Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001913-84.2022.4.03.6128

RELATOR: Gab. 09 - DES. FED. ADRIANA PILEGGI

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: JUDELIN EUGENE, BENITA EUGENE, N. E.

Advogado do(a) APELADO: ALINE JAMILE BUENO NOSSABEIN - PR82481-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001913-84.2022.4.03.6128

RELATOR: Gab. 09 - DES. FED. ADRIANA PILEGGI

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: JUDELIN EUGENE, BENITA EUGENE, N. E.

Advogado do(a) APELADO: ALINE JAMILE BUENO NOSSABEIN - PR82481-A

 

  

R E L A T Ó R I O

 

A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL ADRIANA PILEGGI: Trata-se de apelação interposta contra sentença que deferiu o pleito que concedeu o ingresso de cidadão haitiano em território nacional sem a necessidade da apresentação de visto, tendo como fundamentação a reunião familiar e o acolhimento humanitário.

A União Federal, em suas razões de apelação, argumentou, preliminarmente, que a eventual concessão de liminar para ingresso de nacionais haitianos, deve ser sopesada e ficar restrita a hipóteses excepcionais. Que a procedência do pedido importa em violação ao princípio da isonomia e da independência e harmonia entre os Poderes. Além do mais, em caso de procedência, estar-se-ia suprimindo a necessidade de concessão de visto pelas autoridades diplomáticas, ignorando assim o devido procedimento legal. Requer, portanto, seja conhecida a apelação e provida para reformar a r. sentença, julgando improcedente o pedido inicial.

Com contrarrazões, vieram os autos a esta E. Corte Regional.

O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento da apelação.

É o relatório.

 

Desembargadora Federal ADRIANA PILEGGI

RELATORA

 

 


DECLARAÇÃO DE VOTO

 

O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL RUBENS CALIXTO: Trata-se de apelação interposta pela UNIÃO FEDERAL contra sentença que julgou procedente o pedido de ingresso de estrangeiro em território nacional, independentemente da apresentação de visto, sob o fundamento da reunião familiar.

A e. Relatora deu provimento ao recurso por entender, em síntese, que, “a pretensão deduzida pela parte autora está amparada em arguição genérica de dificuldade para obtenção do visto na embaixada brasileira no Haiti, em virtude de ineficiência do sistema de agendamento e emissão de visto. Todavia, não há registro de nenhuma tentativa do requerimento administrativo de visto em nome dos interessados ou prova da inoperância do sistema informatizado, conforme se dessume da leitura da exordial”.

Todavia, com a devida vênia, divirjo do entendimento da relatoria, pelas razões que passo a expor.

Trata o presente feito da possibilidade de ingresso de estrangeiro em território nacional, independentemente da concessão de visto, para fins de reunião familiar.

Especificamente quanto aos migrantes originários do Haiti, é de conhecimento público que o referido país enfrenta grave crise humanitária e de segurança pública, agravada por desastres naturais. Tal cenário culminou em uma escalada nas solicitações de visto e residência temporária para fins de acolhida humanitária, registrando-se a entrada de 161 mil haitianos no Brasil entre 2012 e 2023, conforme dados divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

O acolhimento a nacionais haitianos inclui-se em política vigente desde a revogada Lei nº 6.815/1980, quando editada a Resolução Normativa nº 97, de 12/01/2012, expedida pelo Conselho Nacional de Imigração, prevendo a concessão do visto constante do art. 16 da Lei nº 6.815/1980, por razões humanitárias, isto é, “aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12/01/2010”.A referida norma teve sua vigência prorrogada até 30/10/2016 pela Resolução Normativa CNI nº 117, de 12/8/2015.

Ainda, no intuito de suprir a excessiva demanda dirigida à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, foi instalado, em 29/09/2015, o Brazil Visa Application Centre (BVAC), da Organização Internacional para Migrações (IOM), destinado a auxiliar os candidatos no preenchimento dos formulários e verificação da documentação apresentada para encaminhamento à Embaixada brasileira. Além da possibilidade de agendamento pelo site da IOM (acerca do qual há relatos de ausência de vagas), foi disponibilizado o e-mail iomhaitivrf@iom.int, destinado aos pedidos de visto para reunião familiar.

