ex-funcionários apontam que EDER operava pessoalmente o sistema do programa Farmácia Popular, sendo provável que o denunciado realizava as fraudes à revelia de seus empregados. Não bastasse, o próprio denunciado admitiu que era ele o responsável pela aquisição, estoque e vendas de medicamentos da empresa. Nada obstante, considerando que as fraudes realizadas através do sistema do Programa Farmácia Popular tinham como único beneficiário o próprio estabelecimento farmacêutico, é evidente que o denunciado tinha conhecimento e controle sobre todas as operações realizadas, ainda que os atos materiais contassem com a participação de terceiros (funcionários). A quatro, o denunciado deixou de apresentar a totalidade dos cupons vinculados e respectivas prescrições médicas que lhe foram solicitados pela auditoria. Não bastasse, foi possível verificar notórias evidências de falsificações grosseiras de algumas das receitas entregues à fiscalização (...) Assim, ficou claro que o denunciado EDER TAVARES DE MELLO, na condição de administrador e responsável legal da DROGARIA UBIRAJARA simulou a venda de medicamentos pelo Programa Federal Farmácia Popular do Brasil, com o intuito de obter vantagem ilícita para seu estabelecimento farmacêutico. Assim, a materialidade e autoria delitivas estão devidamente comprovadas principalmente pelos elementos contidos no Relatório de Auditoria nº 17928 do MS/SGEP/Departamento Nacional de Auditoria do SUS – DENASUS (fls. 03/79 – Apenso I), bem como pelo depoimento das testemunhas ouvidas em sede policial.

 

Sentença de improcedência da pretensão punitiva Estatal, proferida pelo Exmo. Juiz Federal Roberto Lima Campelo, da 1ª Vara Federal de Jales/SP, publicada em 20.07.2023 (ID 278310956), para absolver o acusado EDER TAVARES DE MELO da imputação da prática do crime do artigo 171, § 3º, c.c. art. 71, ambos do Código Penal, com fundamento no artigo 386, inciso III (não constituir o fato infração penal), do Código de Processo Penal.

 

Apelação interposta pelo órgão ministerial (ID 278310958) requerendo a condenação do réu pelo delito imputado na denúncia, eis que devidamente comprovado a autoria e o dolo na conduta, consistente na vontade livre e consciente de locupletar-se indevidamente às custas da União.

 

Contrarrazões de Apelação apresentadas por EDER TAVARES DE MELLO (ID 278310962).

 

Nesta instância, a Procuradoria Regional da República emitiu parecer (ID 278647019) pelo provimento recurso da acusação.

 

É o relatório.

 

À revisão. 

 

 

 

 

 


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11ª Turma
 

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APELADO: EDER TAVARES DE MELLO

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OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

 

 

 

 

A JUÍZA FEDERAL CONVOCADA MONICA BONAVINA:

 

Confirmo o relatório.

 

Ao réu EDER TAVARES DE MELLO foi imputada a prática do crime previsto no artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva.

 

De acordo com a denúncia, o acusado, na qualidade de administrador e responsável legal do estabelecimento Drogaria Ubirajara, localizado em Fernandópolis/SP, no período de janeiro de 2013 a abril de 2015, por vontade livre e consciente, mediante registros de dispensações fictícias de medicamentos pelo Programa Farmácia Popular do Brasil, manteve em erro a União (Fundo Nacional de Saúde), mês após mês, obtendo em benefício de sua empresa vantagem ilícita no importe de R$ 288.366,68 (duzentos e oitenta e oito mil, trezentos e sessenta e seis reais e sessenta e oito centavos).

 

DO PROGRAMA FARMÁCIA POPULAR DO BRASIL (PFPB)

 

O Programa Farmácia Popular é resultado de estratégias governamentais para assistência farmacêutica a partir das diretrizes fixadas pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica de Saúde (Lei n.º 8.080/1990, art. 6º), tendo por finalidade disponibilizar medicamentos essenciais, porém a preço de custo, àqueles que estão em tratamento no setor privado e não poderiam obter medicamentos na rede pública, devendo ser executado pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), conforme diretivas firmadas pela Lei n.º 10.858/2004. O Decreto n.º 5.090/2004, por sua vez, expandiu o programa para a rede privada de farmácias.

 

De forma que o Decreto n.º 5.090/2004 (artigo 1º, §§1º e 2º) possibilitou o fornecimento de medicamentos pela rede privada de farmácias e drogarias (com a denominação “Aqui tem Farmácia Popular”), mediante subsídio do respectivo preço:

 

  Art. 1o  Fica instituído o Programa ‘Farmácia Popular do Brasil’, que visa a disponibilização de medicamentos, nos termos da Lei no 10.858, de 13 de abril de 2004, em municípios e regiões do território nacional.

   § 1o  A disponibilização de medicamentos a que se refere o caput será efetivada em farmácias populares, por intermédio de convênios firmados com Estados, Distrito Federal, Municípios e hospitais filantrópicos, bem como em rede privada de farmácias e drogarias.

   § 2o  Em se tratando de disponibilização por intermédio da rede privada de farmácia e drogarias, o preço do medicamento será subsidiado.

 

A regulamentação do Programa ficou a cargo do Ministério da Saúde, sendo que, à época dos fatos, era disciplinado pela Portaria GM/MS n.º 971, de 15 de maio de 2012 (revogada pela Portaria GM/MS n.º 111, de 28.01.2016), que previa os seguintes termos:

 

Art. 2º O PFPB consiste na disponibilização de medicamentos e/ou correlatos à população, pelo Ministério da Saúde (MS), pelos meios descritos abaixo:

I - a ‘Rede Própria’, constituída por Farmácias Populares, em parceria com os Estados, Distrito Federal, Municípios e hospitais filantrópicos; e

II - o ‘Aqui Tem Farmácia Popular’, constituído por meio de convênios com a rede privada de farmácias e drogarias.

Parágrafo único. O PFPB Aqui Tem Farmácia Popular tem por objetivo disponibilizar à população, por meio da rede privada de farmácias e drogarias, os medicamentos e correlatos previamente definidos pelo MS, nos termos do Anexo II desta Portaria.

 

Para participar do Programa Farmácia Popular do Brasil -  PFPB, a entidade privada precisaria habilitar-se previamente, em adesão disciplinada pelo artigo 10 da aludida Portaria GM/MS n.º 971/2012, bem como precisaria dispor de equipamento eletrônico habilitado a emitir cupom fiscal e vinculado para processamento das operações eletrônicas do Programa (inciso VIII); dispor de sistema de gerenciamento eletrônico capaz de realizar requisições eletrônicas (inciso IX), bem como dispor de pessoal treinado para atuar no PFPB, de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos (inciso X).

 

Quanto à rede privada, para a comercialização e a dispensação dos medicamentos no âmbito do PFPB, as farmácias e drogarias deveriam providenciar 2 (duas) cópias legíveis da prescrição, laudo ou atestado médico apresentado pelo paciente no ato da compra, arquivando-as uma em meio físico e outra em meio magnético e/ou arquivo digitalizado no próprio estabelecimento, e mantê-las por 5 (cinco) anos para apresentação sempre que for solicitado, bem como manter por um prazo de 5 (cinco) anos para apresentação, sempre que necessário, as notas fiscais de aquisição dos medicamentos e/ou correlatos do PFPB junto aos fornecedores, com arquivamento de 2 (duas) cópias, uma em meio físico e outra em meio magnético e/ou arquivo digitalizado, no próprio estabelecimento (artigo 23, §§1º e 2º, da aludida Portaria GM/MS n.º 971/2012).