Posteriormente, a Lei nº 13.455/2017, que revogou a Lei nº 6.815/1980, passou a prever, expressamente, que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar (arts. 3º, VI e VIII, e 4º, III, da Lei nº 13.445/2017).

Nos termos dos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.455/2017, o visto é o documento que dá a seu titular a expectativa de ingresso em território nacional e será concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados por órgão competente do Poder Executivo, escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior. Ainda, dispõe o art. 12 que poderá ser concedido ao solicitante que pretenda ingressar ou permanecer no país vistos de visita, temporário, diplomático, oficial e de cortesia.

Especificamente quanto ao visto temporário, prevê o art. 14, I, c, e § 3º do mesmo diploma legal a possibilidade de concessão de visto com finalidade de acolhida humanitária, destinado ao “apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento”.

Atendendo ao disposto pelo art. 36, §1º, do Decreto nº 9.199/2017, que regulamenta a Lei de Migração, foi expedida a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30/03/2023, que rege a concessão do visto temporário e da autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais haitianos e apátridas.

O art. 2º da norma determinou que o visto temporário será concedido exclusivamente pela Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, bem como que os novos pedidos serão recebidos apenas quando forem concluídas todas as entrevistas para solicitação de vistos agendadas até a data de publicação da Portaria, ficando a concessão sujeita às condições em Porto Príncipe para o processamento de vistos.

Ademais, prevê em seu art. 4º que o imigrante detentor do visto temporário deverá registrar-se em uma das unidades da Polícia Federal em até noventa dias após seu ingresso em território nacional, decorrendo de tal registro a residência temporária, que terá prazo de dois anos. Restando noventa dias para o término do prazo, o imigrante poderá requerer, também em uma unidade da Polícia Federal, autorização de residência com prazo indeterminado (art. 8º).

Nesse cenário surgiu a possibilidade da concessão do visto ou autorização de residência para fins de reunião familiar, previsto pelo art. 37 da Lei nº 13.445/2017 e regulamentado pelo art. 45 do Decreto nº 9.199/2017 e pela mais recente Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023. De acordo com as aludidas normas, poderão ser familiares “chamantes” os nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti que obtiveram autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária, por prazo determinado ou indeterminado. Ainda, poderão ser chamados, os seguintes nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti:

I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro;

II - filho de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência;

III - enteado de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência, desde que menor de dezoito anos de idade, ou até os vinte e quatro anos de idade, se comprovadamente estudante, ou de qualquer idade, se comprovada a dependência econômica em relação ao chamante;

IV - que tenha filho brasileiro;

V - que tenha filho imigrante beneficiário de autorização de residência;

VI - ascendente até o segundo grau de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência;

VII - descendente até o segundo grau de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência;

VIII - irmão de imigrante beneficiário de autorização de residência, desde que menor de dezoito anos de idade, ou até os vinte e quatro anos de idade, se comprovadamente estudante, ou de qualquer idade, se comprovada a dependência econômica em relação ao chamante; ou

IX - que tenha brasileiro sob a sua tutela, curatela ou guarda.

A solicitação da autorização de residência deverá ser realizada por meio de formulário disponibilizado no âmbito do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (DEMIG/MJSP) e deverá ser instruído com os documentos constantes do rol do art. 6º da Portaria. Autorizada a residência prévia, “o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, 3º, da Portaria).

Em consulta à Cartilha Informativa sobre Documentação de Reunificação Familiar para Haitianos, disponível no Portal de Imigração do Ministério da Justiça e Segurança Pública, extrai-se a informação de que a solicitação deve ser realizada através do sistema MigranteWeb pelo familiar chamante. Ainda, consta a informação de que o migrante que já realizou o protocolo eletrônico no sistema SEI junto ao DEMIG/MJSP, antes da entrada em vigor da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023, deverá enviar novamente os requerimentos pelo novo sistema.

Assim, não se desconhece os inúmeros esforços envidados pelo governo brasileiro no intuito de facilitar o requerimento por nacionais haitianos de concessão de visto e de residência temporária, bem como de garantir a celeridade na análise de tais pedidos. Provas disso são a edição das Portarias Interministeriais MJSP/MRE nº 37/2023 e 38/2023, a criação do sistema MigranteWeb e a instalação do BVAC/IOM, que segue em funcionamento, ainda que submetido a condições precárias de abastecimento e segurança.

Contudo, também são de conhecimento público os recorrentes relatos por parte de migrantes acerca da dificuldade ou mesmo impossibilidade de acesso a tais programas, seja por indisponibilidade dos sistemas ou pela ausência de vagas para agendamento.

De fato, ao realizarmos diversas tentativas de agendamento no site do BVAC/IOM (https://haiti.iom.int/cavb), constatou-se que a mensagem é sempre de que todas as vagas estão atualmente preenchidas e de que novas janelas serão abertas em breve.

Ademais, a despeito da disponibilização do e-mail iomhaitivrf@iom.int, destinado aos pedidos de visto para reunião familiar, há informações de que, constantemente, a caixa de entrada encontra-se cheia.

Considerando os complexos trâmites diplomáticos cumpridos pelo Poder Executivo, as ferramentas por ele disponibilizadas, bem como a preservação de sua competência para a análise dos pedidos de concessão de vistos e autorizações de residência, conclui-se que a intervenção do Poder Judiciário em tais decisões deve limitar-se a situações excepcionais, não cabendo sua atuação de forma indiscriminada.

Nesse sentido, restou decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Agravo Interno em Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3.092/SC, que “é necessário que se permita aos magistrados o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado”.

Ainda, quando do julgamento dos embargos de declaração opostos em face do referido acórdão, reiterou o E. STJ a exigência do cumprimento das condições por ele estabelecidas, de forma cumulativa, (esgotamento das possibilidades administrativas e adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis), para a o eventual deferimento de medidas liminares.

No caso dos autos, verifica-se que os apelantes alegam, dentre outras questões, a impossibilidade de acesso aos sistemas de agendamento.

Conforme fundamentos acima, as possíveis dificuldades a que estão sujeitos os interessados em realizar o requerimento administrativo de visto e residência ou a eventual indisponibilidade momentânea dos sistemas governamentais, por si só, não autorizam a atuação do Poder Judiciário no sentido da determinação de expedição de visto ou autorização de ingresso em território nacional independentemente dele, atribuições de competência do Poder Executivo.

Contudo, em consonância com o quanto decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, entendo cabível a intervenção judicial para garantir aos migrantes o recebimento e análise de seus requerimentos pelas autoridades competentes quando inviável sua realização pela via administrativa, como ocorre no caso em tela. Nesse mesmo sentido, julgados em casos análogos proferidos no âmbito desta E. Corte Regional:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTRANGEIRO. HAITI. AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM. VISTO HUMANITÁRIO PARA REUNIÃO FAMILIAR. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE RECEBIMENTO E AVALIAÇÃO DOS DOCUMENTOS PELA UNIÃO FEDERAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

- A questão do ingresso dos haitianos com vista à reunião familiar, consoante decisão proferida pelo STJ, no SLS 3092-SC não está suspensa, tendo sido autorizada às instâncias inferiores a análise das liminares e tutelas com critério e cautela, desde que se observem se houve exaurimento das possibilidades administrativas de e medidas instrutórias de informação viáveis.

- Os autores, provenientes do Haiti, buscam o ingresso em território brasileiro por via aérea, para reunião familiar. Sustentam que, em razão do conturbado momento político que o país enfrenta, qualquer tipo de serviço público prestado, principalmente emissão de qualquer visto/passaporte encontra-se impossível de conseguir, ressaltando ainda que qualquer ida a capital do país é extremamente perigosa em razão da guerrilha. Expõe que, hoje, os haitianos estão totalmente desassistidos, sendo, além de vítima da miséria e catástrofes naturais, também de corrupção. Ademais, a obtenção de visto brasileiro no Consulado do Brasil em Porto Príncipe, Haiti, é tarefa quase impossível, conforme seguidamente noticiado nos meios de comunicação.

- Por outro lado, a União não está inerte quanto à situação dos haitianos que objetivam acolhida humanitária, tanto que foi editada a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 33, de 29 de dezembro de 2022, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti, ratificando os objetivos norteadores da política migratória.

- Cabe destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no precedente supracitado (SLS Nº 3092-SC) ponderou que a intervenção do Poder Judiciário deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas e reforçou a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis inclusive perícia social no Brasil, para que sejam deferidas as liminares e tutelas nos casos de ingresso sem visto dos haitianos.