 

Por fim, o Ministério da Saúde efetuaria os pagamentos para as farmácias credenciadas no mês seguinte ao processamento das autorizações de dispensação (artigo 29 da aludida Portaria GM/MS n.º 971/2012).

 

Portanto, por meio de convênio com o Ministério da Saúde, possibilitou-se o fornecimento de medicamentos pela rede privada de farmácias e drogarias (“Aqui Tem Farmácia Popular”), com o cumprimento de requisitos preestabelecidos, tendo o preço subsidiado mediante reembolso de parte do valor pela entidade pública.

 

DA MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO

 

A materialidade delitiva, conforme destacado em sentença, restou comprovada pelo Relatório de Auditoria DENASUS (IDs 278310492 – fl. 05 a 278310503 – fl. 10).

 

Rechaçando a comprovação da autoria e dolo na conduta do réu, justificou o r. juízo a quo:

 

Embora haja relevante material probatório no sentido do descumprimento de normas administrativas do Programa Farmácia Popular do Brasilnão há elementos seguros que permitam concluir que tais irregularidades foram cometidas com o objetivo consciente de fraudar o Programa, de tal forma a obter vantagem indevida em seu prejuízo.

Em síntese, são três as irregularidades indicadas naquela apuração: (a) dispensação de medicamentos sem comprovação de aquisição por meio de notas fiscais; (b) não apresentação da totalidade dos cupons vinculados e respectivas prescrições médicas que lhe foram solicitados apesar da obrigação de mantê-los em arquivo pelo prazo de 5 (cinco) anos; e (c) receitas médicas não reconhecidas como autênticas pela profissional médica.

Não há provas, contudo, sejam documentais, sejam testemunhais, que correlacionem a ausência de nota fiscal para toda e qualquer dispensação e que a não entrega da totalidade dos cupons vinculados e respectivas prescrições médicas tenham sido condutas praticadas para induzir a União Federal em erro.

(...)

Veja-se assim que o controle de estoque é apontado exclusivamente pelo Relatório de Auditoria DENASUS, sendo que tal fiscalização não era feita in loco, mas baseado exclusivamente nas informações prestadas pela farmácia, especificamente no controle de estoque.

O relatório conclui objetivamente as irregularidades (ausência de nota fiscal e cupom para as dispensações), mas de forma alguma tem o condão de concluir que tal irregularidade tinha por finalidade a prática de esquema fraudulento.

Ouvidos em Juízo, os funcionários – ou ex-funcionários – do acusado, Alessandro Demetrius da Silveira (ID 248924594), André Luis de Andrade (ID 248928776), Erik Henrique Alves Carvalho (ID 248929345), Flávio Henrique Ceraze (ID. 248924568), sustentaram que seguiam todas as regras do programa Farmácia popular; que realizavam a venda conforme o estoque; que não utilizavam código de barras diferente do verdadeiro para lançar a venda; e que desconhecem a prática de fraude no período em que trabalharam no estabelecimento do acusado.

Por sua vez, Flávio Henrique Ceraze afirma que operava o sistema do Programa Farmácia Popular quando EDER estava no estabelecimento.

É de ser rechaçada a tese do MPF no sentido de que o acusado deveria apresentar uma justificativa crível para o extravio de notas fiscais e dos cupons vinculados às operações de dispensação, posto que o ônus da prova de todos os elementos do tipo penal é exclusivamente da acusação, não sendo admissível inverter o ônus da prova, com a consequência de se atribuir conduta criminosa pela mera ausência de entrega de notas fiscais, posto que a fraude não deve ser presumida, sob pena de se admitir a responsabilidade objetiva no campo penal. Nesse sentido:

(...)

Mesma conclusão deve ser aplicada quanto a supostas dispensação de medicamentos com o mesmo número EAN, posto que não há comprovação do dolo.

Nesse cenário, em nada as testemunhas contribuem para comprovar que houve dolo do acusado de praticar o crime de estelionato, mais se assemelhando a uma desorganização na gestão da farmácia, o que, por si só, não tem o condão de configurar o crime de estelionato (...).

Quanto à suposta irregularidade de adulteração de receitas médicas                                 

(...)

O que se colhe do depoimento é que a médica não reconhece que algumas receitas médicas teriam sido feitas por elas ou por pessoas com quem ela trabalhava.

Entretanto, não há prova de que as receitas foram praticadas pelo acusado.

Não há qualquer linha indicando de maneira categórica que foi o acusado que teria feito as adulterações. É absolutamente crível que a adulteração de receitas médicas possa ter sido feita pelos próprios pacientes ou terceiros exatamente para se beneficiarem do Programa Farmácia Popular. A exemplo: https://g1.globo.com/mg/centro-oeste/noticia/2022/03/31/prefeitura-de-divinopolis-abre-sindicancia-para-apurar-retirada-de-medicamentos-com-receituario-falso-na-farmacia-popular.ghtml

Aqui não se trata sequer de ausência de dolo, mas de ausência de comprovação da própria autoria delitiva.

No caso concreto, não há dúvida acerca de conduta desidiosa por parte do réu, o que acabou por resultar nas irregularidades apontadas na auditoria do DENASUS. Contudo, embora as condutas praticadas pelo réu estejam situadas em região limítrofe entre a culpa e o dolo, concluo que a acusação não trouxe aos autos elementos suficientes para transpor essa fronteira.

Isto é, em que pese tenha ficado demonstrada a negligência e a imprudência do acusado, não verifico a presença de elementos seguros para concluir que o réu praticou estelionato contra o Programa Farmácia Popular, no sentido de empregar meios fraudulentos para obter vantagem indevida, sendo certo que o tipo penal em questão não admite a responsabilização pela forma culposa.

Tais dúvidas poderiam ter sido sanadas por meio do recurso a outros elementos de prova, complementares ao apuratório administrativo levado a efeito pelo Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (DENASUS).

A acusação, contudo, não arrolou como testemunha os auditores que teriam fiscalizado o estabelecimento do réu, tampouco colaboradores e/ou consumidores da farmácia de propriedade do réu (em especial daqueles indivíduos que teriam o seu nome irregularmente utilizado para a prática das fraudes).

Assim, não há qualquer relato testemunhal no sentido de que o réu orientava seus colaboradores a adotar qualquer tipo de conduta com o objetivo de obter vantagem indevida em detrimento do programa público, tampouco de pessoas que foram impossibilitadas de realizar a compra de seus medicamentos em virtude da existência de compras ‘fantasmas’ realizadas em seu nome no estabelecimento comercial de propriedade do réu.

Não se desconhece que, na esfera administrativa, o Departamento de Auditoria do Ministério da Saúde (DENASUS) não acatou as justificativas apresentadas. Contudo, não obstante o relatório da auditoria seja suficiente para constituir infração administrativa e até possa constituir indício de crime, tal documento, por si só, não é apto a conduzir à responsabilização criminal.

O TRF3 vem exigindo a comprovação categórica do dolo para a configuração do crime em testilha:

(...)

Por fim, não há prova de que o réu tenha incorrido em acréscimo patrimonial durante a prática dos atos de irregularidades cometidos. (...)

No caso em apreço, as provas coligidas não apontam, à margem de dúvidas, que o réu tenha agido com ânimo de causar prejuízo ao Programa da Farmácia Popular, não restando comprovado, de forma satisfatória, o dolo.

Nada impede que no âmbito administrativo o acusado seja compelido a devolver os valores recebidos indevidamente, o que tem sido feito pela auditoria do DENASUS. Contudo, no âmbito do direito penal, onde vigora o princípio da fragmentariedade, não restou comprovado o dolo específico pertinente ao tipo penal.