- Agravo de instrumento parcialmente provido para determinar que a União Federal receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário, nos termos da fundamentação.

(TRF 3ª Região, 4ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5001770-15.2023.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal ANDRE NABARRETE NETO, julgado em 20/09/2023, Intimação via sistema DATA: 21/09/2023)

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO INTERNO. ESTRANGEIRO. HAITI. INGRESSO NO TERRITÓRIO NACIONAL SEM VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. EXAURIMENTO DAS POSSIBILIDADES ADMINISTRATIVAS E DAS MEDIDAS INSTRUTÓRIAS.  RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

Dispõe a Constituição Federal em seu artigo 4º, inc. II, que a República Federativa do Brasil é regida nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, dentre outros.

Em cumprimento ao comando constitucional a Lei 13.445/2017, em seu artigo 14, I, alínea c e § 3º, prevê a concessão de visto temporário para acolhida temporária.E, sobre a concessão de visto temporário para acolhida humanitária para os nacionais do Haiti foram editadas sucessivas Portarias Interministeriais, pelo Ministério de Estado da Justiça e Segurança Pública e pelo Ministério das Relações Exteriores, sendo a mais recente a nº 38/2023, a qual prevê que o trâmite do pedido se dê de forma mais célere e flexível.  

A política de imigração é atribuição do Poder Executivo, de maneira que a intervenção do Poder Judiciário deve se restringir a casos excepcionais, sendo de se destacar que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no SLS Nº 3092-SC, versando sobre ingresso no Brasil dos imigrantes haitianos sob motivação humanitária, em julgamento com efeitos estendidos a todos os processos análogos, assentou que os Juízes devem decidir as controvérsias sobre direito imigratório com cautela, reforçando a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias para o deferimento de liminares e tutelas nos casos de ingresso sem apresentação de visto no território nacional.

Necessário o exaurimento das possibilidades administrativas e das medidas instrutórias, deve-se acolher parcialmente o pedido para determinar à União que receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário da parte recorrente, nos termos regulamentação normativa específica, no caso a Portaria Interministerial 38, atualmente vigente . 

Recurso parcialmente provido. 

(TRF 3ª Região, 6ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5011357-61.2023.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal LUIS ANTONIO JOHONSOM DI SALVO, julgado em 30/08/2023, DJEN DATA: 04/09/2023)

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. HAITIANOS. INGRESSO EM TERRITÓRIO NACIONAL SEM A NECESSIDADE DE VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE. PRECEDENTE DO STJ. OBTENÇÃO DE AGENDAMENTO ELETRÔNICO PARA A CONCESSÃO DE VISTO. DIFICULDADES OPERACIONAIS. CONSTATAÇÃO. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA TRIPARTIÇÃO. POSSIBILIDADE DE REQUERIMENTO, PELA PARTE AUTORA, JUNTO AOS ÓRGÃOS COMPETENTES. GARANTIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DA UNIÃO FEDERAL PARCIALMENTE PROVIDOS. 
1 - O visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante. 
2 - Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III). 
3 - Conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos. 
4 - A controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade. 
5 - A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto. 
6 – Existência de inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. Consulta junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”). 
7 - A indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição. Precedente. 
8 - Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar (SLS nº 3092/SC, Corte Especial). Entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais. 
9 – Edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil.  
10 - Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º). Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º. 
11 - Normatizou-se, também, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º). 
12 - Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos. 
13 - Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados. 
14 - Nesse particular, impende registrar que o canal eletrônico criado pela chancelaria brasileira (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br), para além de não disponibilizar, de imediato, datas para agendamento, impõe a condição de prévio encaminhamento de todos os documentos devidamente legalizados (reconhecimento da assinatura no original em seu original, pela autoridade consular, tradução para o português por tradutor juramentado no Brasil e, por fim, registro em cartório de títulos e documentos sediado no Brasil, ao custo de vinte dólares norte-americanos cada um), para, só então, uma vez validados, viabilizar o atendimento. Não bastasse, ilustrações retiradas de “prints” do endereço eletrônico mencionado, constantes de outros feitos desse jaez, revelam que, dentre as espécies de visto passíveis de requerimento através do “e-consular”, não está incluída aquela referente ao “Visto temporário para reunião familiar – espécie XI”, a demonstrar, também aqui, a significativa dificuldade de solicitação da permissão de ingresso e permanência em território nacional, pelos meios oficiais então disponibilizados. 
15 - Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entende-se que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer. Precedente desta Corte. 
16 - Sucumbente a parte autora no pedido de autorização de ingresso no país, sem visto, mas exitosa na determinação de apreciação do pedido pelo Poder Executivo, de rigor a condenação de ambas as partes no pagamento de honorários advocatícios à parte adversa (art. 86/CPC), no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, suspensa a exigibilidade da cobrança em relação à parte autora, ante a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça.
17 – Remessa necessária e recurso da União Federal parcialmente providos.
(TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApelRemNec - APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA - 5001584-93.2021.4.03.6003, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 11/10/2023, DJEN DATA: 18/10/2023)

Ante o exposto, com a renovada vênia da relatoria, voto por dar parcial provimento à apelação, a fim de determinar que a União Federal, através dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar, no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão.

Em razão da sucumbência recíproca, nos termos do art. 85 do CPC, condeno cada uma das partes a suportar o pagamento de honorários advocatícios na proporção de seu decaimento, arbitrados mediante aplicação do percentual mínimo das faixas previstas no § 3º sobre o montante sobre o montante atribuído à causa, estabelecendo 50% a cargo da parte ré e 50% a cargo da parte autora, observado o disposto no art. 98, § 3º, do CPC, em vista de a parte ser beneficiária de gratuidade de justiça. Custas e demais ônus processuais têm os mesmos parâmetros.

É o voto.


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RELATOR: Gab. 09 - DES. FED. ADRIANA PILEGGI

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V O T O

 

A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL ADRIANA PIELGGI: Preenchidos os pressupostos genéricos, conheço o presente recurso e passo ao respectivo exame.

Cinge-se a controvérsia sobre a possibilidade de concessão de autorização excepcional para ingresso de cidadão haitiano no país, independentemente da apresentação de visto, com o objetivo de reunião familiar.

Os autores provenientes do Haiti, requerem a acolhida humanitária, para ingresso em território nacional, para reunião com haitiano residente no Brasil, alegando situação precária, em meio à crise nacional que acomete o Haiti, tais como catástrofes naturais, miséria, corrupção, dentre outros, impossibilitando a obtenção de visto perante a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do agravo interno interposto contra decisão monocrática nos autos da Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3092/SC, que havia suspendido os efeitos de tutelas antecipadas ou liminares cujo objeto era o deferimento de pleitos de cidadãos haitianos para ingresso no Brasil sem a necessidade de visto, fixou o seguinte entendimento:

AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ESTRANGEIROS MENORES DE IDADE AFASTADOS DOS GENITORES. ACOLHIDA HUMANITÁRIA DE HAITIANOS. EFEITO MULTIPLICADOR. SUSPENSÃO GENÉRICA DE TODAS E QUALQUER MEDIDA LIMINAR SOBRE O TEMA, PRESENTE OU FUTURA. PONDERAÇÃO DE VALORES E RAZOABILIDADE. EXAME INDIVIDUALIZADO DE CADA SITUAÇÃO. 1. A intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. 2. O indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento das estipulações constitucionais e com a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos. 3. Primazia da proteção da criança e do adolescente, da tutela da família como base da sociedade e do direito ao convívio familiar. 4. Salvaguarda da possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação, inclusive a obtenção de medidas liminares. Direito fundamental da pessoa que tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional. 5. A Segunda Turma do E. STF, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida, com base em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na proteção de direitos fundamentais. 6. Permissão às instâncias inferiores para o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência e com cautela, diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil , deliberem sobre a concessão ou não das medidas liminares. 7. Agravos Internos providos para reformar a decisão objurgada e reestabelecer as liminares de origem.