 

Em razões de Apelação, o órgão ministerial aduz que restou comprovada a autoria e o dolo do acusado EDER TAVARES DE MELLO, sendo o caso de condená-lo pela prática do crime previsto no artigo 171, §3º, do Código Penal.

 

De acordo com o citado Relatório de Auditoria do DENASUS realizada na Drogaria Ubirajara (Eder Tavares de Mello Drogaria – ME), em setembro de 2017, abrangendo o período de apuração de janeiro/2013 a abril/2015, foram constatadas as seguintes irregularidades (após a possibilidade de defesa e apresentação de documentação pela empresa auditada):

 

1) A posição do estoque inicial não foi comprovada, em sua totalidade, por meio de notas fiscais (ID 278310492 – fl. 10).

Justificativa dada pelo réu representando a empresa auditada: Como pedido pelos senhores auditores, enviamos as NF correspondentes a partir de 31/12/2012 que comprovam meu estoque e que tínhamos estoque suficiente para atender a demanda de clientes em nossa região, o possível motivo de não conseguirem fazer a comprovação seria que por motivo de comodidade ou falta de atenção, os funcionários em minha drogaria cadastravam sempre no mesmo EAM/código de barras, totalizando um EAN negativo, porém todos os medicamentos passados foram entregues a seus respectivos clientes.

Análise da Justificativa pelo DENASUS: Em que pese a alegação do auditado de dispensação de medicamentos (ADM) é gerada pelo sistema autorizador de vendas do DATASUS, em tempo real, baseada no código de barras do medicamento efetivamente dispensado ao beneficiário (EAN da embalagem) (...). Desta forma, faz-se necessária a comprovação da aquisição, por meio de notas fiscais dos medicamentos lançados no sistema de vendas do Programa Farmácia Popular do Brasil, não sendo consideradas as aquisições com códigos de barras divergentes. Nesse sentido, permanece a não conformidade pela falta de apresentação de novos elementos que pudessem descaracterizar a constatação apontada preliminarmente. (...);

 

2) Registro de dispensação de medicamentos no período sem comprovação da aquisição por meio de notas fiscais (ID 278310492 – fl. 11).

Justificativa dada pelo réu representando a empresa auditada: O erro vem de acordo com os EAN/Código de barras, pois por comodidade, ou falta de informação, todos faziam suas vendas retirando do mesmo respectivos código de barras, por isso o desacordo e um código negativo. E notas do período passados a mais de 5 anos, nós não mandamos, pois elas não existem mais, foram descartadas e muito desse estoque estavam nessas notas, tentamos entrar em acordos com os fornecedores sobre tais notas antigas, mas também não fomos atendidos sobre isso.

Análise da Justificativa pelo DENASUS: Em que pese a alegação do auditado de dispensação de medicamentos (ADM) é gerada pelo sistema autorizador de vendas do DATASUS, em tempo real, baseada no código de barras do medicamento efetivamente dispensado ao beneficiário (EAN da embalagem) (...). Desta forma, faz-se necessária a comprovação da aquisição, por meio de notas fiscais dos medicamentos lançados no sistema de vendas do Programa Farmácia Popular do Brasil, não sendo consideradas as aquisições com códigos de barras divergentes. Quanto a alegação de não ter mais as notas fiscais com mais de 5 anos, ressaltamos que as notas fiscais solicitadas para comprovação das dispensações são as do período de janeiro de 2013 a abril de 2015, portanto, ainda no prazo de guarda em arquivo. Nesse sentido, permanece a não conformidade e a proposição de devolução ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) dos valores pagos pelo Ministério da Saúde ao estabelecimento farmacêutico, no total de R$ 288.366,68 (duzentos e oitenta e oito mil, trezentos e sessenta e seis reais e sessenta e oito centavos).

 

3) Falta de apresentação da totalidade dos cupons vinculados e respectivas prescrições médicas solicitadas (ID 278310492 – fl. 12).

Justificativa dada pelo réu representando a empresa auditada: Nesta justificativa a explicação é que não conseguimos encontrar tais vendas, pois durante 5 anos, houveram muitas mudanças, algumas trocas de funcionários, e a suspensão do programa farmácia popular PFPB acabou fugindo um pouco do meu controle, assim algumas vendas não foram localizadas.

Análise da Justificativa pelo DENASUS: Tendo em vista a não apresentação dos cupons vinculados solicitados, permanece a não conformidade e a proposição de devolução ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) dos valores pagos pelo Ministério da Saúde ao estabelecimento farmacêutico, no total de R$ 676,53 (seiscentos e setenta e seis reais e cinquenta e três centavos).

 

4) Irregularidades em cupons e receitas médicas apresentados pela empresa (receita médica sem data, com data posterior à dispensação do medicamento, ausência de endereço dos pacientes) (ID 278310492 – fl. 13).

Justificativa dada pelo réu representando a empresa auditada: Como proprietário da drogaria, hoje fico muito mais na parte administrativa, todos os funcionários passaram por treinamento adequado, mas com o passar dos anos e trocas de funcionários, erros acontecem.

Análise da Justificativa pelo DENASUS: As irregularidades em cupons e receitas médicas foram confirmadas pelo responsável legal. Nesse sentido, permanece a não conformidade e a proposição de devolução ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) dos valores pagos pelo Ministério da Saúde ao estabelecimento farmacêutico, no total de R$ 1.335,18 (um mil, trezentos e trinta e cinco reais e dezoito centavos).

 

5) Prescrições médicas não reconhecidas como autênticas pela profissional médica de iniciais E.M.N.C. (ID 278310492 – fl. 14).

Justificativa dada pelo réu representando a empresa auditada: Como justificativa, lhes digo que todas as receitas foram entregues por pacientes que foram a farmácia, e foram atendidos por meus funcionários, que são orientados a pegar a receita verificar data, documento, carimbo médico, assinatura, e tudo estava conforme de acordo com as regras do PFPB, e nós da drogaria não teríamos como saber de tais irregularidades conforme alega a doutora E.M.N.C., como proprietário, fico mais na parte administrativa, cuidando de psicotrópicos, entorpecentes, entrada e saída de controlados.

Análise da Justificativa pelo DENASUS: Em que pese a alegação do auditado que não teria como saber se as receitas eram irregulares ou não, ao apurar a denúncia anônima de que a farmácia auditada estaria adulterando nome e data de receitas médicas com uso de corretivo para mantê-las no arquivo, constatamos o não reconhecimento da emissão das receitas médicas pela médica de iniciais E.M.N.C., referente aos cupons relacionados no Anexo VII. Nesse sentido, permanece a não conformidade e a proposição de devolução ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) dos valores pagos pelo Ministério da Saúde ao estabelecimento farmacêutico, no total de R$ 450,90 (quatrocentos e cinquenta reais e noventa centavos).

 

6) Registro de dispensação de medicamentos pelo PFPB em nome de pessoas falecidas, após a data do óbito (ID 278310493 – fl. 1);

Justificativa dada pelo réu representando a empresa auditada: Não tenho conhecimento deste fato, o que tenho a dizer é que atendíamos dentro das normas da farmácia popular, e entregávamos para parentes próximos de primeiro grau, com comprovação por documento de identidade de tal e não tínhamos como saber se a pessoa veio a óbito, atendíamos apenas o que vinha prescrito na receita, nós sempre pegamos todos os dados, como receita, documento de identidade, nós passávamos as vendas e o sistema PFPB o liberava, pensando por esse lado, o sistema também é falho em liberar vendas para pacientes que já teriam vindo a óbito.

Análise da Justificativa pelo DENASUS: Em que pese a justificativa do auditado, a cópia da procuração em nome do paciente dando direito a terceiros de retirarem os medicamentos prescritos não foi apresentada (...). Nesse sentido, permanece a não conformidade e a proposição de devolução ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) dos valores pagos pelo Ministério da Saúde ao estabelecimento farmacêutico, no total de R$ 80,36 (oitenta reais e trinta e seis centavos).

 

Nos autos do inquérito policial, foram colhidos os seguintes depoimentos:

 

Jean Michel Tavares de Mello (ID 278310482 – fl. 25/26), filho do acusado, relatou ter trabalhado na Drogaria Ubirajara no período de 04.01.2007 a 07.10.2009 e 01.02.2010 a 31.07.2015. Alegou que durante o período que lá trabalhou efetuava a venda de medicamentos pelo Programa Farmácia Popular. Não havia nenhuma recomendação específica para a venda de medicamentos Farmácia Popular e nunca notou nenhuma irregularidade ou algo estranho nestas transações. O declarante nunca ouviu falar em fraude ou irregularidade na empresa. Não havia nenhuma recomendação para utilização do mesmo EAN/código de barras para cadastrar um determinado medicamento, inclusive não havia controle de entradas de notas de tais medicamentos referente ao programa. Informa que em relação a auditoria realizada pelo SUS, houve um equívoco em relação a entradas de notas. Realmente houve um equívoco por parte dos funcionários, no quesito entrada de notas e controle do estoque em relação aos medicamentos do programa, isto por desleixo dos funcionários, havendo assim realmente essa comodidade. (...) O declarante participou de duas vendas, onde posteriormente o sistema acusou o óbito de tais pacientes, mas ressalta que tais pacientes eram clientes de longa data da farmácia, motivo pelo qual os medicamentos eram entregues antes do prazo estipulado pelo programa para o recebimento do medicamento, porém nestes dois casos coincidiu por terem sido entregues antes, e que na hora do faturamento da venda do programa, os pacientes já teriam vindo a óbito e o comprovante foi levado até a residência de tais e lá alguém inocentemente assinou no lugar (...).

 

Alessandro Demetrius da Silveira (ID 278310482 – fl. 27) relatou que trabalhou na farmácia denominada Drogaria Ubirajara, no período de 01.07.1998 a 31.08.2017, prestando serviços de atendente e que o responsável legal e administrador sempre foi EDER TAVARES MELLO. O declarante durante o período que lá trabalhou efetuou a venda de medicamentos pelo programa Farmácia Popular e que a recomendação sempre foi na exibição da receita e o CPF do paciente e nunca notou nenhuma irregularidade ou algo estranho nas transações (...). Que não sabe informar se havia recomendação para utilização do mesmo EAN/código de barras para cadastrar determinado medicamento, pois não realizava esse tipo de procedimento (...).

 

Erik Henrique Alves Carvalho (ID 278310491 – fls. 06/07) confirma que prestou serviço de balconista na Farmácia denominada “Drogaria Ubirajara” e no período de janeiro de 2013 a abril de 2015 realizou dispensações de medicamentos através do sistema Programa Farmácia Popular (...). Que o declarante apenas entregava o medicamento e colhia a assinatura, sendo que a responsabilidade do registro e lançamento era de Eder Tavares de Melo, empregador do declarante; (...) que alguns clientes chegavam à farmácia apenas com a cópia, sem apresentar o original, que era aceito, pois não havia orientação contrária, já outros clientes apresentavam a original e era providenciada a cópia, na própria farmácia que o declarante conhece apenas algumas das pessoas (...). Que o declarante não recebia comissão das vendas efetuadas através do programa Farmácia Popular, porém recebia de outros medicamentos fora do programa; que o declarante informa que embora Jean Michel Tavarez de Mello, fosse o farmacêutico responsável, apenas Eder era quem dava ordens aos funcionários. 

 

Flávio Henrique Ceraze (ID 278310491 – fls. 13/14) que prestou serviço de balconista na Farmácia denominada ‘Drogaria Ubirajara’ no período de setembro de 2014 a julho de 2018, onde fazia entregas, porém atendia o balcão, sendo que era realizada dispensações de medicamentos através do sistema Programa Farmácia Popular (...). Que o declarante apenas entregava o medicamento e colhia a assinatura, sendo que a responsabilidade do registro e lançamento responsabilidade (sic) de Eder Tavares de Melo, proprietário da farmácia; (...) que as receitas apresentadas pelos clientes, sempre eram as originais e era providenciada a cópia da mesma na farmácia (...). Que o declarante não recebia comissão das vendas efetuadas através do programa Farmácia Popular; que o declarante informa que na ausência do pai, Jean Michel Tavarez de Melo, que era farmacêutico responsável, era quem repassava as ordens aos funcionários.

 

Em interrogatório policial, EDER TAVARES DE MELLO (ID 278310490 – fls. 17/18) confirmou que era o responsável pela administração da farmácia, aduzindo que era o responsável pela aquisição, estoque e vendas de medicamentos da empresa; que a empresa efetuou a venda de medicamentos pelo programa Farmácia Popular no período de, salvo engano, 2012 a 2015; que nunca houve nenhuma recomendação aos funcionários para a utilização do mesmo EAN/código de barras para cadastrar a venda de medicamentos; que em relação a auditoria feita pelo SUS, esclarece que enviou as notas de aquisição dos medicamentos; que é verdadeira as alegações de que por comodidade ou falta de atenção os funcionários cadastravam sempre o mesmo código de barras para medicamentos vendidos. Que quando se referiu aos termos ‘comodidade e falta de atenção’, quis dizer que foi um erro de administração por parte do declarante; que o declarante esclarece que o erro se deu devido ao cadastramento de venda pelo mesmo código de barras; que o declarante nunca adquiriu medicamentos sem documentação fiscal (...) em relação a pessoas falecidas informa que era de costume faltando alguns dias para o término do medicamento entregar novo lote ao cliente, por ser os mesmos conhecidos, sendo que um deles veio a falecer neste interim (...).

 

Em juízo, foram colhidos os depoimentos das seguintes testemunhas:

 

Sônia Regina Kretly Bove, auditora do DENASUS (relatora da Auditoria na Farmácia Drogaria Ubirajara (ID 278310868 e 278310869 - trecho transcrito da sentença ID 278310956), relatou:

 

P: (4:58) A senhora é auditora do DENASUS?

R: Sim.

P: Só para entendermos melhor o caso, gostaria que a senhora me explicasse como é que funciona o programa farmácia popular, como é que funciona uma venda na farmácia credenciada, que documento que tem que levar, que sistema que usa.

R: A pessoa para adquirir o medicamento do programa, ela tem que ter uma receita médica, e na portaria está especificando quais são os detalhes que tem que ter nessa receita. Tem que ter nome completo, tem que ter o carimbo do médico, tem que ter a assinatura do médico, a prescrição do medicamento com clareza e assinatura do médico e o paciente vai na farmácia com esta receita acompanhada do CPF, e aí ele pode fazer a compra dos medicamentos específicos para o programa, porque tem uma lista específica para o programa, não é qualquer medicamento que você pode pegar pelo programa. A regra do programa é que o paciente tem que comparecer pessoalmente para pegar o medicamento. Caso ele não possa ir, ele tem que fazer uma procuração para que alguém represente - isso registrado em cartório - para poder ter acesso e pegar os medicamentos para outras pessoas ou para a pessoa, que pode ser parente, pode ser qualquer uma pessoa que o paciente determinar que será o seu procurador.

P (6:49): E a farmácia na hora que faz essa venda, ela faz o uso de um sistema próprio?