Contra o referido Acórdão foram opostos embargos de declaração que foram rejeitados à unanimidade, conforme ementa a seguir :

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE INTEGRAÇÃO DA EMENTA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO. 1. Consoante a literalidade do artigo 1.022 do Código de Processo Civil, os Embargos de Declaração são cabíveis para esclarecer obscuridade, eliminar contradição, suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o Tribunal de ofício ou a requerimento, e/ou corrigir eventual erro material. 2. Comando contido na parte dispositiva do Voto que foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes do eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil. 3. Descumprimento dessas prescrições que poderá ensejar a propositura de Reclamação para a preservação da autoridade da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e, eventualmente, de Reclamação Disciplinar perante os órgãos correcionais contra os recalcitrantes, mas não de Embargos de Declaração que objetivem dar destaque, na ementa, a aspectos que a parte considera relevantes. 4. A ementa é simples extrato dos pontos essenciais do Voto e não pode e nem deve conter todos os seus fundamentos e estipulações. Inviabilidade do manejo de Embargos de Declaração que objetivem a sua complementação. 5. Inexistindo omissão, obscuridade ou contradição a ser suprida, inviável o acolhimento dos Embargos de Declaração. 6. Embargos de Declaração rejeitados.

Assim, consoante entendimento exarado pelo e. STJ, no tocante à política migratória para admissão da entrada de haitianos, a intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes, sendo necessária a comprovação cumulativa de que houve (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil.

No caso presente, não vislumbro a presença da excepcionalidade prevista na orientação firmada pela Corte Superior. 

A pretensão deduzida pela parte autora está amparada em arguição genérica de dificuldade para obtenção do visto na embaixada brasileira no Haiti, em virtude de ineficiência do sistema de agendamento e emissão de visto. Todavia, não há registro de nenhuma tentativa do requerimento administrativo de visto em nome dos interessados ou prova da inoperância do sistema informatizado, conforme se desume da leitura da exordial. 

Sobre a questão, perfilho do entendimento exarado no julgamento do recurso de apelação nº 5001847-86.2022.4.03.6134, de relatoria da eminente Desembargadora Federal Consuelo Yoshida, no sentido de que é necessária a descrição individualizada e pormenorizada da realidade fática do interessado.

Ademais, com a edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que trata  sobre a concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil, o requerimento de entrada pode ser realizado diretamente pela pessoa haitiana residente no Brasil, sem a necessidade de intermediários ou agendamento prévio, por meio do sistema informatizado “MigranteWeb”, que se encontra ativo e acessível na rede mundial de computadores. 

Não bastasse, consoante a “Cartilha Informativa sobre Documentação Reunificação Familiar para Haitianos”, divulgada pelo Poder Executivo, há o compromisso de análise do processo em até 30 (trinta) dias, após o recebimento de toda a documentação exigida. Assim, havendo possibilidade de análise administrativa, deverá a parte antes requerer seu pedido na via adequada.

Dessa forma, não há como prosperar o pedido deduzido pela parte,  haja vista que os estrangeiros que pretendem ingressar em território nacional, ainda mais com ânimo de permanência, devem sujeitar-se às normas estabelecidas pelos órgãos governamentais.

Invertidos os ônus sucumbenciais, observados os direitos à justiça gratuita.

 Ante o exposto, dou provimento à apelação. 

É como voto.

 

Desembargadora Federal ADRIANA PILEGGI

RELATORA

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E M E N T A

 

DIREITO ADMINISTRATIVO. INGRESSO DE ESTRANGEIRO EM TERRITÓRIO NACIONAL. AUSÊNCIA DE VISTO. HAITI. ACOLHIDA HUMANITÁRIA. REUNIÃO FAMILIAR. CONCESSÃO OU DISPENSA DE VISTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO. DETERMINAÇÃO PARA RECEBIMENTO E PROCESSAMENTO DO PEDIDO. POSSIBILIDADE.

- O acolhimento a nacionais haitianos inclui-se em política vigente desde a revogada Lei nº 6.815/1980, quando editada a Resolução Normativa nº 97, de 12/01/2012, expedida pelo Conselho Nacional de Imigração, prevendo a concessão do visto constante do art. 16 da Lei nº 6.815/1980, por razões humanitárias.

- Ainda, no intuito de suprir a excessiva demanda dirigida à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, foi instalado, em 29/09/2015, o Brazil Visa Application Centre (BVAC), da Organização Internacional para Migrações (IOM), destinado a auxiliar os candidatos no preenchimento dos formulários e verificação da documentação apresentada para encaminhamento à Embaixada brasileira.