R: Sim, tem um sistema próprio, lá eles lançam o medicamento, a identificação da pessoa, eles colocam todas as dosagens dos medicamentos e assim especificamente esses medicamentos têm que ser identificados pelo código de barras, e esse código de barras, ele é específico para medicamentos para o programa farmácia popular. Somente uma lista de medicamentos que faz parte do programa é fornecida desta forma para qualquer usuário, e os medicamentos que estão na lista são os que têm que estar lá, não pode ser similar, não pode ser substituído, tanto é que é fechado, que o medicamento tem que ser dispensado por meio do código de barras da caixinha do remédio. Quando a dispensação é feita, o profissional da farmácia apresenta o código de barra da caixinha e aí faz o procedimento da dispensação dos medicamentos. O código de barras é fundamental nessa situação, e só pode ser o código de barras que está na lista de medicamentos que são fornecidas pelo programa farmácia popular.

P (8:21): Eu vi que o relatório fala muito do código EAN né. O código EAN é o código de barras né?

R: Isso, código de barras.

P: Então pelo que a senhora relatou, na hora que a pessoa vai comprar, então o farmacêutico vai lá, pega o medicamento que está cadastrado, conforme receita, ele vai olhar no momento da venda qual o código de barras é isso?

R: Não, o código de barras é um leitor, o sistema lê o código de barras da caixinha dos medicamentos.

P (8:55): Então não demanda ninguém decorar código, não precisa disso, no ato que ele está com o leitor ali, ele vai pegar o que está aparecendo?

R: Exatamente.

P (09:06) Gostaria que a senhora explicasse melhor esse conceito que aparece no relatório de cupom vinculado. Para que ele serve, como que é?

R: Quando o paciente compra um medicamento, ele tem um cupom que é o que foi comprado, o gasto, e o vinculado é o que tem as informações do paciente, que vai ter as informações do quantitativo de medicamento, etc. Tem o cupom que lança o valor do que ele tá comprando, tem o outro que é junto que identifica as pessoas, tem um nome, sai o nome da pessoa, o medicamento, por isso que ele chama vinculado, pois está vinculado à conta.

P (09:55): No caso, esse cupom vinculado serve para a fiscalização depois verificar, é isso?

R: É onde a gente utiliza isso para poder verificar o que foi dispensado constante naquele cupom, está relacionado com o quantitativo de estoque que a farmácia tem que ter. Então é o Eder que vai lá.

P (10:24): E esse documento a farmácia tem que guardar por quanto tempo?

R: Então, todo o documento do programa, receita, tudo o que for o procedimento são 5 anos.

P (10:39): Agora entrando mais especificamente no caso concreto aqui da farmácia do senhor Eder, como é que foi a fiscalização na farmácia, vocês requisitam documentos, já puxam do sistema, como é que começa, como é que desenvolve?

R: A gente retira do departamento de assistência farmacêutica uma relação de medicamentos que foram dispensados naquela farmácia, e a gente cruza com o CPF da pessoa que retirou esse medicamento. Então o sistema vai lançando, ele vai sendo alimentado com o lançamento dos medicamentos que foram encontrados no nome, na pessoa do CPF informado.

P (11:35): Consta na denúncia aqui que houve uma irregularidade no estoque, que o sistema detectou que houve venda de medicamentos que não tinha divisão no estoque da farmácia. Como é que foi isso, como é que isso foi apurado, especificamente?

R: A gente tem uma ferramenta que faz esse cruzamento. A gente pede as notas fiscais, a gente, com o código de barra, inclui essas notas fiscais nesse sistema, e depois, com o que foi dispensado pela farmácia vai fazer o cruzamento se realmente foi dispensado aquele medicamento.

P (12:15): A senhora lembra então que no caso da farmácia do senhor Éder, a senhora constatou que não tinha estoque para fazer (ID. 248928776)?

R: isso, essa ferramenta dá o resultado pra gente, inclusive fala quais são os medicamentos, tem muito detalhe nessa ferramenta, que inclusive está no relatório. Se o senhor pegar os anexos, o senhor vai ver quais foram os medicamentos que foram considerados, quais foram os medicamentos que não foram considerados. Inclusive depois já tem o valor né, de todos esses medicamentos, que implica em devolução para o Ministério da Saúde (ID. 248924568).

P (00:30): A senhora lembra qual foi a alegação da farmácia, o que eles disseram, enfim, qual foi a explicação para essa irregularidade?

R: Então, tem uma constatação aqui no próprio relatório que diz que em uma das justificativas que talvez por comodidade ou por outra razão, se utilizava a mesma caixinha para se fazer a dispensação. Eu não sei como que é isso né, que foi escrito pelo representante da farmácia né, que quando a gente pede para se fazer a defesa, eu não sei especificamente qual é a constatação, teria que estar procurando para estar dizendo para o senhor.

P (02:47): Os cupons vinculados a senhora lembra se ele estava com os cupons lá guardados ou já tinha extraviado os cupons?

R: Pela constatação, que está no relatório, o senhor pode ver que não foram apresentados todos os cupons que a gente solicitou, eu não sei a razão, pode ser porque foi desviado, porque não tinha ou não foi guardado, eu não sei, mas a informação que eu posso dar para o senhor é que nós pedimos uma quantidade de cupons e não veio essa totalidade, mas isso o senhor pode ver no nosso anexo dos cupons que foram aceitos e as razões pelas quais não foram aceitos e os cupons que vieram e não vieram.

P (03:33): Na denúncia consta que parte das receitas que foram apresentadas para fiscalização, elas aparentam ser adulteradas, porque o desenho dos médicos são idênticos. A senhora lembra de ter se deparado com essa situação na fiscalização?

R: A gente selecionou uma série de receitas e a gente tinha assinatura do médico proposta, que está la embaixo junto com o carimbo, e a gente mandou para a médica verificar se era do conhecimento dela aquelas receitas, se ela tinha alguma coisa a acrescentar pra gente.

P (04:24): A senhora lembra se a médica era a doutora Edna Maria Carniel?

R: Eu não lembro, só tem as iniciais aqui

P: É EMC?

R: Isso P: Foi ela mesmo então né? R: É, inclusive na constatação tem a resposta dela

P (04:51): No mais, o que a senhora produziu aqui de relatório a senhora confirma tudo que está aqui, é isso?

R: Sim, confirmo.

 

André Luís de Andrade (ID 278310870) relatou que trabalhou na “Drogaria Ubirajara” no período de 2011 ao final de 2013. Alegou que operava o sistema da Farmácia Popular e sempre solicitou a receita e a apresentação de documentos. Cada medicamento tem seu código de barra e cada um tem o seu preço, até porque a farmácia popular possui medicamentos com valores diferentes, cada um possui um custo. Não recebeu ordem para usar o mesmo código de barra em medicamentos diversos.  O estabelecimento comercial não trabalhava com muitas marcas de medicações e se não tinha a medicação no estoque a pessoa não levava.

 

Flávio Henrique Ceraze (ID 278310870) relatou que trabalhou na “Drogaria Ubirajara” no período de 2014 a 2018. Aduziu que fazia a venda dos medicamentos, ocasião em que o cliente apresentava a receita e documento com foto, o atendente entregava a medicação conforme a receita médica, providenciando cópia desta, por fim o cliente assinava. Alegou que não operava o sistema da Farmácia Popular, até porque, logo que começou a trabalhar, a farmácia foi descredenciada. Disse que EDER fazia o lançamento no momento da venda, contudo, não soube explicar como era feito o registro no sistema do PFPB quando o réu não estava presente. Asseverou que as receitas eram originais e, posteriormente, era feita cópia.

 

Edna Maria Nunes Carniel (ID 278310885) médica de UBS em Fernandópolis/SP (trecho transcrito em sentença ID 278310956) relatou:

 

P (02:51): A senhora é médica, trabalha em Fernandópolis?

R: Isso, trabalho em UBS e consultório particular também.

P: Como médica, acredito que a senhora expede muitas receitas, todos os dias?

R: Sim.

P: A senhora tem um controle, tem uma ideia se isso é controlado na UBS ou em algum lugar se as suas receitas vão para a farmácia popular, se tem uma espécie de controle nesse sentido ou não? Simplesmente a senhora prescreve medicamento?

R: Toda a receita que é prescrita na UBS, ela fica registrada em prontuário. A (inaudível) da família tem um método de trabalho que as vezes é feito que a receita é realizada por outro profissional da equipe, mas mesmo assim ela é anotada no prontuário e assinada pelo médico, então toda receita realizada ela fica registrada em prontuário.

P (04:00): Mas dessas receitas que são registradas não tem um controle ‘a essa aqui ele vai comprar na particular, essa aqui vai para a farmácia popular’ não existe isso né?

R: Não, não existe isso.

P: A senhora lembra de ter sido interpelada pelo DENASUS a respeito da farmácia da Drogaria Ubirajara, do senhor Eder Tavares de Melo, a senhora se recorda disso ou não?

R: Sim, me recordo,[foi] há alguns anos atrás, não sei quando, mas sim.

P: O que a senhora lembra o que te perguntaram, o que a senhora respondeu?

R: Foi me apresentado algumas receitas e perguntado se a assinatura era minha, e um calhamaço de receitas, a assinatura era minha, porém eu pude observar que nas várias receitas as assinaturas eram idênticas, eram uma cópia, porque nem que eu quisesse eu conseguiria assinar tantas receitas idênticas.

P (05:09): E o que foi apresentado para a senhora foi o original ou foram cópias de receitas?

R: Cópias.

P: Então a olho nu a senhora conseguiu verificar que o desenho era idêntico em todas essas receitas?

R: Isso, exatamente, era um calhamaço, por acaso eu folheei elas e vi que a assinatura era idêntica, eu até escrevi isso no meu relatório, que a assinatura conferia, mas que eu achava estranho porque eram todas idênticas.

P: E fora esse fato a senhora identificou alguma coisa, alguma outra coisa que chamou a atenção ali da senhora nesse sentido?

R: Sim, as letras das receitas né, porque nem sempre sou eu que transcrevi a receita, na época a gente fazia manual, as receitas eram manuais, então como eu estou te dizendo, as vezes ela era escrita pelo farmacêutico, pelo enfermeiro, pelo auxiliar, ou pelos estudantes que passavam na UBS, certo? Mas as letras não eram compatíveis com nenhum funcionário da UBS, não era minha letra, e os alunos eles passam com a gente por um período de 5 semanas, e tinham receitas de vários meses com a mesma letra, então não era funcionário da (inaudível) do Paraíso, na época que eu trabalhava no Paraíso.

P (06:40): O texto da receita era cópia também como era da assinatura da senhora ou a senhora não conseguiu identificar?

R: O que eu tive acesso eram todos xerox.

P: Pelo que a senhora disse a assinatura aparentava ser reproduzida, isso que entendi que a senhora disse.

R: Exatamente, a impressão que meu deu é que o cabeçalho do receituário e a assinatura eram a mesma em todas as receitas, mudava o conteúdo.

 

Alessandro Demetrius da Silveira (ID 278310874) relatou que ainda trabalhava na “Drogaria Ubirajara”. Aduziu que fazia vendas de medicamentos, discorrendo que o cliente apresentava a prescrição médica e seu CPF, ocasião em que fazia a conferência (data de receita e assinatura), pegava o medicamento do estoque, digitava o seu código, já que a farmácia não possuía leitor. Relatou que vendia e lançava no sistema do PFPB o medicamento indicado na receita médica.

 

Erik Henrique Alves Carvalho (testemunha comum) (ID 278310885 e 278310898) relatou que trabalhou na “Drogaria Ubirajara” no período de 2010 a 2020. Aduziu que tinha acesso ao Programa da Farmácia Popular, mas quem fazia o registro e lançamento do medicamento no sistema era o acusado EDER.  Contudo, se o acusado EDER não estivesse presente poderia fazer a venda, digitava o produto, mas não usava o mesmo código de barra. Afirmou que os clientes apresentavam receita original e somente uma vez uma cliente chegou com cópia. Nunca se deparou com receita adulterada.

 

Em interrogatório judicial EDER TAVARES DE MELLO (ID 278310926 e 278310936) relatou que não tinha muito conhecimento sobre o funcionamento do Programa Farmácia Popular do Brasil - PFPB, contudo, sabia que tinha que ter guardado as notas fiscais de entrada de mercadorias e das vendas destas, por 5 (cinco)  anos. Alegou que não tinha costume de controlar estoque. Aduziu que todos os funcionários tinham senha e acessavam o sistema do PFPB. Sustentou que a auditoria apontou falha porque faltaram as notas fiscais de 2011 e 2012, pois, como já havia transcorrido 05 (cinco) anos, elas tinham sido descartadas. Relatou que, quando chegavam  mercadorias, por vezes não dava entrada no sistema, apenas as guardava, bem como as notas fiscais. Negou que usasse o mesmo código de barra. Afirmou que clicava no primeiro medicamento que encontrava com o princípio ativo, independentemente do laboratório, porque era o mesmo preço.

 

Analisando o conjunto probatório, a despeito das conclusões do r. juízo a quo, constata- se que há nos autos elementos suficientes para comprovação da materialidade, autoria e dolo do réu EDER TAVARES DE MELLO na prática do crime previsto no artigo 171, §3º, do Código Penal.

 

Inicialmente, ressalte-se, na forma aduzida pelo r. juízo, no que concerne à adulteração das receitas médicas supostamente emitidas por Edna Maria Nunes Carniel, médica da UBS de Fernandópolis/SP, que não há como apurar se a falsificação teria sido feita no âmbito da farmácia ou pelos próprios pacientes ou ainda por terceiros, exatamente para se beneficiarem do Programa Farmácia Popular. Também irrelevantes (na esfera penal) outras irregularidades apontadas pelo DENASUS na auditoria, tais como desconformidades em receitas médicas apresentadas pelo estabelecimento farmacêutico ao aludido órgão (receita médica sem data, com data posterior à dispensação do medicamento, ausência de endereço dos pacientes), pois caracterizam-se como meras irregularidades administrativas.

 

Contudo, não se pode desconsiderar que, no período de janeiro de 2013 a abril de 2015. apurou-se a venda de medicamentos pela “Drogaria Ubirajara”, inseridos no contexto do Programa Farmácia Popular, portanto, com subsídio do valor pelo Ministério da Saúde, sem a comprovação, por meio de notas fiscais, de que estavam no estoque da farmácia, no montante de R$ 288.366,68 (duzentos e oitenta e oito mil, trezentos e sessenta e seis reais e sessenta e oito centavos).

 

Tal conduta foi efetivamente constatada pelo Relatório de Auditoria do DENASUS na Drogaria Ubirajara (Eder Tavares de Mello Drogaria – ME), realizada em setembro de 2017.

 

A autoria está devidamente comprovada, eis que o réu era o proprietário e administrador da “Drogaria Ubirajara”,  havendo elementos bastantes a evidenciar  que seria o responsável por operar o sistema do Programa Farmácia Popular do Brasil - PFPB, conforme pode-se extrair dos depoimentos das testemunhas. Ademais, era o único destinatário dos valores repassados à citada farmácia pela venda dos medicamentos subsidiados pelo aludido programa.