- A Lei nº 13.455/2017, que revogou a Lei nº 6.815/1980, passou a prever, expressamente, que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar (arts. 3º, VI e VIII, e 4º, III, da Lei nº 13.445/2017).

- Prevê o art. 14, I, c, e § 3º da Lei nº 13.455/2017 a possibilidade de concessão de visto com finalidade de acolhida humanitária. Atendendo ao disposto pelo art. 36, §1º, do Decreto nº 9.199/2017, foi expedida a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30/03/2023, que regulamentou a concessão do visto temporário e da autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais haitianos e apátridas.

- Nesse cenário surgiu a possibilidade da concessão do visto ou autorização de residência para fins de reunião familiar, previsto pelo art. 37 da Lei nº 13.445/2017 e regulamentado pelo art. 45 do Decreto nº 9.199/2017 e pela mais recente Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023. A solicitação da autorização de residência deverá ser realizada por meio de formulário disponibilizado no âmbito do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (DEMIG/MJSP) e deverá ser instruído com os documentos constantes do rol do art. 6º da Portaria.

- Em consulta à Cartilha Informativa sobre Documentação de Reunificação Familiar para Haitianos, disponível no Portal de Imigração do Ministério da Justiça e Segurança Pública, extrai-se a informação de que a solicitação deve ser realizada através do sistema MigranteWeb pelo familiar chamante. Ainda, consta a informação de que o migrante que já realizou o protocolo eletrônico no sistema SEI junto ao DEMIG/MJSP, antes da entrada em vigor da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10/04/2023, deverá enviar novamente os requerimentos pelo novo sistema.

- Assim, não se desconhece os inúmeros esforços envidados pelo governo brasileiro no intuito de facilitar o requerimento por nacionais haitianos de concessão de visto e de residência temporária, bem como de garantir a celeridade na análise de tais pedidos. Provas disso são a edição das Portarias Interministeriais MJSP/MRE nº 37/2023 e 38/2023, a criação do sistema MigranteWeb e a instalação do BVAC/IOM, que segue em funcionamento, ainda que submetido a condições precárias de abastecimento e segurança.

- Contudo, também são de conhecimento público os recorrentes relatos por parte de migrantes acerca da dificuldade ou mesmo impossibilidade de acesso a tais programas, seja por indisponibilidade dos sistemas ou pela ausência de vagas para agendamento.

- Considerando os complexos trâmites diplomáticos cumpridos pelo Poder Executivo, as ferramentas por ele disponibilizadas, bem como a preservação de sua competência para a análise dos pedidos de concessão de vistos e autorizações de residência, conclui-se que a intervenção do Poder Judiciário em tais decisões deve limitar-se a situações excepcionais, não cabendo sua atuação de forma indiscriminada.

- Nesse sentido, restou decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Agravo Interno em Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3.092/SC, que “é necessário que se permita aos magistrados o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado”.

- No caso dos autos, verifica-se que os apelantes alegam, dentre outras questões, a impossibilidade de acesso aos sistemas de agendamento.

- Conforme fundamentos acima, as possíveis dificuldades a que estão sujeitos os interessados em realizar o requerimento administrativo de visto e residência ou a eventual indisponibilidade momentânea dos sistemas governamentais, por si só, não autorizam a atuação do Poder Judiciário no sentido da determinação de expedição de visto ou autorização de ingresso em território nacional independentemente dele, atribuições de competência do Poder Executivo.

- Contudo, em consonância com o quanto decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, entendo cabível a intervenção judicial para garantir aos migrantes o recebimento e análise de seus requerimentos pelas autoridades competentes quando inviável sua realização pela via administrativa, como ocorre no caso em tela.

- Parcial provimento à apelação para o fim de determinar que a União Federal, através dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar, no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão.

- Sucumbência recíproca.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Turma, nos termos do artigo 942/CPC, por maioria, deu parcial provimento à apelação, nos termos do voto do Des. Fed. RUBENS CALIXTO, com quem votaram os Des. Fed. NERY JUNIOR e CARLOS DELGADO, vencidas a Relatora e a Des. Fed. CONSUELO YOSHIDA, que lhe davam provimento. Lavrará o acórdão o Des. Fed. RUBENS CALIXTO, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.