 

O dolo em sua conduta está devidamente comprovado. Para justificar a divergência entre as vendas e o estoque, EDER TAVARES DE MELLO relatou em sede administrativa que o erro vem de acordo com os EAN/Código de barras, pois por comodidade, ou falta de informação, todos faziam suas vendas retirando do mesmo respectivo código de barras, por isso o desacordo e um código negativo.

 

Contudo, o próprio acusado e as testemunhas negaram tal informação tanto em sede policial quanto em juízo. No mais, aduziu a defesa que as notas do período passados a mais de 5 anos (...) foram descartadas e muito desse estoque estavam nessas notas, tentamos entrar em acordos com os fornecedores sobre tais notas antigas, mas também não fomos atendidos sobre isso, contudo, a auditoria, realizada em setembro de 2017, apurou somente o período de janeiro de 2013 a abril de 2015, o que desautoriza tal argumentação da defesa.

 

Conforme anteriormente destacado, nos termos §2º do artigo 23 da Portaria GM/MS n.º 971, de 15 de maio de 2012, vigente no período apurado, caberá as farmácias e drogarias manter por um prazo de 5 (cinco) anos para apresentação, sempre que necessário, as notas fiscais de aquisição dos medicamentos e/ou correlatos do PFPB junto aos fornecedores, com arquivamento de 2 (duas) cópias, uma em meio físico e outra em meio magnético e/ou arquivo digitalizado, no próprio estabelecimento. No mais, o próprio réu mencionou em juízo que tinha ciência sobre a necessidade de guardar as notas fiscais por um período de 05 (cinco)  anos.

 

Assim, ao contrário das conclusões da r. sentença, o acusado deveria sim apresentar uma justificativa crível para o extravio de notas fiscais, não se tratando de inversão do ônus da prova. Destaque-se que, além da comprovação necessária para o programa PFPB, todo empresário tem ciência da importância e necessidade de guardar notas fiscais de compra de produtos que revende, especialmente por questões de ordem tributária, não sendo crível as alegações do réu e a justificativa de que seria mera negligência.

 

Do mesmo modo, caberia ao acusado comprovar que teria dispensado medicamentos similares, com o mesmo princípio ativo dos medicamentos colacionados, ainda que em desacordo com o Programa Farmácia Popular do Brasil - PFPB.

 

Portanto,  o réu EDER TAVARES DE MELLO não logrou êxito em comprovar a existência dos necessários estoques para grande parte das dispensações que realizava, havendo, ao revés, prova suficiente de não ter existido estoque de remédios na farmácia para fazer frente às vendas realizadas, logo, tratou-se de dispensações simuladas de medicamentos, ou seja, de fraude. 

 

Assim agindo, o réu não apenas violou as normas administrativas do programa como se locupletou ilicitamente mediante tal prática, de forma que o conjunto probatório é robusto a comprovar a materialidade, autoria e dolo, sendo o caso de o condenar  pela prática do crime previsto no artigo 171, §3º, do Código Penal.

 

Considerando, no mais, que a prática criminosa ocorreu durante, ao menos, 27 meses (janeiro de 2013 a abril de 2015) é o caso de reconhecer que o estelionato ocorreu em continuidade delitiva.

 

DA DOSIMETRIA DA PENA

 

 O cálculo da pena deve ater-se aos critérios dispostos no artigo 68 do Código Penal, de modo que, na primeira etapa da dosimetria, observando as diretrizes do artigo 59 do Código Penal, o magistrado deve atentar à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, e estabelecer a quantidade de pena aplicável, dentro de uma discricionariedade juridicamente vinculada, a partir de uma análise individualizada e simultânea de todas as circunstâncias judiciais. 

 

Na segunda fase de fixação da pena, o juiz deve considerar as agravantes e atenuantes, previstas nos artigos 61 a 66, todos do Código Penal. 

 

Finalmente, na terceira etapa, incidem as causas de diminuição e de aumento da pena.

 

Pena-base

 

No que diz respeito à culpabilidade, não se observa que tenha extrapolado a definição do próprio tipo penal.

 

Quanto aos antecedentes criminais, cabe mencionar que a súmula n.º 444 do Superior Tribunal de Justiça assim dispõe: É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base (Data da Publicação - DJ-e 13-5-2010). Tal enunciado se coaduna com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), pois inviabiliza que, antes que haja o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, eventuais procedimentos criminais instaurados e não encerrados em definitivo sejam invocados para a majoração da pena-base, prejudicando o réu. Assim, apenas se existirem condenações criminais transitadas em julgado, e somente se estas não servirem para a conformação da reincidência, é que se justificaria, no cálculo da primeira fase, reputar como desfavoráveis os vetores referentes aos maus antecedentes. No caso concreto, não há condenação criminal transitada em julgado em face do réu.

 

Nada há a se valorar negativamente quanto à conduta social e personalidade do acusado, pois não colhidos elementos elucidativos. Os motivos e circunstâncias do crime não extrapolam os elementos que configuram o próprio tipo penal.

 

 No que diz respeito às consequências do crime, a pena-base deve ser majorada em decorrência do prejuízo material suportado pela União, colocando em risco a credibilidade do serviço público de assistência farmacêutica perante os usuários do Programa Farmácia Popular do Brasil. De certo, constata-se que, por ocasião da realização de auditoria (setembro de 2017), o DENASUS apontou que o crime praticado pelo réu causou um prejuízo de R$ 288.366,68 (duzentos e oitenta e oito mil, trezentos e sessenta e seis reais e sessenta e oito centavos) ao Fundo Nacional de Saúde, montante significativo que justifica a exasperação da pena-base imposta.

 

Igualmente, nada há a valorar quanto ao comportamento da vítima por se tratar de crime contra o patrimônio de autarquia federal.

 

Com a valoração negativa de uma circunstância judicial (consequências do crime) a pena-base resta fixada em 01 (um) ano e 06 (seis) meses de reclusão, e 15 (quinze) dias-multa.

 

Agravantes e atenuantes

 

Não há nos autos circunstâncias que atenuem ou agravem a pena do réu.

 

Causas de aumento e diminuição de pena

 

Deve ser aplicada a causa de aumento na fração de 1/3, tendo em vista o cometimento de crime em face da União, com fundamento no art. 171, § 3º, do Código Penal.

 

Sem causas de diminuição de pena.

 

Pena definitiva fixada em 02 (dois) anos de reclusão, e pagamento de 20 (vinte) dias multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do salário-mínimo vigente na data dos fatos.

 

Da continuidade delitiva

 

Para a caracterização do crime continuado, o agente deve, mediante mais de uma ação ou omissão, praticar dois ou mais crimes, os quais devem, necessariamente, ser da mesma espécie, bem como deve o primeiro delito determinar o(s) subsequente(s), ou seja, ser a causa dos outros crimes, observadas as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

 

O artigo 71, caput, do Código Penal, assim dispõe:

 

Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

 

Quanto à fração de pena a ser aumentada, tem-se o teor da Súmula 659 do STJ: A fração de aumento em razão da prática de crime continuado deve ser fixada de acordo com o número de delitos cometidos, aplicando-se 1/6 pela prática de duas infrações, 1/5 para três, 1/4 para quatro, 1/3 para cinco, 1/2 para seis e 2/3 para sete ou mais infrações.

 

Considerando que o aumento da pena em razão da continuidade delitiva deve ser proporcional à quantidade de ações perpetradas ou ao período de tempo pelo qual estas se prolongaram e tendo em vista que, in casu, o delito fora praticado mais de sete vezes, deve haver a exasperação da pena no patamar máximo de 2/3 (dois terços).

 

Pena definitiva fixada em 03 (três) anos e 04  (quatro) meses de reclusão, e pagamento de multa de 33 (trinta e três) dias-multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do salário-mínimo vigente na data dos fatos.

 

Do regime inicial de cumprimento da pena

 

Considerando que a pena fixada é inferior a 04 (quatro) anos de reclusão, não restando configurada a reincidência delitiva, bem como considerando que as circunstâncias judiciais militam, majoritariamente, favoráveis ao réu, resta fixado o regime ABERTO para início de cumprimento da pena (artigo 33, § 2º, “c”, do Código Penal).

 

Da substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos

 

Do mesmo modo, cabível a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos.

 

Nos termos do artigo 44, §3º, do Código Penal, considerando as medidas socialmente recomendáveis, bem como não configurada a reincidência delitiva, a pena imputada ao réu deve ser substituída por duas penas restritivas de direito, consistentes na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, na forma a ser estabelecida pelo Juízo da Execução Penal, pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade e, prestação pecuniária na quantia de 03 (três) salários-mínimos, ao tempo do pagamento, a ser destinada à entidade pública ou privada com destinação social, a ser designada pelo Juízo das Execuções Penais.

 

No tocante ao valor da prestação pecuniária, apenas observo que o artigo 45, §1º, do Código Penal, dispõe que a prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 01 (um) salário-mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários-mínimos.

 

No que tange à destinação da prestação pecuniária, saliente-se que a União é sempre vítima estanque de todo e qualquer delito e o encaminhamento sistemático a ela faria com que as demais hipóteses do artigo mencionado jamais tivessem aplicação. Sob este espeque, a destinação da prestação pecuniária ora determinada alcança fins sociais precípuos que o direito penal visa alcançar, de maneira eficaz e objetiva.

  

PENA DEFINITIVA

 

EDER TAVARES DE MELLO - Condenação pela prática do crime do artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva, a pena de 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial ABERTO, e pagamento de multa de 33 (trinta e três) dias-multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do salário-mínimo vigente na data dos fatos. Pena privativa de liberdade substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e prestação pecuniária na quantia de 03 (três) salários-mínimos, ao tempo do pagamento, a ser destinada à entidade pública ou privada com destinação social.

 

DISPOSITIVO

 

Diante do exposto, voto por DAR PROVIMENTO à Apelação do Ministério Público Federal para condenar o réu EDER TAVARES DE MELLO pela prática do crime do artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva, na forma da fundamentação.

 

É o voto.

 



E M E N T A

 

PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO MAJORADO. FRAUDE NO PROGRAMA FARMÁCIA POPULAR DO BRASIL (PFPB). MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO COMPROVADOS. DOSIMETRIA DA PENA. MAJORAÇÃO DA PENA-BASE. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. CONTINUIDADE DELITIVA. REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DA PENA ABERTO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS.

- Materialidade. Comprovada pelo relatório de auditoria do DENASUS na Drogaria Ubirajara (Eder Tavares de Mello Drogaria – ME), realizada em setembro de 2017, abrangendo o período de apuração de janeiro/2013 a abril/2015, constando, dentre outras irregularidades, o registro de dispensação de medicamentos no período sem comprovação da aquisição por meio de notas fiscais e de estoque adequado.

- Autoria delitiva. O réu era o proprietário e administrador da “Drogaria Ubirajara”, com elementos conclusivos de que seria o responsável por operar o sistema do Programa Farmácia Popular do Brasil - PFPB. No mais, era o único destinatário dos valores repassados pela venda dos medicamentos subsidiados pelo aludido Programa à citada farmácia.

- Elemento Subjetivo. O dolo na conduta do réu extrai-se dos elementos colhidos nos autos. Ele não logrou êxito em comprovar a existência dos necessários estoques para grande parte das dispensações que realizava, porquanto não apresentou uma justificativa crível para o extravio de notas fiscais, bem como não comprovou que teria dispensado medicamentos similares, com o mesmo princípio ativo dos medicamentos colacionados, revelando prova insuficiente da existência de estoque de remédios na farmácia para fazer frente às supostas vendas realizadas, configurando evidência de dispensações simuladas de medicamentos, ou seja, de fraude. Comprovado que o réu não apenas violou as normas administrativas do programa como se locupletou ilicitamente mediante tal prática, sendo o caso de condená-lo pela prática do crime do artigo 171, §3º, do Código Penal. Considerando, no mais, que a prática criminosa ocorreu durante, ao menos, 27 meses (janeiro de 2013 a abril de 2015) é o caso de reconhecer que o estelionato ocorreu em continuidade delitiva.

- Dosimetria da Pena. Primeira-fase. Valoração negativa das consequências do crime em decorrência do prejuízo material suportado pela União, colocando em risco a credibilidade do serviço público de assistência farmacêutica perante os usuários do Programa Farmácia Popular do Brasil. Constata-se que o DENASUS apontou que o crime praticado pelo réu causou um prejuízo de R$ 288.366,68 (duzentos e oitenta e oito mil, trezentos e sessenta e seis reais e sessenta e oito centavos) ao Fundo Nacional de Saúde, sendo um montante significativo, justificando uma exasperação da pena-base imposta. Pena-base fixada em 01 (um) ano e 06 (seis) meses de reclusão, e 15 (quinze) dias-multa. Não há nos autos circunstâncias que atenuem ou agravem a pena do réu. Deve ser aplicada a causa de aumento na fração de 1/3, tendo em vista o cometimento de crime em face da União, com fundamento no art. 171, § 3º, do Código Penal. Sem causas de diminuição de pena. Pena definitiva fixada em 02 (dois) anos de reclusão, e pagamento de 20 (vinte) dias multa.

- Da continuidade delitiva. Considerando que o aumento da pena em razão da continuidade delitiva deve ser proporcional à quantidade de ações perpetradas ou ao período de tempo pelo qual estas se prolongaram e tendo em vista que, in casu, o delito fora praticado mais de sete vezes, deve ser mantida a determinação de exasperação da pena no patamar máximo de 2/3 (dois terços).

- Pena definitiva fixada em 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, e pagamento de multa de 33 (trinta e três) dias-multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do salário-mínimo vigente na data dos fatos.

- Do regime inicial de cumprimento da pena. Considerando que a pena fixada é inferior a 04 (quatro) anos de reclusão, não restando configurada a reincidência delitiva, bem como considerando que as circunstâncias judiciais militam, majoritariamente, favoráveis ao réu, resta fixado o regime ABERTO para início de cumprimento da pena.

 - Da substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos. considerando as medidas socialmente recomendáveis, bem como não configurada a reincidência delitiva, a pena imputada ao réu deve ser substituída por duas penas restritivas de direito, consistentes na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, na forma a ser estabelecida pelo Juízo da Execução Penal, pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade e, prestação pecuniária na quantia de 03 (três) salários-mínimos, ao tempo do pagamento, a ser destinada à entidade pública ou privada com destinação social, a ser designada pelo Juízo das Execuções Penais.

   - Apelação do Ministério Público Federal a que se dá provimento.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Décima Primeira Turma, por unanimidade, decidiu DAR PROVIMENTO à Apelação do Ministério Público Federal para condenar o réu EDER TAVARES DE MELLO pela prática do crime do artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva, na forma da fundamentação, tendo o Des. Fed. Nino Toldo acompanhado o voto do Relator com a ressalva de seu entendimento de que o crime continuado (CP, art. 71) integra o sistema trifásico da dosimetria da pena (CP, art. 68), pois constitui causa de aumento , nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.